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Crítica literária negra: o estado da questão

Black literary criticism: the state of the question

Crítica literária negra: el estado de la cuestión

Resumo

O presente artigo é fruto das reflexões balizadas no âmbito dos estudos da literatura afro-brasileira e de seus quantos e possíveis desdobramentos. A produção e a circulação de romances, contos, poesias e crônicas com temáticas negras são uma realidade cada vez mais visível no campo literário brasileiro; e têm ensejado, numa relação de causa e efeito, a produção crítica sobre essa nova vertente da literatura brasileira. Objetivou-se, com este estudo, apresentar, ainda que de forma sumária, o estado da questão de uma crítica que tem ocupado, especificamente, de um corpus literário afro-centrado. Na mesma direção, intenta-se, ainda, demonstrar o modo como ela foi e tem sido gestada num fecundo e complexo campo de reflexões e tensões situadas, sobretudo, na esfera universitária. Para tanto, são evocadas, nesta discussão, as considerações críticas de Regina Dalcastagnè (2008DALCASTAGNÈ, Regina (2008). Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, v. 31, p. 87-110. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9434. Acesso em: 24 set. 2022.
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; 2012DALCASTAGNÈ, Regina (2012). Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. São Paulo: Horizonte.), Conceição Evaristo (2009)EVARISTO, Conceição (2009). Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade. Revista Scripta, Belo Horizonte, v. 13, n. 25, p. 17-31., Luiz Silva (2010)SILVA, Luiz (2010). Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro., David Brookshaw (2012)BROOKSHAW, David (2012). Raça e cor na literatura brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto., Thomas Bonicci (2012)BONICCI, Thomas (2012). Pós-colonialismo e a literatura: estratégias de leitura. 2. ed. Maringá: Eduem., Eduardo de Assis Duarte (2014)DUARTE, Eduardo de Assis de (2014). Literatura afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XXI. Rio de Janeiro: Pallas., entre outros pesquisadores que se debruçam sobre o assunto. O estudo conclui que a crítica literária negra é uma realidade no campo literário nacional que tem trazido contributos significativos para uma leitura conjecturada das produções afro-brasileiras.

Palavras-chave:
crítica literária; crítica literária negra; literatura afro-brasileira

Abstract

This article is the result of reflections based on studies of Afro-Brazilian literature and its many and possible developments. The production and circulation of novels, short stories, poetry, and chronicles with black themes are an increasingly visible reality in the Brazilian literary field; and have given rise, in a cause-and-effect relationship, to critical production on this new aspect of Brazilian literature. The objective of this study was to present, albeit in a summary form, the state of the question of a critique that has specifically focused on an Afro-centered literary corpus. In the same direction, it is also intended to demonstrate the way in which it was and has been managed in a fertile and complex field of reflections and tensions located, above all, in the university sphere. To this end, this discussion evokes the critical considerations of Regina Dalcastagnè (2008DALCASTAGNÈ, Regina (2008). Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, v. 31, p. 87-110. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9434. Acesso em: 24 set. 2022.
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; 2012DALCASTAGNÈ, Regina (2012). Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. São Paulo: Horizonte.), Conceição Evaristo (2009)EVARISTO, Conceição (2009). Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade. Revista Scripta, Belo Horizonte, v. 13, n. 25, p. 17-31., Luiz Silva (2010)SILVA, Luiz (2010). Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro., David Brookshaw (2012)BROOKSHAW, David (2012). Raça e cor na literatura brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto., Thomas Bonicci (2012)BONICCI, Thomas (2012). Pós-colonialismo e a literatura: estratégias de leitura. 2. ed. Maringá: Eduem., Eduardo de Assis Duarte (2014)DUARTE, Eduardo de Assis de (2014). Literatura afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XXI. Rio de Janeiro: Pallas., among other researchers who study the subject. The study concludes that black literary criticism is a reality in the national literary field that has brought significant contributions to a conjectured reading of Afro-Brazilian productions.

Keywords:
literary criticism; black literary criticism; Afro-Brazilian literature

Resumen

El presente artículo es el resultado de reflexiones basadas en estudios de la literatura afrobrasileña y sus múltiples y posibles desarrollos. La producción y circulación de novelas, cuentos, poesías y crónicas de temática negra son una realidad cada vez más visible en el campo literario brasileño; y han dado lugar, en una relación de causa y efecto, a la producción crítica sobre este nuevo aspecto de la literatura brasileña. El objetivo de este estudio fue presentar, aunque de forma resumida, el estado de la cuestión de una crítica que se ha centrado específicamente en un corpus literario afrocentrado. En la misma dirección, también se pretende evidenciar la forma en que se gestó y se ha gestionado en un campo fértil y complejo de reflexiones y tensiones situado, sobre todo, en el ámbito universitario. Para ello, esta discusión evoca las consideraciones críticas de Regina Dalcastagnè (2008DALCASTAGNÈ, Regina (2008). Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, v. 31, p. 87-110. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9434. Acesso em: 24 set. 2022.
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; 2012DALCASTAGNÈ, Regina (2012). Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. São Paulo: Horizonte.), Conceição Evaristo (2009)EVARISTO, Conceição (2009). Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade. Revista Scripta, Belo Horizonte, v. 13, n. 25, p. 17-31., Luiz Silva (2010)SILVA, Luiz (2010). Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro., David Brookshaw (2012)BROOKSHAW, David (2012). Raça e cor na literatura brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto., Thomas Bonicci (2012)BONICCI, Thomas (2012). Pós-colonialismo e a literatura: estratégias de leitura. 2. ed. Maringá: Eduem., Eduardo de Assis Duarte (2014)DUARTE, Eduardo de Assis de (2014). Literatura afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XXI. Rio de Janeiro: Pallas., entre otros investigadores que estudian el tema. El estudio concluye que la crítica literaria negra es una realidad en el campo literario nacional que ha traído aportes significativos para una lectura conjeturada de las producciones afrobrasileñas.

Palabras clave:
crítica literaria; crítica literaria negra; literatura afrobrasileña

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O negro é um ponto de vista vencido na escala etnográfica, e o Brasil não é, não deve ser, o Haiti. Eu não sei se os nossos publicistas de cor terão a veleidade de suporem-se mais ilustrados, mais lúcidos, mais desprendidos de prejuízo do que o ilustre naturalista Huxley. [...]

(Romero, 1881ROMERO, Silvio (1881). A questão do dia: a emancipação dos escravos. Revista Brazileira, ano 2, tomo 7, p. 192.).

A epígrafe acima é, como se nota, de Sílvio Romero (1881)ROMERO, Silvio (1881). A questão do dia: a emancipação dos escravos. Revista Brazileira, ano 2, tomo 7, p. 192. — importante crítico literário brasileiro do século XIX, cujas contribuições para os estudos literários e sociológicos são relevantes. As pesquisas que incidem sobre a vida e obra do referido crítico descortinam sua filiação ideológica e, tão logo, evidenciam seu posicionamento diante das questões raciais: de um lado, por conveniência político-econômica, Romero adotou um discurso intelectual timidamente antiescravagista (Schneider, 2018SCHNEIDER, Alberto Luiz (2018). Machado de Assis e Silvio Romero: escravismo, “raça” e cientificismo em tempos de campanha abolicionista (década de 1880). Almanack, n. 18, p. 451-488. https://doi.org/10.1590/2236-463320181810
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); e, por outro, não se esquivou em adotar as teorias racialistas de seu tempo, as quais sugeriram o branqueamento da população brasileira como possibilidade de purificação da nação e o alcance do progresso.

Para o crítico, os homens de cor seriam um ponto vencido na escala etnográfica do país e, por motivos já refutados cientificamente, não teriam condições de serem pessoas cultas; logo, limitadas para exercer qualquer atividade intelectual à altura de seus correligionários1 1 Em outro momento, prossegue Sílvio Romero (1881, p. 199): “Pode ser absolutamente certo, diz Huxley, que alguns negros sejam superiores a alguns brancos; mas nenhum homem de bom senso, bem esclarecido sobre os fatos, poderá crer que em geral o negro valha tanto quanto o branco e muito menos seja-lhe superior. E se assim é, torna-se impossível acreditar que logo que sejam afastadas todas as incapacidades civis, desde que a carreira lhes seja aberta e que não sejam nem oprimidos nem favorecidos, nossos irmãos prognáticos possam lutar com vantagem com os seus irmãos melhor favorecidos de cérebro. Não só os irmãos negros não poderão, pois, chegar aos mais altos lugares da hierarquia estabelecida pela civilização, ainda que não seja necessário confiná-los lá para a última classe”. de cor branca. Nesse sentido, a produção de ficção ou de crítica literária por homens e mulheres negras estaria longe de corresponder a qualquer expectativa esperada por homens brancos orientados por um pensamento cartesiano, ocidental e prescritor de normas e estatutos que sustentam a crítica e a teoria literária na contemporaneidade (Silva, 2013SILVA, Luiz Maurício Azevedo (2013). A crítica literária marxista e a questão do preconceito. Revista de Estudos Literários da UEMS, v. 2, n. 7, p. 9-18.).

Diante do exposto sumariamente arrolado, interessa-nos observar como o pensamento adotado por Sílvio Romero (1881)ROMERO, Silvio (1881). A questão do dia: a emancipação dos escravos. Revista Brazileira, ano 2, tomo 7, p. 192. — e por tantos outros intelectuais da época, frise-se — engendrou a estrutura do campo literário brasileiro do qual são partes constituintes o ficcionista e o crítico. Para tanto, é preciso considerar o fato de que, mesmo passados mais de 130 anos da abolição da escravatura, o país ainda não foi capaz de desconstruir do imaginário coletivo de sua população a falsa noção de que o povo negro é, hierarquicamente, inferior à população branca, como apregoaram as pseudociências do início do século XX (Moore, 2009MOORE, Carlos (2009). Racismo e sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo. Belo Horizonte: Mazza.; Schwarcz, 2015SCHWARCZ, Lília Moritz (2015). O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. 13. ed. São Paulo: Companhia das Letras.). Não obstante, vale ressaltar, em consonância com os postulados críticos de Kabengele Munanga (2012)MUNANGA, Kabengele (2012). Negritude e identidade negra ou afrodescendente: um racismo ao avesso? Revista da ABPN, Ouro Preto, v. 4, n. 8, p. 6-14. e de Sílvio Almeida (2020)ALMEIDA, Sílvio (2020). Racismo estrutural. São Paulo: Jandaíra. — para ficarmos apenas em dois de muitos outros pesquisadores —, que esse pensamento racista foi assentado nas estruturas da sociedade brasileira, gerando desigualdades sociais em diversas instâncias; a saber, nas instituições, nos espaços sociais, simbólicos e discursivos, como é, neste último caso, o espaço das produções ficcionais e críticas.

Em decorrência disso, a literatura brasileira destinada aos públicos adulto e infanto-juvenil reflete — e muito — o racismo forjado e perpetuado na estrutura social do país, conforme apontam os resultados das pesquisas realizadas no âmbito acadêmico por críticos literários brasileiros e estrangeiros, os quais veremos mais adiante. Salvo algumas divergências que não alteram, em hipótese alguma, o cenário da representação de personagens negros na ficção nacional, é quase consenso que o negro foi sub-representado seja enquanto instância ficcional (personagens secundários, terciários, figurantes etc.), seja na ocupação de diversas funções sociais menos privilegiadas que foram plasmadas nas ficções (empregadas domésticas, escravas, prostitutas, bandidos, ladrões, contraventores etc.) de diversos gêneros da literatura nacional (Dalcastagnè, 2008DALCASTAGNÈ, Regina (2008). Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, v. 31, p. 87-110. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9434. Acesso em: 24 set. 2022.
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; 2012DALCASTAGNÈ, Regina (2012). Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. São Paulo: Horizonte.).

A negativa representação das personagens negras pode estar, segundo Dalcastagnè (2008)DALCASTAGNÈ, Regina (2008). Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, v. 31, p. 87-110. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9434. Acesso em: 24 set. 2022.
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, vinculada à baixa representatividade de autores negros. Após analisar 258 romances contemporâneos “que correspondem à totalidade das primeiras edições de romances de autores brasileiros publicadas pelas três editoras mais prestigiosas do país” (Dalcastagnè, 2008DALCASTAGNÈ, Regina (2008). Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, v. 31, p. 87-110. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9434. Acesso em: 24 set. 2022.
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, p. 89), Dalcastagnè (2008)DALCASTAGNÈ, Regina (2008). Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, v. 31, p. 87-110. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9434. Acesso em: 24 set. 2022.
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traçou um perfil dos romancistas brasileiros: foram identificados 165 escritores diferentes; destes, 72,7% são homens. Segundo a autora, “a homogeneidade racial é mais ainda gritante: são brancos 93,9% dos autores e autoras estudados (3,6% não tiveram a cor identificada e os ‘não brancos’, como categoria coletiva, ficaram em meros 2,4%)” (Dalcastagnè, 2008DALCASTAGNÈ, Regina (2008). Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, v. 31, p. 87-110. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9434. Acesso em: 24 set. 2022.
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, p. 89).

Embora até o presente momento nenhum estudo que investigue a cor e o gênero dos críticos literários brasileiros, aos moldes do que fez Dalcastagnè (2008DALCASTAGNÈ, Regina (2008). Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, v. 31, p. 87-110. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9434. Acesso em: 24 set. 2022.
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; 2012DALCASTAGNÈ, Regina (2012). Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. São Paulo: Horizonte.) sobre os escritores de ficção, tenha sido realizado, é possível observar, por meio de mecanismos de buscas na internet — como o Google, por exemplo — que os mais expressivos críticos do século XX são, em sua grande maioria, homens brancos; entre os quais Álvaro Lins, Afrânio Coutinho, Afrânio Peixoto, Antonio Candido, Alfredo Bosi, Haroldo Campos, Luiz Costa Lima, Silviano Santigo, Wilson Martins, para citar alguns. Uma das poucas exceções femininas que figura no extenso rol de autores é Lúcia Miguel Pereira (mulher branca) — ensaísta que se destacou pelo rigor analítico que adotou durante suas atividades intelectuais e pelas incisivas contribuições que deu às discussões de seu tempo, mas cujo reconhecimento, em meios aos pares, só viera tardiamente.

Ainda que sejam dados relevantes, é importante frisar que a cor e o gênero dos críticos literários não se constituem, per se, em um problema. O problema encontra-se no sistema de dominação masculina que rege o ocidente (Bourdieu, 2015BOURDIEU, Pierre (2015). A dominação masculina. Trad. Maria Helena Künher. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.) e no racismo estrutural (Almeida, 2020ALMEIDA, Sílvio (2020). Racismo estrutural. São Paulo: Jandaíra.) que atravessam o campo literário e limitam as múltiplas representações de gênero e de raça que poderiam, no âmbito da crítica, oferecer outras perspectivas analíticas das obras literárias. No caso da quase ausência de ensaístas mulheres, o exemplo de Lúcia Miguel Pereira é salutar: embora tenha sido conservadora em seus costumes, Lúcia, por meio de análises contundentes, “faz uma incursão pela história literária e social do país, repertoria as personagens femininas e mostra os nexos que as uniam às mulheres reais” (Pontes, 2008PONTES, Heloisa (2008). Crítica de cultura no feminino. Mana, v. 14, n. 2, p. 511-541. https://doi.org/10.1590/S0104-93132008000200009
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, p. 522) — feito até então não realizado por críticos homens.

De igual forma, nossos críticos literários não se interessaram pela investigação da representação de personagens negros. Embora fosse uma figura cuja representatividade para a vida social brasileira não pudesse ser ignorada, o negro e a sua indissociável cultura chamaram a atenção de críticos norte-americanos, como Reymond Sayers (1958)SAYERS, Raymond (1958). O negro na literatura brasileira. Trad. Antonio Houaiss. Rio de Janeiro: O Cruzeiro., Gregory Rabassa (1965)RABASSA, Gregory (1965). O negro na ficção brasileira. Trad: Ana Maria Martins. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. e o britânico David Brookshaw (2012). Foram estes os primeiros a se debruçarem, nos séculos XIX e XX, sobre a presença da população preta na ficção brasileira, despertando, posteriormente, o mesmo interesse entre outros estudiosos como Heloisa Toller Gomes (1988)GOMES, Heloisa Toller (1988). O negro e o romantismo brasileiro. São Paulo: Atual., Jean Carvalho França (1998)FRANÇA, Jean Carvalho (1998). Imagens do negro na literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense., Regina Dalcastagnè (2008DALCASTAGNÈ, Regina (2008). Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, v. 31, p. 87-110. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9434. Acesso em: 24 set. 2022.
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; 2012DALCASTAGNÈ, Regina (2012). Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. São Paulo: Horizonte.) e, no âmbito das literaturas infantil e infanto-juvenil, de Fúlvia Rosemberg (1985)ROSEMBERG, Fúlvia (1985). Literatura infantil e ideologia. São Paulo: Global. e Paulo Vinicius Baptista da Silva.

Esses ensaístas, é importante ressaltar, debruçaram-se sobre o modo como os negros, enquanto instância ficcional, foram plasmados na ficção brasileira. Trata-se, de modo geral, de artigos, ensaios e livros que trazem contribuições significativas de produções literárias, em sua grande maioria, de autores brancos que representaram o negro em suas tramas, já que o sujeito negro, enquanto instância autoral — à exceção de Lima Barreto2 2 Lima Barreto foi um dos poucos romancistas negros a despertar o interesse de críticos que empenharam suas opiniões nos jornais cariocas do início do século XX. Apesar das duras críticas recebidas de Medeiros Albuquerque e Alcides Maia, foi no crítico José Veríssimo que Barreto encontrou incentivo para continuidade de seu projeto literário (Bertol, 2017). no início do século XX e, posteriormente, de Maria Firmina dos Reis —, foi naturalmente excluso do sistema literário (Santos, 2017SANTOS, James Rios de Oliveira (2017). Autoria e representação de personagens negras em narrativas infantojuvenis: acervos PNBE 2011 e 2013. 194f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual de Maringá, Maringá.). Desse modo, em nosso entendimento, presumimos que esse conjunto de produções críticas não se constitui, ainda, em uma crítica literária negra porque tais análises não se atêm, recorrentemente, à ficção de autores negros propriamente dita, cuja circulação (com maior intensidade) de romances, contos, poesia e teatro só se deu nos anos finais do século passado, com os Cadernos Negros — o principal veio de uma literatura que pulsa, não à margem, mas paralelamente ao grande nicho editorial do país.

Criados em 1978, os Cadernos propiciaram e ainda propiciam condições para o surgimento de uma plêiade de escritores negros. É este veículo de comunicação que permite, a muitos estudiosos, conforme registra o pesquisador Eduardo de Assis Duarte (2014)DUARTE, Eduardo de Assis de (2014). Literatura afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XXI. Rio de Janeiro: Pallas., a possibilidade de pensar a “configuração discursiva de um conceito de literatura negra” (Duarte, 2014DUARTE, Eduardo de Assis de (2014). Literatura afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XXI. Rio de Janeiro: Pallas., p. 20) e, numa relação de causa e efeito, a configuração de uma crítica que se constitui com base nesse novo corpus.

Embora nosso breve estudo se revele uma pesquisa provisional que carece e deve ser amadurecida a posteriori, estamos convictos da existência de uma crítica literária negra, filiada aos pressupostos teóricos provenientes dos estudos pós-coloniais, os quais têm fundamentado a compreensão de grande parte dos pesquisadores sérios que, ao contrário daquilo a que possa aludir a tradição crítica, não intenta tratar o texto literário negro com condescendência. Por isso, este artigo objetiva também apresentar, ainda que de forma sucinta, o estado da questão dessa nova vertente da crítica no Brasil. Tem-se como finalidade entender o modo como ela foi e tem sido gestada num fecundo e complexo campo de reflexões e tensões situadas, sobretudo, na esfera universitária. Dada a brevidade desta comunicação, elegemos aqueles e aquelas ensaístas que consideramos ser os principais expoentes da crítica afro-brasileira, mesmo sob pena de incorrer no risco de não acolher outros nomes igualmente importantes; os quais, por certo, deverão ser retomados em um próximo trabalho de maior fôlego.

ENSAIOS SOBRE O NEGRO NA LITERATURA BRASILEIRA: UMA CRÍTICA PRECURSORA

A crítica literária afro-brasileira3 3 Neste ensaio, tomamos como sinônimo os termos “negro” e “afro-brasileiro”. não surge espontaneamente. Ela tem como precursora a produção teórico-crítica desenvolvida, primeiramente, por pesquisadores estrangeiros, no âmbito da academia, que pretende ser “rigorosa e não está primordialmente preocupada com problemas de tempo e espaço” (Durão, 2016DURÃO, Fabio Akcelrud (2016). O que é crítica literária. São Paulo: Nankin; Parábola., p. 12). São, conforme posto anteriormente, os casos de Raymond Sayers, Gregory Rabassa e David Brookshaw, os quais, de alguma forma, foram atravessados e/ou até mesmo incentivados pelos estudos do brasilianista Roger Bastide (Medeiros, 2015MEDEIROS, Mário (2015). Polifonias marginais. Rio de Janeiro: Aeroplano.). Sayers foi, a propósito, o primeiro estudioso a empenhar uma pesquisa acadêmica que interseccionasse questões de raça e literatura. Em 1958, publicou, na Universidade de Columbia (EUA), sua tese de doutoramento intitulada O Negro na Literatura Brasileira, com o objetivo de focalizar a representação do sujeito negro até a década de 1888.

Rabassa (1965)RABASSA, Gregory (1965). O negro na ficção brasileira. Trad: Ana Maria Martins. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro., por sua vez, em O negro na ficção brasileira: meio século de história de literatura, deu continuidade ao trabalho de Sayers (1958)SAYERS, Raymond (1958). O negro na literatura brasileira. Trad. Antonio Houaiss. Rio de Janeiro: O Cruzeiro., empreendendo uma pesquisa minuciosa ao analisar representações do negro do Quinhentismo ao Modernismo, nos mais diversos gêneros da literatura nacional. O crítico, que considera o negro “uma figura importante na literatura contemporânea do país” e possui o entendimento de que “sua aparição em obras constitui base para um estudo interessante” (Rabassa, 1965RABASSA, Gregory (1965). O negro na ficção brasileira. Trad: Ana Maria Martins. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro., p. 14), propõe uma pesquisa extensa que serviu, durante algum tempo, de referência para os pesquisadores brasileiros interessados nessa matéria. Há, contudo, uma ressalva a ser feita sobre seu trabalho. Rabassa (1965)RABASSA, Gregory (1965). O negro na ficção brasileira. Trad: Ana Maria Martins. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro., no prefácio de sua obra, apresenta uma visão distorcida da realidade (racial) brasileira no contexto da abolição e da pós-abolição da escravatura. Afirma o crítico:

A enorme população mulata do Brasil é a prova de que brancos e negros não se mantinham separados uns dos outros (...). Não houve na literatura um movimento negro real como nas nações do Caribe, talvez devido ao fato de que no Brasil o negro está integrado na vida nacional num grau que não é encontrado em nenhum outro lugar (Rabassa, 1965RABASSA, Gregory (1965). O negro na ficção brasileira. Trad: Ana Maria Martins. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro., p. 14).

A compreensão de Rabassa (1965)RABASSA, Gregory (1965). O negro na ficção brasileira. Trad: Ana Maria Martins. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. sobre as relações raciais no Brasil foi, também, atravessada pelos estudos sociológicos tão difundidos, à época, por Gilberto Freyre, mais precisamente na obra Casa Grande & Senzala. No livro de Freyre, e, por conseguinte, na crítica da Rabassa (1965)RABASSA, Gregory (1965). O negro na ficção brasileira. Trad: Ana Maria Martins. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro., prevalece em primeiro plano o mito da democracia racial, que consiste num discurso — limitado e sem comprovação científica, registre-se — de que homens brancos e negros conviviam em plena harmonia porque, nos dizeres de Freyre, diferentemente de outros países escravagistas, não havia conflitos ou tensões entre os povos de raças diferentes, como nos Estados Unidos e África do Sul, por exemplo. Ora, esse pensamento, que mais tarde fora desmitificado no campo da ciência por pesquisadores como Florestan Fernandes, permeou, conforme acentua Mongim (2019)MONGIM, Luciana Marquesini (2019). Etnicidade e literatura: a presença do negro na literatura marginal periférica. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória., as análises literárias de Rabassa (1965)RABASSA, Gregory (1965). O negro na ficção brasileira. Trad: Ana Maria Martins. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro., tornando-as, assim, parcialmente comprometidas.

Com certas limitações, a obra de Rabassa (1965)RABASSA, Gregory (1965). O negro na ficção brasileira. Trad: Ana Maria Martins. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. foi, diferente da de Sayers (1958)SAYERS, Raymond (1958). O negro na literatura brasileira. Trad. Antonio Houaiss. Rio de Janeiro: O Cruzeiro., a que mais circulou no país ao lado dos postulados críticos de David Brookshaw, que também encontrou, nas universidades, a sua melhor recepção. Este autor, professor emérito da Universidade Bristol, no Reino Unido, divide sua atividade ensaística com a tradução de romances africanos de língua portuguesa e produziu aquela que, no âmbito da crítica, talvez seja o seu maior ponto alto: a obra Raça e Cor na Literatura Brasileira, publicada em 1983 pela editora Mercado Aberto. A cadeira que ocupou enquanto professor do departamento de espanhol e estudos latino-americanos de sua universidade certamente lhe deu a chancela para a construção de uma crítica que superou, em termos qualitativos, aquela produzida por Rabassa (1965)RABASSA, Gregory (1965). O negro na ficção brasileira. Trad: Ana Maria Martins. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. nos Estados Unidos. Isso porque, em nosso entendimento, o norte-americano limitou-se a estudar os autores brasileiros de maneira isolada, desconsiderando o contexto sociorracial que poderia, em maior menor grau, sugerir outras possibilidades interpretativas para seus objetos de investigação. Nesse aspecto, David Brookshaw parece avançar ao propor uma crítica que tem como eixo central um problema muito recorrente em nossa literatura: referimo-nos ao estereótipo aplicado a diversos personagens negros. Para o autor,

O estudo de estereótipos é sem dúvida um dos tópicos mais complexos e, ao mesmo tempo, de mais ampla fundamentação de que o escrutínio acadêmico pode dispor, pois encerra material pertinente ao sociólogo, ao psicólogo, ao antropólogo e, principalmente, ao estudioso de literatura, de igual modo (Brookshaw, 2012BROOKSHAW, David (2012). Raça e cor na literatura brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto., p. 9).

Assim como em Rabassa (1965)RABASSA, Gregory (1965). O negro na ficção brasileira. Trad: Ana Maria Martins. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro., há, na produção de Brookshaw, algumas lacunas que carecem ser mais bem problematizadas. Para focarmos apenas uma delas, é interessante o fato de, pela primeira vez, aparecer no âmbito da crítica o termo “literatura negra”. Em consonância com os estudos de Cortazzo (2018)CORTAZZO, Uruguay (2018). Branquitude e Crítica Literária. Literafro. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/artigos/artigos-teorico-conceituais/48-uruguay-cortazzo-branquitude-e-critica-literaria. Acesso em: 3 jan. 2022.
http://www.letras.ufmg.br/literafro/arti...
, pelo fato de o crítico britânico ter como foco os estereótipos aplicados aos personagens negros, ele não se debruçou sobre uma análise profunda das questões atinentes à cor dos autores que se propuseram a produzir uma eventual literatura negra. Desse modo, nas palavras de Cortazzo (2018CORTAZZO, Uruguay (2018). Branquitude e Crítica Literária. Literafro. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/artigos/artigos-teorico-conceituais/48-uruguay-cortazzo-branquitude-e-critica-literaria. Acesso em: 3 jan. 2022.
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, p. 107):

Em sua obra, o teórico desenvolve critérios de classificação em que separa os autores que utilizam uma temática negra em “brancos” e “negros”, ou seja, o que fundamenta essa distinção é a cor da pele. A categoria de classificação baseada na cor é subjetiva, até mesmo pela dificuldade de em um país multiétnico e multicultural estabelecer quem é negro e quem não é, ou, ainda, estabelecer o que define o que é “ser negro” no Brasil. Além do critério inconsistente, o autor não apresenta em sua obra um conceito claro de literatura negra.

Numa escala comparativa entre Sayers (1958)SAYERS, Raymond (1958). O negro na literatura brasileira. Trad. Antonio Houaiss. Rio de Janeiro: O Cruzeiro., Rabassa (1965)RABASSA, Gregory (1965). O negro na ficção brasileira. Trad: Ana Maria Martins. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. e Brookshaw (2012)BROOKSHAW, David (2012). Raça e cor na literatura brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto., há, notadamente, um gradativo avanço no desenvolvimento de suas análises que investigam as relações raciais presentes no tecido ficcional de autores brasileiros majoritariamente brancos. Por outra via, entretanto, não podemos nos esquecer do fato de que os referidos críticos são estrangeiros e que, por este motivo — salienta Mongim (2019)MONGIM, Luciana Marquesini (2019). Etnicidade e literatura: a presença do negro na literatura marginal periférica. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória. —, não tiveram condições, em razão da distância e do contexto de produção de suas formulações, de compreender certos aspectos das questões raciais, que tornaram limitados seus ensaios analíticos. Todavia, ainda que com tais limitações, esses precursores críticos são importantes porque trouxeram para o campo do debate uma abordagem sobre o negro e sua aparição na literatura antes silenciada e desconsiderada, sobretudo, por nossos críticos brasileiros.

POR UMA CRÍTICA LITERÁRIA NEGRA: QUESTÕES DE PRIMEIRA HORA

Quando se focaliza o percurso histórico da crítica no Brasil, bem como os conceitos que fundamentam a crítica literária nacional, é possível observar a constituição de uma tradição ensaística assentada em pressupostos teórico-críticos provenientes de diversos países da Europa. Ao recorrerem aos textos introdutórios à crítica feita no Brasil, estudantes de graduação e pós-graduação certamente irão se deparar com ensaios de René Wellek (1993)WELLEK, René (1993). Conceitos de crítica. São Paulo: Cultrix. e Kátia Muricy (2009)MURICY, Kátia (2009). A natureza filosófica da crítica. In: OLINTO, Hidrun Krieger; SCHOLLHAMMER, Karl Erik (org.). Literatura e crítica. Rio de Janeiro: 7Letras. p. 114-136. — para ficarmos em apenas dois de muitos outros exemplos — que descortinam essa realidade. Em “A natureza filosófica da crítica”, por exemplo, Muricy (2009)MURICY, Kátia (2009). A natureza filosófica da crítica. In: OLINTO, Hidrun Krieger; SCHOLLHAMMER, Karl Erik (org.). Literatura e crítica. Rio de Janeiro: 7Letras. p. 114-136. ressalta que a base epistemológica a sustentar a crítica ocidental repousa nos postulados filosóficos dos alemães Johann Goethe e Walter Benjamin. Wellek (1993)WELLEK, René (1993). Conceitos de crítica. São Paulo: Cultrix., em “Termo e conceito de crítica literária”, ao buscar compreender a origem etimológica do termo “crítica”, permite ao leitor observar uma série de conceitos gestados e difundidos por autores gregos, franceses, italianos e ingleses, entre outros europeus. Desse modo, é possível concluir, em conformidade com o que apregoa Eneida Maria de Souza (2002SOUZA, Eneida Maria de (2002). O discurso crítico brasileiro. Belo Horizonte: Editora UFMG., p. 56), que

A relação binária estabelecida entre o Brasil e outras culturas restringia-se basicamente à europeia, ponto central de onde as ideias saíam. Limitados se tornavam, portanto, os intercâmbios internacionais, ocasionando a ocidentalização da cultura, pela estreita dependência existente entre o país e a Europa.

A ficção brasileira é, como exaustivamente já acentuaram críticos como Antonio Candido (1999)CANDIDO, Antonio (1999). Formação da Literatura Brasileira. São Paulo: Itatiaia. v. 1., Alfredo Bosi (2006)BOSI, Alfredo (2006). História concisa da literatura brasileira. 36. ed. São Paulo: Cultrix. e Massaud Moisés (2012)MOISÉS, Massaud (2012). História da literatura brasileira: das origens ao romantismo. São Paulo: Cultrix., tributária das literaturas portuguesa e francesa. Assim, a aplicação de critérios analíticos fundamentados em pressupostos teóricos eurocêntricos é uma condição já naturalizada. Os mesmos critérios, entretanto, não podem, em nosso entendimento, ser aplicados àqueles textos ficcionais que, apesar de brasileiros, encontram-se situados em contextos de produção avessamente distintos daqueles que foram produzidos por homens brancos ao largo da história literária nacional, conforme demonstrou Regina Dalcastagnè (2008DALCASTAGNÈ, Regina (2008). Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, v. 31, p. 87-110. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9434. Acesso em: 24 set. 2022.
https://periodicos.unb.br/index.php/estu...
; 2012DALCASTAGNÈ, Regina (2012). Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. São Paulo: Horizonte.). Referimo-nos, obviamente, à literatura produzida por homens e mulheres negras, cujas estéticas driblam conceitos vinculados às noções de “universais” e de “belo” e que, por esse e outros motivos, vinculam-se a uma estética pós-colonial. Nas palavras do crítico Thomas Bonicci (2012BONICCI, Thomas (2012). Pós-colonialismo e a literatura: estratégias de leitura. 2. ed. Maringá: Eduem., p. 237),

A literatura indígena-afro-brasileira, tão difícil e problemática, entre nós, devido às ideias universalizantes do belo e do branco estabelecidas, é própria da literatura brasileira como pós-colonial (...) A agência do indígena e do negro deve integrar os estudos subalternos nos quais emergem a rica narrativa oral, a música, as artes plásticas e a expressão do eu-enunciador híbrido em todos os gêneros da literatura.

Nessa perspectiva, a literatura negra e/ou afro-brasileira é aquela que “surge como disrupção, uma ruptura em um sistema literário que só reconhecia a voz branca como uma única autorizada, a proprietária, natural e autêntica escrita da arte” (Cortazzo, 2018CORTAZZO, Uruguay (2018). Branquitude e Crítica Literária. Literafro. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/artigos/artigos-teorico-conceituais/48-uruguay-cortazzo-branquitude-e-critica-literaria. Acesso em: 3 jan. 2022.
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, p. 1). É, não obstante, uma voz não isolada, pois pressupõe, em cada indivíduo negro, a presença de uma coletividade portadora de uma corporeidade particular, de valores místicos, sociais, culturais estéticos e políticos que “se inscrevem e reescrevem na pele e que constituem um imaginário social e artístico sólido e palpável para qualquer um” (Cortazzo, 2018CORTAZZO, Uruguay (2018). Branquitude e Crítica Literária. Literafro. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/artigos/artigos-teorico-conceituais/48-uruguay-cortazzo-branquitude-e-critica-literaria. Acesso em: 3 jan. 2022.
http://www.letras.ufmg.br/literafro/arti...
, p. 6).

Dito isso, corroboramos a afirmação do pesquisador Uruguay Cortazzo (2018)CORTAZZO, Uruguay (2018). Branquitude e Crítica Literária. Literafro. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/artigos/artigos-teorico-conceituais/48-uruguay-cortazzo-branquitude-e-critica-literaria. Acesso em: 3 jan. 2022.
http://www.letras.ufmg.br/literafro/arti...
, o qual defende uma teorização e uma crítica que “não pode separar corpo, identidade e escrita” (Cortazzo, 2018CORTAZZO, Uruguay (2018). Branquitude e Crítica Literária. Literafro. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/artigos/artigos-teorico-conceituais/48-uruguay-cortazzo-branquitude-e-critica-literaria. Acesso em: 3 jan. 2022.
http://www.letras.ufmg.br/literafro/arti...
, p. 6). Ora, se em nossa tradição crítica não foi e não é possível vislumbrar tal abordagem, será no âmbito dos estudos pós-coloniais que a crítica literária negra encontrará sua ancoragem. Nessa direção, as considerações teórico-críticas de Bonicci (2012)BONICCI, Thomas (2012). Pós-colonialismo e a literatura: estratégias de leitura. 2. ed. Maringá: Eduem. também nos são pertinentes, pois descortinam as possibilidades analíticas que essa corrente propõe.

A análise da obra literária sob o enfoque da teoria pós-colonialista pode ser uma tarefa difícil, porque implica uma metanoia no leitor e no crítico. Pode inclusive subverter noções importantes da teoria literária e criar um mal-estar quando se faz a comparação tipicamente ocidental (porque hierárquica) entre a literatura de uma ex-colônia e as principais literaturas europeias (...). Ela oferece a escolha de textos de origem pós-colonial, escritos por autores que experimentam a degradação e, às vezes, o aniquilamento de sua cultura pelo colonialismo, para investigar a resposta de cada um diante da arrogância colonial ainda resistente. Oferece também a oportunidade de resgatar textos que o poder colonial suprimia e fazia sumir (porque subvertiam a ordem colonial por ela estabelecida), de analisar textos sob uma nova perspectiva e recuperar aspectos satíricos e irônicos pelos quais os autores, superando convivências laudatórias, mostram a infâmia da colonização (Bonicci, 2012BONICCI, Thomas (2012). Pós-colonialismo e a literatura: estratégias de leitura. 2. ed. Maringá: Eduem., p. 23, grifo nosso).

A crítica literária negra é, desse modo, aquela crítica que aceita o fato de “que os discursos da e sobre literatura estão longe de ser discursos sem sujeitos” (Perrone-Moisés, 1993PERRONE-MOISÉS, Leyla (1993). Texto, Crítica, Escritura. 2. ed. São Paulo: Ática., p. 27). É uma crítica que não se exime da responsabilidade de se autodeclarar ideológica porque entende, na mesma medida, que seus aparatos analíticos se engendram no âmbito da ciência e não intentam defender uma pauta racial por meio da condescendência de textos ficcionais de autoria negra, os quais, em momentos anteriores, eram lidos mais como ente antropológico do que como objeto estético-literário. Nessa mesma direção, aliás, o pesquisador Luiz Maurício de Azevedo Silva (2020SILVA, Luiz Maurício Azevedo (2020). Ideologias literárias da cor na reconfiguração do cânone brasileiro. Revista de Literatura Brasileira, Porto Alegre, v. 33, n. 61, p. 95-112., p. 104) reitera que, “depois da ressaca acadêmica dos Estudos Culturais, tratar os objetos de análise com condescendência, tentando protegê-los do embate crítico, seria um engano ruidoso. É  justamente o exercício da crítica severa que pode salvá-los do risco do desaparecimento”.

No âmbito desse exercício crítico, contudo, é de suma importância que o ensaísta, diante de seu objeto de investigação, tenha consciência dos elementos constitutivos que abarcam o contexto de produção das obras afro-brasileiras, sobremaneira aqueles que dizem respeito ao seu indivíduo produtor, que se encontra em um espaço de subordinação social e que, por este motivo, sofre, quase sempre, de privação econômica (Silva, 2020SILVA, Luiz Maurício Azevedo (2020). Ideologias literárias da cor na reconfiguração do cânone brasileiro. Revista de Literatura Brasileira, Porto Alegre, v. 33, n. 61, p. 95-112.). Não obstante, salienta Silva (2020SILVA, Luiz Maurício Azevedo (2020). Ideologias literárias da cor na reconfiguração do cânone brasileiro. Revista de Literatura Brasileira, Porto Alegre, v. 33, n. 61, p. 95-112., p. 105) que o crítico deverá, ainda, buscar uma compreensão sobre os espaços de circulação das manifestações literárias negras, os quais, com certa recorrência, dão-se em “saraus de periferia, eventos em centros comunitários, editoras independentes, blogs, fanzines”. Tudo isto porque, em síntese, a crítica literária negra objetiva obter uma compreensão ampla das questões sociorraciais que, frisa-se, acabam por engendrar o texto ficcional afro-brasileiro.

Conforme posto anteriormente, assim como as primeiras discussões sobre as questões étnico-raciais e a sua intersecção com a literatura se deram na esfera acadêmica, por meio de críticos estrangeiros, a crítica literária negra encontra na academia universitária o espaço para o seu desenvolvimento. Nossos principais críticos — muitos deles negros, vale dizer — gestaram suas produções em programas de pós-graduação, em níveis de mestrado e doutorado nas instituições de ensino superior; e/ou por meio de grupos de pesquisas que, em alguns poucos casos, propõem um debate permanente sobre essa matéria. Considerando-se o fato de a produção ficcional negra ser recente (em termos de circulação massiva), já é razoável o número de artigos, dissertações e teses que intentam lançar novos olhares para a produção de escritores e escritoras já consagrados (como Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Luiz Silva, Itamar Vieira Júnior); ou que, por outra via, desejam recuperar os escritos de negras e negros que foram “esquecidos” ou subestimados pela crítica tradicional — como é o caso do romance Úrsula, de Maria Firmino dos Reis.

Na seara da produção acadêmica em que se vislumbram diversas possibilidades de abordagem do texto afro-brasileiro, há, certamente, um grupo de críticos que tem se preocupado em conceituar essa produção que, gradativamente e por meio de editoras especializadas, tem se colocado no mercado. Intelectuais negros como Luiz Silva (Cuti), Domício de Proença Filho, Conceição Evaristo têm travado, ora em consonância, ora em dissonância com intelectuais brancos, como Zilá Bernd e Eduardo de Assis Duarte, um grande debate em torno da busca de uma definição para esse “novo” corpus literário. Para este trabalho, convém-nos destacar alguns pontos desse debate que descortina esse grande primeiro momento da crítica negra, marcada por diversas tensões instauradas nesse terreno de operações intelectuais.

O grande desafio dos críticos de primeira hora foi — e em nosso entendimento continua sendo — definir o que venha a ser, efetivamente, uma literatura negra. Zilá Bernd4 4 Zilá Bernd não ancora sua crítica nas teorias pós-coloniais. Sua perspectiva analítica respalda-se na tradição crítica brasileira e em teóricos, em sua grande maioria, europeus. No entanto, seus diversos ensaios sobre a produção literária negra suscitaram o debate entre diversos estudiosos pós-colonialistas que problematizaram, em grande medida, seus postulados. Por esse motivo, trouxemos suas considerações à baila deste texto. , pesquisadora de referência no âmbito das Letras, foi uma das que fomentou a discussão em torno dessa matéria, por meio da publicação de sua tese de doutoramento e outros ensaios posteriores. Em dois textos específicos, mais precisamente em Negritude e literatura na América Latina e em “Literatura Negra” — este último publicado junto à obra Palavras da Crítica, organizado por José Luís Jobim (2012)JOBIM, José Luís (2012). A crítica literária e os críticos criadores no Brasil. Rio de Janeiro: Caetés/EDUERJ.Bernd (1992)BERND, Zilá (1992). Literatura Negra. In: JOBIM, José Luis (org.). Palavras da Crítica. Rio de Janeiro: Imago. p. 267-275. defende abertamente um conceito de literatura negra que não deve se basear no fenótipo do autor. Em seu entendimento, “esta classificação de base racial ou epidérmica se constitui, a meu ver, a partir de bases cientificamente falsas e ideologicamente perigosas” (Bernd, 1992BERND, Zilá (1992). Literatura Negra. In: JOBIM, José Luis (org.). Palavras da Crítica. Rio de Janeiro: Imago. p. 267-275. apud Cortazzo, 2018CORTAZZO, Uruguay (2018). Branquitude e Crítica Literária. Literafro. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/artigos/artigos-teorico-conceituais/48-uruguay-cortazzo-branquitude-e-critica-literaria. Acesso em: 3 jan. 2022.
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, p. 5).

Em outro momento, ela postula que “a negritude fracassou porque permaneceu prisioneira de uma duvidosa mística da raça. Longe de ser uma questão de comunidade de raça, trata-se essencialmente de uma comunidade de condição. A da opressão” (Bernd, 1992BERND, Zilá (1992). Literatura Negra. In: JOBIM, José Luis (org.). Palavras da Crítica. Rio de Janeiro: Imago. p. 267-275. apud Cortazzo, 2018CORTAZZO, Uruguay (2018). Branquitude e Crítica Literária. Literafro. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/artigos/artigos-teorico-conceituais/48-uruguay-cortazzo-branquitude-e-critica-literaria. Acesso em: 3 jan. 2022.
http://www.letras.ufmg.br/literafro/arti...
, p. 5). Tal posicionamento demonstra, em primeira instância, o superficial conhecimento que a ensaísta possui no que tange às questões étnico-raciais. Obviamente, não se pode reivindicar, em acepção biológica, a existência de raças humanas, no entanto é preciso considerar o fato de que tal conceito foi reelaborado no âmbito das ciências sociais para explicar as desigualdades sociais que se retroalimentam de um conceito ainda existente no imaginário coletivo brasileiro e que tem balizado as relações humanas no território brasileiro (Munanga, 2012MUNANGA, Kabengele (2012). Negritude e identidade negra ou afrodescendente: um racismo ao avesso? Revista da ABPN, Ouro Preto, v. 4, n. 8, p. 6-14.).

Consoante ao seu posicionamento, Bernd (1987BERND, Zilá (1987). Negritude e literatura na América Latina. Porto Alegre: Mercado Aberto., p. 16) tem defendido uma literatura que parta de evidências textuais que possam identificar um “eu enunciador que se quer negro, que reivindique a sua especificidade negra”. Nesse sentido, qualquer escritor (branco) poderia reivindicar, para sua escrita, o estatuto de literatura negra, ainda que suas vivências pouco ou quase nada possam contribuir para a representação por vezes complexa e delicada até mesmo para um escritor afro-brasileiro. À postura dessa crítica reagiram outros pesquisadores que contrariaram veementemente tal posição por considerá-la perigosa, pois

Quando Bernd desconsidera esta corporeidade como signo social, substituindo-a por um traço enunciativo linguístico, elimina uma das principais matrizes estéticas e volta a inviabilizar a negro como sujeito produtor de textos específicos. Sua intenção é construir um autor descorporificado, um puro formalismo linguístico: um “eu que se quer negro”, mas que não precisa ser negro (Cortazzo, 2018CORTAZZO, Uruguay (2018). Branquitude e Crítica Literária. Literafro. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/artigos/artigos-teorico-conceituais/48-uruguay-cortazzo-branquitude-e-critica-literaria. Acesso em: 3 jan. 2022.
http://www.letras.ufmg.br/literafro/arti...
, p. 6).

A escritora e ensaísta Conceição Evaristo (2009)EVARISTO, Conceição (2009). Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade. Revista Scripta, Belo Horizonte, v. 13, n. 25, p. 17-31., diante da celeuma, também se posicionou. Em seu ensaio intitulado “Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade”, defende que “esse corpus se constituiria como uma produção escrita marcada por uma subjetividade construída, experimentada, vivenciada, a partir da condição de homens negros e mulheres negras na sociedade brasileira” (Evaristo, 2009EVARISTO, Conceição (2009). Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade. Revista Scripta, Belo Horizonte, v. 13, n. 25, p. 17-31., p. 17). Nesse mesmo ensaio, acentua que

Contudo, há estudiosos, leitores e mesmo escritores afrodescendentes que negam a existência de uma literatura afro-brasileira. Apegam-se à defesa de que a arte é universal, e mais do que isso, não consideram que a experiência das pessoas negras ou afrodescendentes possa instituir um modo próprio de produzir e de conceber um texto literário, com todas as suas implicações estéticas e ideológicas. Convém ainda ressaltar que, mesmo da parte daqueles que reconhecem a existência de literatura afro-brasileira ou negra, há divergência de entendimento quando se coloca a questão do sujeito autoral e sua “insinuação”, a sua “infiltração”, ou seu “intrometimento” enquanto voz que enuncia no texto. As discussões em torno do tema têm me envolvido como pesquisadora. E a partir do exercício de pensar a minha própria escrita, venho afirmando não só a existência de uma literatura afro-brasileira, mas também a presença de uma vertente negra feminina (Evaristo, 2009EVARISTO, Conceição (2009). Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade. Revista Scripta, Belo Horizonte, v. 13, n. 25, p. 17-31., p. 18, grifo nosso).

Para além das questões autorais, outras polêmicas plasmam-se nesse contexto. As terminologias que dariam cabo de propor uma definição mais assertiva para essa mais nova vertente da literatura brasileira foram o mote de discussão — acirrada, por certo — para diversos estudiosos. Mas é em torno das produções críticas de Eduardo de Assis Duarte e de Luiz Silva que é possível observar, com maior clareza, as divergências que marcam suas posições. Duarte (2014)DUARTE, Eduardo de Assis de (2014). Literatura afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XXI. Rio de Janeiro: Pallas. tem defendido, na obra Literatura afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XXI, o termo “literatura afro-brasileira”. Silva (2010)SILVA, Luiz (2010). Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro., em Literatura negro-brasileira, advoga a favor da terminologia que intitula sua própria obra.

Apesar de serem, em muitos contextos, palavras sinônimas, para os críticos ora referenciados tais terminologias apresentam algumas sérias implicações. Silva (2010)SILVA, Luiz (2010). Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro., a título de ilustração, vincula o termo “negro” à questão autoral e posiciona-se ao lado de pesquisadores como Conceição Evaristo, Octávio Ianni e Uruguay Cortazzo. Ele entende ser a literatura negro-brasileira aquela produzida por autores autodeclarado negros, que possuem abertamente um compromisso com as questões raciais, já que essa estética contribuiria para promover “contínuos ataques poéticos” às premissas racistas, “visando à reversão de suas mentiras impostas como verdades desqualificadoras dos atributos físicos e culturais da população negro-brasileira” (Silva, 2010SILVA, Luiz (2010). Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro., p. 103). Na mesma direção, prossegue o crítico reiterando que

A literatura negro-brasileira nasce na e da população negra que se formou fora da África, e de sua experiência no Brasil. A singularidade é negra e, ao mesmo tempo, brasileira, pois a palavra negro aponta para um processo de luta participativa nos destinos da nação e não se presta ao reducionismo contribucionista a uma pretensa brancura que a englobaria como um todo a receber, daqui e dali, elementos negros e indígenas para se fortalecer (...). O que há de manifestação reivindicatória apoia-se na palavra “negro” (Silva, 2010SILVA, Luiz (2010). Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro., p. 45).

Para Luiz Silva (2010)SILVA, Luiz (2010). Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro., que também é poeta e contista negro, o termo “afro-brasileiro” não é o mais apropriado para definir a literatura produzida por autores negros pelo fato de que essa terminologia pode ser aplicada para definir qualquer pessoa descendente de negros, mesmo não sendo uma pessoa necessariamente negra. Para além dessa premissa, Silva (2010SILVA, Luiz (2010). Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro., p. 35) entende que “denominar afro a produção literária negro-brasileira é projetá-la à origem continental de seus autores, deixando à margem a literatura brasileira, atribuindo-lhe, principalmente, uma desqualificação com base no viés da hierarquização das culturas”. Em suma, para esse crítico, o termo afro-brasileiro torna-se abstrato para definir uma literatura que possui suas especificidades engendradas em solo brasileiro.

O professor Eduardo de Assis Duarte, que mantém um importante e atuante projeto de pesquisa voltado para a literatura afro-brasileira na Universidade Federal de Minas Gerais, possui, declaradamente, uma afinidade crítica com o trabalho de Zilá Bernd (1992)BERND, Zilá (1992). Literatura Negra. In: JOBIM, José Luis (org.). Palavras da Crítica. Rio de Janeiro: Imago. p. 267-275.. Por isso, defende, também, que “a literatura afro-brasileira se firma como expressão de um lugar discursivo construído pela visão de mundo historicamente identificada à trajetória vivida entre nós por africanos escravizados e seus descendentes” (Duarte, 2014DUARTE, Eduardo de Assis de (2014). Literatura afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XXI. Rio de Janeiro: Pallas., p. 11, grifo nosso). Dessa forma, a questão autoral não deve ser vista como um dado exterior, pautado no fenótipo do escritor negro. Logo, qualquer sujeito imbuído de um “ponto de vista negro” — o que nos parece ser perigoso em algumas situações — poderia traduzir discursiva e esteticamente as experiências de um sujeito de cor. O termo “afro-brasileiro”, portanto, abarcaria o discurso de todos os enunciadores que se vissem em tal condição.

Nesse contexto, vejo no conceito de literatura afro-brasileira uma formulação mais elástica (e mais produtiva), a abarcar tanto a assunção explícita de um sujeito étnico — que se faz presente numa série que vai de Luiz Gama a Cuti — perpassando pelo “negro ou mulato como queiram”, de Lima Barreto — quanto o dissimulado lugar de enunciação que abriga Caldas Barbosa, Machado de Assis, Firmina, Cruz e Souza, Patrocínio, Paulo Brito, Gonçalves Crespo e tantos mais. Por isso mesmo, inscrever-se como um operador capacitado a abarcar melhor, por sua amplitude necessariamente compósita, as várias tendências existentes na demarcação discursiva do campo identitário afrodescendente em sua expressão literária (Duarte, 2014DUARTE, Eduardo de Assis de (2014). Literatura afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XXI. Rio de Janeiro: Pallas., p. 28).

Se há quem não concorde com o termo “literatura afro-brasileira”, dada a sua amplitude, que pode, em maior ou menor grau, comprometer a especificidade do texto ficcional da negritude, há quem considere válido o conjunto de elementos que Duarte (2014)DUARTE, Eduardo de Assis de (2014). Literatura afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XXI. Rio de Janeiro: Pallas. propõe para a identificação dessa vertente literária. Nos termos do pesquisador, uma produção afro-brasileira poderá ser identificada com base em:

  • sua temática (temas que estejam em consonância com a memória/história da população negra e/ou sua realidade social contemporânea);

  • da autoria (que não pressupõe, necessariamente, um autor fenotipicamente negro, mas que traduza certo ponto de vista negro);

  • o ponto de vista (que indica a visão de mundo do autor e todo seu universo cultural);

  • uma linguagem (que esteja vinculada esteticamente ao contexto cultural afro-brasileiro, sobretudo por meio da oralidade e outras práticas culturais);

  • a um público (que tem, em seu horizonte recepção, a população negro-brasileira).

No campo das definições conceituais, talvez seja a de Duarte (2014)DUARTE, Eduardo de Assis de (2014). Literatura afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XXI. Rio de Janeiro: Pallas. a última proposição de nomenclatura que intentou definir a produção literária de autoria negra e de seus descendentes que se identificam com determinado “ponto de vista” negro. Embora seus postulados críticos descortinem um novo grau amadurecimento da crítica literária negra, entendemos que muitas questões ainda estão em aberto e só serão mais bem respondidas à medida que novas produções ficcionais negras /afro-brasileiras permitirem ao pesquisador incursões mais profundas no terreno das complexas relações raciais no Brasil. Por hora, entendemos que cabe ao crítico adotar uma acepção crítica que melhor se adeque aos interesses de sua pesquisa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A possibilidade de uma crítica literária negra em contexto (simbólico e discursivo), no qual a crítica literária brasileira possui uma tradição e um notável amadurecimento, pode gerar um eventual mal-estar entre os que asseguram a existência de uma literatura e uma crítica universais. Há quem diga que esse tipo de abordagem constitui tão somente uma crítica de ressentimento, formulada por aqueles que não tiveram condições ou capacidade para se filiar às estéticas ou às proposições teóricas geradas no bojo das tradições euro-ocidentais (Silva, 2013SILVA, Luiz Maurício Azevedo (2013). A crítica literária marxista e a questão do preconceito. Revista de Estudos Literários da UEMS, v. 2, n. 7, p. 9-18.).

Vale salientar, todavia, que a crítica literária negra, ao que se observa em suas produções correntes, não possui a pretensão de se colocar acima ou abaixo, nem ser melhor nem pior que aquela. Trata-se, muito antes disso, apenas de uma abordagem específica de um corpus literário (negro/afro-brasileiro) pelo qual a tradição crítica, fundamentada em pressupostos teóricos euro-ocidentais, nem sempre se interessou proficuamente. De igual modo, é importante salientar que, embora essa vertente intente superar certos paradigmas teóricos, romper com certas estruturas e propor novos olhares para os objetos estéticos, ela não está — e talvez nunca esteja — interessada em negar as contribuições que a tradição crítica relegou, sobretudo, aos escritores negros que, em algum momento de suas produções, orientaram-se por tais perspectivas.

Em suma, resta claro que a crítica literária negra — tão recente porque a literatura negro-brasileira é, em termos de circulação, também recente — está em pleno processo de construção. Evidente, também, são as suas (naturais) divergências operadas em seu próprio bojo. Do exposto arrolado, vale atentar para o fato de que, ao contrário do que afirmou Silvio Romero (1881)ROMERO, Silvio (1881). A questão do dia: a emancipação dos escravos. Revista Brazileira, ano 2, tomo 7, p. 192., os críticos literários negros não são um ponto de vista vencido no âmbito das formulações críticas, porque, assim como muitos outros críticos (brancos) que perpassaram pela história da crítica brasileira, não foram nem mais nem menos desprendidos de prejuízos do que os aclamados naturalistas. Ancorados em teorias que lhes permitem melhor balizar seus objetos estéticos, os intelectuais negros compõem — ainda em menor número, é verdade — a cena acadêmica e, ao menos no âmbito do discurso crítico, têm procurado fugir de uma lógica hierárquica quando em franco diálogo com seus pares não negros. Nasce uma crítica literária negra.

  • 1
    Em outro momento, prossegue Sílvio Romero (1881ROMERO, Silvio (1881). A questão do dia: a emancipação dos escravos. Revista Brazileira, ano 2, tomo 7, p. 192., p. 199): “Pode ser absolutamente certo, diz Huxley, que alguns negros sejam superiores a alguns brancos; mas nenhum homem de bom senso, bem esclarecido sobre os fatos, poderá crer que em geral o negro valha tanto quanto o branco e muito menos seja-lhe superior. E se assim é, torna-se impossível acreditar que logo que sejam afastadas todas as incapacidades civis, desde que a carreira lhes seja aberta e que não sejam nem oprimidos nem favorecidos, nossos irmãos prognáticos possam lutar com vantagem com os seus irmãos melhor favorecidos de cérebro. Não só os irmãos negros não poderão, pois, chegar aos mais altos lugares da hierarquia estabelecida pela civilização, ainda que não seja necessário confiná-los lá para a última classe”.
  • 2
    Lima Barreto foi um dos poucos romancistas negros a despertar o interesse de críticos que empenharam suas opiniões nos jornais cariocas do início do século XX. Apesar das duras críticas recebidas de Medeiros Albuquerque e Alcides Maia, foi no crítico José Veríssimo que Barreto encontrou incentivo para continuidade de seu projeto literário (Bertol, 2017BERTOL, Rachel (2017). Em torno da crítica literária em jornal: sobre Lima Barreto e José Veríssimo. Revista Matrizes, v. 11, n. 2, p. 249-270. https://doi.org/10.11606/issn.1982-8160.v11i2p249-270
    https://doi.org/10.11606/issn.1982-8160....
    ).
  • 3
    Neste ensaio, tomamos como sinônimo os termos “negro” e “afro-brasileiro”.
  • 4
    Zilá Bernd não ancora sua crítica nas teorias pós-coloniais. Sua perspectiva analítica respalda-se na tradição crítica brasileira e em teóricos, em sua grande maioria, europeus. No entanto, seus diversos ensaios sobre a produção literária negra suscitaram o debate entre diversos estudiosos pós-colonialistas que problematizaram, em grande medida, seus postulados. Por esse motivo, trouxemos suas considerações à baila deste texto.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    05 Mar 2023
  • Aceito
    23 Out 2023
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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