Resumos
Hipoparatireoidismo com manifestações neurológicas diagnosticado muitos anos após a cirurgia de tireóide é considerado uma raridade. Descrevemos neste trabalho 3 casos de hipoparatireoidismo associado a calcificações estrio-pálido-denteadas diagnosticados de 20 a mais de 40 anos após tireoidectomia parcial. Duas pacientes foram admitidas com quadros convulsivos em Serviços de Emergência, provavelmente secundário à hipocalcemia, sem diagnóstico de hipoparatireoidismo, o qual foi suspeitado a partir dos exames bioquímicos e da presença de cicatriz cirúrgica no pescoço. A tomografia computadorizada de crânio demonstrou extensas calcificações cerebrais em ambos os casos. A terceira paciente não apresentava quadro neurológico relacionado à hipocalcemia ou às calcificações de gânglios da base e cerebelo demonstradas pela tomografia. Todas foram tratadas com cálcio e vitamina D, com importante melhora clínica nos dois casos sintomáticos. Trata-se, somando-se uma publicação anterior, de 4 casos semelhantes provenientes da mesma região, que era considerada carente em iodo alimentar (Triângulo Mineiro e Goiás, Brasil), onde as tireoidectomias eram muito comuns e provavelmente sem um seguimento clínico adequado. Suspeitamos que outros casos similares, não detectados, possam existir atualmente.
Hipoparatireoidismo; Calcificações cerebrais; Gânglios da base
The diagnosis of hypoparathyroidism with neurological findings occurring years after thyroid surgery is considered to be rare. The authors describe 3 cases of hypoparathyroidism associated to brain calcifications diagnosed many years after partial thyroidectomy. Two patients were admitted to Emergency Services presenting with seizures, without a previous diagnosis of hypoparathyroidism. The diagnosis was suspected adding the biochemical analysis to the scar on the neck. The CT, which was performed more than 20 years after surgery, showed large cerebral calcifications in both cases. The third patient did not have neurological symptoms, but presented basal and cerebelar calcifications that were demonstrated in the CT. All patients were treated with calcium and vitamin D with great improvement of clinical status. Adding to a case published previously, we count 4 cases from the same region. Thyroidectomies were very common in this region poor in dietary iodide. Since the clinical follow up was inadequate, we suspect that undetected cases similar to these may exist in the present moment.
Hypoparathyroidism; Brain calcifications; Basal ganglia
APRESENTAÇÃO DE CASO
Calcificações cerebrais por hipoparatireoidismo: considerações sobre o diagnóstico, longo tempo após a tireoidectomia
Cerebral calcifications due to hypoparathyroidism: considerations about cases diagnosed many years after parcial thyroidectomy
João C.Gonçalves Júnior; Thaís S. de Oliveira; Henrique P. Arantes; Fabrícia T. Gonçalves; Alessandra R.C. Fonseca; Paulo T. Jorge
Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal de Uberlândia, MG
Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Paulo Tannús Jorge Rua Geraldo Morais 1115, ap. 403 38400-020 Uberlândia, MG
RESUMO
Hipoparatireoidismo com manifestações neurológicas diagnosticado muitos anos após a cirurgia de tireóide é considerado uma raridade. Descrevemos neste trabalho 3 casos de hipoparatireoidismo associado a calcificações estrio-pálido-denteadas diagnosticados de 20 a mais de 40 anos após tireoidectomia parcial. Duas pacientes foram admitidas com quadros convulsivos em Serviços de Emergência, provavelmente secundário à hipocalcemia, sem diagnóstico de hipoparatireoidismo, o qual foi suspeitado a partir dos exames bioquímicos e da presença de cicatriz cirúrgica no pescoço. A tomografia computadorizada de crânio demonstrou extensas calcificações cerebrais em ambos os casos. A terceira paciente não apresentava quadro neurológico relacionado à hipocalcemia ou às calcificações de gânglios da base e cerebelo demonstradas pela tomografia. Todas foram tratadas com cálcio e vitamina D, com importante melhora clínica nos dois casos sintomáticos. Trata-se, somando-se uma publicação anterior, de 4 casos semelhantes provenientes da mesma região, que era considerada carente em iodo alimentar (Triângulo Mineiro e Goiás, Brasil), onde as tireoidectomias eram muito comuns e provavelmente sem um seguimento clínico adequado. Suspeitamos que outros casos similares, não detectados, possam existir atualmente.
Descritores: Hipoparatireoidismo; Calcificações cerebrais; Gânglios da base
ABSTRACT
The diagnosis of hypoparathyroidism with neurological findings occurring years after thyroid surgery is considered to be rare. The authors describe 3 cases of hypoparathyroidism associated to brain calcifications diagnosed many years after partial thyroidectomy. Two patients were admitted to Emergency Services presenting with seizures, without a previous diagnosis of hypoparathyroidism. The diagnosis was suspected adding the biochemical analysis to the scar on the neck. The CT, which was performed more than 20 years after surgery, showed large cerebral calcifications in both cases. The third patient did not have neurological symptoms, but presented basal and cerebelar calcifications that were demonstrated in the CT. All patients were treated with calcium and vitamin D with great improvement of clinical status. Adding to a case published previously, we count 4 cases from the same region. Thyroidectomies were very common in this region poor in dietary iodide. Since the clinical follow up was inadequate, we suspect that undetected cases similar to these may exist in the present moment.
Keywords: Hypoparathyroidism; Brain calcifications; Basal ganglia
CALCIFICAÇÕES ESTRIO-PÁLIDO-denteadas, ou calcificações dos gânglios da base, ocorrem em diversas situações clínicas e podem se apresentar de modo variado, desde formas assintomáticas como um achado casual em exame de imagem, até formas convulsivas graves ou manifestações clínicas de Parkinsonismo (1-13). Dentre os diagnósticos diferenciais incluem-se hipoparatireoidismo primário e secundário, pseudo-hipoparatireoidismo, hipotireoidismo, síndrome de Fahr, esclerose tuberosa, pós-radioterapia, hemorragia cerebral, processos infecciosos (citomegalovírus, toxoplasmose e cisticercose) (14). Entre suas causas mais importantes incluem-se os distúrbios das paratireóides, particularmente o hipoparatireoidismo idiopático e o pseudo-hipoparatireoidismo (3-5). Casos isolados de hipoparatireoidismo pós-cirúrgico têm sido descritos causando calcificações, inclusive muitos anos após a tireoidectomia, e são considerados raros, especialmente quando comparados aos idiopáticos, visto que o seguimento pós-operatório permite o pronto reconhecimento da hipocalcemia, e sua correção parece prevenir as calcificações (2,4,6,7, 10,11,15,16). Em nosso meio, já descrevemos um paciente com hipoparatireoidismo e manifestações neurológicas diagnosticado 30 anos após cirurgia de tireóide (1). No presente trabalho, relatamos 3 casos de calcificações estrio-pálido-denteadas diagnosticados muitos anos após tireoidectomia parcial.
RELATO DE CASO
Caso 1
Uma mulher de 59 anos, submetida a uma tireoidectomia parcial aos 13 anos de idade, foi admitida no Pronto Socorro de Clínica Médica do HC-UFU com quadro de coma, hipertonia de membros e vários episódios de convulsão tônico-clônica; o encaminhamento da cidade de origem referia hipocalcemia (com várias medidas de cálcio abaixo de 7,0 mg/dl e albuminemia normal), observada um dia antes e tratada com Gluconato de Cálcio endovenoso. Familiares referiam que desde a cirurgia a paciente apresentava freqüentes episódios de tetania, tratados com benzodiazepínicos. Não havia referência de investigação diagnóstica ou tratamento específico do hipoparatireoidismo durante esse período de 46 anos, nem quando foi submetida a cirurgia para correção de catarata bilateralmente, complicação esta conhecida do hipoparatireoidismo. A tomografia computadorizada (TC) de crânio (figura 1) mostrou extensas calcificações em núcleos da base cerebral e cerebelo. A paciente foi tratada com difenil-hidantoína, calcitriol e infusões endovenosas de gluconato de cálcio, até a normalização dos níveis de cálcio e melhora do nível de consciência, mantendo-se então o tratamento com carbonato de cálcio via oral (equivalendo a 1500 mg de cálcio elementar), calcitriol (0,25 mg ao dia), e 300 mg ao dia de difenil-hidantoína. Houve excelente evolução clínica, caracterizada por completa recuperação do nível de consciência, ausência de crises convulsivas e recuperação parcial da mobilidade com a regressão da hipertonia, sintomas que melhoraram após reversão da hipocalcemia.
Caso 2
Trata-se de paciente do sexo feminino, 49 anos, que submeteu-se a uma tireoidectomia parcial aos 21 anos de idade, evoluindo com episódios de crises convulsivas tônico-clônicas 8 anos após a cirurgia, além de parestesias e episódios de tetania. Foi medicada com fenobarbital, com melhora das crises convulsivas. Cerca de 1 ano antes da admissão em nosso Serviço, voltou a apresentar crises convulsivas mesmo em uso da medicação anticonvulsivante, e ao eletroencefalograma observou-se alentecimento difuso da atividade de fundo provocado pela hiperpnéia, e atividade irritativa em região temporal média do hemisfério cerebral esquerdo. Tomografia computadorizada de crânio apresentou calcificações em ambos hemisférios cerebrais sugestivas de neurocisticercose inativa, além de calcificações múltiplas em nucleos cinzentos centrais, substância branca e parcialmente no córtex cerebral, bem como em núcleos denteados. Não foi observada catarata. O cálcio sérico estava em 6,6 mg% e o fósforo em 7,3 mg/dL, com albumina plasmática normal. O TSH mostrava-se elevado (58,2 mUI/mL) e a tiroxina, baixa (3,9 mcg/dL). A paciente foi tratada com levotiroxina, calcitriol e suplementação de cálcio, desaparecendo o quadro neurológico e regredindo os sintomas neuromusculares.
Esta paciente não apresentava sintomas neurológicos relacionados às calcificações dos núcleos de base, tendo em vista que as crises convulsivas foram decorrentes da hipocalcemia.
Caso 3
Uma mulher de 66 anos, submetida a uma tireoidectomia parcial aos 15 anos de idade, apresentou tetanias logo no pós-operatório, recebendo orientação de usar cálcio diariamente. Ficou longo período sem seguimento clínico, com freqüentes episódios de câimbras e tetania eventual, retornando ao ambulatório 28 anos após a tireoidectomia, sendo orientada a usar calciferol e cálcio, os quais foram tomados de modo irregular. À mesma época, foi diagnosticada catarata bilateral e submetida à cirurgia. Foi observada hipocalcemia em diversas consultas ambulatoriais desde então, sendo recentemente internada para compensação do quadro. Embora não houvesse sinais e sintomas neurológicos relacionados às calcificações dos núcleos da base, esta foi visualizada na tomografia computadorizada de crânio (figura 2). O cálcio sérico estava em 6,4 mg% e o fósforo, em 5,6 mg/dL, com albumina plasmática normal. A paciente foi reorientada quanto à importância do uso regular de calcitriol e cálcio, bem como das reavaliações laboratoriais.
DISCUSSÃO
O hipoparatireoidismo não é uma complicação infreqüente da cirurgia de tireóide, variando de 0,2 a 33%, dependendo de vários fatores, como idade do paciente, extensão da ressecção e experiência do cirurgião (1). Hipocalcemia geralmente desenvolve-se dentro de uma semana após a cirurgia; contudo, casos assintomáticos ou oligossintomáticos podem ocorrer, eventualmente retardando o diagnóstico e permitindo o aparecimento das manifestações neurológicas tardias da hipocalcemia crônica. Estes quadros neurológicos são mais comuns na hipocalcemia decorrente do hipoparatireoidismo idiopático ou do pseudo-hipoparatireoidismo, e considerados raros na forma pós-cirúrgica, pois o seguimento pós-operatório adequado permitiria o diagnóstico e tratamento precoce (1,2,4,6,7,10,11,15,16). Nossas pacientes são procedentes da zona rural, de áreas consideradas endêmicas de bócio à época das cirurgias (Triângulo Mineiro e Goiás, Brasil); as tireoidectomias eram comuns àquela época, provavelmente sem um seguimento clínico apropriado.
Do ponto de vista conceitual, há confusão na literatura quanto às terminologias relacionadas a estes casos. Quanto às calcificações, que sempre foram referidas como "dos gânglios da base", observamos a partir da década de 80 a tendência a denominá-las "calcificações estrio-pálido-denteadas", para melhor correlação anatômica (3,5,6,10).
A presença destas calcificações, na vigência de quadro clínico variável e independentemente da etiologia, já foi denominada como Síndrome de Fahr (5,17), ou Doença de Fahr (6), termo por vezes reservado às calcificações de origem idiopática.
A prevalência das calcificações dos gânglios da base no hipoparatireoidismo é desconhecida, e em levantamento da literatura não encontramos estudos capazes de determinar este dado. Embora consideradas pouco freqüentes, após o surgimento da tomografia axial computadorizada vários casos foram relatados (2,3,5-12,15,17,19,20). Forman e cols. (2) publicaram uma série de 9 casos que não tinham quadro neurológico e vinham em tratamento do hipoparatireoidismo, em cinco dos quais foram diagnosticadas calcificações.
Ainda não se compreende muito bem a fisiopatologia das calcificações no hipoparatireoidismo. A hipótese de Eaton e cols. (21) é que as calcificações seriam, pelo depósito de cristais de cálcio, secundárias a um processo degenerativo do sistema extrapiramidal. Nos casos apresentados, houve uma correlação clara entre a extensão das calcificações e a duração e severidade da hipocalcemia, que até o momento são considerados os principais fatores de risco (2,4, 11, 15,16). Segundo Litvin e cols, as calcificações de núcleos de base nos distúrbios metabólicos seriam não específicas, podendo se estender, em fases tardias, para outras áreas do parênquima cerebral.
A apresentação clínica é variável, há pacientes assintomáticos cujas calcificações são achados casuais em exames de imagem, com sintomas decorrentes da hipocalcemia, como nestes 3 casos relatados, até quadros graves de síndromes neurológicas diversas. Os relatos mais freqüentes descrevem manifestações piramidais como parkinsonismo (4-7,10,12,16), demência ou estados confusionais agudos (6,8,9, 16,17) e quadros convulsivos (3,11,13,15,18, 20). Como em nossa paciente do caso 1, há também outros relatos em que a sintomatologia neurológica seguiu-se a um longo período de tetanias latentes ou manifestas, cujo diagnóstico não havia sido feito até então (12,13, 15,16).
O diagnóstico das calcificações era feito inicialmente com radiografia simples de crânio até o advento da tomografia axial computadorizada. Esta técnica permitiu um aumento de sensibilidade diagnóstica (2,3,5,15,17,18), bem como um maior número de detecção de casos assintomáticos, levando inclusive à especulação de que a prevalência das calcificações no hipoparatireoidismo pós-cirúrgico seja mais significativa do que se pensava. Lang e cols. (17) compararam a eficiência da ressonância nuclear magnética (RNM) com a tomografia computadorizada em um caso, e sugeriram que esta última seria mais útil em determinar a completa extensão das calcificações, embora a RNM estabeleceria o estágio evolutivo da calcificação. Forman e cols. (2) propõem seguimento de pacientes com hipoparatireoidismo pós-cirúrgico usando tomografia computadorizada, mesmo se assintomáticos, pois o achado de calcificações dos gânglios da base poderia refletir tratamento inadequado para a hipocalcemia. Estes autores sugerem exames a cada cinco anos de intervalo, pois seria o tempo que as calcificações levariam para se desenvolver. No entanto, Posen e cols. consideraram este tipo de seguimento desnecessário (15). A nosso ver, como as calcificações geralmente são assintomáticas, o acompanhamento, na maioria dos casos, deveria ser apenas realizado com dosagem de cálcio, fósforo e albumina.
O tratamento do hipoparatireoidismo com cálcio e vitamina D, restabelecendo a calcemia normal, propiciou a estabilização do quadro neurológico na maioria dos casos descritos (1,3-8,10-13,20), o que também pôde ser visto em nossas pacientes dos casos 1 e 2.
O hipotireoidismo e a neurocisticercose do caso 2 podem ter contribuído para o desenvolvimento das calcificações cerebrais.
Em relação ao caso 1, não encontramos relato na literatura de um tempo tão longo (46 anos) entre a tireoidectomia e o diagnóstico do hipoparatireoidismo. Estes não são os primeiros casos descritos de hipocalcemia com manifestações neurológicas diagnosticados muitos anos após cirurgia de tireóide em nossa região (1). Tendo em vista as características locais já citadas acima, em relação à prevalência de bócio e freqüência de tireoidectomias no passado, suspeitamos que casos semelhantes a estes, não detectados, possam existir atualmente.
Recebido em 16/01/06
Revisado em 23/06/06
Aceito em 11/08/06
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
12 Fev 2007 -
Data do Fascículo
Dez 2006
Histórico
-
Revisado
23 Jun 2006 -
Recebido
16 Jan 2006 -
Aceito
11 Ago 2006