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Moeda: estatização x redistribuição de renda

ARTIGOS

Moeda: estatização x redistribuição de renda

Antonio Maria da Silveira

Professor titular da Escola de Pós-Graduação de Economia da Fundação Getúlio Vargas; Ph.D. em economia e M.S. em administração (Carnegie-Mellon); engenheiro eletricista e mecânico (UFMG)

Em artigo recente, defendemos o estabelecimento de uma política de redistribuição de renda, um programa gradativo de erradicação efetiva da miséria (6). Nossa abordagem do problema foi estritamente capitalista. Discutimos o porquê da redistribuição, tanto ética quanto economicamente, supondo regime capitalista e verificando inclusive a possibilidade de conflito entre redistribuição de renda (direito à existência), controle da natalidade (direito à procriação) e intervenção estatal (individualismo). Defendemos a imperiosidade da erradicação da pobreza extrema.

Consideramos em seguida o quanto redistribuir, apresentando suas restrições maiores: estabilidade social, crescimento da produção e abertura da economia. Criticamos a impropriedade da colocação do problema da pobreza em termos de espera pelo crescimento do bolo e defendemos a necessidade da abordagem gradativa em seu atendimento. No como redistribuir, apresentamos o sistema do imposto de renda negativo, defendendo-o em termos de generalidade, eficácia, eficiência e objetividade na erradicação da miséria. Ao discutirmos o para quem redistribuir, qualificamos toda a população pobre do país, sem restrições. Dadas as alternativas da irrelevância na distribuição de muito pouco entre todos e da discriminação na seleção de alguns, optamos pela segunda, qualificando-a, entretanto, com uma abrangência crescente até o atendimento de todos. Defendemos o atendimento inicial dos mais velhos.

Considerando em seguida o de quem redistribuir, especulamos sobre a possibilidade de usar os recursos provenientes da emissão de moeda governamental (papel-moeda em poder do público e dos bancos comerciais e depósitos destes no Banco Central). Tipicamente, o Banco Central emite moeda governamental em troca de reservas internacionais, redescontos de liquidez (aos bancos comerciais) e títulos do governo (LTN, no Brasil). Na compra e venda de títulos do governo, um banco central cria ou destrói moeda governamental ou, mais simplesmente, emite ou recolhe papel-moeda. Estas operações, chamadas de mercado aberto (open-market), são conduzidas para o controle da liquidez da economia, de seu estoque de moeda.

Os títulos usados neste mercado têm liquidez muito grande, isto é, são rapidamente conversíveis em moeda a custo baixo de transação. Ao comprar os títulos, o público faz investimento de alta liquidez, ganhando juros. Os operadores, que os negociam com o público, o governo e o banco central ganham o diferencial de juros entre compra e venda. Não importando em posse de quem os títulos estão em determinado momento, ao vendê-los inicialmente, ao emiti-los, o governo arrecada moeda, arrecada recursos para suas despesas.

Nossa contribuição está na proposta de substituição dos títulos do governo usados neste mercado por letras de redistribuição de renda (LDR). Como mostraremos a seguir, o montante dos títulos tende a crescer naturalmente com o crescimento da economia. Assim, o total de LDR, ou os recursos para redistribuição de renda, tenderiam a crescer na mesma medida do crescimento da economia. Teríamos um programa gradativo de abarcamento crescente, eficiente e eficaz para a erradicação da pobreza. É possível fazê-lo em meio século, mesmo num país de extensa e extrema pobreza como o nosso.

Nossa proposta tem dois efeitos colaterais também muito importantes. Um efeito, antiinflacionário, e outro, no sentido de reduzir a estatização da economia, colocada em sentido mais lato. O aumento da participação do governo na economia pode ter como fonte de recursos o aumento de tributos em relação à produção, o aumento também relativo da dívida pública e o aumento relativo da emissão de moeda. A primeira forma é aprovada pelo Legislativo, a segunda é como que sancionada pelo mercado e a terceira é, digamos, acusada pelo mercado nos aumentos gerais de preços ou na inflação. Dizemos, no último caso, que se trata de socialização desautorizada da economia.

A substituição dos títulos do governo pelas LDR e a proibição ao Banco Central de adquirir os primeiros tendem a reduzir a participação do governo na economia. Isoladamente também as duas medidas tendem a reduzir pressões inflacionárias. É realmente óbvio que os novos beneficiados pelo processo de emissão de moeda, a classe da população na extrema pobreza, tem poder de pressão incomparavelmente menor do que aqueles que atualmente são diretamente beneficiados pelo processo. Mas propomos também a exclusão de parte dos últimos, em nossa reforma do sistema monetário. Esta reforma facilitaria bastante a tarefa do Banco Central na manutenção da estabilidade de preços.

Mostraremos inicialmente que o processo de emissão de moeda é permanente, isto é, que o governo pode e deve emitir moeda periodicamente. Temos, portanto, fonte permanente de recursos para redistribuição de renda.

1. EMISSÃO DE MOEDA: PROCESSO PERMANENTE

No mundo moderno, entendemos por moeda, estoque de moeda ou meios de pagamento, o total de moeda manual (moeda metálica ou níqueis e papel-moeda ou notas) e de depósitos bancários à vista em poder do público. Basicamente, o estoque de moeda constitui o meio de troca da economia. A troca é complemento indispensável da especialização ou divisão de trabalho. Para que seja conduzida eficientemente, a troca tem que ser indireta (proposição válida, mesmo número nível de "subdesenvolvimento" da primeira geração de civilização). Trocamos mercadorias e serviços por moeda e, numa segunda etapa, trocamos moeda pelas mercadorias ou serviços desejados.

Ao funcionar como meio de troca, a moeda assume naturalmente a função de unidade de medida de valor. Nosso salário é geralmente expresso em moeda corrente, ou em termos monetários, assim como o são os produtos e serviços que com ele adquirimos. Certamente, podemos expressá-lo em termos de uma mercadoria qualquer (dividindo o seu valor monetário pelo preço ou valor monetário de uma unidade da mercadoria - 100kg de feijão ou 100g de ouro). Mas é mais razoável e informativo expressá-lo em termos de um conjunto de produtos e serviços representativo de nosso consumo (dividindo o valor monetário do salário pelo valor monetário deste conjunto de bens). Neste caso, estamos expressando o salário em termos reais.

O índice de custo de vida procura mostrar os preços de um conjunto representativo de produtos e serviços. Assim, ao dividirmos o salário pelo índice do custo de vida, estamos expressando-o em termos reais, em termos de conjunto representativo de produtos e serviços usado para a construção do índice. Temos o valor real do salário ou o salário real, uma expressão do seu poder aquisitivo. De modo semelhante, o deflator implícito é um índice que procura mostrar os preços de todos os produtos e serviços da economia. Quando dividimos o valor monetário de todos os produtos e serviços da economia pelo deflator implícito estamos expressando a produção do país em termos reais. Temos uma medida da produção nacional livre de efeitos inflacionários.

Podemos igualmente dividir o estoque de moeda do país pelo deflator implícito ou pelo índice do custo de vida. Obtemos o estoque de moeda expresso em termos reais, em termos dos produtos e serviços considerados na construção do índice; obtemos o valor real do estoque de moeda ou o estoque real de moeda, uma medida que expressa o seu poder aquisitivo. Podemos agora enunciar uma lei ou hipótese que dominou o pensamento econômico no passado, foi reformulada ou, vale dizer, complementada por Keynes há cerca de quatro décadas, tendo sido ainda revista ou complementada pelos monetaristas, há aproximadamente duas décadas.

A hipótese a que estamos nos referindo é a Teoria quantitativa ou, segundo Keynes, o motivo transacional da procura da moeda. É uma hipótese bem intuitiva, pois estabelece simplesmente que o poder aquisitivo do estoque de moeda deve ser proporcional aos produtos e serviços que existem por adquirir. Em primeira aproximação, o que há por adquirir é a produção nacional. Assim, o poder aquisitivo da moeda é proporcional à produção nacional.

Tomemos um ano em que a produção nacional tenha permanecido constante e em que o governo tenha feito emissão, aumentando de 80% o estoque de moeda. Não houve possibilidade de adquirir 80% a mais de produtos e serviços, pois não existiu tal acréscimo. Não existindo produtos e serviços por adquirir com o excesso de 80% de moeda, o preço de todos os produtos e serviços deve ter aumentado de 80%. Se o que houve por adquirir com o estoque de moeda, que é a produção, permaneceu constante, os preços subiram na proporção do aumento da emissão.

Tomemos, por outro lado, um ano em que o crescimento da produção nacional tenha sido de 10% e em que o governo não tenha emitido, tendo o estoque de moeda permanecido constante. Isto só pode ter ocorrido com um decréscimo da ordem de 10% no preço de todos os produtos e serviços. De uma maneira mais geral, e de acordo com esta hipótese, a taxa de aumento de preços, em determinado ano, é igual à diferença entre a taxa de aumento do estoque de moeda e a taxa de aumento da produção. Se o governo emite anualmente 30% da moeda existente para um crescimento de 10% da produção, os acréscimos de preços resultantes devem ser da ordem de 20% ao ano.

Como dissemos, o processo inflacionário pode ser bem mais complicado, mas esta teoria já foi estendida por Keynes e, posteriormente, pelos monetaristas. A relação entre estoque de moeda, produção e preços é mais complexa, mas já nos permite explicar o processo e fazer previsões com margens de erro de 10 a 20%. Somos também geralmente capazes de apontar as causas destes erros. A explicação anterior é simples, constituindo um entendimento mínimo do processo, mas perfeitamente razoável em primeira aproximação.

É um entendimento suficiente para podermos observar que o governo pode emitir sem provocar inflação. Basta que a taxa de aumento do estoque de moeda seja da ordem de grandeza da taxa de crescimento da produção. Se o governo emite menos, há queda de preços. Se o governo se excede na emissão, ocorre aumento generalizado de preços. Se o governo persiste nesta excedencia, ocorre um processo inflacionário. E a intensidade do processo é proporcional à extensão da excedencia. Neste sentido, a inflação constitui uma restrição sobre a emissão de moeda.

Chamamos de restrição aberta porque de fato não existe um impedimento da emissão, e vários governos, no Brasil e no mundo, têm demonstrado a disposição de inflacionar a economia, emitindo em excesso. Se a estabilidade de preços é meta prioritária do governo, a taxa periódica de emissão de moeda deve ser da ordem de grandeza da taxa de crescimento da produção no período considerado. Digamos que a produção venha crescendo ao nível de 10% ao ano, com estabilidade de preços. Temos necessariamente taxas anuais de emissão da ordem de 10%. Vejamos agora o que vem acontecendo com a emissão de moeda na maioria dos países e em particular no Brasil, para em seguida propormos formalmente um conjunto de reformas no sistema monetário.

2. EMISSÃO: MEIO DE FINANCIAMENTO DO GOVERNO E DE ESTABILIZAÇÃO DA ECONOMIA

Uma das causas mais freqüentes da emissão de moeda é o financiamento de deficits do governo. No Brasil, de 1954 a 1967 mais de 99% do deficit foi coberto pelas autoridades monetárias (Silveira 75). A importância da moeda como fonte de receita reside, em primeiro lugar, na desprezibilidade do custo de sua produção ou de seu valor intrínseco.

Obviamente, esta desprezibilidade advém da monopolização da produção de moeda. Este é talvez o único monopólio não contestado por nenhum economista, pois a moeda é o único bem econômico cujos serviços dependem essencialmente de seu preço. Todos os outros bens econômicos podem ter seus preços variados, sem alteração nas utilidades ou nos serviços que proporcionam - Silveira (4b).

A criação artificial da escassez da moeda é assim recomendável sob qualquer ponto de vista. Entretanto, faríamos esta afirmação com tranqüilidade bem maior, se não houvesse um aspecto ainda não bem respondido ou equacionado, capaz de provocar saudades ou nostalgias do metalismo. Referimo-nos à relativa facilidade do recurso à emissão como receita governamental (a receita é o ganho monopólico ou lucro da atividade de produção da moeda).

Esta relativa facilidade é o nosso segundo ponto na importância da moeda como fonte de receita. Como tal, a moeda tem substitutos nos empréstimos governamentais e nos tributos. Os aumentos de tributos encontram a resistência natural da população tributável, que sabe se fazer ouvir, talvez melhor do que qualquer outra. Os empréstimos governamentais trazem de imediato aumento de juros, acirrando a concorrência no mercado de títulos. A reação também é grande. Temos já há bastante tempo a conhecidíssima política do even-keel nos Estados Unidos e que atende a esta reação, reduzindo a taxa de juros.

O recurso à inflação como fonte de receita não encontra reações equiparáveis a curto prazo. Observamos de imediato um aumento de poder de compra ou liquidez da economia, na medida em que o governo efetua as suas despesas e os bancos estendem proporcionalmente a moeda bancária. A propósito, convém frisar aqui um aspecto paralelo. Não são os bancos comerciais que provocam a inflação. O estoque de moeda bancária é aproximadamente proporcional ao estoque de moeda governamental. Além disso, com um sistema de informações razoável, - e parece-nos que o Brasil já o possui, - é perfeitamente possível controlar o estoque de moeda ou os meios de pagamento dentro de limites bem estreitos (5, p. 69).

Voltando ao desenvolvimento da emissão, observamos, com a melhoria da liquidez, a dinamização da atividade econômica, efeito tão mais intenso quanto maior a ociosidade existente quando da emissão. Certamente não questionamos o uso da emissão como meio de ativar a economia, aumentar o emprego, acelerar o desenvolvimento econômico, ou mesmo suavizar o impacto de aumentos exógenos de preços. Pelo contrário, parece-nos, por exemplo, perfeitamente plausível defender uma inflação em torno de 5%, como meio de acelerar o desenvolvimento econômico.

Entretanto, esta posição é bem diferente da política de emitir para financiar despesa pública. O problema grave desta emissão é o seu caráter cumulativo. Sucedem-se emissões cada vez maiores (2). Desaparecem os efeitos positivos na produção e no emprego, que podem nem mesmo ter ocorrido a curto prazo. Salientamos este aspecto. Os efeitos positivos podem não ocorrer, ou podem ser desprezíveis, quando o auto-financiamento do governo coincide com o pleno emprego na economia (ausência de ociosidade).

Com a inflação esperada, agravam-se os efeitos negativos (1): redistribuição da renda beneficiando o governo e os devedores, em detrimento dos empregados e dos credores; incentivo às empresas de uso intensivo do capital em detrimento daquelas que usam intensivamente o trabalho; perda de bem-estar na substituição de meio de troca e de conservação de riqueza que consome poucos recursos sociais, moeda fiduciária, por ativos reais e moedas estrangeiras; mudanças ou deslocamentos na composição da procura e da produção; controle de preços; incentivos às especulações de toda ordem; instabilidade econômica; forte dependência do sucesso da atividade empresarial em relação às decisões do governo.

As correções monetárias podem amenizar estes efeitos, mas ficam muito longe de corrigi-los. Salientamos que a intensidade dos efeitos negativos é pequena a curto prazo. Sua gravidade aumenta a médio prazo e a desinflação só se torna indispensável em alguns anos, quando geralmente a instabilidade política já foi atingida. Mas, como costuma acontecer, em alguns anos os governantes podem ser outros. Mesmo ignorando este aspecto, o problema de deixar aberto ao governo o seu auto-financiamento, através da moeda, persiste. Basta lembrar os que acreditam que emitir para implantar fábricas é sempre bom, ou que inflação rápida é meio de crescimento! Todos os malefícios da inflação, detalhadamente estudados em tantos países e em tantas épocas, são esquecidos ou ignorados, muitas vezes ainda com a afirmação ad hoc de que não se aplicam ao país.

Todas as dificuldades de períodos desinflacionários não chegam a assustar os emissionistas. O tratamento de choque, com desemprego, queda de produção e falências, é fenômeno observado nas mais diversas economias. Já o tratamento gradativo é política menos comum Procura-se evitar a depressão, desacelerando gradativamente a emissão. Mas é um processo longo, acidentado, e que exige muita perícia das autoridades monetárias. Acima de tudo, a trajetória desinflacionista exige muita determinação do poder político. Parece-nos que a experiência brasileira tem confirmado estas proposições.

Realmente é incorreto que os governos possam se auto-financiar, emitindo em causa própria. Friedman propõe uma lei restringindo a emissão anual a um aumento do estoque da ordem de 3 a 5%, em princípio. Friedman critica aqueles que alternativamente propõem uma emissão limitada pela diretriz de estabilidade de preços. Uma importante crítica aos últimos reside na relativa instabilidade da procura de moeda, com a conseqüente dificuldade de implementação da lei pelas autoridades monetárias. Isto também significa pouco controle sobre o desempenho destas autoridades. Este argumento é apenas parcialmente correto. Já observamos que podemos prever a dependência de preços no estoque de moeda, com uma margem de erro de 10 a 20%. Mais importante, temos condições de identificar as causas de desvios maiores (5 e 9).

Quanto à proposta de Friedman, restrição sobre a própria emissão, um dos principais problemas está no cerceamento excessivo das autoridades monetárias. O perigo pode ser tão grande quanto a ausência de restrições. Pode fazer pouco sentido uma política de suavização do impacto do lançamento de títulos governamentais (even keel), a menos que haja a premência de atendimento a situações catastróficas. Entretanto, é perfeitamente plausível procurar suavizar o impacto de aumentos exógenos de preços, como o que ocorre recentemente com os países importadores de petróleo. A emissão visa a absorção parcial da súbita mudança de preços relativos através de aumentos gerais de preços.

Nenhuma das propostas é satisfatória. Não podemos fixar o objetivo de estabilidade de preços, porque existem conjunturas em que há conflito com outros objetivos de política econômica, como crescimento, emprego, aliviamento da pobreza, balanço de pagamentos etc. Não podemos fixar o instrumento, já que o objetivo varia. Melhor estabelecermos uma das propostas como restrição aberta, uma diretriz para as autoridades monetárias, que não as impeça de atender exigências conjunturais, mas que as obrigue a prestar contas periódicas dos desvios ocorridos.

Certamente este controle não elimina a inflação, pois reconhecemos que há ocasiões em que inflação é o mal menor. Mas, objetarão alguns, nem mesmo introduzindo a confirmação anual das autoridades monetárias pelo congresso, o controle seria suficiente para evitar a emissão para o financiamento das despesas públicas. Pode-se, com alguma arte, disfarçar este motivo: Mais importante, dirão outros, ainda que o controle fosse eficaz, o governo continuaria crescendo através da emissão.

Sendo meio de financiamento de despesas públicas, a moeda pode ser um meio de estatização de economia. Mas, aqui há também outra dimensão. Os aumentos do estoque de moeda governamental podem ser utilizados para dirigir a atividade econômica, independentemente de sua contribuição para o aumento de escala da atividade econômica direta do governo.

Em primeira aproximação, a participação relativa do governo na economia tende a crescer quando os aumentos relativos do estoque de moeda governamental são maiores do que a taxa de crescimento da produção. Naturalmente, esta tendência é compensável ou reversível com diminuições da tributação ou da dívida pública, de um lado, ou com a perda do controle do destino das emissões, de outro. Nossa proposta é nesta última direção.

3. MOEDA: MEIO DE REDISTRIBUIÇÃO DE RENDA

Propomos que um banco central possa criar ou destruir moeda governamental somente nas seguintes condições:

a) variações de reservas internacionais;

b) variações de redescontos de liquidez;

c) empréstimos ao tesouro nacional para o atendimento de situações de calamidade pública e com forma geral de quitação pré-fixada;

d) compra ou venda de títulos de redistribuição de renda (operações de mercado aberto - open-market).

Observamos que temos aqui as contas típicas do ativo de um banco central, mas contendo três importantes qualificações:

1. Restrição aos redescontos de liquidez. As taxas de redesconto devem ser mantidas acima das taxas de desconto ou empréstimos bancários. Outras formas de redesconto devem ser proibidas ao Banco Central (não nos surpreendeu a manifestação recente no sentido da criação de uma linha de redesconto para os lojistas. Afinal, esta atividade é, em tese, tão necessária e profícua quanto qualquer outra. Convenhamos também que o redesconto para atividades agrícolas, se necessário, estaria mais bem-localizado em banco ligado ao Ministério da Agricultura, usando recursos provenientes do próprio setor agrícola).

2. Restrição de situações de calamidade pública para os empréstimos ao Tesouro. É claro que, permitindo os empréstimos para o atendimento de necessidades de caixa do Tesouro, deixaremos aberta a possibilidade de abuso. Necessidades deveras eventuais podem ser atendidas pela emissão de títulos ou pelos bancos comerciais. No nosso caso, temos ainda o Banco do Brasil (que esperamos ver transformado em puro banco comercial em futuro próximo). Parece-nos óbvio que devemos manter o atendi: mento governamental em situações catastróficas. Mas é importante fixar, a priori a forma de quitação do empréstimo (podemos sugerir sobretaxas nos impostos de renda da pessoa física e/ou jurídica no período seguinte).

3. Nosso terceiro ponto é a proibição de criação ou destruição de moeda em troca de títulos do governo. Substituímos a monetarização de títulos do governo pela monetização de letras de redistribuição de renda (LDR). Suponhamos, como antes, que a produção venha crescendo no nível de 10% ao ano, com estabilidade de preços. Temos, em conseqüência, taxas anuais de emissão da ordem de 10%. Suponhamos, agora, que o Banco Central absorva LDR segundo a mesma taxa anual, hipótese razoável a longo prazo.

Temos um aumento anual de recursos para redistribuição da ordem de 10% e podemos aumentar progressivamente a população beneficiada. Suponhamos que o crescimento da população seja de 2,5% ao ano. A abrangência da população menos idosa no programa de redistribuição crescerá segundo a taxa de 7,3% ao ano. Temos um programa de redistribuição efetivo e eficaz para a erradicação da pobreza a longo prazo. Digamos que o Banco Central mantenha 1/3 da base monetária em termos de LDR e que o público e os bancos mantenham o dobro desta quantia, mais o necessário para o serviço da dívida. Teremos para redistribuição um montante igual à base monetária.

Tomemos a base monetária de 1973 em Cr$ 26 bilhões e, supondo estabilidade de preços, vejamos o programa de redistribuição mediante o imposto de renda negativo com os números exemplificados no trabalho anterior. Suponhamos que a transferência média por pessoa seja de Cr$ 1.300,00 por ano (preços de 1973). Em 40 anos teríamos atingido a metade da população brasileira. Com 7% de crescimento, nosso horizonte se estenderia a 70 anos. Naturalmente, estes valores são ilustrativos, cabendo como níveis gerais de referência.

4. CONCLUSÃO

Temos várias observações:

1. Suprimimos várias questões, cálculos e dados que, por importante que sejam, não nos parecem caber nesta apresentação. Por exemplo, podemos imaginar que os recursos provenientes da colocação de LDR seriam inicialmente depositados nos bancos comerciais (distribuídos de acordo com o valor de suas contas de imposto de renda negativo), com correção monetária e rendendo juros. Obteríamos assim a uniformização dos recursos provenientes da colocação de LDR num fluxo mensal de redistribuição, segundo programa elaborado pela Receita Federal, com base no orçamento monetário. Esta é tipicamente uma das questões de implementação que devem ser analisadas posteriormente.

2. A substituição de títulos do governo pelas LDR é independente das outras reformas do sistema monetário, podendo ser isoladamente adotada. O conjunto visaria dificultar um processo inflacionário. É importante observar que tanto a adoção isolada das LDR quanto a do conjunto de reformas não trariam modificação alguma na eficácia da política monetária. Introduz-se apenas uma limitação no poder discricionário das autoridades monetárias ou do governo.

3. A adoção da moeda como meio de redistribuição de renda é independente da forma de redistribuição escolhida. O reconhecimento da necessidade de uma política de redistribuição e o seu atendimento é, certamente, de importância bem maior do que a forma escolhida para conduzi-la. Nossa contribuição está na indicação da existência de recursos no mercado da moeda. Defendemos o imposto de renda negativo como uma das principais formas, devendo coexistir com algumas das existentes em diversos países e substituir outras tantas. Por outro lado, há atualmente várias fontes de recursos para redistribuição que devem ser mantidas, possivelmente algumas que devem ser eliminadas e outras tantas introduzidas.

4. Propositadamente discutimos os recursos para o programa de redistribuição supondo estabilidade de preços. É certo que, durante inflações crescentes e não totalmente antecipadas, teremos mais recursos para redistribuição. O oposto também é verdadeiro e discutiremos estas questões num próximo ensaio. Cabe notar também que reconhecemos que a inflação corrente no Brasil é essencialmente devido à estratégia do gradualismo em sua extinção, nada tendo a ver com o financiamento do governo. Isto em nada contraria o exposto ou o programa proposto. Pelo contrário, a conjuntura atual é extremamente oportuna para o início do programa. Com superavit orçamentário, o governo pode recolher rapidamente os títulos de sua dívida, substituindo-os pelas LDR.

5. Já nos foi indicada uma analogia entre esta proposta e a tentativa dos países subdesenvolvidos de levar o Fundo Monetário Internacional a emitir moeda internacional em troca de seus títulos. O governo brasileiro adotou esta posição. Coerentemente, o governo deveria também reconhecer os títulos de seus pobres em troca da moeda nacional. A analogia é boa e questiona. Mas, como todas as analogias, é precária.

Os governos nacionais são, em geral, fortes e centralizam acentuadamente o poder. Em termos de governo internacional, temos as Nações Unidas, evoluindo precariamente e questionada a cada passo, como tem sido com todos os governos em formação. Defende-se independência nacional num mundo de interdependências cada vez maiores. Bastante oportuno seria então a emissão de moeda internacional em troca de títulos das Nações Unidas. Convém lembrar que o desenvolvimento econômico exige o desenvolvimento político, sendo que um desequilíbrio acentuado acarreta queda ou desintegração de todo o sistema (10). Temos a evidência de que, em termos internacionais, este desequilíbrio é cada vez mais acentuado. Mas esta é também matéria que estamos desenvolvendo em outro estudo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Alchian, Armen A. & Kessel, Reuben A. Effects of inflation. Journal of Political Economy, p. 521-37, Dec. 1962.

2. Cagan, Phillip. The monetary dynamics of hyperinflation. In: Friedman, M., ed. Studies in the quantity theory of money. Chicago, Univ. of Chicago Press, 1956.

3. Friedman, Milton. Capitalism and freedon. Chicago, Univ. of Chicago Press, 1968.

4. Meltzer, Allan H. Controlling money. Federal Reserve Bank of St. Louis Review, p. 16-24, May 1969.

5. ______. The demand for money: the evidence from the time series. Journal of Political Economy, p. 214-46, June 1963.

6. Silveira, Antonio M. Redistribuição de renda. Revista Brasileira de Economia, p. 3-15, abr./jun., 1975.

7. ______. The money supply: the evidence from the Brazilian economy. Kredit und Kapital, Heft, n. 3, p. 364-78, 1974.

8. ______. Moeda. In: Simonsen, Mario Henrique et alii. Ensaios Econômicos da Escola de Pós-Graduação em Economia. Rio de Janeiro, Fundação Getulio Vargas, Expressão e Cultura, 1974b.

9. ______. The demand for money: the evidence from the Brazilian economy. Journal of Money, Credit and Banking, p. 113-40, Feb. 1973.

10. Toynbee, Arnold J. A study of history. New York, Oxford Univ. Press, 1963.

  • 1. Alchian, Armen A. & Kessel, Reuben A. Effects of inflation. Journal of Political Economy, p. 521-37, Dec. 1962.
  • 3. Friedman, Milton. Capitalism and freedon. Chicago, Univ. of Chicago Press, 1968.
  • 4. Meltzer, Allan H. Controlling money. Federal Reserve Bank of St. Louis Review, p. 16-24, May 1969.
  • 5. ______. The demand for money: the evidence from the time series. Journal of Political Economy, p. 214-46, June 1963.
  • 6. Silveira, Antonio M. Redistribuição de renda. Revista Brasileira de Economia, p. 3-15, abr./jun., 1975.
  • 7. ______. The money supply: the evidence from the Brazilian economy. Kredit und Kapital, Heft, n. 3, p. 364-78, 1974.
  • 9. ______. The demand for money: the evidence from the Brazilian economy. Journal of Money, Credit and Banking, p. 113-40, Feb. 1973.
  • 10. Toynbee, Arnold J. A study of history. New York, Oxford Univ. Press, 1963.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2013
  • Data do Fascículo
    Jun 1976
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