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A utilização do ocre na pré-história da Serra da Capivara, Piauí, Brasil

The use of ochre in the prehistory of Serra da Capivara, Piauí, Brazil

Resumo

O ocre constitui-se em uma matéria-prima que, por sua natureza mineral, resistência e estabilidade, foi conservada em contextos arqueológicos desde o Pleistoceno superior, permitindo aos arqueólogos observarem sua exploração em situações funcionais e simbólicas distintas. O presente artigo pretende abordar a utilização do ocre na pré-história da Área Arqueológica Serra da Capivara, Piauí, em contextos funerários e rupestres. Discute-se aqui também o interesse por esse tipo de material ao longo do desenvolvimento da Arqueologia, as diferenças mineralógicas e as técnicas físico-químicas, para caracterizar sua composição. Pesquisas realizadas na Serra da Capivara têm apontado a larga utilização do ocre ao longo da pré-história. Esses vestígios, obtidos a partir de escavações e contextos arqueológicos distintos, podem ser evidenciados em diferentes estágios da cadeia operatória. A presença de ocre nos enterramentos ocorre nos seguintes contextos e processos: pigmentos à base de ocre aplicado direta e indiretamente sobre os ossos, artefatos e ecofatos pigmentados e ocres com e sem marcas de utilização. Nas pinturas rupestres, aparecem sob dois tipos de técnica de aplicação: líquida/pastosa e sólida. O ocre arqueológico evidenciado nessa área encontra-se homogêneo e livre de incrustações, demostrando a seleção prévia do material a ser utilizado.

Palavras-chave
Ocre; Pré-história; Pintura rupestre; Enterramento; Serra da Capivara

Abstract

Ochre is a raw material that has been preserved in archaeological contexts since the Upper Pleistocene because of its mineral nature, resistance, and stability, allowing archaeologists to observe how it was utilized in different functional and symbolic situations. This present addresses the prehistoric use of ochre in funerary and rupestrian contexts in the Serra da Capivara Archaeological Area (Piauí, Brazil). Also discussed are interest in this material throughout the development of archaeology, mineralogical differences, and the physical-chemical techniques utilized to determine its composition. Studies conducted in the Serra da Capivara have indicated widespread use of ochre throughout prehistory. This evidence, obtained from distinct excavations and archeological contexts, can be found in different stages of the operational chain. Ochre is found in burials in pigments applied directly and indirectly to bones, artifacts, and ecofacts, as well as pieces of ochre with and without use marks. In rock paintings, ochre was applied using two different techniques, as a liquid/paste and a solid. The archaeological ochre found in this area is homogeneous and free of incrustration (contaminants), indicating the materials were selected previous to use.

Keywords
Ochre; Prehistory; Rock paintings; Burial; Serra da Capivara

INTRODUÇÃO

Utilizado para diversos fins, o ocre1 1 Segundo Siddall (2018), a palavra ocre designa depósitos ricos em óxidos e hidróxidos de ferro que se formam na superfície ou em ambiente próximo à superfície. Os ocres naturais são, por definição, depósitos impuros, contendo uma mistura de componentes minerais, comumente quartzo, cobalto, argilas e/ou micas. Nos ocres, o vermelho é obtido a partir da hematita (óxido de ferro); a matiz amarela pode ser proveniente da goethita (hidróxido de ferro); o marrom pode ser obtido principalmente a partir da limonita (mistura de óxidos hidratados de ferro) ou da mistura de ambos (Branco, 2015). constitui-se em uma matéria-prima bastante explorada por grupos pré-históricos2 2 Para esse trabalho em específico, será utilizado o termo pré-história em referência à discussão de contextos arqueológicos gerais (americanos e europeus) e a contextos cronológicos (pleistocênicos e holocênicos) em relação à utilização do ocre. Porém, compreende-se que o conceito de ‘história indígena de longa duração’ poderia ser o mais adequado no caso de a discussão enveredar para a utilização do ocre por sociedades indígenas pretéritas e hodiernas. . Há evidências de sua utilização desde o Pleistoceno superior em contextos funcionais e simbólicos distintos.

Este material pode ser encontrado sob diversas formas e aplicações no contexto arqueológico: pinturas rupestres, rituais funerários, decoração cerâmica, arte móvel, entre outros. O ocre tem sido o pigmento3 3 Segundo Santaolalla (2017), os pigmentos são compostos sólidos agregados que mudam a cor da luz transmitida ou refletida, como resultado de uma absorção seletiva num dado comprimento de onda. Podem ser encontrados na natureza (em sua maior parte, como os óxidos e hidróxidos de ferro) ou ser fabricados pelo homem (sintéticos), sendo de natureza orgânica ou inorgânica. É comum que os pigmentos sejam frequentemente confundidos com corantes. Estes últimos são, em geral, substâncias solúveis em água, utilizados para conferir cor a um produto (Gomes et al., 2014). mais presente em contextos arqueológicos; aspectos como a natureza mineral, a resistência e a estabilidade química e térmica (Casqueira & Santos, 2008Casqueira, R. G., & Santos, S. F. (2008). Pigmentos inorgânicos: propriedades, métodos de síntese e aplicações. Cetem.) garantiram sua longevidade junto a vestígios arqueológicos, permitindo análises sobre preparação e usos.

Pesquisadores como Wadley (2005)Wadley, L. (2005). Putting ochre to the test: replication studies of adhesives that may have been used for hafting tools in the Middle Stone Age. Journal of Human Evolution, 49(5), 587-601. https://doi.org/10.1016/j.jhevol.2005.06.007
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, D’Errico (2008)D’Errico, F. (2008). Le rouge et le noir: implications of early pigment use in Africa, the near East and Europe for the origin of cultural modernity. Goodwin Series, 10(1), 168-174. e Roebroeks et al. (2012)Roebroeks, W., Sier, M. J., Kellberg Nielsen, T., Loecker, D., Parés, J. M., Arps, C. E., & Mucher, H. J. (2012). Use of red ochre by early Neanderthals. PNAS, 109(6), 1889-1894. https://doi.org/10.1073/pnas.1112261109
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situam as primeiras amostras de ocre nos sítios arqueológicos Twin Rivers (Zâmbia) e Gnjh-15 (Quênia), datados em 300.000 anos BP e 285.000 anos BP, respectivamente. Os autores se referem a esses vestígios como sendo os primeiros testemunhos do uso antrópico de pigmentos. Porém, sua difusão e sua recorrência em contextos arqueológicos estão mais associadas a datações posteriores a 100.000 anos BP, a exemplo da Caverna de Blombos, na África do Sul, com datação de 75.000 anos BP, e do sítio Es-Skhul, em Israel, com datação de 100.000 anos BP para artefatos e utensílios com vestígios de pigmentos (Salomon et al., 2011Salomon, H., D’Errico, F., van Niekerk, K. L., Coquinot, Y., Jacobs Z., Lauritzen S. E., . . . García-Moreno R. A. (2011). A 100,000-Year-Old ochre-processing workshop at Blombos Cave, South Africa. Science, 334(6053), 219-222. https://doi.org/10.1126/science.1211535
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; Dayet et al., 2013Dayet, L., Daniel, F., Guibert, P., & Texier, P. J. (2013). Non-destructive analysis of archaeological ochre: a preliminary application to the Middle Stone Age of Diepkloof Rock Shelter (South Africa). Open Journal of Archaeometry, 1(19), e19. https://doi.org/10.4081/arc.2013.e19
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; Nicolau, 2016bNicolau, A. C. (2016b). Ocre, hematites y óxido de hierro: el problema terminológico. Espacio, Tiempo y Forma, (9), 13-42. https://doi.org/10.5944/etfi.9.2016.16056
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). A presença e a utilização desse material são observadas em contextos arqueológicos tanto do Homo sapiens quanto do Homo neanderthalensis.

Uma descoberta recente na caverna de Antón, na Espanha, inclui conchas com resíduos de ocre (óxido de ferro) e ferramentas de quartzito que podem ter sido utilizadas para macerar e processar o ocre (Zilhão et al., 2010Zilhão, J., Angelucci, D. E., Badal, E., D’Errico, F., Daniel, F., Dayet, L., . . . Zapata, J. (2010). Symbolic use of marineshells and mineral pigments by Iberian Neandertals. Proceedings of the National Academy of Sciences, 107(3), 1023-1028. https://doi.org/10.1073/pnas.0914088107
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) (Figura 1).

Figura 1
Conchas evidenciadas na Cueva Antón (Múrcia, Espanha): A) lado interno, naturalmente vermelho, e lado externo, esbranquiçado, pintado com um corante laranja de goethita e hematita; B) imagem de microscópio binocular, com massas de pigmento e manchas de pigmento ao redor da perfuração.

Antes de iniciar uma explanação sobre o uso e a função do ocre no contexto arqueológico do Parque Nacional Serra da Capivara, é importante tecer algumas distinções entre o ocre in natura (óxido de ferro, hidróxido de ferro, limonita, entre outros), encontrado na natureza, e o ocre arqueológico. O ocre in natura contém ferro, um dos elementos mais presentes na crosta terrestre. Uma pequena parte desse ferro é de origem meteorítica, que ocorre em estado livre; a maior parte, porém, combina-se com outros elementos, tais como oxigênio, silício ou enxofre. Assim, é possível perceber traços de ferro em quase todas as rochas e solos (Guimarães, 2007Guimarães, I. R. (2007). Utilização de óxidos de ferro naturais e sintéticos da degradação de compostos orgânicos [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Lavras].; Figueredo, 2010Figueredo, K. S. L. (2010). Estudo da água produzida em diferentes zonas de produção de petróleo, utilizando a hidroquímica e a análise estatística de parâmetros químicos [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Norte].). O segundo, o ocre arqueológico, é aquele que sofreu modificações antrópicas, com a finalidade de ser utilizado em qualquer atividade humana, e foi recuperado em sítios e contextos arqueológicos. Essas transformações vão desde o transporte do bloco in natura até as modificações antrópicas em suas estruturas física e química (Dayet et al., 2013Dayet, L., Daniel, F., Guibert, P., & Texier, P. J. (2013). Non-destructive analysis of archaeological ochre: a preliminary application to the Middle Stone Age of Diepkloof Rock Shelter (South Africa). Open Journal of Archaeometry, 1(19), e19. https://doi.org/10.4081/arc.2013.e19
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; Nicolau, 2016bNicolau, A. C. (2016b). Ocre, hematites y óxido de hierro: el problema terminológico. Espacio, Tiempo y Forma, (9), 13-42. https://doi.org/10.5944/etfi.9.2016.16056
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).

O objetivo deste trabalho é apresentar uma discussão inicial sobre as pesquisas relacionadas ao ocre arqueológico, sua utilização por grupos pré-históricos e sua contextualização nos estudos das práticas funerárias e das pinturas rupestres na Área Arqueológica Serra da Capivara4 4 O conceito de área arqueológica vem sendo trabalhado desde a década de 1960 e corresponde a uma categoria de entrada para referenciar sítios e pesquisas arqueológicas em unidades ecológicas. As pesquisas realizadas em uma área arqueológica visam entender os processos de ocupação, adaptação e aproveitamento dos recursos disponíveis por grupos humanos que habitaram a região, sobretudo em períodos pré-históricos (Martin, 2003; Cisneiros, 2008). A Área Arqueológica Serra da Capivara compreende um espaço ecológico que abriga dois parques nacionais (Parque Serra da Capivara e Parque Serra da Confusões) e um corredor ecológico, entre eles está a localizada no sudeste do Piauí (Cisneiros, 2011). . Para tanto, foram elencadas variáveis ambientais e arqueológicas que permitissem uma análise macroscópica da utilização do ocre no contexto pré-histórico da Serra da Capivara. Para os descritores ambientais, procurou-se observar o contexto geomorfológico associado à disponibilidade local de depósitos de óxido de ferro.

Para a segregação de descritores contextuais arqueológicos, foi primeiramente analisada a documentação existente na Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham) sobre os sítios da Área Arqueológica Serra da Capivara, a qual consistiu em dados sobre escavações e vestígios arqueológicos. Para a pesquisa, foram elencados três contextos distintos de ocorrência de ocre antrópico: a aplicação na forma de pigmento sobre o suporte rochoso (pintura rupestre); a matéria-prima trabalhada e os traços de pigmentos sobre ecofatos ou artefatos; e um terceiro contexto relacionado à presença do ocre e à sua utilização no arranjo funerário.

Para a análise do uso do ocre na elaboração de pinturas rupestres, foi estabelecida como descritor a técnica de aplicação (tinta ou bastão); nos sítios submetidos a escavações, foram determinados descritores relacionados à presença, ao manejo e à utilização do ocre; finalmente, nos enterramentos, foram elencados descritores relacionados à sua forma de ocorrência na composição do enterramento (in natura ou processado) e ao tipo de aplicação dele sobre os ossos.

ESTUDOS SOBRE PIGMENTOS MINERAIS À LUZ DO DESENVOLVIMENTO DE IDEIAS E MÉTODOS NA ARQUEOLOGIA

A Arqueologia Pré-Histórica tem apresentado profundas transformações desde o seu início como disciplina científica. Essas transformações, de cunho teórico, metodológico e técnico, vêm conferindo avanços investigativos, interpretativos e analíticos ao material arqueológico e ao estudo do comportamento humano na pré-história. Tais avanços, por consequência, também se refletiram no estudo dos pigmentos e das tintas utilizadas por grupos pretéritos.

A historiografia arqueológica sobre os pigmentos de origem mineral e sua utilização na pré-história apresentam um caminho longo desde as primeiras menções sobre esses materiais em contextos arqueológicos, nos finais do século XIX, ainda sem preocupação com a caracterização do mineral, até os avanços, em meados do século XX, para uma investigação contextualizada junto aos demais elementos da cultura material arqueológica e a inclusão de análises geoquímicas específicas.

Os estudos sobre pigmentos de origem mineral observados à luz da história da Arqueologia estão pautados em uma relação entre o desenvolvimento de ideias, o acúmulo de descobertas arqueológicas e, sobretudo, o desenvolvimento de métodos e técnicas de investigação, que permitiram análises detalhadas sobre os componentes e as estruturas químicas presentes em amostras desses materiais.

Em finais do século XIX, após a árdua batalha pela autenticidade das pinturas nas grutas europeias, os estudos sobre arte rupestre se direcionaram à identificação, à classificação e à periodização das pinturas. Nesse contexto, a análise das técnicas utilizadas para a elaboração dos motivos nos cenários rupestres já começou a ter significativa relevância. Com isso, as pesquisas começaram a se direcionar também para o estudo das matérias--primas utilizadas por grupos humanos na elaboração dos grafismos. A identificação do ocre (óxido ou hidróxido de ferro) como matéria-prima recorrente e dominante nesse cenário repercutiu nas publicações do período. Em 1902, H. Moissan caracterizou as pinturas rupestres de Font-de-Gaume e La Mothe como sendo produzidas por uma paleta de óxido de ferro, que variava do vermelho ao amarelo (Nicolau, 2016aNicolau, A. C. (2016a). El ocre en la Prehistoria: entre la funcionalidad y el simbolismo. Archivo de Prehistoria Levantina, 31, 187-211. https://www.researchgate.net/publication/314442672_El_ocre_en_la_Prehistoria_entre_la_funcionalidad_y_el_simbolismo
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) (Figura 2).

Figura 2
Pintura rupestre policrômica na caverna Font-de-Gaume, França.

Uma das primeiras referências sobre a presença de ocre em enterramentos pode ser encontrada na obra “Las primeras edades del metal en el sudeste de España”, onde se faz alusão a vestígios de ocres em contexto funerário (Siret y Cels, 1890Siret y Cels, L. (1890). Las primeras edades del metal en el sudeste de España. Resultados obtenidos en las excavaciones hechas por los autores desde 1881 a 1887. Libro Impreso.). Assim também ocorre com a descrição feita por Breuil e Cartailhac (1906)Breuil, H., & Cartailhac, É., (1906). L’ocre rouge dans les gisements, sa préparation, ses usages. In É. Cartailhac & H. Breuil (Eds.), La caverne d’Altamira à Santillane près Santander (Espagne) (pp. 115-121). Imprimerie de Monaco. dos clássicos esqueletos de CroMagnon, descobertos em 1868, que apresentavam ossos ‘pintados’ de vermelho. Segundo os autores, a cor vermelha, por ser a mesma do sangue, poderia estar associada a aspectos mágico-religiosos. Da mesma forma, Schmidt (1909)Schmidt, R. R. (1909). Die spätpälaolithischen Bestattungen der Ofnet. Mannus 1, 56-62. descreveu o nível magdaliense da caverna de Ofnet (Alemanha), destacando a presença de duas grandes concavidades de contorno circular, preenchidas com pó de ocre (Lehmann-Nitche, 1927Lehmann-Nitche, R. (1927). El Revestimiento con ocre rojo de tumbas prehistóricas y su significado. Revista do Museo de La Plata, 30, 321-327.).

As tentativas de renovação do pensamento arqueológico, tanto nos aspectos teóricos quanto nos metodológicos debatidos a partir de meados do século XX, trouxeram discussões teóricas de cunho funcionalista, estruturalista e contextual, e asseguraram as primeiras reais transformações na atenção aos pigmentos no contexto arqueológico. A compreensão dos grupos humanos, autores da cultura material, pautava-se agora nas formulações teóricas, no contexto arqueológico e na precisão da coleta de dados. Com a formulação de novos paradigmas sobre o agenciamento cultural, os objetos elaborados por grupos humanos começaram a ser entendidos como componentes de um sistema em acordo com as necessidades enfrentadas pelo grupo cultural (Cisneiros, 2011Cisneiros, D. (2011). Similaridades e diferenças nas pinturas rupestres de contorno aberto no Parque Nacional Serra da Capivara - PI. CLIO Arqueológica, 25(2), 17-25. https://periodicos.ufpe.br/revistas/clioarqueologica/article/view/246808
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).

Sob essa nova ótica, contextual e sistêmica, o estudo dos registros rupestres e das práticas funerárias passou a integrar novos elementos em sua práxis, sendo dada maior ênfase ao estudo do ocre nos contextos arqueológicos, nos processos da cadeia operatória e nos procedimentos técnicos e simbólicos dos grupos. O estudo do painel pictórico passou a integrar os espaços vazios, a captação de recursos técnicos, a aquisição de matérias-primas, a preparação de pigmentos, as escolhas de espaços para a execução gráfica e as escolhas cenográficas (Leroi-Gourhan, 1968Leroi-Gourhan, A. (1968). La Prehistoire. Presses Universitaires de France.; Sanchidrian, 2001Sanchidrian, J. L. (2001). Manual de arte prehistórico. Ariel.).

As práticas funerárias também passaram a ser vistas como reflexo dos gerenciamentos internos de um grupo cultural, constituindo um subsistema no qual há total acordo entre os demais agentes que regem o grupo cultural. Nesse contexto, é possível estudar cada subsistema de forma separada, desde que sejam observadas suas interações. A deposição do morto, a composição da cova e os objetos associados a ele passaram a ser vistos como meio para identidade social. No estudo e na interpretação dos enterramentos, observou-se o foco na proposta metodológica da ‘Arqueologia da morte’, que centra interesse em quatro áreas do contexto funerário: área funerária, tumba, corpo e acompanhamentos – esses dois últimos aspectos apresentam espaço para descrição, análise e interpretação do componente corante (Franch, 1998Franch, J. A. (1998). Diccionario de arqueología. Alianza Editorial.; Cisneiros, 2006Cisneiros, D. (2006). Práticas funerárias na pré-história do nordeste do Brasil: uma apresentação metodológica. CLIO Arqueológica, (20), 171-207. https://periodicos.ufpe.br/revistas/clioarqueologica/article/view/246886/35826
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).

O conceito de ‘cadeia operatória’, proposto por Leroi-Gourhan (1950)Leroi-Gourhan, A. (1950). Sur les méthodes de fouilles: les fouilles pré-historiques: technique et méthodes. J. Picard. para as análises tecnológicas de vestígios arqueológicos, foi de grande importância para o estudo e a interpretação do ocre em contexto arqueológico. Esse conceito busca compreender as operações de manufatura do objeto (vestígio arqueológico) e estudar o seu processo de construção. Considera necessário entender não só a técnica empregada na fabricação, mas também todo o conjunto de procedimentos que levou até a conformação final do vestígio em solo arqueológico.

Nas referências sobre registros rupestres, observa-se o interesse na composição do pigmento, sua relação com o ambiente e com os tipos gráficos. Os componentes técnicos na fabricação do pigmento, assim como o uso de cores, começaram a integrar o corpo de variáveis na busca por padrões de arranjos gráficos e distinções técnicas de grupos de autores. Nesse contexto, a Arqueologia Experimental, em pesquisas de reconstituições de atividades e gestos técnicos, tem enfatizado procedimentos técnicos de maceração do mineral, tratamento térmico, mistura de ligantes e aplicação da tinta, a fim de observar o comportamento colorimétrico, de densidade e de fixação nos suportes rochosos (Aschero, 1988Aschero, C. (1988). Pinturas rupestres, actividades y recursos naturales: un encuadre arqueológico. In H. Yacobaccio (Ed.), Arqueología contemporánea argentina (pp. 109-142). Búsqueda.; Chalmin et al., 2004Chalmin, E., Vignaud, C., & Menu, M. (2004). Paleolithic painting matter: natural or heat-trea- ted pigment? Applied Physics A, 79(2), 187-191. https://doi.org/10.1007/s00339-004-2542-0
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; Balbín-Behrmann & González, 2009Balbín-Behrmann, R., & González, J. A. (2009). Les colorants de l’art paléolithique dans les grottes et en plein air. L’Anthropologie, 113(3-4), 559-601. https://doi.org/10.1016/j.anthro.2009.09.012
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; Fritz & Tosello, 2015Fritz, C., & Tosello, G. (2015). Du geste au mythe: technique des artistas sur les parois de la grotte Chauvet-Pont d’Arc. Palethnologie, 7, 287-321. https://doi.org/10.4000/palethnologie.865
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; Santos da Rosa, 2020Santos da Rosa, N. (2020). Tecnología rupestre: una perspectiva teórico-metodológica para el estudio del arte levantino. In I Jornades Internacionals d’Art Rupestre de l’Arc Mediterrani de la Península Ibèrica. XXè Aniversari de la Declaració de Patrimoni Mundial, 2019 (pp. 481-496). Museu d’Arqueologia de Catalunya.).

Observa-se que a mudança de postura teórico--metodológica na Arqueologia trouxe consigo análises e métodos diferenciados para o estudo dos pigmentos em contextos arqueológicos. Esse material agora faz parte de uma cadeia operatória de recursos, tanto para elaboração dos grafismos rupestres quanto para execução do rito funerário. Faz parte da captação e da gestão dos recursos e, em igual aspecto, da sua transformação e do uso nos sistemas técnicos, funcionais e simbólicos.

O simbolismo do ocre também vem sendo explorado em cenários cada vez mais diversificados da ciência arqueológica. A cor, a universalidade de seu uso, a grande faixa cronológica de sua utilização e os ritos nos quais o ocre foi observado através do registro arqueológico conferiram a esse mineral característica de um elemento expressivo e significante no cotidiano de muitos grupos pré-históricos (Alinei, 1981Alinei, M. (1981). More on red ochre: the contribution of diachronic semantics. Current Antropology, 22(4), 443-454. https://doi.org/10.1086/202710
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; Robb, 1998Robb, J. (1998). The Archaeology of symbols. Annual Review of Anthropology, 27, 329-346. https://doi.org/10.1146/annurev.anthro.27.1.329
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; Morris, 2007Morris, R. (2007). A shroud of ochre: a study of pre-contact mortuary ochre use in North America [Dissertação de mestrado, University of Leicester].; Cisneiros, 2011Cisneiros, D. (2011). Similaridades e diferenças nas pinturas rupestres de contorno aberto no Parque Nacional Serra da Capivara - PI. CLIO Arqueológica, 25(2), 17-25. https://periodicos.ufpe.br/revistas/clioarqueologica/article/view/246808
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).

A utilização do ocre nas práticas pictóricas e funerárias como elemento simbólico vem sendo debatida há bastante tempo e já se tornou um consenso entre arqueólogos, em decorrência de sua constância nesses contextos, em diferentes espaços e épocas.

As discussões arqueológicas sobre os usos do ocre versam muito mais sobre suas propriedades de conservação (permite melhor conservação da pele) e medicinal (propriedades antissépticas), o que implica discussão sobre o desenvolvimento cognitivo. Pesquisas sobre esse tema vêm sendo desenvolvidas pela Arqueologia Experimental e têm garantido espaço nos debates arqueológicos (Audouin & Plisson, 1982Audouin, F., & Plisson, H. (1982). Les ocres et leurs témoins au Paléolithique en France: enquête et expériences sur leur validité archéologique. Cahiers du Centre de Recherches Préhistoriques, 8, 33-80.; Wadley, 2005Wadley, L. (2005). Putting ochre to the test: replication studies of adhesives that may have been used for hafting tools in the Middle Stone Age. Journal of Human Evolution, 49(5), 587-601. https://doi.org/10.1016/j.jhevol.2005.06.007
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; Rifkin, 2011Rifkin, R. (2011). Assessing the efficacy of red ochre as a prehistoric hide tanning ingredient. Journal of African Archaeology, 9(2), 131-158. https://doi.org/10.3213/2191-5784-10199
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).

Assim, o panorama em relação aos estudos dos corantes na Arqueologia tem apresentado grande avanço nos últimos anos. Atualmente, observa-se uma investigação adensada pela evolução das técnicas de análises desse material, através de equipamentos portáteis e de rapidez no resultado físico-químico de amostras (Couraud & Inizan, 1977Couraud, C., & Inizan, M. L. (1977). Coleur et technique préhistorie-ethnologie. Journal des Africanistes, 47(2) 105-107. https://www.persee.fr/doc/jafr_0399-0346_1977_num_47_2_2203
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; Gomes et al., 2014Gomes, H., Rosina, P., & Osterbeek, L. (2014). Natureza e processamento de pigmentos de pinturas rupestres. In P. Diniz, A. Gomes & S. Monteiro-Rodrigues (Orgs.), Proveniência de materiais geológicos: abordagens sobre o Quaternário de Portugal (pp. 193-212). Associação Portuguesa para o Estudo do Quaternário.).

O uso dos pigmentos faz parte do universo simbólico de grupos humanos e, por sua natureza mineral, permite que os arqueólogos os conheçam e os estudem, observando aspectos contextuais do ambiente onde foram adquiridos, suas propriedades físicas, seus usos e suas funções na pré-história. Desse modo, devem apresentar o mesmo valor arqueológico e ser interpretados em seu contexto (Cisneiros, 2008Cisneiros, D. (2008). Similaridades e diferenças nas pinturas rupestres de contorno aberto no Parque Nacional Serra da Capivara - PI [Tese de doutorado, Universidade Federal de Pernambuco].).

OCRE – CICLOS E OCORRÊNCIAS NA NATUREZA

O ferro, um dos componentes do ocre, é um mineral recorrente em muitas partes do globo, podendo se apresentar de diferentes formas e proporções em sua composição mineralógica (Figura 3). Esse mineral, com características de alta dureza, está presente em rochas ígneas, metamórficas, assim como nas rochas sedimentares e nos depósitos inconsolidados. Os óxidos também estão presentes nos mantos de intemperismo, podendo precipitar deles a partir de processos pedogênicos, criando níveis férricos e/ou crostas e carapaças com alto teor de óxido de ferro (Cornell & Schwertmann, 2003Cornell, R. M., & Schwertmann, U. (2003) The iron oxides structure, properties, reactions, occurrences and uses (2. ed.). Wiley-VCH.).

Figura 3
Fragmentos de ocre com marcas de utilização evidenciadas nas escavações de sítios arqueológicos no Parque Nacional Serra da Capivara, Piauí: A) hematita - Fe2O3; B) goethita – FeO(OH).

Os principais minérios de ferro de ocorrência natural são a magnetita (Fe3O4) (72% em ferro), a hematita (Fe2O3) (70% em ferro) e a goethita (FeO(OH)) (42% em ferro). Os óxidos de ferro possuem matizes diferentes, que podem variar entre amarelo, marrom e vermelho; essas colorações dependem da estrutura do composto, assim como da concentração do metal. Algumas misturas de compostos contendo Fe2+e Fe3+ também podem apresentar tonalidade negra (Guimarães, 2007Guimarães, I. R. (2007). Utilização de óxidos de ferro naturais e sintéticos da degradação de compostos orgânicos [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Lavras].).

Como já mencionado, o ferro pode apresentar-se em diferentes fases e, consequentemente, em distintos estados de oxidação, como Fe0, FeO, Fe3O4, γ-Fe2O3, α-Fe2O3 e FeO(OH) (Lelis, 2003Lelis, M. F. (2003). Ferriotas dopadas com Ni ou Co: síntese, caracterização e ação catalítica na oxidação de monóxido de carbono [Tese de doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais].; Moura et al., 2005Moura, F. C. C., Araújo, M. H., Costa, R. C. C., Fabris, J. D., Ardisson, J. D., Macedo, W. A. A., & Lago, R. M. (2005). Efficient use of Fe metal as an electron transfer agent in a heterogeneous Fenton system based on FeO/Fe3O4 composites. Chemosphere, 60(8), 1118-1123. https://doi.org/10.1016/j.chemosphere.2004.12.076
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; Guimarães, 2007Guimarães, I. R. (2007). Utilização de óxidos de ferro naturais e sintéticos da degradação de compostos orgânicos [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Lavras].). Os óxidos de ferro configuram-se, assim, como uma importante fonte natural de pigmento disperso e diversificado no mundo, podendo ser utilizado tanto em seu estado natural, como também associado a aglutinantes e transformado em tinta. Podem ser encontrados em diferentes estados de oxidação, sendo que os mais comuns no contexto arqueológico são apresentados no Quadro 1.

Quadro 1
Principais minerais que contêm ferro evidenciados em contextos arqueológicos.

Análises arqueométricas atuais são capazes de identificar o pigmento de forma mais ampla e encontrar perfis mineralógicos e químicos mais precisos sobre óxidos e hidróxidos de ferro utilizados em contextos arqueológicos. Várias técnicas já adotadas em arqueologia podem ser indicadas para distinção desses materiais, entre elas: difração de raios-X (X-ray powder diffraction - XRD), fluorescência de raios-X (X-ray-fluorescence - XRF), espectroscopia no infravermelho com transformada de Fourier (Fourier-transform infrared spectroscopy - FTIR), espectroscopia Mössbauer, espectroscopia Raman, microscopia eletrônica de transmissão (MET) e microscopia eletrônica de varredura com energia de raio-X dispersivo (MEV/EDX).

CONTEXTO GEOMORFOLÓGICO E ARQUEOLÓGICO DA SERRA DA CAPIVARA

A Área Arqueológica Serra da Capivara compreende duas importantes unidades de conservação da biodiversidade nacional e sítios arqueológicos, o Parque Nacional Serra da Capivara e o Parque Nacional Serra das Confusões. Ambos estão localizados no sudeste do estado do Piauí, na região Nordeste do Brasil. O Parque Nacional Serra da Capivara ocupa área de 129.953 ha, compreendendo parte dos municípios de São Raimundo Nonato, Coronel José Dias, João Costa e Brejo do Piauí; e o Parque Nacional Serra das Confusões, com área de 823.843,08 ha, engloba os municípios de Canto do Buriti, Tamboril do Piauí, Jurema, Alvorada do Gurguéia, Bom Jesus, Guaribas e Cristino Castro (Figura 4).

Figura 4
Mapa hipsométrico com o posicionamento dos sítios arqueológicos e o perímetro dos parques Serra da Capivara e Serra das Confusões.

A posição geográfica desses parques e seus aspectos físicos, como a geomorfologia e o clima, situada dentro dos limites do semiárido nordestino, concederam-lhes características próprias, que influíram tanto no povoamento humano durante períodos pré-históricos quanto na salvaguarda natural de parte da cultura material dos grupos humanos que ali habitaram.

CONTEXTO GEOAMBIENTAL

A Área Arqueológica Serra da Capivara está dentro do contexto semiárido da região Nordeste, na cuesta do Planalto Homoclinal da bacia sedimentar do Parnaíba, com cerca de 600 m de altitude. Trata-se de uma região com características ambientais específicas entre o ecótono da caatinga e o bioma cerrado, com clima de grande variabilidade interanual e uma rede hidrográfica que responde também às condições climáticas, com rios de caráter intermitente e efêmero.

No setor correspondente aos parques nacionais da Serra da Capivara e da Serra das Confusões, o ambiente se caracteriza por apresentar, no tempo hodierno, uma vegetação de caatinga de porte arbóreo-arbustivo, que sustenta uma fauna adaptada às variabilidades do clima, com anos chuvosos e anos de forte estiagem. A drenagem presente está atrelada ao ritmo climático semiárido, com cursos d’água que possuem fluxo corrente apenas nos meses de chuva (drenagem intermitente) ou com fluxos vinculados à precipitação, com o encerramento do fluxo ao cessar a chuva (drenagem efêmera).

A área compreende geologicamente os limites da bacia do Parnaíba, sendo composta por sedimentos do Siluro-Devoniano e Carbonífero-Triássico. A litologia que compõe a referida bacia é formada pelos sedimentos do grupo Serra Grande e Canindé. O grupo Serra Grande possui, em sua litologia, níveis de arenito e conglomerados vinculados a ciclos sedimentares de origem fluvial e fluvioglacial (formação Ipu), que respondem a setores do front da cuesta do planalto sedimentar. O grupo Canindé apresenta níveis de argila de textura pelítica, com finas lâminas (formação Pimenteiras), arenitos bem estratificados e seixos facetados (formação Cabeças). O grupo Canindé também alterna entre os arenitos com lâminas de siltitos e folhelhos, com estruturas micromicáceas finamente acamadas.

Esta área apresenta como modelado marcante na sua geomorfologia a borda do planalto sedimentar soerguida, a qual tem a característica de um planalto homoclinal do tipo cuestiforme. Dentro desse contexto, a geomorfologia da área é subdividida em front da cuesta, reverso da cuesta e depressão em pedimento (Correa et al., 2015Correa, A. C. B., Mutzenberg, D., Tavares, B. A. C., & Cisneiros, D. (2015). Serra da Capivara National Park: ruinform landscapes on The Parnaiba Cuesta. In B. Carvalho, A. A. R. Salgado & L. J. C. Santos (Orgs.), Landscapes and landforms of Brazil (1. ed., Vol. 1, pp. 253-263). Springer Netherlands.).

O front da cuesta é marcado por uma escarpa de declividade alta, indicando superfície de recuo erosivo. Esse setor situa-se entre a depressão subsequente e a cimeira do planalto (reverso). A sua porção superior é definida como uma cornija, ou seja, uma superfície de maior resistência frente ao intemperismo e à erosão, configurando a superfície estrutural desse setor na média e na baixa encosta, onde se evidenciam os depósitos de tálus, com presença de material grosseiro, proveniente das encostas. O reverso da cuesta se apresenta como um setor ora conservado, com divisores amplos e largos, ora dissecado. A depressão subsequente está vinculada ao contato litológico da província Borborema. Os pedimentos que compõem a depressão se apresentam dissecados, com forte entalhamento, apresentando, ainda, elevações isoladas de até 150 m, estruturadas em rochas graníticas e metamórficas (Correa et al., 2015Correa, A. C. B., Mutzenberg, D., Tavares, B. A. C., & Cisneiros, D. (2015). Serra da Capivara National Park: ruinform landscapes on The Parnaiba Cuesta. In B. Carvalho, A. A. R. Salgado & L. J. C. Santos (Orgs.), Landscapes and landforms of Brazil (1. ed., Vol. 1, pp. 253-263). Springer Netherlands.).

Dentro da proposta do presente trabalho, ao se caracterizar ambientalmente a área, também se faz necessário discutir a dinâmica intempérica, uma vez que esses processos podem estar atrelados à formação dos óxidos e hidróxidos de ferro. O intemperismo na área de estudo é uma resposta direta ao substrato rochoso formado por uma litologia arenítica, com camadas levemente inclinadas. Essas condições favorecem o aprofundamento dos mantos de intemperismo, desenvolvendo solos ricos em quartzo. Nos substratos ricos em argila, como os lamitos e siltitos, há um forte desenvolvimento de solos ricos em ferro e formação de crostas lateríticas. Tais crostas, ao sofrerem processos de transporte, são evacuadas para os setores rebaixados da paisagem, fazendo parte da matriz dos sedimentos das encostas e pedimentos do front da cuesta da área. As crostas também podem permanecer in situ, como material eluvial.

A dinâmica de formação dessas duricrostas está atrelada a certa sazonalidade do clima: ao estabelecer períodos úmidos e secos, com variação do nível freático, as lateritas se desenvolvem ao longo do perfil do solo. A presença de coberturas lateríticas em contexto de superfícies de cimeira e de platôs elevados pode ser um indicador de áreas cobertas por perfis de intemperismo e resultado de processos erosivos, que podem ter gerado descontinuidades nesses mantos, podendo também ter ocasionado transportes de detritos às áreas mais rebaixadas (Lima, 2008Lima, M. G. (2008). A história do intemperismo na Província da Borborema Oriental, Nordeste do Brasil: implicações temáticas e tectônicas [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Norte]. https://repositorio.ufrn.br/jspui/handle/123456789/18345
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; Gomes et al., 2014Gomes, H., Rosina, P., & Osterbeek, L. (2014). Natureza e processamento de pigmentos de pinturas rupestres. In P. Diniz, A. Gomes & S. Monteiro-Rodrigues (Orgs.), Proveniência de materiais geológicos: abordagens sobre o Quaternário de Portugal (pp. 193-212). Associação Portuguesa para o Estudo do Quaternário.; Tavares et al., 2015Tavares, B. A. C., Barros, A. C. N., & Correa, A. C. B. (2015). Intemperismo nas superfícies de cimeira do planalto da Borborema. Revista de Geociências do Nordeste, 1(1), 66-75.).

CONTEXTO ARQUEOLÓGICO

A Área Arqueológica Serra da Capivara apresenta um acervo significativo de sítios arqueológicos tanto com cronologias pré-históricas quanto com históricas. Atualmente, esse acervo abarca total de 1.215 sítios5 5 Esses sítios estão localizados nas poligonais dos parques Serra da Capivara e Serra das Confusões e no corredor ecológico. , entre esses 1.047 são de registros rupestres, “o que a constitui na área arqueológica com a maior expressividade numérica de sítios com grafismos rupestres no Brasil” (Cisneiros, 2008Cisneiros, D. (2008). Similaridades e diferenças nas pinturas rupestres de contorno aberto no Parque Nacional Serra da Capivara - PI [Tese de doutorado, Universidade Federal de Pernambuco]., p. 98).

As pesquisas arqueológicas na Serra da Capivara foram iniciadas em 1973, a partir do projeto intitulado “Missão franco-brasileira”, coordenado por Niède Guidon. A missão tinha por objetivo contextualizar arqueologicamente as pinturas e gravuras rupestres da região; para tanto, foram realizadas sondagens e escavações na área. Essas investigações, por meio de um programa interdisciplinar, permitiram ascender a um conjunto de dados arqueológicos que conduziram a mudanças no paradigma sobre a antiguidade das migrações humanas no continente americano (Parenti et al., 1996Parenti, F., Fountugne, C., & Guerin, C. (1996). Pedra Furada, Brasil, e sua presumida evidência: limitações e potencial dos dados disponíveis. Fumdhamentos, 1(1), 12-34.; Meltzer et al., 1996Meltzer, D. J., Adorvasio, J. M., & Dillehay, T. D. (1996). Uma visão da Toca do Boqueirão da Pedra Furada. Fumdhamentos, 1(1), 347-377.; Guidon, 1986Guidon, N. (1986). Las unidades culturales de São Raimundo Nonato, Sudeste del estado de Piauí, Brasil. In A. L. Bryan (Ed.), New evidence for the Pleistocene peopling of the America (pp. 157-171). Center for the Study of Early Man, University of Maine at Orono., 2008Guidon, N. (2008). Pedra Furada: uma revisão. Fumdhamentos, 7, 3-26.; Cisneiros, 2008Cisneiros, D. (2008). Similaridades e diferenças nas pinturas rupestres de contorno aberto no Parque Nacional Serra da Capivara - PI [Tese de doutorado, Universidade Federal de Pernambuco].).

Segundo Guidon et al. (2019)Guidon, N., Felice, G. D., & Macedo, A. O. (2019). A conservação dos vestígios arqueológicos no sítio Toca do Alto da Serra do Capim: um tafone no Parque Nacional Serra das Confusões - PI, Brasil. Fumdhamentos, 16(2), 3-34. http://fumdham.org.br/wp-content/uploads/2020/10/fumdham-fumdhamentos-xvi-2019-n-2-_933215.pdf
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, o principal objetivo das pesquisas arqueológicas na região foi estabelecer o contexto das ocupações humanas nesta área, “buscando conhecer a identidade dos grupos humanos e suas interações ambientais/sociais” (Guidon et al., 2019Guidon, N., Felice, G. D., & Macedo, A. O. (2019). A conservação dos vestígios arqueológicos no sítio Toca do Alto da Serra do Capim: um tafone no Parque Nacional Serra das Confusões - PI, Brasil. Fumdhamentos, 16(2), 3-34. http://fumdham.org.br/wp-content/uploads/2020/10/fumdham-fumdhamentos-xvi-2019-n-2-_933215.pdf
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, p. 5). Atualmente, a área arqueológica conta com 77 sítios escavados e distribuídos ao longo de seus domínios geomorfológicos (Cisneiros, 2008Cisneiros, D. (2008). Similaridades e diferenças nas pinturas rupestres de contorno aberto no Parque Nacional Serra da Capivara - PI [Tese de doutorado, Universidade Federal de Pernambuco].). Tem-se hoje, para a área, grande quantidade de dados e vestígios arqueológicos evidenciados e analisados por arqueólogos de diferentes origens e escolas teóricas (Guidon et al., 1996Guidon, N., Pessis, A.-M., Parenti, F., Fontugne, M., & Guérin, C. (1996). Nature and age of the deposits in Pedra Furada, Brazil: reply to Meltzer, Adovasio & Dllehay. Antiquity, 70(268), 408-421.; Guidon, 2008Guidon, N. (2008). Pedra Furada: uma revisão. Fumdhamentos, 7, 3-26.; Felice, 2002Felice, G. D. (2002). A controvérsia sobre o sítio arqueológico Toca do Boqueirão da Pedra Furada, Piauí - Brasil. Fumdhamentos, 1(2), 143-178.; Cisneiros, 2008Cisneiros, D. (2008). Similaridades e diferenças nas pinturas rupestres de contorno aberto no Parque Nacional Serra da Capivara - PI [Tese de doutorado, Universidade Federal de Pernambuco].; Boëda et al., 2014Boëda, E., Lourdeau, A., Lahaye, C., Felice, G. D., Viana, S., Clemente-Conte, I., . . . Pagli, M. (2014). The Late-Pleistocene industries of Piauí, Brazil: new data. In K. E., Graf, C. V. Ketron, & M. R. Waters (Eds.), Paleoamerican odyssey College Station (pp. 445-465). Texas A&M University Press.; Lourdeau & Pagli, 2014Lourdeau, A., & Pagli, M. (2014). Indústrias líticas pré-históricas na região da Serra da Capivara, Piauí, Brasil. In A-M. Pessis, G. Martin & N. Guidon (Orgs.), Os biomas e as sociedades humanas na pré-história: região do Parque Nacional Serra da Capivara, Brasil (Vol. 2-B, pp. 551-635). A&A.; Pessis et al., 2018Pessis, A.-M., Cisneiros, D., & Mutzenberg, D. (2018). Identidades gráficas nos registros rupestres do Parque Nacional Serra da Capivara, Piauí, Brasil. Fumdhamentos, 15, p. 26-48.). Assim, “a partir desses dados[,] é possível desvelar um pouco do passado tão longínquo e diversificado que foi a ocupação dessa área por diversas culturas pré-históricas e históricas” (Cisneiros, 2008Cisneiros, D. (2008). Similaridades e diferenças nas pinturas rupestres de contorno aberto no Parque Nacional Serra da Capivara - PI [Tese de doutorado, Universidade Federal de Pernambuco]., p. 99).

Pesquisas realizadas ao longo de trinta anos permitiram apresentar um quadro de cronologias pleistocênicas e holocênicas para a área, que conta com mais de 400 datações utilizando métodos diferentes, como radiocarbônico (C-14), de termoluminescência (TL), luminescência opticamente estimulada (LOE) e ressonância eletrônica por Spin (electron paramagnetic resonance/electron Spin resonance - EPR/ESR). Essas datações inserem a Área Arqueológica Serra da Capivara no contexto de estudos sobre o povoamento da América (Santos et al., 2003Santos, G. M., Bird, M. I., Parenti, F., & Fifield, L. K. (2003). A revised chronology of the lowest occupation layer of Pedra Furada Rock Shelter, Piauí, Brazil: the Pleistocene peopling oh the Americas. Quaternary Science Reviews, 22(21), 2303-2310. http://doi.org/10.1016/S0277-3791(03)00205-1
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; Valladas et al., 2003Valladas, H., Mercier, N., Michab, M., Joron, J. L., Reyss, J. L., & Guidon, N. (2003). TL age-estimates of burnt quartz pebbles from the Toca do Boqueirão da Pedra Furada (Piauí, Northeastem Brazil). Quaternary Science Reviews, 22(10-13), 1257-1263. https://doi.org/10.1016/S0277-3791(03)00029-5
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; Guidon et al., 2009Guidon, N., Pessis, A. M., & Martin, G. (2009). Pesquisas arqueológicas na região do Parque Nacional Serra da Capivara e seu entorno. Fumdhamentos, 8(1), 1-61.; Pessis et al., 2014Pessis, A.-M., Martin, G., & Guidon, N. (Orgs.). (2014). Os biomas e as sociedades humanas na pré-história: região do Parque Nacional Serra da Capivara, Brasil (Vol. 1-2). A&A.).

OCRES PRESENTES NO CONTEXTO ARQUEOLÓGICO DA SERRA DA CAPIVARA

Pesquisas realizadas na Área Arqueológica Serra da Capivara têm apontado para a larga utilização do ocre ao longo da pré-história dessa região. Esses dados foram obtidos a partir de escavações e contextos arqueológicos distintos em 25 sítios. Sua observação restringiu-se às evidências que puderam ser preservadas em solo arqueológico. Esses materiais foram evidenciados sobretudo associados a três contextos: enterramentos, pinturas rupestres e decoração cerâmica. A presente pesquisa se concentrou nos dois primeiros contextos.

O processamento do ocre geológico para sua transformação em pigmento é relativamente simples. A primeira fase da cadeia operatória envolve a coleta do material; os demais processos envolvem remoção de impurezas (raízes, grandes fragmentos de quartzo e outros materiais orgânicos e inorgânicos), queima (em alguns casos), trituração ou maceração e peneiramento, bem como adição de aglutinantes para produção da tinta. Para a primeira fase, observa-se, na maior parte da área arqueológica, zonas de concentração de ocres, estando entre elas as regiões de Serra Vermelha, Barreirinho e Desfiladeiro da Capivara.

CONTEXTOS FUNERÁRIOS

Na pesquisa para este trabalho, a base de dados da Fumdham6 6 A Fumdham foi criada em 1986, com o objetivo de garantir as pesquisas arqueológicas e a preservação do patrimônio cultural e natural do Parque Nacional Serra da Capivara. Atualmente, é responsável pela reserva técnica arqueológica dos vestígios evidenciados na Área Arqueológica Serra da Capivara. apontava para 78 enterramentos7 7 Aqui, é importante fazer a ressalva de que não foram identificados contextos funerários em todos os sítios onde foram evidenciados ossos humanos. , distribuídos em 16 sítios arqueológicos, inseridos nos domínios da Área Arqueológica Serra da Capivara (Parque Nacional Serra da Capivara e Parque Nacional Serra das Confusões). Os enterramentos foram aqui estudados como resultado do gesto técnico e simbólico em torno da morte de grupos pré-históricos que habitaram essa área. Esses enterramentos se distinguem tanto cronologicamente quanto em relação aos padrões funerários evidenciados (Cisneiros, 2008Cisneiros, D. (2008). Similaridades e diferenças nas pinturas rupestres de contorno aberto no Parque Nacional Serra da Capivara - PI [Tese de doutorado, Universidade Federal de Pernambuco].; Castro, 2008Castro, V. M. C. (2008). Marcadores de identidades coletivas no contexto funerário pré-histórico no Nordeste do Brasil [Tese de Doutorado, Universidade Federal de Pernambuco].; Leite, 2011Leite, L. (2011). O perfil funerário do sítio pré-histórico Toca da Baixa dos Caboclos - sudeste do Piauí [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Pernambuco].; Luz, 2014Luz, M. F. (2014). Práticas funerárias na Área Arqueológica Serra da Capivara [Tese de doutorado, Universidade Federal de Pernambuco].).

Vestígios de ocre foram observados no contexto funerário de oito sítios arqueológicos: Toca do Alto do Capim, Toca do Enoque, Toca do Mel, Toca da Baixa dos Caboclos, Toca do Barrigudo, Toca da Ema do Sítio do Brás I, Toca do Serrote do Tenente Luís e Toca do Gongo III. Nesses sítios, foi observada presença de ocre nos seguintes contextos e processos: pigmentos à base de ocre aplicado diretamente sobre ossos; pigmentos à base de ocre aplicado de forma indireta sobre ossos; artefatos e ecofatos com pigmentos; ocres com marcas de utilização; e ocres naturais sem marcas de utilização.

PIGMENTOS À BASE DE OCRE APLICADO DIRETAMENTE SOBRE OSSOS

Esse tipo de contexto foi verificado em enterramentos secundários na Serra da Capivara. Essa aplicação pode ser realizada através da mistura do pigmento com um aglutinante, para lhe conferir um aspecto líquido. A tinta pode ser aplicada diretamente sobre a superfície óssea, com uso de pincéis e dedos, deixando sobre o osso uma película de espessura fina ou grossa, a depender da densidade de pigmento e da intencionalidade do indivíduo.

A aplicação direta também pode ser dada por polvilhamento do ocre em pó ou em tinta, espargido sobre os ossos. Essa ação confere pontos esparsos de manchas sobre o material ósseo. Essa situação foi observada nos sítios Toca do Mel e Toca do Capim (Figura 5).

Figura 5
Fêmur de esqueleto evidenciado em enterramento no sítio Toca do Mel, com marcas de pigmento à base de ocre.

Aqui também pode ser ressaltada uma questão voltada à utilização do ocre em pinturas corporais no contexto funerário, com base na larga utilização de pinturas corporais por grupos indígenas ao longo do processo histórico. Esse tipo de evidência, no entanto, é de difícil observação no registro arqueológico, salvo quando a pele pode ser conservada, o que não foi demonstrado nos enterramentos analisados na Área Arqueológica Serra da Capivara.

PIGMENTOS À BASE DE OCRE APLICADO DE FORMA INDIRETA SOBRE OSSOS

Esse tipo de aplicação pode ser efetivado de duas maneiras: com ocre em pó ou em forma de tinta, depositado diretamente sobre o corpo do indivíduo no momento do enterramento. Após o processo de decomposição dos tecidos moles, esse material se adere aos ossos. Tal pigmento pode ter sido aplicado sobre o corpo em forma de pintura corporal, porém, para ser conservado e fixado aos ossos nos processos pós-deposicionais, a aplicação deve ser realizada de forma muito densa, podendo deixar marcas esparsadas de pigmentos.

Nessas duas situações, os vestígios de ocre se apresentam sob forma de pontos esparsos, semelhantes aos enterramentos secundários que sofreram polvilhamento. Na Área Arqueológica Serra da Capivara, esse tipo de situação se apresenta sobre os ossos dos sítios Toca do Alto da Serra do Capim e Toca do Enoque (Figura 6). Esses sítios têm datações que situam os enterramentos entre 6210 ± 50 anos BP (Beta 258021)8 8 Todas as datações apresentadas foram obtidas a partir da base de dados da Fumdham, no ano de 2019. para a Toca do Capim e 8270 ± 50 anos BP (Beta 264124) para os enterramentos da Toca do Enoque.

Figura 6
Estrutura funerária no sítio Toca do Alto da Serra do Capim, apresentando ossos humanos e vestígios de ocre macerado.

ARTEFATOS E ECOFATOS COM PIGMENTOS

Podem ser observadas também, em alguns contextos funerários, manchas de ocre sobre os artefatos e os ecofatos, acompanhando os enterramentos. Esses materiais podem ter sido utilizados para manipulação do ocre, como trituração/armazenagem, e permaneceram com marcas de pigmentação; ou são materiais que foram depositados junto ao esqueleto e foram manchados pela deposição do ocre triturado sobre a cova no momento da deposição do corpo ou dos ossos.

Contexto como esse pode, por exemplo, ser observado no sítio Toca da Baixa dos Caboclos, cujos ossos não apresentam marcas de ocre, aparecendo, no entanto, seixos com manchas de pigmento vermelho junto aos esqueletos na cova. A regularidade de pigmentos apresentada nos seixos sugere uma mancha provocada por manipulação antrópica e a intencionalidade de sua deposição no contexto funerário (Figura 7; Leite, 2011Leite, L. (2011). O perfil funerário do sítio pré-histórico Toca da Baixa dos Caboclos - sudeste do Piauí [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Pernambuco].). Nos sítios Toca do Enoque e Toca do Alto do Capim, também são evidenciados seixos, conchas e trançados com manchas de ocre (Figura 8; Guidon et al., 2019Guidon, N., Felice, G. D., & Macedo, A. O. (2019). A conservação dos vestígios arqueológicos no sítio Toca do Alto da Serra do Capim: um tafone no Parque Nacional Serra das Confusões - PI, Brasil. Fumdhamentos, 16(2), 3-34. http://fumdham.org.br/wp-content/uploads/2020/10/fumdham-fumdhamentos-xvi-2019-n-2-_933215.pdf
http://fumdham.org.br/wp-content/uploads...
).

Figura 7
. Seixos com marcas de pigmento no sítio Toca da Baixa dos Caboclos.
Figura 8
Seixo com marcas de percussão e vestígios de pigmento no sítio Toca do Alto do Capim.

OCRES COM MARCAS DE UTILIZAÇÃO

Foram evidenciados, em alguns contextos funerários da Área Arqueológica Serra da Capivara, ocres com marcas de utilização depositados junto aos enterramentos. Essa situação foi constatada nos enterramentos dos sítios Toca do Capim e Toca do Enoque. Esses materiais apresentam-se com desgastes e marcas de processamento, entre eles riscos profundos ou superficiais e subtração de massa, que demostram a extração de partes do mineral para o preparo do pigmento (Figura 9). Algumas das características que esses ocres apresentam é o fato de terem sido bem selecionados, serem homogêneos e sem incrustações, demonstrando a seleção prévia do material a ser utilizado.

Figura 9
Ocres com marcas de utilização evidenciados junto aos enterramentos no sítio Toca do Alto da Serra do Capim, na Serra da Confusões.

PINTURAS RUPESTRES

Na Área Arqueológica Serra da Capivara, os vestígios de maior dominância são indubitavelmente as pinturas rupestres, as quais são representadas sobre os suportes dos afloramentos rochosos em diversas cores, motivos e tamanhos. Os pigmentos pré-históricos estudados na região são predominantemente de origem mineral, fato que pode justificar sua longa durabilidade.

As pinturas rupestres nos suportes rochosos dessa área aparecem sob dois tipos de técnica de aplicação: líquida/pastosa e sólida. A técnica de aplicação líquida/pastosa está condicionada à adição de aglutinante para a transformação em tinta, que pode ter diferentes densidades. O pigmento umedecido (tinta) é resultado da mistura entre matéria-prima triturada com água e/ou algum aglutinante9 9 Esses fixadores são de difícil identificação por não estarem presentes nas amostragens, provavelmente por serem polimerizados pelo intemperismo (Gomes et al., 2014). , a partir da qual se obtém uma tinta que pode ser mais pastosa ou mais aquosa, a depender das soluções técnicas exigidas pelo desenho. Esse tipo de técnica é dominante nas pinturas da Área Arqueológica Serra da Capivara.

O uso e a combinação de cores observadas no suporte rochoso da Serra da Capivara não são aleatórios e requerem domínio preciso sobre o ocre e a tinta, expresso na execução de grafismos, nos tamanhos (miniaturizados < 5 cm ou grandes > 1 m), na espessura dos traços, nos delineamentos deles e na integração de cores em grafismos bicromáticos (Figura 10).

Figura 10
Nicho policrômico no sítio Toca do Boqueirão da Pedra Furada.

O grafismo obtido a partir do bastão sólido (seco ou umedecido) apresenta-se como um desenho riscado no paredão, utilizando-se do próprio bloco de matéria-prima (goethita/hematita) para a confecção do desenho, sem necessidade da preparação da tinta. Esse tipo de bastão é também descrito na literatura arqueológica como crayon, podendo ser utilizado a seco ou umedecido, para facilitar o manuseio (Cisneiros, 2008Cisneiros, D. (2008). Similaridades e diferenças nas pinturas rupestres de contorno aberto no Parque Nacional Serra da Capivara - PI [Tese de doutorado, Universidade Federal de Pernambuco].). Essa técnica aparece em poucos grafismos na Serra da Capivara, sobretudo em figuras de animais (Figura 11). Sua performance gráfica risca apenas os grãos mais proeminentes da superfície rochosa, deixando descontinuidades no traçado representado.

Figura 11
Zoomorfo no sítio Toca da Extrema.

Em relação à coloração do pigmento e à utilização de variações cromáticas na Área Arqueológica Serra da Capivara, Lage (1997)Lage, M. C. S. M. (1997). Análise química de pigmentos de arte rupestre do sudoeste do Piauí. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, (Supl. 2), 89-101. https://doi.org/10.11606/issn.2594-5939.revmaesupl.1997.113443
https://doi.org/10.11606/issn.2594-5939....
e Lage et al. (2002)Lage, M. C. S. M., Puccioni, S., Figueiredo, D. M., Arraes, M. G. M., Ferreira, M. A. F., Pádua, L. E. M., Carvalho, E. M. S., & Medeiros, E. (2002). Intervention de conservation sur un site: La Toca da Entrada do Pajaú, Parc National de la Serra da Capivara, Piauí. Primeirs résultats. L’Art Avant l’Histoire, la Conservations de l’Art Préhistorique, 23-24, 159-163. vêm apontando algumas diretrizes sobre as proveniências desses pigmentos:

  • pigmento vermelho - hematita (óxido de ferro - (Fe2O3));

  • pigmento amarelo - goethita (hidróxido de ferro - FeO(OH)) evidenciada principalmente em jazidas próximas à sede do município de Coronel José Dias;

  • pigmento branco - caulinita (Al2Si2O5(OH)4) ou gipsita (CaSO4.2H2O), a primeira é um argilo-mineral de alumínio hidratado e a segunda, um sulfato de cálcio hidratado, ambas são encontradas em muitos lugares do Parque Nacional Serra da Capivara, sobretudo na área de formação calcária;

  • pigmento cinza - mistura natural dos pigmentos vermelho e branco (hematita e caulinita), podendo ser proveniente de sedimentos argilosos localizados próximo ao povoado do Zabelê;

  • pigmento preto - identificado, porém não densamente estudado. Pode ser proveniente da queima de ossos ou madeira (Lage, 1997Lage, M. C. S. M. (1997). Análise química de pigmentos de arte rupestre do sudoeste do Piauí. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, (Supl. 2), 89-101. https://doi.org/10.11606/issn.2594-5939.revmaesupl.1997.113443
    https://doi.org/10.11606/issn.2594-5939....
    ; Lage & Farias Filho, 2018Lage, M. C. S. M., & Farias Filho, B. B. (2018). Arqueometria aplicada à conservação de sítios de arte rupestre. Cadernos do Lepaarq, 15(30), 327-343. https://doi.org/10.15210/lepaarq.v15i30.13812
    https://doi.org/10.15210/lepaarq.v15i30....
    ; Cisneiros, 2008Cisneiros, D. (2008). Similaridades e diferenças nas pinturas rupestres de contorno aberto no Parque Nacional Serra da Capivara - PI [Tese de doutorado, Universidade Federal de Pernambuco].).

Nas escavações dos sítios Toca do Boqueirão da Pedra Furada, Toca do Sítio do Meio, Toca da Cerca do Elias, Toca do João Leite, Toca do Deitado da Lagoa de Cima, Toca Nova do Inharé, Toca da Lagoa de Cima IX, Morro das Gravuras, Toca do Perna I, Toca do Pica-Pau, Toca do Pinga do Boi, Rancharia do Baixão do Macário, Toca do Dalton II, Roça do Justino IV e Toca do Veado, no Parque Nacional Serra da Capivara, e Toca do Enoque, no Parque Nacional Serra das Confusões, foram evidenciados óxidos de ferro, tanto em sua forma natural quanto com marcas de utilização, todos em contextos arqueológicos e em sítios com pinturas rupestres (Figura 12).

Figura 12
Ocres com marcas de utilização evidenciados em sítios arqueológicos na Área Arqueológica Serra da Capivara: A) Toca do Perna I; B) Toca do Veado; C) Toca do Pinga do Boi; D) Toca da Cerca do Elias; E) Toca do Inharé; F e G) Toca do João Leite; H e I) Toca do Enoque.

Nesses sítios, observa-se a preferência por certos tipos de ocre, os quais apresentam poucas incrustações e são muito mais homogêneos, diferentemente da maioria dos ocres que se encontra sobre o solo, o que denota um comportamento que vai muito além da seleção cromática (Nicolau, 2016aNicolau, A. C. (2016a). El ocre en la Prehistoria: entre la funcionalidad y el simbolismo. Archivo de Prehistoria Levantina, 31, 187-211. https://www.researchgate.net/publication/314442672_El_ocre_en_la_Prehistoria_entre_la_funcionalidad_y_el_simbolismo
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), pois é possível observar que esses grupos fizeram uma seleção dos ocres encontrados e de seus usos. É importante ressaltar também que a cor vermelha é dominante nas pinturas rupestres, nos contextos funerários e nos ocres com marcas de utilização em contextos diversificados.

A evidência de pinturas corporais torna-se muito difícil sobretudo em contextos pré-históricos. A presença de materiais que atestem diretamente seu uso é restrita devido à própria natureza orgânica, porém é possível inferir que essa prática poderia ter existido, pelas constâncias etnográficas, usos nas práticas funerárias e cenografias rupestres. Poucos estudos etnográficos apontam para a utilização do ocre como elemento principal em pintura corporal (Fiore, 2005Fiore, D. (2005). Pinturas corporales en el fin del mundo: una introducción al arte visual Selk’nam y Yamana. Chungara, 37(2), 109-127. http://dx.doi.org/10.4067/S0717-73562005000200002
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; Claudot-Hawad, 2013Claudot-Hawad, H. (2013). A l’abri du cosmos: maquillages de fête chez les Touaregs. In B. Andrieu & G. Boëtsch (Orgs.), Corps du monde. Atlas des cultures corporelles (pp. 23-30). Armand Collin.; Nicolau, 2016aNicolau, A. C. (2016a). El ocre en la Prehistoria: entre la funcionalidad y el simbolismo. Archivo de Prehistoria Levantina, 31, 187-211. https://www.researchgate.net/publication/314442672_El_ocre_en_la_Prehistoria_entre_la_funcionalidad_y_el_simbolismo
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), uma vez que essa prática, em geral, está relacionada a matérias-primas orgânicas e argilas. Atualmente, entre os grupos indígenas no Brasil, observa-se a utilização de corantes de origem orgânica e mineral, sendo os mais comuns: sementes de urucum (Bixa orellana), jenipapo (Genipa americana), pó de casca de ovo, cinza, carvão e argilas (Vidal, 1978Vidal, L. B. (1978). A pintura corporal entre os índios brasileiros. Revista de Antropologia, 21(1), 87-93. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.1978.131339
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; Silva & Farias, 2000Silva, A. L., & Farias, A. T. P. (2000). Pintura corporal e sociedade: os “partidos” Xerente. In L. Vidal (Org.), Grafismo indígena: estudos de Antropologia Estética (pp. 88-116). Edusp.), entretanto, a utilização do ocre como pintura corporal não foi evidenciada entre as sociedades indígenas hodiernas no Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considera-se os corantes de origem mineral como elementos largamente utilizados em períodos pré--históricos por diversos grupos culturais, cujas propriedades facilitaram sua preservação nos registros arqueológicos até os dias atuais, em diversos contextos e usos.

Esse material foi bastante explorado por homens e mulheres, adquirido na natureza, tratado e aplicado sobre vários tipos de suportes. Ao selecionarem essa matéria-prima, utilizavam-se de diversas técnicas para o seu manejo e a sua transformação, como a seleção dos fragmentos na natureza, a queima, a trituração, a adição de aglutinantes, entre outros.

Segundo Nicolau (2016a)Nicolau, A. C. (2016a). El ocre en la Prehistoria: entre la funcionalidad y el simbolismo. Archivo de Prehistoria Levantina, 31, 187-211. https://www.researchgate.net/publication/314442672_El_ocre_en_la_Prehistoria_entre_la_funcionalidad_y_el_simbolismo
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, o problema central para a identificação do papel dos ocres na pré-história está relacionado ao seu caráter polifuncional, uma característica de utilização que faz com que esse material esteja relacionado a diversos contextos com funcionalidades e simbolismos distintos.

Estudos etnográficos têm apresentado exemplos de diversas utilidades dadas ao ocre por diferentes sociedades de caçadores-coletores (Wadley, 2005Wadley, L. (2005). Putting ochre to the test: replication studies of adhesives that may have been used for hafting tools in the Middle Stone Age. Journal of Human Evolution, 49(5), 587-601. https://doi.org/10.1016/j.jhevol.2005.06.007
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; Henshilwood et al., 2009Henshilwood, C., D’Errico, F., & Watts, I. (2009). Engraved ochres from the Middle Stone Age levels at Blombos Cave, South Africa. Journal of Human Evolution, 57(1), 27-47. https://doi.org/10.1016/j.jhevol.2009.01.005
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), da mesma forma que a Arqueologia Experimental vem apontando para a possibilidade de certas práticas e usos do ocre estarem relacionadas à conservação de materiais e a propriedades antissépticas (Audouin & Plisson, 1982Audouin, F., & Plisson, H. (1982). Les ocres et leurs témoins au Paléolithique en France: enquête et expériences sur leur validité archéologique. Cahiers du Centre de Recherches Préhistoriques, 8, 33-80.; Wadley, 2005Wadley, L. (2005). Putting ochre to the test: replication studies of adhesives that may have been used for hafting tools in the Middle Stone Age. Journal of Human Evolution, 49(5), 587-601. https://doi.org/10.1016/j.jhevol.2005.06.007
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; Rifkin, 2011Rifkin, R. (2011). Assessing the efficacy of red ochre as a prehistoric hide tanning ingredient. Journal of African Archaeology, 9(2), 131-158. https://doi.org/10.3213/2191-5784-10199
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), porém esse tipo de estudo ainda é bastante incipiente no Brasil.

Mesmo com o avanço de análises sobre os ocres arqueológicos, e de seus contextos funcionais e simbólicos, ainda não há muitos estudos sobre a composição geoquímica deles, o uso de aglutinantes e as técnicas de preparo. A Arqueologia Experimental, associada à Arqueometria, poderia muito em breve vir a responder a algumas dessas perguntas.

A utilização do ocre nas diversas manifestações rupestres e sua notável presença em enterramentos com distintas cronologias conferem a este material um inegável elemento simbólico. Para muitos autores (Siddall, 2018Siddall, R. (2018). Mineral pigments in archaeology: their analysis and the range of available materials. Minerals, 8(5), 1-35. https://doi.org/10.3390/min8050201
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; Nicolau, 2016aNicolau, A. C. (2016a). El ocre en la Prehistoria: entre la funcionalidad y el simbolismo. Archivo de Prehistoria Levantina, 31, 187-211. https://www.researchgate.net/publication/314442672_El_ocre_en_la_Prehistoria_entre_la_funcionalidad_y_el_simbolismo
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), o ocre, sobretudo o pigmento vermelho, representa um elo entre os planos cognitivo e cotidiano que mais se reproduz e que pode fornecer maiores informações sobre expressões simbólicas dos grupos humanos. Para tanto, antes, faz-se necessário entender os contextos em que os materiais são identificados, a sua natureza e os aspectos técnicos de sua utilização.

No contexto arqueológico da Serra da Capivara, pôde ser verificada a utilização do ocre sob as perspectivas simbólicas e técnicas. Foi observada a utilização recorrente dele na prática fúnebre e na arte rupestre. Em relação ao gesto fúnebre, observou-se: pinturas de ossos em enterramentos secundários; aplicação de camadas de ocre triturado sobre enterramentos primários e secundários; acompanhamento funerário – ocres e materiais (ecofatos e artefatos) com traços de ocre. Nas cenografias da arte rupestre, observou-se diferentes usos tanto nas técnicas aditivas (pigmentos e bastão sólido) quanto nos processamentos de densidade de pigmentos e tintas.

Estudos arqueológicos têm apresentado a larga utilização do ocre em contextos funerários e pictóricos na Serra da Capivara, assim como sua utilização durante períodos pleistocênicos e holocênicos. Apesar disso, pesquisas sobre a cadeia operatória que envolve o processo de obtenção e preparo desse material, como também sua composição geoquímica, ainda possuem pouco detalhamento.

As análises do ocre arqueológico e dos pigmentos, de modo geral, têm muito a contribuir para pesquisas arqueológicas e mineralógicas regionais. No entanto, ainda há um extenso caminho a ser percorrido. A utilização de métodos para identificar perfis, técnicas de procedência e processamento associados a contextos arqueológicos poderia ser um caminho importante.

As análises desse tipo de vestígio envolvem não apenas um emparelhamento de metodologias e técnicas, mas também paradigmas relacionados a abordagens das funcionalidades e das simbologias que esses elementos carregam para grupos pré-históricos. De certo, podemos inferir que esses materiais foram utilizados em contextos ordinários e ritualísticos, e que possuem códigos adjacentes aos grupos culturais que os manipularam. Aqui, levamos em consideração o que foi preservado no registro arqueológico, bem como as possíveis utilizações do ocre nas práticas fúnebres e nos registros rupestres.

O caminho a percorrer é longo e apenas a interdisciplinaridade envolvendo arqueólogos, químicos e geólogos pode conferir respostas conjuntas para a elaboração de um sistema de conhecimento sobre a aquisição, a preparação e os usos do ocre na pré-história.

  • 1
    Segundo Siddall (2018)Siddall, R. (2018). Mineral pigments in archaeology: their analysis and the range of available materials. Minerals, 8(5), 1-35. https://doi.org/10.3390/min8050201
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    , a palavra ocre designa depósitos ricos em óxidos e hidróxidos de ferro que se formam na superfície ou em ambiente próximo à superfície. Os ocres naturais são, por definição, depósitos impuros, contendo uma mistura de componentes minerais, comumente quartzo, cobalto, argilas e/ou micas. Nos ocres, o vermelho é obtido a partir da hematita (óxido de ferro); a matiz amarela pode ser proveniente da goethita (hidróxido de ferro); o marrom pode ser obtido principalmente a partir da limonita (mistura de óxidos hidratados de ferro) ou da mistura de ambos (Branco, 2015Branco, P. M. (2015, 23 ago.). Pigmentos minerais. Serviço Geológico do Brasil - CPRM. (2015). http://www.cprm.gov.br/publique/SGB-Divulga/Canal-Escola/Pigmentos-Minerais-1263.html
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    ).
  • 2
    Para esse trabalho em específico, será utilizado o termo pré-história em referência à discussão de contextos arqueológicos gerais (americanos e europeus) e a contextos cronológicos (pleistocênicos e holocênicos) em relação à utilização do ocre. Porém, compreende-se que o conceito de ‘história indígena de longa duração’ poderia ser o mais adequado no caso de a discussão enveredar para a utilização do ocre por sociedades indígenas pretéritas e hodiernas.
  • 3
    Segundo Santaolalla (2017)Santaolalla, J. R. (2017). El color en el arte rupestre paleolítico. Análisis de los materiales pictóricos en la región Cantábrica: estado de la cuestión [Monografia de graduação, Universidad de Cantabria]., os pigmentos são compostos sólidos agregados que mudam a cor da luz transmitida ou refletida, como resultado de uma absorção seletiva num dado comprimento de onda. Podem ser encontrados na natureza (em sua maior parte, como os óxidos e hidróxidos de ferro) ou ser fabricados pelo homem (sintéticos), sendo de natureza orgânica ou inorgânica. É comum que os pigmentos sejam frequentemente confundidos com corantes. Estes últimos são, em geral, substâncias solúveis em água, utilizados para conferir cor a um produto (Gomes et al., 2014Gomes, H., Rosina, P., & Osterbeek, L. (2014). Natureza e processamento de pigmentos de pinturas rupestres. In P. Diniz, A. Gomes & S. Monteiro-Rodrigues (Orgs.), Proveniência de materiais geológicos: abordagens sobre o Quaternário de Portugal (pp. 193-212). Associação Portuguesa para o Estudo do Quaternário.).
  • 4
    O conceito de área arqueológica vem sendo trabalhado desde a década de 1960 e corresponde a uma categoria de entrada para referenciar sítios e pesquisas arqueológicas em unidades ecológicas. As pesquisas realizadas em uma área arqueológica visam entender os processos de ocupação, adaptação e aproveitamento dos recursos disponíveis por grupos humanos que habitaram a região, sobretudo em períodos pré-históricos (Martin, 2003Martin, G. (2003). Fronteiras estilísticas e culturais na arte rupestre da área arqueológica do Seridó (RN, PB). CLIO Arqueológica, (16), 11-32. https://periodicos.ufpe.br/revistas/clioarqueologica/article/view/246968/35865
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    ; Cisneiros, 2008Cisneiros, D. (2008). Similaridades e diferenças nas pinturas rupestres de contorno aberto no Parque Nacional Serra da Capivara - PI [Tese de doutorado, Universidade Federal de Pernambuco].). A Área Arqueológica Serra da Capivara compreende um espaço ecológico que abriga dois parques nacionais (Parque Serra da Capivara e Parque Serra da Confusões) e um corredor ecológico, entre eles está a localizada no sudeste do Piauí (Cisneiros, 2011Cisneiros, D. (2011). Similaridades e diferenças nas pinturas rupestres de contorno aberto no Parque Nacional Serra da Capivara - PI. CLIO Arqueológica, 25(2), 17-25. https://periodicos.ufpe.br/revistas/clioarqueologica/article/view/246808
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    ).
  • 5
    Esses sítios estão localizados nas poligonais dos parques Serra da Capivara e Serra das Confusões e no corredor ecológico.
  • 6
    A Fumdham foi criada em 1986, com o objetivo de garantir as pesquisas arqueológicas e a preservação do patrimônio cultural e natural do Parque Nacional Serra da Capivara. Atualmente, é responsável pela reserva técnica arqueológica dos vestígios evidenciados na Área Arqueológica Serra da Capivara.
  • 7
    Aqui, é importante fazer a ressalva de que não foram identificados contextos funerários em todos os sítios onde foram evidenciados ossos humanos.
  • 8
    Todas as datações apresentadas foram obtidas a partir da base de dados da Fumdham, no ano de 2019.
  • 9
    Esses fixadores são de difícil identificação por não estarem presentes nas amostragens, provavelmente por serem polimerizados pelo intemperismo (Gomes et al., 2014Gomes, H., Rosina, P., & Osterbeek, L. (2014). Natureza e processamento de pigmentos de pinturas rupestres. In P. Diniz, A. Gomes & S. Monteiro-Rodrigues (Orgs.), Proveniência de materiais geológicos: abordagens sobre o Quaternário de Portugal (pp. 193-212). Associação Portuguesa para o Estudo do Quaternário.).

AGRADECIMIENTOS

Daniela Cisneiros agradece o financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – (CNPq), processo 311673/2019-8. Os autores agradecem a equipe técnico-científica da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham) pelas contribuições a essa pesquisa, e a Dra. Niede Guidon, por todo apoio.

  • Cisneiros, D., Tavares, B., & Costa, H. (2022). A utilização do ocre na pré-história da Serra da Capivara, Piauí, Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 17(3), e20210046. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2021-0046

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Responsabilidade editorial: Cristiana Barreto

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2021
  • Aceito
    22 Dez 2021
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