“Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero”(11 Rosa JG. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1956.).
A vida nas ruas tem se apresentado como uma realidade para um número cada vez maior de pessoas, sobretudo nas grandes cidades do Brasil e do mundo. Essa dura realidade social mistura-se com as dinâmicas de funcionamento do espaço urbano, configura conflitos e condições de vida precárias. É crescente também a diversidade de pessoas que compõe este grupo populacional: migrantes e refugiados, pessoas trans, usuários de substâncias psicoativas, gestantes, idosos, crianças, jovens... Vidas reais, em condições insalubres, enfrentando situações complexas que impactam, diretamente, sua saúde, seu modo de relacionar-se com o mundo e consigo. Reconhecer as especificidades nos processos de cuidado desta população e interagir com os limites que o território (geográfico e simbólico) impõe às equipes de Atenção Básica, uma rotina que desafia e convoca os profissionais para novas práticas em saúde coletiva.
Pessoas que vivem na rua constituem um grupo heterogêneo que têm em comum a extrema vulnerabilidade social. São cotidianamente expostas a várias formas de violência, privadas de direitos humanos fundamentais, sem privacidade, discriminadas; têm condições precárias de sono, repouso, alimentação e higiene; baixa autoestima, desesperança, limites para realizar o autocuidado, vínculos sociais rompidos ou fragilizados e maior dificuldade de acessar aos serviços de saúde e de seguir eventuais projetos terapêuticos. Além disso, é preciso considerar que o consumo de substâncias psicoativas faz parte do ambiente das ruas (como elemento socializador, fonte de prazer, automedicação ou meio de conseguir alguma renda) contribuindo para o agravo de diversos problemas físicos e mentais. A determinação social do processo saúde-doença, conceito consolidado na Saúde Coletiva, pode ajudar profissionais da saúde a entender o adoecimento dessas pessoas e a construir com elas processos efetivos de cuidado.
No Brasil, até a década de 80, o Estado não se responsabilizou em criar estratégias de acolhimento, cuidado e outras possibilidades de vida para as pessoas em situação de rua. Ficavam na dependência do trabalho realizado por instituições sociais e religiosas. As condições precárias de vida e os trágicos assassinatos de pessoas em situação de rua deram força aos movimentos sociais, dentre eles, o Movimento Nacional da População de Rua. Após muita luta, foi instituída em 2009 a Política Nacional para a População em Situação de Rua que, em linhas gerais, regulamenta a assistência na interface das políticas sociais e de saúde. Embora assegure uma série de direitos de acesso à assistência intersetorial(22 Brasil. Ministério da Saúde. Decreto n0 7.053 de dezembro de 2009. Política Nacional para a População em Situação de Rua. [Internet]. 2009 [cited 2017 Dec 18]. Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7053.htm
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), a Política Nacional ainda não tem fomentado estratégias robustas para saída das ruas.
Como estratégia de saúde pública, a versão de 2011 da Política Nacional de Atenção Básica institui as equipes de Consultórios na Rua. Prevê-se a possibilidade de algumas configurações de equipe com os seguintes profissionais: enfermeiro, médico, psicólogo, assistente social, terapeuta ocupacional, agente social, técnico ou auxiliar de enfermagem, técnico em saúde bucal, cirurgião dentista, profissional de educação física e profissional com formação em arte e educação(33 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n0 122 de 25 de janeiro de 2011. Define as diretrizes de organização e funcionamento das equipes de Consultório na Rua [Internet]. Diário Oficial da União; 2012 [cited 2017 Dec 18]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2012/prt0122_25_01_2012.html
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). O Consultório na Rua vem propiciando novas configurações de redes assistenciais e desvelando novos desafios à efetivação do Sistema Único de Saúde (SUS). Tem promovido o deslocamento dos profissionais e da própria estrutura de assistência para fora dos serviços de saúde e das estratégias de cuidado domiciliar, criando estranhamentos ao mesmo tempo em que novas práticas assistenciais são moldadas às necessidades, demandas e processos de adoecimento das pessoas em situação de rua.
O sucesso dos Consultórios na Rua deve-se à competência e insistência dos profissionais em construir formas de cuidar, muitas vezes transpondo as barreiras institucionais do próprio sistema de saúde e da ausência de articulação setorial entre as políticas públicas. Campo de resistência e politicidade, a prática do cuidado das equipes de Consultório na Rua reconhece os determinantes sociais e o potencial transformador dos vínculos quando ocorrem na dimensão do engenho e arte do cuidar.
Ainda que haja desafios institucionais, humanos e técnicos a ser superados, o Consultório na Rua representa avanço no cuidado à saúde das pessoas em situação de rua. Há de se fortalecer as perspectivas dos direitos humanos, intersetorialidade e da atenção integral à saúde como política de Estado e sem as recorrentes descontinuidades a cada troca de gestão. No atual cenário político brasileiro há ainda de se lutar contra retrocessos nas políticas nacionais de Atenção Básica, de Saúde Mental e do próprio Sistema Único de Saúde. Programas como o Consultório na Rua são baluartes desta luta.
REFERENCES
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1Rosa JG. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1956.
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2Brasil. Ministério da Saúde. Decreto n0 7.053 de dezembro de 2009. Política Nacional para a População em Situação de Rua. [Internet]. 2009 [cited 2017 Dec 18]. Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7053.htm
» http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7053.htm -
3Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n0 122 de 25 de janeiro de 2011. Define as diretrizes de organização e funcionamento das equipes de Consultório na Rua [Internet]. Diário Oficial da União; 2012 [cited 2017 Dec 18]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2012/prt0122_25_01_2012.html
» http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2012/prt0122_25_01_2012.html
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
2018