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A mundanidade da arte* * Este trabalho foi apresentado no Seminário Internacional ARTE_PESQUISA: Inter-Relações, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da UNESP, pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da USP e pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UNICAMP, e realizado entre os dias 9 e 11 de outubro de 2012 no Instituto de Artes da UNESP, São Paulo. A conferência foi realizada no dia 10 de outubro de 2012.

Resumos

Uma parcela significativa da arte contemporânea tem articulado sua produção em colaboração com as comunidades, delas permanecendo radicalmente dependente, literalmente enraizada nos contextos sociais, políticos e culturais nos quais se insere, repelindo a noção de autonomia em favor de um processo de mundanização da arte. Dessa maneira, a arte estaria na busca de uma ressonância social mais robusta através da rejeição de um processo de privatização da arte e do resgate de sua dimensão pública, negligenciada pelo modernismo. Como consequência, esse espectro mais ambicioso da arte contemporânea parece apontar para a necessidade de redefinição dos mecanismos de articulação e funcionamento de todo o sistema de arte – produção, circulação, consumo, instituições e crítica da arte –, exigindo uma verificação profunda de nossas certezas no terreno institucional e sugerindo a necessidade de reinvenção do próprio sistema.

arte contemporânea; mundanização; reinvenção; sistema de arte


A significant portion of the contemporary art has articulated its production in collaboration with communities, remaining radically dependent, literally rooted in the social, political and cultural contexts in which is inserted, rejecting the concept of autonomy in favor of a process of worldliness of art. This way, the art seems to be in search of a more robust social resonance through the rejection of a process of its privatization and the rescue of its public dimension, neglected by modernism. As a result, this most ambitious spectrum of the contemporary art seems to point to the need for redefinition of the mechanisms of articulation and functioning of the whole art system – production, circulation, consumption, institutions and art criticism –, requiring a thorough check of our certainties in institutional terrain and suggesting the need for reinvention of the system itself.

contemporary art; worldliness; reinvention; art system



Gilbertto Prado, Série Amazonas, 2011.

O moderno promoveu a “privatização” da experiência artística, tendo centrado a dinâmica da arte na criação de um único indivíduo – o artista –, ensimesmado em suas certezas e imaginações. A arte na modernidade nos foi oferecida “como uma investigação individual do escultor ou pintor, o epítome da auto-afirmação”1 1 . FINKELPEARL, Tom. The City as Site. In: FINKELPEARL, Tom, ed. Dialogues in Public Art. Cambridge, Mass.: The MIT Press, 2001, p. 5. , na qual a criação artística tinha como centro e eixo único a própria persona do artista, sendo “tida como o produto de um ato autônomo e individual de expressão”2 2 . HEIN, Hilde. What is Public Art?: Time, Place, and Meaning, The Journal of Aesthetics and Art Criticism, vol. 54, n. 1, inverno de 1996, p. 1. . Induzido a criar distanciado de sua audiência, sem expectativa de com ela interagir, ao contrário, tentando desconhecê-la, o artista produzia sua arte isolado em seu mundo supostamente livre, motivado pelas coisas daquele mundo, como se eles – o artista e seu mundo particular – se bastassem. Adiante, em um gesto de quase nobreza, o artista autorizaria sua criação a percorrer o mundo (da arte), oferecendo-se à apreciação na expectativa de promover certo encantamento. A obra seguiria seu périplo, evidenciando sua autonomia e mobilidade, enquanto o artista se mantinha resguardado, distanciado.

Nesses encontros com a obra, o espectador, inicialmente negligenciado pelo artista no processo de criação, teria a oportunidade de interagir com a produção do artista em um processo de fruição estética igualmente individualizado, privado, fundado em parâmetros de subjetividade que tornam essas experiências únicas, nas quais a obra se apresenta (ou é apreendida) de forma singular para cada indivíduo. Mesmo que a obra venha a ser visitada por muitos, cada experiência será única, acentuando as complexidades do território da arte. Assim, em uma ponta – a da criação –, o artista evidencia a singularidade de sua apreensão e imaginação do mundo expressa na obra, a qual, na ponta da fruição, se oferecerá para quem dela se aproximar, promovendo uma experiência única, privada, particularizada. Nas duas pontas, a arte se afasta do perfil de coisa pública para se apresentar como manifestação e experiência privativas.

Para que a obra de arte pudesse constituir-se e transitar em um mundo paralelo, foi necessário que se criasse um circuito igualmente alternativo ao mundo. Assim, forjou-se o espaço do ateliê – silencioso, quieto, isolado, mítico –, espaço de introspecção e “iluminação” no qual a obra de arte é gestada e gerada por um indivíduo supostamente iluminado, impregnada de sua visão singular do mundo. Em seguida, a obra é oferecida à fruição em um espaço adequado, silencioso, quieto e isolado do mundo – o igualmente mítico museu de arte. Neste circuito paralelo entre ateliê – lugar de produção da obra pelo artista – e espaço expositivo – lugar de fruição da obra –, acentua-se o processo de privatização da arte, invenção da modernidade.

Neste sentido, os artistas foram induzidos a manter sua arte distanciada das coisas do mundo e das mazelas da vida social, estimulados a permanecer em seus mundos e deles extrair uma produção de arte que apenas tangenciaria o mundo mundano. Fechados, os artistas empreenderam buscas em si mesmos para realizar sua arte, já que as coisas mundanas não pareavam com a sublimidade da arte. E o ateliê do artista seria o espaço privilegiado para essas viagens interiores: um espaço de recolhimento e exclusão, espaço mítico de introspecção do artista e sua célula de criação da arte. Um lugar no qual o artista mantinha-se protegido das desnecessidades do mundo, enquanto se entregava à busca incansável de alcançar o inalcançável, de expressar o inexprimível, materializados em objetos artísticos que carreariam para distâncias imprevisíveis sua atemporalidade e fluidez, replicando noções da autonomia universalizante da arte.

Ao artista não era necessário que fosse ao encontro do mundo, uma vez que o mundo parecia se organizar em função de seu olhar, como se ele exercesse uma força magnética em direção à qual o mundo sucumbiria, acentuando a centralidade do artista. Essa percepção encontra sua melhor metáfora nas linhas de força e na rigidez dogmática da grande invenção do Renascimento – a perspectiva – que reduz o mundo a linhas que convergem para o olhar do artista. Apesar de sua lateralidade, o artista era mantido no centro do mundo, conforme nos atestam o tratamento dispensado ao fracasso/sucesso trágico de Vincent Van Gogh3 3 . A esse respeito, ver HEINICH, Nathalie. The Glory of Van Gogh: an Anthropoly of Admiration. New Jersey: Princeton University Press, 1966. .

Nas últimas décadas, no entanto, um número crescente de artistas tem rejeitado essa posição de lateralidade na sociedade, demonstrando um interesse renovado em promover o retorno da arte ao mundo real, em articular sua arte com os desejos daqueles que habitam esse mundo. Depois de se ter tornado específica em relação aos lugares nos quais se materializava, a arte passou a buscar uma melhor articulação que incorporasse os habitantes desses lugares, fazendo-se comunitária e socialmente engajada4 4 . Recentemente, alguns autores têm preferido o termo arte socialmente engajada, ou SEA para a sigla em inglês. A respeito, ver HELGUERA, Pablo. Education for Socially Engaged Art. Nova York: Jorge Pinto Books, 2011. . Essa virada colaborativa em direção aos microuniversos que nomeamos comunidades acompanhou pari-passu a crise final do modernismo, transformando de forma substantiva a própria natureza da arte.

Fundadas em ideias que ganharam proeminência nos anos 1960 tanto no campo da arte quanto no das manifestações políticas, as práticas de arte colaborativa socialmente engajadas são devedoras de atitudes radicais – artísticas e políticas – que conduziram o objeto artístico à própria desmaterialização e que acabaram por liberar o ateliê do artista de sua função original: a criação de objetos artísticos. Nas práticas mais ambiciosas da produção de arte contemporânea, o ateliê foi reduzido a um lugar de encontros e trocas que favorece a definição de estratégias e de ações em colaboração, afastando a aura denotativa de sua condição mítica. Os novos modos de produção de arte na contemporaneidade já não elegem o ateliê como espaço privilegiado ou preferencial de criação, já que o lugar de produção da arte pode ser virtualmente qualquer lugar, empurrando o ateliê do artista para uma situação de inadequação ou desnecessidade. A materialidade eventualmente ainda presente na arte representa apenas um subproduto residual do processo de criação.

Uma parcela expressiva da arte contemporânea tem se articulado com as comunidades, permanecendo radicalmente dependente, literalmente enraizada nos contextos sociais, políticos e culturais nos quais se insere, rejeitando contundentemente a noção de autonomia em favor da mundanização da arte.

No entanto, diante do processo de naturalização das coisas do mundo, tendemos a perceber as coisas que se nos apresentam como se assim fossem desde sempre e como se assim devessem permanecer, o que impede que vejamos o processo de privatização da arte empreendido pelo modernismo como apenas uma construção, portanto passível de ser questionado e deslocado por outra formulação. Se nossa compreensão do fenômeno artístico foi sedimentada como a manifestação da plena individualidade do artista, cujo produto se oferece à experiência também individualizada e privatista do espectador, isso não significa que essa verdade deva se impor ou ser aceita como uma dinâmica coerente e natural do fenômeno artístico. Ao contrário, pode-se especular que “em uma perspectiva alongada, a história da arte é a história da arte pública. Embora hoje as pirâmides e as catedrais pareçam museus, não era o caso no tempo de sua criação. (...) A arte tinha lugar e uso específicos. Remover a arte de seu lugar seria um sacrilégio – literalmente”5 5 . FINKELPEARL, Op. cit., p. 15. . Dessa maneira, podemos indagar se não estaria em curso, com as práticas colaborativas contemporâneas com microuniversos específicos, a busca da arte por uma ressonância social mais robusta, expressa na rejeição do processo de privatização da arte e no resgate de sua dimensão pública, negligenciada por parte significativo do modernismo.

Se o invólucro do ateliê funcionou para o artista como um escudo a garantir-lhe liberdade de escolhas e decisões, para o artista mundano, aquele que em suas práticas criativas é confrontado com as mazelas e idiossincrasias do mundo, o anteparo do ateliê simplesmente desapareceu. O artista abdicou do refúgio do ateliê, falso sinônimo de garantia de liberdade em isolamento do mundo, para se lançar em práticas de encontro que demandam, de pronto e acima de tudo, o interesse e a franca disposição para o diálogo e para a negociação.

Não é incomum que artistas envolvidos com as comunidades carreiem para esses encontros os mesmos padrões cunhados na modernidade, derramando sobre essas comunidades ideias, projetos e verdades na expectativa de uma aderência imediata, em contradição à perspectiva de diálogo franco e negociação democrática. Esses artistas revelam dificuldade em se desapegar de assunções que propugnavam sua centralidade no processo criativo da arte. Ao mesmo tempo, parecem desconhecer a dimensão política da aproximação com a sociedade, tendendo a entender esse movimento colaborativo como mais um gesto vanguardista em uma fieira de práticas de ruptura, como sendo a “última fronteira” a ser conquistada no território da arte, em um processo marcado por uma noção esvaziada de vanguarda, desconhecendo que a dimensão pública da arte não pode ser dissociada de sua dimensão política, sendo dois momentos de um mesmo gesto.

A nova dinâmica da arte contemporânea expõe a necessidade de redefinição dos mecanismos de funcionamento de todo o sistema de arte – produção, circulação, consumo, instituições e crítica da arte –, exigindo uma verificação profunda de nossas certezas no terreno institucional da arte. O desarranjo do sistema de arte causado por essas práticas colaborativas é de tal monta que parece provocar a necessidade de reinvenção do próprio sistema.

Não podemos desconhecer, no entanto, que o sistema de arte soube resistir à sucessão de ataques das vanguardas do século XX, tornando-se perito na arte da sobrevivência, aprendendo a se nutrir e a se fortalecer com esses ataques. Por outro lado, essas novas práticas de arte contemporânea no domínio público parecem atacar o sistema com contundência incomum em diferentes flancos: na recusa em se instaurar como um objeto colecionável, enfrentando o colecionismo corrente; ao não pactuar com o mito do artista individual, reposicionando o artista no território mundano do cotidiano; ao redefinir a noção de autoria, rejeitando a assinatura aurática do artista em favor da apocrifia do coletivo; ao afirmar que o lugar da arte pode ser qualquer lugar e, mais que isso, ao afirmar que a arte está atada a este lugar, repelindo a noção de que a arte tem um lugar próprio e adequado para sua instauração da arte, um lugar reservado nas instituições. A esses enfrentamentos que apontam o desaparecimento do objeto, do autor e da autoria, além da inadequação das instituições para lidar com as novas dinâmicas da arte, se soma a percepção do fenômeno artístico contextualizado e radicalmente atado a situações específicas, o que promove um assalto simultâneo e contundente à autonomia, à mobilidade e à universalidade da arte.

Portanto, não se pode reduzir as práticas de arte socialmente engajada a mais uma ocorrência na longa genealogia de experimentações e rupturas que caracterizaram os exercícios das vanguardas ao longo do século XX, mantendo-se essas práticas dissociadas de suas flagrantes implicações políticas, sob o risco de promovermos a supressão de sua potência. Para além da experimentação, a exploração das possibilidades que se abrem para a arte com as novas práticas colaborativas exige que consideremos a reinvenção do sistema de arte em outras bases, abandonando convicções que têm norteado nossa percepção (a)política da dinâmica da arte. Essa percepção foi se cristalizando a partir da década de 1950 sob influência do processo de esvaziamento dos conteúdos políticos que orientaram a ascensão e primazia da arte norte-americana no cenário internacional, no qual forças conservadoras estavam empenhadas em “tornar política e socialmente impotente um poderoso instrumento de mudança social – a cultura visual – cujo potencial os censores do governo sempre percebiam com maior clareza que os artistas o faziam”6 6 . PIPER, Adrian. A Lógica do Modernismo. Revista Poiésis (Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte, UFF), Niterói, v. 11, 2008, p. 174. Ver também RIBALTA, Jorge. On Public Service in the Age of Cultural Consumption. Parachute, n. 111, p. 144-155, jun./jul./ago. 2003 e GUILBAUT, Serge. How New York Stole the Idea of Modern Art: Abstract Expressionism, Freedom, and the Cold War. Chicago: The University of Chicago Press, 1985. , coerente com estratégias de enfrentamento aos postulados socialistas no plano interno (macarthismo) e no plano externo (Guerra Fria).

Os movimentos recentes da arte em direção às comunidades, parceiras do artista na criação da arte, não podem ser tratados como uma situação corriqueira. Até porque não são. As consequências políticas desses gestos exigem reflexões cuidadosas sobre a própria natureza da arte contemporânea, sobre o reposicionamento do artista no mundo e as novas correlações de poder no interior do sistema de arte. O sistema institucional da arte, coerente com a percepção do fenômeno artístico localizado na esfera privada, tem reagido aos postulados das novas práticas artísticas colaborativas que apontam para a coletivização da experiência artística. Assim, essas práticas recentes da arte socialmente engajada não seriam aceitas sem antes ter que enfrentar a resistência de um sistema por excelência elitista e conservador, fundado nos postulados da privatização do fenômeno artístico.

O sistema institucional da arte tem tentado aplacar a potência dos novos postulados da arte colaborativa por meio de diferentes estratégias, oscilando entre a desqualificação, que aponta para o esvaziamento da “condição de arte” dessas manifestações, e a sedução integradora dessas práticas ao circuito das bienais e grandes mostras internacionais. Esse processo de incorporação requer forte acomodação para a adequação mútua de realidades tão díspares e conflitantes – de um lado as práticas colaborativas, tão dependentes dos contextos comunitários com os quais dialogam e nos quais se inserem, e, de outro, o universo das instituições de arte, com seus engessamentos, suas normas e interesses, além da permanente necessidade de afirmar a instituição como lugar preferencial para a instauração da arte. Essa acomodação revela-se como uma estratégia de neutralização dos aspectos radicais das práticas colaborativas, tais como a aderência da experiência artística ao contexto específico de instauração, já que essas práticas estão definitivamente enraizadas nos contextos sociais, políticos e culturais das comunidades com as quais estabelece os diálogos da arte, não sendo passível de transposição para o universo institucional sem perda considerável de seu propósito e de sua potência.

A aderência dessa arte ao domínio social subtrai da obra de arte as propriedades de mobilidade e autonomia, centrais para a constituição do circuito de arte contemporânea. É bem verdade que o sistema respondeu imediatamente à perda de mobilidade da obra de arte, tanto pela aderência dos projetos/ações a contextos sociais específicos quanto pelo próprio processo de desaparição do objeto artístico, decretando que, na atualidade, o artista é aquele que passa a percorrer o circuito em substituição à obra, aquele que se desloca, que está em trânsito, aquele que deixa o ateliê, não mais a obra em processo de desaparição.

No entanto, a dimensão política de maior envergadura das práticas colaborativas reside justamente nas novas relações que se estabelecem com as audiências. A começar pelo fato de que esse fenômeno artístico – que não pode ser chamado de novo, uma vez que surgiu no início da década de 1990 – tem sua instauração em espaços distintos daqueles tradicionais, determinando o reposicionamento dos espectadores. Ou, mais que isso, essas práticas parecem tornar sem sentido a própria noção tradicional de espectador, que se apresenta agora deslocado e correndo o risco de ser simplesmente eliminado. Aquele espectador foi transformado em participante-criador de um tipo de arte que se faz enquanto é consumida por aqueles que a produzem – os participantes-espectadores-coautores-parceiros do artista –, tudo junto e a um só tempo. Uma arte que é consumida na medida em que é criada, uma arte cujo consumo integra seu processo de criação.

As propriedades efêmeras dessas práticas obrigam a que os habitués do mundo da arte, aqueles acostumados à condição de espectador-amante-das-artes, tenham que se deslocar a “lugares exóticos” (a partir de sua própria perspectiva), caso queiram experimentar a atividade de arte – ação, projeto, ou seja lá qual for a configuração que ganhe. Caso contrário, seu contato com o projeto de arte ficará reduzido a versões parciais e requentadas, com base em registros documentais e relatos. Isso porque, diferentemente das obras de arte que permanecem em estado de espera nos museus e salas de exposição, oferecendo-se aos visitantes, esses projetos de arte, ações efêmeras, “performances no campo ampliado”7 7 . HELGUERA, Op. cit., p. X. Plásticas, no 21. Rio de Janeiro, dez. 1960, p. 3. da cultura, se “materializam” em dia, hora e local marcados.

Conforme apontado por Pablo Helguera, se o “ambiente da arte contemporânea se caracteriza pela noção de exclusão, não pela inclusão, já que a estrutura de interações sociais dentro de seus limites é baseada em um repertório [fechado] de códigos culturais, ou senhas”8 8 . Idem, Ibidem, p. 22. , a inserção das novas práticas de arte no domínio público parece apontar para a ampliação das audiências, uma vez que atinge segmentos da sociedade tradicionalmente excluídos das práticas da arte contemporânea, segmentos que não partilham o sentimento de pertencimento no universo próprio e excludente da arte, que não desfrutam de seus códigos de acesso, passando em consequência a articular sua existência em outros registros culturais. Assim, parece sugerir que está em curso um processo democrático de dilatação do público de arte.

No entanto, a conciliação dos interesses do público tradicional de arte contemporânea e os daquele tradicionalmente excluído do território da arte parece ser tarefa complexa e difícil, se de alguma maneira possível. Sob certa medida, parece haver um fosso entre os interesses de uns e os dos outros, o que dificulta a aceitação da perspectiva de dilatação do público. O fato é que, em resposta às práticas de arte em diálogo com as comunidades, as quais trazem “para dentro de seus trabalhos aqueles usualmente ausentes das instituições de arte, (...) muitos da audiência (tradicional) da arte têm escapado”. Neste sentido, não parece correto nem adequado afirmar o alargamento da base do público de arte, já que parece que “a audiência não tem sido ampliada, mas substituída. De fato, é essa mudança na composição da audiência e sua posição no núcleo da criação que fazem dessa arte pública algo tão novo”9 9 .JACOB, Mary Jane. An Unfashionable Audience. In: LACY, Suzanne, ed. Mapping the Terrain – New Genre Public Art. Seattle, Wash.: Bay Press, 1996, p. 59. .

E o artista? Estaria pronto para enfrentar as novas dinâmicas da arte como se apresentam? Estaria ele interessado e pronto para desenvolver sua produção de arte sob novo registro, aquele que aponta para a instauração da arte para além do público tradicional da arte, formado por críticos, curadores, colecionadores, aficionados, além de outros artistas? Estaria ele esclarecido quanto às implicações políticas deste novo paradigma nas correlações da arte, integrada de maneira mais incisiva nas políticas do cotidiano? Ou, ao contrário, o artista se aproxima das comunidades sem se desvencilhar de assunções que o distinguem do grosso da sociedade, aproximando-se das comunidades em um sobrevoo de expropriação que carreia para sua arte elementos que alimentam seu interesse privado, sem comprometimentos, sem interações, em um retorno já previamente delineado ao sistema da arte, como um voo do bumerangue? Neste cenário, as comunidades não seriam sujeito, mas objeto das investigações do artista, refletindo atitudes conservadoras que tentam se justificar como vanguardistas, mesmo que não se ouse dizer o nome. Talvez uma única formulação possa condensar essas indagações e inquietações: o artista mudou, ou ao menos está pronto para essas mudanças?

O processo de reinstauração e reenfatização da dimensão pública da arte, em substituição à “privatização” do fenômeno artístico promovido pela arte moderna, tem deixado críticos, curadores, colecionadores e profissionais da arte entre perplexos e vacilantes diante da não aplicabilidade dos critérios tradicionais na análise e julgamento da excelência da obra artística. O processo de recuperação do sentido público da arte requer a reinvenção de todo o sistema de arte, inclusive a própria reinvenção do artista, induzido a se desapegar de assunções cunhadas na modernidade e que permanecem informando suas práticas, atitudes e comportamento diante do mundo.

Essas novas práticas, que provocam a mundanização da arte, promovem igualmente o deslocamento do artista, alijado de sua posição central (mesmo que fictícia) no território da arte, para afirmar que a instauração da arte é produto do encontro entre o artista e o “outro”, que nos jargões da arte contemporânea tem respondido pelo nome de comunidade.


Gilbertto Prado, Série Amazonas, 2011.

  • 1
    . FINKELPEARL, Tom. The City as Site. In: FINKELPEARL, Tom, ed. Dialogues in Public Art. Cambridge, Mass.: The MIT Press, 2001, p. 5.
  • 2
    . HEIN, Hilde. What is Public Art?: Time, Place, and Meaning, The Journal of Aesthetics and Art Criticism, vol. 54, n. 1, inverno de 1996, p. 1.
  • 3
    . A esse respeito, ver HEINICH, Nathalie. The Glory of Van Gogh: an Anthropoly of Admiration. New Jersey: Princeton University Press, 1966.
  • 4
    . Recentemente, alguns autores têm preferido o termo arte socialmente engajada, ou SEA para a sigla em inglês. A respeito, ver HELGUERA, Pablo. Education for Socially Engaged Art. Nova York: Jorge Pinto Books, 2011.
  • 5
    . FINKELPEARL, Op. cit., p. 15.
  • 6
    . PIPER, Adrian. A Lógica do Modernismo. Revista Poiésis (Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte, UFF), Niterói, v. 11, 2008, p. 174. Ver também RIBALTA, Jorge. On Public Service in the Age of Cultural Consumption. Parachute, n. 111, p. 144-155, jun./jul./ago. 2003 e GUILBAUT, Serge. How New York Stole the Idea of Modern Art: Abstract Expressionism, Freedom, and the Cold War. Chicago: The University of Chicago Press, 1985.
  • 7
    . HELGUERA, Op. cit., p. X. Plásticas, no 21. Rio de Janeiro, dez. 1960, p. 3.
  • 8
    . Idem, Ibidem, p. 22.
  • 9
    .JACOB, Mary Jane. An Unfashionable Audience. In: LACY, Suzanne, ed. Mapping the Terrain – New Genre Public Art. Seattle, Wash.: Bay Press, 1996, p. 59.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2012

Histórico

  • Recebido
    17 Out 2012
  • Aceito
    30 Out 2012
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