Open-access Percepções, significados e adaptações à hemodiálise como um espaço liminar: a perspectiva do paciente

Perceptions, meanings and adaptations to hemodialysis as a liminal space: the patient perspective

Percepciones, significados y adaptaciones a la hemodiálisis como un espacio de condición preliminar: la perspectiva del paciente

Resumos

Este trabalho apresenta um olhar etnográfico sobre a experiência das pessoas que dependem da hemodiálise para continuar vivendo. Neste artigo, o foco é o paciente, apresentamos suas percepções e experiências, tomando como base seu convívio com a doença e suas estratégias de enfrentamento, pois as características bastante peculiares desse tratamento geram uma relação complexa, acompanhada de contradições e ambiguidades. Os entrevistados, com idades entre 18 e setenta anos, estavam há mais de um ano nesse tratamento e revelaram vidas marcadas pela experiência da doença, além de depoimentos que nos levam a analisar a hemodiálise como espaço de liminaridade. Interpretamos, aqui, à luz da teoria antropológica e a partir de alguns depoimentos dos 117 entrevistados, que todo paciente com insuficiência renal crônica, dependente da hemodiálise, vive em um espaço liminar que pode durar meses ou anos.

Palavras-chave Diálise renal; Renal crônico; Liminaridade


This study presents an ethnographic view about the experience of people who depend on hemodialysis to survive. The investigation focused on patients, their perceptions and experiences, based on their relationship with the disease and coping strategies, given that the specificities of this type of treatment originate a complex process, followed by contradictions and ambiguities. The interviewees, who were aged between 18 and 70 years and had been on this treatment over a year, revealed having lives marked by the disease experience and statements which make hemodialysis to be construed as a liminality space. The study, grounded on the anthropological theory, and some of the reports by the 117 interviewees developed the interpretation that every patient with chronic kidney disease who depends on hemodialysis lives in a liminal space that can last months or years.

Keywords Renal dialysis; Chronic kidney disease patient; Liminality


Este trabajo presenta una mirada etnográfica sobre la experiencia de las personas que dependen de la hemodiálisis para continuar viviendo. En este artículo el enfoque es el paciente y presentamos sus percepciones y experiencias, tomando como base su convivencia con la enfermedad y sus estrategias de enfrentamiento, puesto que las características bastante peculiares de este tratamiento generan una relación compleja, acompañada de contradicciones y ambigüedades. Los entrevistados con edades entre 18 y 70 años estaban desde hacía más de un año en ese tratamiento y revelaron vidas marcadas por la experiencia de la enfermedad, además de declaraciones que nos llevan a analizar la hemodiálisis como espacio de condición preliminar. Interpretamos aquí a la luz de la teoría antropológica y a partir de algunas declaraciones de los 117 entrevistados que todos los pacientes con insuficiencia renal crónica, dependientes de hemodiálisis viven en un espacio preliminar que puede durar meses o años.

Palabras clave Dialisis renal; Renal crónico; Condición preliminar


Apresentação

A doença renal é identificada quando há perda ou ineficiência das funções dos rins (regulatória, excretória e endócrina). Ela pode ser aguda, quando há a possibilidade de restabelecimento dessas funções, ou crônica, quando não há essa possibilidade 1 . Nesse último caso, torna-se necessário o tratamento dialítico – hemodiálise ou diálise peritoneal (e) – para que as respectivas máquinas realizem as funções dos rins ineficientes. Aqui, o foco é na hemodiálise, que consiste em uma vinculação à máquina, endovenosamente, por um período de aproximadamente quatro horas, de três a quatro vezes por semana, em clínica especializada.

Em Sergipe, há quatro clínicas de hemodiálise, todas particulares. Três na capital, Aracaju, e uma no interior, na cidade de Itabaiana. Uma quinta clínica iniciou em 2016 as atividades, na cidade de Estância. O trabalho de campo foi realizado em duas dessas clínicas no período de dez meses. Os nomes dos entrevistados cujos registros aparecem neste artigo foram substituídos por nomes fictícios, conforme acordado com os participantes, que fazem parte de uma pesquisa maior, autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, via Plataforma Brasil, cujo CAAE (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética) é de número 27672614.0.0000.5371.

Participaram deste estudo 117 pessoas (f) , todas com mais de um ano de tratamento hemodialítico, com idades variando entre 18 e setenta anos, perfazendo uma média de 48,5 anos (DP (g) = 13,4). Dos entrevistados, 32,6% pertencem ao sexo feminino, e 67,4%, ao sexo masculino. A renda de 83,7% deles era de até três salários-mínimos. O recorte desta pesquisa é qualitativo, sem nenhuma pretensão de comparar populações ou proposição inferencial. A metodologia utilizada foi a etnografia, apoiando-se também em entrevistas semiestruturadas e questionário sociodemográfico (h) .

A frequência de observações nas clínicas, durante o período de campo, foi de três a quatro vezes por semana. As entrevistas foram iniciadas na clínica que tinha um maior número de pacientes em tratamento, passando para a segunda clínica quatro meses após o início da pesquisa. Cada clínica tinha dois ou três turnos disponíveis para a hemodiálise. Pelo tempo de cada paciente em tratamento, pelas intercorrências e eventuais interrupções (por problemas na máquina ou indisposições do participante), raramente foi possível conversar com mais de dois pacientes por turno.

Foi disponibilizado, por parte das clínicas, espaço específico para as entrevistas, que eram as mesmas salas de atendimento psicológico. Entretanto, todos os participantes optaram pela realização das entrevistas enquanto estavam conectados à máquina. Foi utilizado o recurso da gravação, mas vários se sentiram constrangidos ou incomodados. Nesses casos, as gravações não foram realizadas. No total, vinte participantes autorizaram a gravação e essas conversas foram transcritas. No entanto, a experiência etnográfica vai muito além das entrevistas gravadas, e esses meses somam: incontáveis horas de diálogos, entrevistas não gravadas, confidências e conversas informais sobre os mais variados temas.

Os locais onde o tratamento acontecia eram espaços coletivos, cada sala tinha, no mínimo, três máquinas/pacientes e, no máximo, 24. Antes da minha presença como pesquisadora, levei cartazes para indicar que a pesquisa iria ser realizada na clínica; os cartazes continham: o título da pesquisa, meu contato, orientadores e instituição.

Ao iniciar, houve, em cada sala, uma primeira apresentação geral do profissional da clínica sobre a presença da pesquisadora e realização da pesquisa. Em seguida, eu me apresentava, falava dos objetivos, público-alvo e perguntava quem tinha interesse em participar. Uma entrevista completa durava entre duas horas e meia e seis horas. Raramente, conseguia concluir alguma entrevista durante a sessão de hemodiálise (que durava quatro horas). Dessa forma, foi frequente a necessidade do retorno ao próximo dia de tratamento do mesmo participante para concluir a entrevista.

Evitava-se a abordagem ao participante no início da sessão, devido ao tempo necessário para: o processo de registro do peso, verificação da pressão, oxigenação, dentre outros, e a conexão efetiva com a máquina. As conversas também eram interrompidas durante o tempo do lanche, que costumava durar cerca de dez a quinze minutos. Nesses momentos de pausa, aproveitava para escrever mais detalhes no diário de campo. Permanecia apenas com aqueles que me pediam que continuasse ali conversando.

Neste artigo, é nosso intento registrar algumas das estratégias utilizadas por pessoas com doenças renais crônicas em tratamento hemodialítico e que, de alguma forma, se contrapõem ou extrapolam o que é observado pelos profissionais de saúde durante o período em que estão dialisando.

A pesquisa recolhe depoimentos sobre a hemodiálise que ajudam a compor o conjunto de significações sobre esse tratamento. Consideramos que este artigo poderá contribuir na atuação de profissionais de saúde, formados ou em formação, no desenvolvimento de uma prática mais humanizada e integral, tendo em vista que os dados revelam a maneira como os doentes percebem a hemodiálise e como acionam elementos sociais, culturais, espirituais e religiosos para lidar com a mesma. Chamamos a atenção para a importância de estudos que retratam as experiências verbalizadas de pacientes renais crônicos, contribuindo para a compreensão dessas experiências e, também, para ações de cuidado mais focadas e eficientes.

Hemodiálise: sua complexidade, contradições e ambiguidades

A hemodiálise é uma alternativa importante para a manutenção da vida do doente renal, mas, pelos pacientes, é vista como uma experiência debilitante e, por vezes, descrita como uma situação de dependência e de perda de autonomia, pois gera algumas dificuldades para o trabalho e outras, maiores ainda, para viagens. Essas características fazem com que exista grande associação entre esse tratamento e a depressão, segundo Teles 2 , Martinez et al. 3 e Lopes et al. 4 . Existem alternativas à hemodiálise – como a diálise peritoneal –, mas são menos utilizadas por terem maior risco de infecção. Assim, na perspectiva do paciente, o transplante é visto como a única alternativa para voltar a ter uma vida “saudável”.

A máquina de hemodiálise, portanto, é um equipamento imprescindível à vida. Os pacientes que dependem do procedimento desenvolvem estratégias de relacionamento com o processo e uma relação nem sempre harmoniosa com a máquina.

“A máquina, pra mim, significa vida, é por causa dela que continuo aqui, às vezes tenho raiva também, principalmente quando viver tá bem difícil.

A máquina seria só uma máquina se não tivesse que tá ligada nela três ou quatro vezes na semana.” (Rosa, 43 anos de idade e 25 anos de hemodiálise)

“Sei bem como ela funciona, então tenho noção de quanto deve tirar pra eu ficar bem, às vezes corrijo até os enfermeiros.” (Flávio, quarenta anos de idade e oito anos de hemodiálise)

Como observamos nos depoimentos anteriores, a convivência com a máquina, embora vital, não é vivenciada sem contradições ou dificuldades. A “raiva”, relatada no primeiro depoimento, mostra a ambiguidade dessa relação com a máquina que salva ao mesmo tempo em que provoca raiva, pelo tempo que se fica ali, pelas possíveis intercorrências, pelos desconfortos da situação. Os outros dois depoimentos remetem à questão do tempo necessário para dialisar, que também é atravessado de sentimentos ambíguos, pois, por um lado, limpa o sangue, renova o organismo, e, por outro, é um tempo em que se fica preso à máquina e a uma rotina que não foi uma escolha pessoal e livre, mas uma imposição decorrente dos problemas de saúde.

Por fim, observa-se também, nos relatos, a ideia de que, com o tempo, se aprende a lidar com a situação e com o tempo necessário para ficar bem, tornando-se capaz de “corrigir” os profissionais de saúde. Um momento de aprendizado sobre si, sobre seu corpo e as necessidades dele em relação à máquina. O depoimento a seguir, também do paciente Flávio, revela mais algumas ambiguidades da relação com a máquina e suas dificuldades no caminho de adaptação e gerenciamento dessa situação:

“Acho que tenho uma vida boa, sem tanto vai e vem… Claro que não dá pra não ter altos e baixos na hemodiálise, mas dá pra ser mais tranquilo quando a gente tem consciência e faz por onde. Pra comer é cheio de detalhe, mas são os detalhes que fazem a diferença! Deve evitar o potássio, porque nosso rim não elimina bem ele, então tem que deixar verduras muito de molho, ou ferver antes de comer… evitar feijão, alimentos gordos, frutas frescas, castanhas. Carambola nem pensar, chamam de a fruta proibida, ainda bem que nunca gostei! Proteínas têm que ser controladas, então tem que comer pouca carne e ovos, chocolate também não, esse foi fácil, porque não gosto muito de doce… na verdade, não achei difícil me acostumar, e depende também do organismo de cada um. O que mais me incomodou foi regular o leite em pó! (Risos) Ele também tem que consumir controlado, porque é rico em potássio… na verdade, quando você vai ver, não tem quase nada liberado, porque tudo tem sódio, água ou potássio! Então me acostumei a comer pouco, mas como sempre e variado… E variar sempre as coisas que gosto, mesmo que não deva comer. Assim você peca, mas são pecados diferentes, acho que assim prejudica menos! (Risos). Tem dado certo…” (Flávio)

A doença renal e a hemodiálise alteraram fortemente os hábitos – especialmente os alimentares. Flávio destaca como administra suas restrições alimentares e seu organismo em relação à máquina, relata como aprendeu sobre o funcionamento do equipamento e observou as respostas do seu corpo, tanto enquanto está ligado à máquina quanto quando está fora da clínica, no seu cotidiano, analisando o que consumir e quanto deve ser consumido, procurando praticar o que lhe fizesse sentir melhor: “a gente tem cabeça é pra pensar e usar a nosso favor, quero ver meus filhos ficarem adultos e viver bem ao lado deles e da minha esposa, que é uma pessoa maravilhosa”.

Os altos níveis de mortalidade e incidência da doença renal crônica vêm alarmando a comunidade científica internacional nas duas últimas décadas, chamando atenção para a necessidade de empenhos para o diagnóstico precoce, pois é uma doença sem sintomas nos primeiros estágios, elevando a incidência e a prevalência em seu estágio terminal no Brasil e no mundo, conforme Bastos 5 , Bastos e Kirsztajn 6 .

Consultas, treinamentos e orientações fazem parte do cotidiano de nossos entrevistados. O tratamento em si promove a repetição contínua de procedimentos técnicos e deslocamentos que definem uma rotina bastante peculiar. Os pacientes são orientados, pelos profissionais de saúde: a seguir um rigoroso regime alimentar, a manter uma ingestão controlada de líquidos, bem como a respeitar a administração de remédios em horários determinados. Tudo isso para viabilizar o melhor rendimento para o procedimento da máquina, para que ela substitua as funções renais – para as quais foi pensada – da melhor forma possível. Muitos procedimentos são orientados pela equipe, mas os pacientes precisam aderir para que possam continuar vivendo com alguma qualidade e sem tantas intercorrências médicas.

Do ponto de vista técnico, a eficácia do tratamento hemodialítico é incontestável para aqueles que dele dependem para continuar vivendo, mas isso não impede que outras ações, de caráter simbólico, espirituais e religiosas, somem-se ao tratamento e que, igualmente, sejam eficazes em seu processo. Justamente por ser uma situação crítica, ambígua e de grande fragilidade para o paciente é que ela propicia significações múltiplas, e o paciente aciona uma gama de regenciais religiosos ou espirituais disponíveis para lidar com a experiência.

Observam-se, dentro das estratégias de enfrentamento da doença, expressões de fé e manifestações espirituais ligadas às diferentes filiações religiosas dos doentes. A presença da religiosidade é uma constante e já foi relatada e estudada por outros pesquisadores, como Borges 7,8 e Valcanti et al. 9 , que estudaram o coping religioso-espiritual nos pacientes renais crônicos. Os autores afirmam que 84% dos seus entrevistados relataram que pertencem ao catolicismo; 97% consideraram a religião e a espiritualidade como importante ou muito importante em suas vidas; 55% frequentavam igreja/templo/lugar de oração uma ou mais vezes por semana, e 98% costumavam orar/rezar/meditar 9 .

De acordo com essa mesma pesquisa, foi revelado que todos os pacientes usavam tais estratégias em relação à religiosidade como forma de enfrentar sua condição de saúde 9 (p. 843). Em nosso trabalho, 73,3% se declararam católicos; 20,9%, evangélicos; e 5,8%, de outras religiões; sendo que 67% consideravam seu vínculo religioso como forte, caracterizado por uma relação de pertencimento à comunidade religiosa à qual afirmam se integrar, mesmo tendo dificuldades, muitas vezes, de ir até o espaço físico de sua religião.

Nesta pesquisa, observou-se que alguns faziam uso do terço católico, sussurrando as etapas de cada mistério e passagem das unidades manualmente, seja o terço utilizado da forma mais simples, seja como rosário. Outros efetuavam a leitura da Bíblia, protestante ou católica, ou de qualquer outro livro de cunho religioso. Houve quem ficasse concentrado em um exercício similar ao de meditação, procurando estar tranquilo, conversando com a(s) divindade(s) para que ocorresse tudo bem durante a sessão e pudesse sair dali fortalecido.

Ao mesmo tempo, as experiências subjetivas que se verificam durante o procedimento da hemodiálise, que, a princípio, deveriam ser simplesmente técnicas, são permeadas por uma experiência comum que as unifica, a começar pelo fato de que todos são identificados, dentro da clínica, como um renal crônico. Além disso, todos são instruídos pela equipe sobre os procedimentos e cuidados com a saúde quando estiverem fora da hemodiálise. É uma experiência permeada por saberes médicos e técnicos, mas que os transforma em uma comunidade quando estão ali, pois todos sofrem da mesma doença, independentemente de serem homens, mulheres, jovens ou idosos, com alta ou baixa escolaridade. Podemos falar em um ethos que se forma em torno da doença renal crônica, pois é uma doença que potencialmente pode acompanhar a vida da pessoa e, certamente, orientará decisões e limitará escolhas profissionais, afetivas etc. Há, mesmo que temporariamente, a construção de uma identidade comum, de doentes que dependem da máquina, que são cúmplices e solidários durante a hemodiálise, ficando geralmente na mesma sala, em pequenos grupos. Naquela situação, apesar das diferenças econômicas, de escolaridade, profissionais e, também, religiosas, eles tendem a se colocar como “iguais perante a doença”, como relata Borges 10 .

Vários sonham se livrar da máquina:

“Essa aqui é a minha vida, e eu vivo do melhor jeito que posso, porque sou responsável em procurar a minha melhoria. Já fiz transplante e passei oito anos longe da máquina, graças a Deus! Quero fazer outro!” (João, 42 anos e, ao todo, 17 anos de hemodiálise)

Outro elemento ambíguo e contraditório na relação com a hemodiálise e na própria experiência da doença renal crônica é a proximidade com a morte, pois não dialisar pode significar morrer, e, durante o tratamento, também é possível acompanhar situações críticas de colegas e amigos, e até suas mortes. A possibilidade de morrer é um elemento constante, e, no relato a seguir, identificamos a presença deste aspecto. Marcela, uma transplantada de 42 anos, por exemplo, despedia-se dos familiares ao sair de casa durante os anos de hemodiálise frente à possibilidade de não retornar:

“O dia a dia na hemodiálise mudou o meu jeito de encarar a vida, os problemas e a mim mesmo. Vendo a possibilidade de morrer a qualquer momento como vi acontecer com alguns amigos no tratamento, não vi outra opção senão tratar o fim com mais naturalidade do que de costume. Passei a dar tchau de uma maneira mais profunda e deixando meus filhos e meu esposo perceberem que de fato eu poderia não voltar viva da clínica. No início era meio dramático, todos chorávamos, mas com o passar do tempo foi ficando mais tranquilo. Eu sem perceber estava preparando eles pra minha morte. Graças a Deus, consegui o transplante, a máquina faz parte do passado e talvez até do meu futuro, e ela foi a responsável por me manter pronta quando fosse a hora. Pra mim e pra minha família a vida passou a ser mais bem aproveitada, sem preocupações desnecessárias ou exageradas, um dia de cada vez!” (Marcela)

Para além do convívio com a morte de outros pacientes, as considerações dessa transplantada nos conduzem ao que Goffman 11 estudou e pesquisou sobre o estigmatizado que pode ver as privações que sofreu como uma bênção secreta, especialmente devido à crença de que o sofrimento muito pode ensinar a uma pessoa sobre a vida e sobre as outras pessoas. A preparação para a morte, ou para não contarem com sua presença no lar, pode ser entendida como uma forma de amenizar conflitos que poderiam ser causados pela morte da figura materna que representa. Essa mulher viveu a liminaridade do tratamento e pôde sofrer ou realizar a mudança de status: de renal crônica passou a transplantada.

Lopes et al. 12 identificaram, a partir de pesquisa com mulheres em hemodiálise, que a realização deste tratamento é vital, a espera pelo transplante é inevitável e o sucesso do procedimento não é previsível, sendo a única certeza a de que coragem e resistência são obrigatórias para continuarem vivendo da melhor maneira possível, realizando terapia dialítica enquanto esperam pelo transplante. Neste estudo que realizamos, apenas 29,1% das pessoas estavam em uma lista de espera em outro estado, já que Sergipe parou de realizar transplantes em 2012 (i) . Mas, como disse Bento, de 42 anos de idade e 24 anos de tratamento, certa vez:

“Quem não vive altos e baixos que atire a primeira pedra! (Risos) Independente de quem nós sejamos, ou o que tenhamos, todos adoecemos, todos vamos morrer e todos passamos por dificuldades. O que muda é o que achamos ser mais fácil ou difícil de suportar… Pra mim por exemplo, sei que tem gente que morreria de dó se eu contasse minha história, mas antes ser renal do que ser doente da moral, ou viver preso numa cadeia ou menos pior, mas também muito difícil pra mim seria viver numa cama. Eu sou livre, vou e volto, e isso me dá coragem e força pra continuar!” (Bento)

Assim como em Borges 10 (p. 71), nossas observações nos levam a comparar a experiência da hemodiálise com os “ritos de passagem”. Um dos primeiros pontos que nos levam a essa interpretação é o de que as pessoas estão no mesmo espaço, durante o mesmo tempo, tendo de passar por procedimentos padronizados, submetidas a uma mesma ordem simbólica, que é a racionalidade biomédica, e na mesma busca de manutenção da vida enquanto aguardam a possibilidade de transição para outro estágio, outro procedimento médico carregado de muita esperança e expectativas positivas, que é o transplante.

Liminarmente

Em todo ritual de passagem, existe uma fase liminar, que significa um espaço de transição entre uma vida (velha condição social) e outra vida (nova condição social). Interpretamos, aqui, à luz da teoria antropológica e a partir dos depoimentos, que todo paciente com insuficiência renal crônica dependente da hemodiálise vive em um espaço liminar que pode durar meses ou anos. A hemodiálise, em grande medida, é vista como esse espaço de transição e liminar, de alguém que deixou de ser algo, mas ainda não é outra coisa. Alguém cujo rim parou de funcionar, mas que, nem por isso, vai “fazer a passagem” (morrer), pois existe a hemodiálise. Enquanto está dependendo da hemodiálise, ele vive intensamente essa ambiguidade – como um tempo de espera – entre a possibilidade de morrer e a de continuar vivendo independente da máquina, via um transplante.

Todo o processo de hemodiálise pode ser visto como um espaço de liminaridade e de ambiguidade, já que o sujeito perde, por algumas horas, sua autonomia, pois está ligado a uma máquina. Mas é também essa submissão à máquina que o permite ter autonomia de continuar vivendo e usufruindo de sua família, trabalho etc.

O procedimento ajuda a manter a vida, salva, de fato, da morte certa aqueles que têm insuficiência renal e, ao mesmo tempo, ajuda a ter qualidade de vida e forças para esperar, quando possível, pelo transplante. Mas é liminar também pelo fato de que ali se pode ter reações graves e morrer. Há riscos também na hemodiálise. Nesse sentido, Borges 10 relata que, em alguns hospitais, a hemodiálise ficava ao lado do CTI (Centro de Terapia Intensiva), significando, para alguns pacientes, que a possibilidade de agravamento e morte era uma constante. O mesmo acontece nas clínicas pesquisadas, nas quais há um local para atendimento emergencial e, quando não se consegue estabilizar o quadro, há a remoção para um hospital por meio de ambulância da própria clínica.

A liminaridade também pode ser identificada durante a hemodiálise por ser um momento de inversão da ordem. Primeiro, pela possibilidade de dormir e relaxar, já que os pacientes estão assistidos e amparados por médicos e enfermeiros durante o procedimento, e é um momento em que o cuidado consigo é delegado a outros. Outro aspecto liminar, e de inversão da ordem social em que vivem, fica evidente entre aqueles que deixam para consumir, somente durante as sessões, os alimentos que dificultam suas vidas, como doces, especialmente balas, e líquidos, porque sabem que a função do rim será realizada pela máquina, impactando menos do que se o fizessem em casa (j) .

Os ritos de passagem são definidos como aqueles que “acompanham qualquer mudança de lugar, estado, posição social ou idade” 13 (p. 116-7). Os rituais de transição caracterizam-se por possuir uma estrutura trifásica: separação, margem e agregação.

A primeira fase (de separação) abrange o comportamento simbólico que significa o afastamento do indivíduo ou do grupo, quer de um ponto fixo anterior na estrutura social, quer de um conjunto de condições culturais (um “estado”), ou ainda de ambos. Durante o período “liminar” intermédio, as características do sujeito ritual (o “transitante” são ambíguas; passa através de um domínio cultural que tem poucos, ou quase nenhum dos atributos do passado ou do estado futuro. Na terceira fase (reagregação ou reincorporação), consuma-se a passagem. 13 (p. 116-7)

Em nosso trabalho de campo, identificamos facilmente esses estágios. A primeira fase está ligada ao afastamento de sua vida original, composta por família, trabalho e, sobretudo, pelo valor simbólico da autonomia da máquina e do hospital ou da clínica. Nesse momento anterior, o sujeito ainda se sente único na sua trajetória. Quando um renal ingressa na hemodiálise, há uma separação desse mundo, pois ele passa a submeter-se a uma instituição que controlará sua doença e a frequência na hemodiálise, e ele fará parte, queira ou não, do grupo de pacientes renais crônicos do hospital/da clínica. Na hemodiálise, ele irá aprender a se tornar um doente renal 10 ; aprenderá sobre os cuidados que deve ter com sua saúde, seus rituais de medicamentos, alimentação e ingestão de líquidos; e saberá quais são as possibilidades que existem em relação a um transplante de órgãos ou a como encarar a morte. Nos casos em que o transplante se realiza, ele conseguiu fazer a passagem para o terceiro estágio.

No processo ritual em foco, a mudança de estado de pessoa doente para pessoa curada não se dá, pois, a mudança de estado só é possível por meio de outro tratamento, que é o transplante. O transplante não é uma cura, pois existem muitos procedimentos e cuidados a serem seguidos após a cirurgia, porém, segundo Borges 10 , em sua pesquisa, muitos pacientes se referiam ao transplante como a “cura”, pois a máquina impunha sofrimentos físicos, mas, acima de tudo, emocionais, pela dependência da mesma.

A hemodiálise corresponderia ao período de margem ou transição entre um estado e outro, colocando os renais crônicos em uma posição de liminaridade. Não se trata de uma transposição simples e direta do esquema proposto por Turner 13 , mas do reconhecimento da riqueza de possibilidades que ele apresenta para pensarmos as dimensões sociais da hospitalização ou de tratamentos prolongados no interior de espaços ou instituições criadas para atender a esse propósito (k) .

A pessoa em tratamento assume a condição de persona limiar, uma liminaridade marcada por forte simbolismo. Essa fase constitui um momento em que o indivíduo reaprende a viver com suas limitações, tendo ciência das dificuldades e privações impostas por uma doença crônica. Cada sessão pode ser entendida simbolicamente como uma pequena “morte”, já que o indivíduo fica isolado do mundo social dentro da clínica, que acaba por gerar vida.

Esse isolamento é quebrado em alguns momentos por aqueles que fazem uso do telefone móvel. Para os demais, a comunicação com o mundo fora da clínica só se reestabelecerá na saída, quando findar a sessão. Poderíamos afirmar, também, que a hemodiálise representa o renascimento de uma condição (malestar, desconforto) para outra (bem-estar), ainda que seja por um ou dois dias.

“No domingo, já fico esperando a segunda pra vir, não porque aqui é lindo e maravilhoso, mas porque tô tão pesada e mal que quero logo ir pra máquina pra me aliviar. A gente também quer viver um pouquinho, e acabo comendo e bebendo algumas coisas que não devia no final de semana… então, volto pra casa murchinha, mas sabendo que, quando acordar no outro dia, estou mais animada pra vida, me sentindo bem melhor!” (Luci, quarenta anos, em hemodiálise há dois anos)

Os pacientes, de fato, oscilam entre a vida e a morte. Em sentido simbólico, a morte seria aqui a morte social, do isolamento e da semi-internação durante a hemodiálise. Uma quase morte física, pois, ao se verem ligados a uma máquina e dependentes dela, se dão conta e são obrigados a encarar a situação de fragilidade em que vivem, já que deixarem de ir a uma sessão pode significar uma concentração exagerada de líquidos, que pode levar a um edema pulmonar agudo e à morte.

Nesse sentido, a hemodiálise reabilita o paciente – que, sem ela, seria terminal – para algumas horas ou dias de vida normal. Mas, mesmo quando fora da hemodiálise e quando tenta ter uma vida normal, sua situação de ambiguidade e de liminaridade pode ser desvendada e percebida, já que carregam, em seus corpos, traços característicos da doença e da sua fragilidade física. Nesse sentido, vemos que um efeito dessa condição de paciente renal crônico são os olhares de desconfiança e o preconceito que recai sobre suas marcas corporais quando esses frequentam espaços públicos. No depoimento de Joelma, a seguir, isso fica claro:

“Devem pensar que é contagioso, porque evitam ficar perto! Tem gente que olha com pena, ou fazem de conta que não estão vendo! Aqui não tem essas coisas, porque tá todo mundo acostumado. Lá fora é que é dose, quando não conhecem a gente. Pensam mil e uma coisas e evitam ficar perto, mesmo!” (Joelma, 32 anos, seis anos de tratamento, considerou que, atualmente, tem a região da fístula bastante alterada por, segundo ela, estar pegando peso ultimamente)

A ambiguidade presente nesta condição liminar gera sofrimento e incômodo, pois se sentem marcados, em alguns casos, não apenas pela fístula ou pelo cateter, mas, também, pelos olhos avermelhados, pela pele amarelada, pela magreza, pela fragilidade que transmitem os aspectos físicos externos. As marcas estão de acordo com a noção de estigma trabalhada por Goffman 11 , aparecem como efeitos dessa situação de liminaridade na qual esses pacientes se encontram e acabam por agregar mais sofrimento a suas vidas.

O estigma é símbolo ou atributo, quase sempre físico ou corporal, que gera uma ampla perda de crédito na vida do indivíduo. Segundo Goffman 11 , existem três tipos de estigma: o corporal, o tribal e os relativos aos desvios morais. No caso dos pacientes em hemodiálise, temos, especialmente, as marcas corporais da doença, que podem provocar estigmatizações por serem confundidas com marcas de alguns dependentes químicos, viciados ou doentes mentais, em função da falta de ânimo e de forças para atividades físicas e/ou trabalho.

Estas características são entendidas como defeitos, incapacidades ou desvantagens em relação ao outro, e acabam estigmatizando os pacientes. Se tomarmos esta definição, nem todos os renais são fortemente estigmatizados. Nesses casos, há uma redefinição para eles quanto ao mundo do trabalho e, também, quanto à sua valoração como indivíduos. A sociedade, nestes casos, impõe uma imagem deteriorada, promovendo uma desvalorização dos sujeitos doentes.

Assim, promove-se o reconhecimento de que ações de cuidados biomédicos e aquelas ações reparadoras de desigualdades são aliadas no processo tanto quanto a malha de estrutura familiar, a partir do cuidador, e o perfil do indivíduo que passa pela experiência a partir do seu próprio corpo considerado deficiente. Por fim, é importante destacar que, apesar de perceberem tantas ambiguidades e desafios, para muitos renais crônicos, a vida é sentida como repleta de possibilidades.

  • (e)
    A hemodiálise é a mais comum, foi considerada a mais segura pelos participantes da pesquisa e realizada dentro de hospitais ou clínicas de saúde. Em Sergipe, não há clínicas públicas ou hospitais que realizem esse tratamento de modo ambulatorial, apenas em casos de internação. Trata-se de um procedimento que irá retirar o sangue do corpo, filtrá-lo e devolvê-lo ao paciente, que fica ligado à máquina várias horas. A diálise peritoneal é menos utilizada e tratase de uma diálise feita através do peritônio. É considerada com maior risco de infecções e necessita de maiores cuidados. Na diálise peritoneal, não há o processo de filtragem do próprio sangue, mas uma indução para que o peritônio funcione enquanto uma membrana que envolve o abdômen possa catalisar as substâncias tóxicas dos tecidos. Este sistema faz a eliminação de líquidos com impurezas nas trocas contínuas. Este tipo de diálise pode ser realizado em casa, mas exige mais atenção e cuidados redobrados do paciente.
  • (f)
    Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)
  • (g)
    Desvio padrão.
  • (h)
    Com esses mesmos participantes foi utilizado um questionário de qualidade de vida, cuja avaliação quantitativa será apresentada e discutida em um segundo artigo. Esse questionário foi importante para as próprias entrevistas em profundidade, pois o questionário agiu como estímulo e incentivo para falarem de suas experiências. Sendo assim, muitas entrevistas foram realizadas concomitantes ao questionário, como uma forma de aprofundar alguns temas e aproveitando a iniciativa e disponibilidade do entrevistado em falar.
  • (i)
    Há uma expectativa de retomada da atividade transplantadora em Sergipe. Porém, desde a pesquisa realizada em 2006, que havia expectativa de laboratório de imunogenética para este estado, agilizando o processo de doação e transplante, cujas análises eram feitas em laboratórios de outros estados. Além da atividade ter sido suspensa, o laboratório ainda não é uma realidade.
  • (j)
    Os profissionais procuram controlar e observar o que ingerem e como se comportam os renais em hemodiálise. Eles recebem orientação nutricional, porém conseguem, por vezes, esconder alimentos que representam perigo, os consumindo durante as sessões.
  • (k)
    Para obter mais informações sobre as dimensões sociais da hospitalização, ver Menezes 14,15

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Abr 2018
  • Data do Fascículo
    Jul-Sept 2018

Histórico

  • Recebido
    01 Jun 2017
  • Aceito
    29 Set 2017
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