Resumos
INTRODUÇÃO: Os dados apresentados fazem parte de um estudo multicêntrico sobre automedicação na América Latina realizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Objetivou-se traçar um perfil da automedicação através da análise da procura de medicamentos em farmácias sem prescrição médica ou aconselhamento do farmacêutico/balconista. MATERIAL E MÉTODO: As especialidades farmacêuticas foram classificadas pelo código "Anatomical Therapeutical Classification" e analisadas sob quatro aspectos qualitativos: valor intrínseco, essencialidade (lista da OMS e Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), combinação em dose fixa e necessidade de prescrição médica. RESULTADOS: Foram solicitadas 5.332 especialidades farmacêuticas (785 diferentes princípios ativos), sendo 49,5% combinações em dose fixas, 53,0% de valor intrínseco não elevado, 44,1% sujeitos a prescrição médica, 71,0% não essenciais e 40,0% baseados em prescrições médicas anteriores. Os medicamentos mais solicitados foram analgésicos (17,3%), descongestionantes nasais (7,0%), antiinflamatório/antireumático e antiinfecciosos de uso sistêmico, ambos com 5,6%. CONCLUSÕES: Os dados sugerem que a automedicação no Brasil reflete as carências e hábitos da população, é consideravelmente influenciada pela prescrição médica e tem a sua qualidade prejudicada pela baixa seletividade do mercado farmacêutico.
Automedicação; Uso de medicamentos
INTRODUCTION: The data presented are part of a World Health Organization (WHO) multicenter study of self-medication in Latin America. Brazilian sites included: Belo Horizonte, Fortaleza, the city of S. Paulo and outlying locations. The objective was to characterize self-medication practices by analyzing drugs sought by consumers in pharmacies without a physician's prescription. MATERIAL AND METHOD: Drugs were classified according to the Anatomic Therapeutic Classification codes, and analyzed with respect to 1) intrinsic value; 2) recognition as an essential drug (by either WHO or Brazil); 3) number of active ingredients; and 4) requirement for prescription. RESULTS: Five thousand, three hundred and thirty-two (5,332) different drugs, with 785 distinct active ingredients were sought. Of these, 49.5% were fixed dose combinations, 53.0% were of little intrinsic value, 44,1% required a physician's prescription, 71.0% were not essential drugs, and 40.0% of requests were based on prior prescriptions from the physician. The drugs most requested were analgesics (17.3%), nasal descongestants (7.0%), antirheumatic anti-inflamatory drugs (5.6%), and systemic anti-infective drugs (5.6%). CONCLUSIONS: Self-medication in Brazil reflects the needs and habits of the population. It is strongly influenced by physician's-prescribing habits and by the inadequate selectivity of the Brazilian pharmaceutical market.
Self medication; Drug utilization
Perfil da automedicação no Brasil* * Parte de um estudo multicêntrico sobre automedicação na América Latina coordenado pelo Dr. Juan-Ramon Laporte do Departamento de Farmacologia da Universidad Autónoma de Barcelona-Espanha, sob os auspícios da Organização Mundial da Saúde. Dissertação de mestrado realizada por Paulo Sérgio D. Arrais: "Descripción del consumo de medicamentos en una muestra de la población brasileña que practico la automedicación y de sus condicionantes", 1994, Departamento de Farmacologia - Universitat Autónoma de Barcelona-Espanha.
Aspects of self-medication in Brazil
Paulo Sérgio D. Arrais, Helena Lutéscia L. Coelho, Maria do Carmo D. S. Batista, Marisa L. Carvalho, Roberto E. Righi e Josep Maria Arnau
Departamento de Farmácia da Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, CE - Brasil (P.S.D.A., H.L.L.C.); Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo. São Paulo, SP - Brasil (M.C.D.S.B.); Centro de Vigilância Sanitária da Secretaria de Saúde de São Paulo. São Paulo, SP - Brasil (M.L.C.); Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG - Brasil (R.E.R.); Departamento de Farmacologia da Universitat Autónoma de Barcelona. Espanha (J.M.A.)
INTRODUÇÃO
Fenômeno bastante discutido na cultura médico-farmacêutica, e tido como especialmente preocupante no Brasil, é a automedicação2, 7, 11-15, 18, 23, 24, 27. Esta é uma prática comum, vivenciada por civilizações de todos os tempos, com características peculiares a cada época e a cada região27.Considerando a automedicação como uma necessidade, e inclusive de função complementar aos sistemas de saúde, particularmente em países pobres, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou diretrizes para a avaliação dos medicamentos que poderiam ser empregados em automedicação29. Segundo esse informe, tais medicamentos devem ser eficazes, confiáveis, seguros e de emprego fácil e cômodo.
De acordo com Paulo e Zanine27, "a automedicação é um procedimento caracterizado fundamentalmente pela iniciativa de um doente, ou de seu responsável, em obter ou produzir e utilizar um produto que acredita lhe trará benefícios no tratamento de doenças ou alívio de sintomas." A automedicação inadequada, tal como a prescrição errônea, pode ter como conseqüência efeitos indesejáveis, enfermidades iatrogênicas e mascaramento de doenças evolutivas, representando, portanto, problema a ser prevenido. É evidente que o risco dessa prática está correlacionado com o grau de instrução e informação dos usuários sobre medicamentos, bem como com a acessibilidade dos mesmos ao sistema de saúde5. Certamente a qualidade da oferta de medicamentos e a eficiência do trabalho das várias instâncias que controlam este mercado também exercem papel de grande relevância nos riscos implícitos na automedicação.
Em países desenvolvidos, o número de medicamentos de venda livre tem crescido nos últimos tempos, assim como a disponibilidade desses medicamentos em estabelecimentos não farmacêuticos, o que favorece a automedicação22. Nesses países, no entanto, os rígidos controles estabelecidos pelas agências reguladoras e o crescente envolvimento dos farmacêuticos com a orientação dos usuários de medicamentos, tornam menos problemática a prática da automedicação. Já no Brasil onde, de acordo com a Associação Brasileira das Indústrias Farmacêuticas (ABIFARMA), cerca de 80 milhões de pessoas são adeptas da automedicação18, a má qualidade da oferta de medicamentos, o não-cumprimento da obrigatoriedade da apresentação da receita médica e a carência de informação e instrução na população em geral justificam a preocupação com a qualidade da automedicação praticada no País.
No presente trabalho é apresentado estudo descritivo da automedicação no Brasil com base em pesquisa de campo realizada em duas grandes capitais brasileiras: Fortaleza, Belo Horizonte e uma amostra representativa do Estado de São Paulo (5 regiões de Saúde). Este estudo faz parte de um projeto multicêntrico que envolve outros países da América Latina (Colombia, Argentina, Nicarágua, Costa Rica). O objetivo buscado foi descrever a automedicação nas citadas capitais para identificar aspectos problemáticos passíveis de intervenção.
MATERIAL E MÉTODO
Foi utilizado como instrumento para a coleta de dados um questionário fechado no qual se recolheram informações sobre: nome comercial da especialidade farmacêutica, os componentes ativos da mesma, o motivo do uso, a data da última visita ao médico, a idade e o sexo da pessoa que usaria o medicamento e a origem da recomendação do medicamento solicitado. Os questionários foram aplicados no balcão da farmácia por estudantes de farmácia ou farmacêuticos, no momento da compra do medicamento. Foi realizado um treinamento prévio da equipe e teste do instrumento de pesquisa.
No estudo foram incluídos todas as pessoas que buscavam medicamentos sem que mediasse prescrição médica ou conselho direto do farmacêutico ou balconista. Foram excluídas as pessoas que apresentaram uma prescrição médica ou que informaram haver esquecido, assim como as pessoas que solicitaram conselho ao vendedor (independente da qualificação profissional) ou aceitaram conselhos não solicitados. Participaram da pesquisa farmácias localizadas em diversos pontos das cidades cujos farmacêuticos responsáveis se interessaram em colaborar.
Foram aplicados 4.420 questionários correspondendo 2.097 ao Estado de São Paulo (94 farmácias), 1.820 a Fortaleza (22 farmácias) e 503 a Belo Horizonte (20 farmácias). Foram excluídos 246 questionários que estavam incompletos, os dados davam margem a dúvidas ou tinham registros duplicados.
Os princípios ativos presentes em cada especialidade foram listados e classificados de acordo com a classificação ATC30 (Anatomical Therapeutical Classification), elaborada pelo 'Nordic Council on Medicines' (1976) e recomendada pela 'Drug Utilization Researche Group' (DURG) da OMS para os Estudos de Utilização de Medicamentos (EUM).
Cada especialidade farmacêutica foi analisada sob cinco aspectos qualitativos diferentes: (a) valor intrínseco, segundo a classificação de Capellà e Laporte6, modificada por Mata e col.21. Os medicamentos foram classificados como sendo de Valor Intrínseco Elevado (VIE) e Não Elevado (VINE) de acordo com as informações disponíveis na literatura científica sobre, principalmente, eficácia e segurança; (b) inclusão na lista de medicamentos essenciais da OMS26 e da RENAME9 (Relação Nacional de Medicamentos Essenciais, brasileira); ( c) se a especialidade era ou não uma combinação em dose fixa do tipo racional ou irracional; e (d) se seria obrigatória a apresentação de receita médica para a dispensação do medicamento.
Os medicamentos foram estratificados de acordo com: se eram para uso individual ou compartilhado, isto é, por mais de um membro da família.
A análise dos dados foi realizada mediante a utilização do programa estatístico SPSS-PC+20, 25. O teste de Kolmogorov-Smirnov foi utilizado para se verificar a normalidade dos dados relacionados à idade dos pacientes.
RESULTADOS
Dados Descritivos Gerais
Foi analisado um total de 4.174 questionários. O número de especialidades farmacêuticas citadas foi de 5.332, correspondendo a 1.124 nomes comerciais distintos. Em 79,0% dos questionários foi encontrada apenas uma especialidade farmacêutica, em 25,0% duas e em 6,0% três ou mais por questionário.
O número de princípios ativos presentes nas especialidades foi de 10.938, incluindo as repetições. Tal montante se resumia a 785 fármacos distintos. Do total de 5.332 especialidades farmacêuticas, 50,0% continham um único princípio ativo, 24,0% dois e 26,0% três ou mais.
Em 1.593 dos casos (30,0%) as especialidades foram compradas para uso compartilhado (uso familiar) e em 3.739 (70,0%) para uso individual; 59,0% (nº= 2.193) para uso de pessoas do sexo feminino e 41,0% (nº= 1.546) do sexo masculino.
Levando em consideração as idades declaradas quando da compra de especialidades para uso individual, a mediana das idades foi de 32 anos (faixa de zero a 95 anos).
Considerando a distribuição da idade por sexo, o grupo maioritário foi o das mulheres de idade compreendida entre os 16 e 45 anos. A automedicação nos homens foi relevante sobretudo em idades extremas (0-15 e 56-65).
Quanto à última visita realizada ao médico, obteve-se que do total de visitas realizadas (nº 3.827), 36,0% aconteceram durante o período da aplicação dos questionários.
Grupos e Subgrupos mais Procurados
Conforme o primeiro nível da classificação ATC, 60,0% da procura correspondeu a medicamentos para o aparelho digestivo e metabolismo (24,0%), sistema nervoso central (18,2%) e sistema respiratório (17,7%). Os outros grupos com freqüência superior a 3,7% foram: preparados para o sistema músculo-esquelético (9,2%), produtos dermatológicos (6,2%), antiinfecciosos de uso sistêmico (6,0%), medicamentos para o sistema cardiovascular (5,6%), geniturinário, incluindo hormônios sexuais (5,2%), os quais perfazem 91,0% dos fármacos procurados (nº= 4.908). Os grupos restantes correspondem a apenas 9,0% do total, mas incluem medicamentos importantes tais como os que atuam no sangue e órgãos hematopoiéticos, preparados hormonais de via sistêmica, antiparasitários, preparados utilizados nos órgãos do sentido e outros preparados.
Na Tabela 1 encontra-se a distribuição dos medicamentos por subgrupos da classificação ATC (segundo nível), ordenados segundo a freqüência. Foram incluídos todos os medicamentos que representam mais de 2,0% do total (agrupados representam 70,7% do total). Destaca-se especialmente o subgrupo dos analgésicos com 17,3% da freqüência geral.
Princípios Ativos
Na Tabela 2 é mostrada a listagem dos princípios ativos responsáveis por 48,0% das solicitações. A freqüência de cada princípio ativo é dada pela sua ocorrência em monodrogas e associações medicamentosas. Deste modo pode-se verificar que os analgésicos e as vitaminas são responsáveis por 51,0% da freqüência total apresentada na Tabela, correspondendo a 28 e 22%, respectivamente. Outro grupo importante é representado por princípios ativos presentes em medicamentos antigripais (16,0% do total), sendo o restante distribuído entre vários grupos pouco freqüentes.
Classificando os princípios ativos em subgrupos terapêuticos (segundo nível, conforme o código ATC), pode-se verificar que o subgrupo dos analgésicos é constituído por analgésicos-antitérmicos, sendo o ácido acetilsalicílico o princípio ativo mais freqüente (35,0%), seguido da dipirona (28,0%). Outros subgrupos considerados: 1) antiinflamatórios/ anti-reumáticos, representados principalmente pelo diclofenaco (53,0%) e piroxicam (16,0%), ocorrendo também procura relevante por produtos mais tóxicos (p.e. fenilbutazona) e com escassa informação (p.e. benzidamina e nimesulida); 2) antibióticos de via sistêmica; procura por combinações em doses fixas e produtos de reconhecida toxicidade (p.e. lincomicina, cloranfenicol, gentamicina); 3) fármacos ativos sobre o sistema cardiovascular; especialmente antiarritmicos tais como amiodarona, quinidina e propafenona.
Dados Descritivos sobre o Motivo e a Origem da Automedicação
Os principais motivos que geraram a automedicação foram (Tabela 3): infecção respiratória alta (19,0%), dor de cabeça (12,0%) e dispepsia/má digestão (7,3%). Agrupando algumas das variáveis fechadas do presente estudo observou-se que em 24,3% dos casos o motivo da procura do medicamento se relacionava a sintomas dolorosos (dor de cabeça, dor muscular, cólica, dismenorrea, outros) e 21,0% com quadros viróticos ou infecciosos (infecção respiratória alta e diarréia).
Se for levado em consideração o motivo do uso, relacionando-o com a idade, observa-se que: a) em menores de 15 anos (nº= 608) são mais freqüentes os problemas de infecção respiratória alta (27,0%), suposta carência vitamínica (9,0%), infecção da pele (6,0%) e dor de cabeça (5,0%), entre outros; b) entre os 16 e 55 anos (nº= 2.451) a infecção respiratória alta (18,0%), a dor de cabeça (13,0%) e a dispepsia/má digestão (9,0%), entre outros; c) entre os maiores de 55 anos (nº= 680) os problemas cardiovasculares (19,0%), dores músculo-esqueléticas (12,0%) e dor de cabeça (10,0%), entre outros.
Com relação à decisão do usuário quanto a escolha do medicamento, 40,0% se basearam em prescrições anteriores e 51,0% em sugestões de pessoas não qualificadas.
Com relação à distribuição do motivo de uso, a recomendação encontra-se bastante repartida, salvo em alguns motivos em que predomina claramente a recomendação por pessoas leigas (dor de cabeça, perda do apetite) e outros em que se nota a recomendação por profissional sanitário (coração, circulação periférica, insônia, alergia).
Análise da Qualidade dos Medicamentos Utilizados como Automedicação
Das 5.332 especialidades farmacêuticas procuradas (Tabela 4): 2.351 (44,1%) eram medicamentos de faixa vermelha (apresentação de receita médica obrigatória); 2.641 (49,5%) eram combinações em doses fixas; 2.806 (52,6%) eram de valor intrínseco não elevado; 4.210 (79,0%) não estavam incluídos na lista de medicamentos essenciais da OMS; e 3.851 (72,2%) não faziam parte da RENAME. Foi encontrado que 17,0% das monodrogas (nº total = 2.691) e 89,0% das associações (nº total = 2.641) eram de valor intrínseco não elevado.
Levando em consideração a distribuição dos subgrupos terapêuticos por valor intrínseco dos medicamentos, verificou-se que as 2.526 especialidades de valor intrínseco elevado predominam nos seguintes subgrupos: analgésicos (65,0%), anti-reumáticos/antiinflamatórios (82,0%), antibióticos/ quimioterápicos sistêmicos (79,0%), hormônios sexuais (84,0%) e antiasmáticos (75,0%).
Com relação às características qualitativas dos medicamentos, por grupo de idade, sexo e família e origem da recomendação, não foram encontradas diferenças relevantes. Já com relação aos medicamentos recomendados por pessoas leigas predominaram as combinações em doses fixas (54,0%) e os medicamentos de valor intrínseco não elevado (57,0%).
Analisando a distribuição do valor intrínseco das especialidades farmacêuticas versus o motivo de uso dos medicamentos observou-se que, na maioria dos casos, os medicamentos utilizados são de valor intrínseco não elevado, com exceção dos grupos de medicamentos para problemas cardiovasculares, alergia e insônia, onde prevalecem medicamentos de valor intrínseco elevado.
Com o objetivo de conhecer melhor o perfil de uso de alguns subgrupos de medicamentos mais procurados (descongestionantes nasais) ou de uso mais problemático (antibióticos sistêmicos e anti-hipertensivos), foram analisadas as características do uso desses frente a algumas variáveis como valor intrínseco, idade, quem recomenda e motivo de uso.
Os descongestionantes nasais (nº = 332) em questão, em 88,0% são medicamentos de valor intrínseco não elevado, em 46,0% dos casos recomendados por profissionais de saúde (90,0% médicos) e em 28,0% adquiridos para uso compartilhado (familiar). Por sua vez, os antibióticos de uso sistêmico (79,0% de valor intrínseco elevado) foram em 46,0% dos casos recomendados por pessoas leigas e usados com maior freqüência (58,0%) para tratar problemas relacionados com infecção respiratória aguda. Quanto aos anti-hipertensivos (93,0% de valor intrínseco elevado), foram procurados principalmente com base em prescrições anteriores (93,0%); em 6 casos (7,0%) haviam sido recomendados por pessoas leigas e em 16 casos (17,0%) eram para uso compartilhado (familiar).
DISCUSSÃO
Os resultados do presente estudo sugerem que a automedicação no Brasil é praticada principalmente por mulheres, entre 16 e 45 anos. Entre os homens, essa prática é mais freqüente nas idades extremas.
A escolha de medicamentos é baseada principalmente na recomendação de pessoas leigas (51,0%), sendo também relevante a influência de prescrições anteriores (40,0%). Com relação ao segundo aspecto, é possível que a última visita ao médico (36,0% durante o período da pesquisa) tenha influenciado sobremaneira o perfil dos medicamentos escolhidos. Observa-se maior cuidado com a escolha de fármacos para crianças e idosos (maior taxa de recomendação por profissionais sanitários).
Grande parte dos medicamentos foram adquiridos para uso familiar, o que é compreensível do ponto de vista econômico, mas possibilita problemas tais como inadequação e incompletude dos tratamentos, contaminação cruzada de pessoas da família pelo uso de colírios, gotas nasais e outros.
Os problemas que geraram a automedicação de modo geral não justificariam o uso de medicamentos, tratando-se de doenças autolimitadas ou supostas carências nutricionais (Tabela 3). Uma avaliação mais precisa desse item não foi possível dada a inclusão de grande quantidade de informação na categoria "outros".
A má qualidade da escolha em termos do valor intrínseco dos medicamentos procurados, freqüência de associações medicamentosas e presença na lista de Medicamentos Essenciais da Central de Medicamentos (CEME) ou da OMS, refletem plenamente o mercado farmacêutico brasileiro, caracterizado pela predominância de produtos desnecessários, intensamente propagandeados para o público em geral. Observa-se também o uso inadequado de medicamentos de valor intrínseco elevado, como por exemplo a alta freqüência do emprego de antibióticos no tratamento de tosses e viroses respiratórias.
Quanto à predominância dos analgésicos entre os medicamentos mais procurados esse é um fato comum tanto na automedicação praticada no Brasil como em outros países1, 13, 23, 28. O aspecto preocupante se correlaciona com a prevalência do uso da dipirona, medicamento cuja segurança tem sido bastante questionada4, 17, 19.
A livre compra de medicamentos, para cuja dispensação seria obrigatória a apresentação de receita médica (44,1%), se por um lado demonstra o pouco caso ou desconhecimento em relação às normas regulamentares3, por outro evidencia as dificuldades de acesso a uma atenção médica e farmacêutica adequadas16.
O fato de não ter sido detectada a procura por medicamentos consumidos com fins ilegais (certos anticolinérgicos, psicotrópicos, abortivos e esteróides anabolizantes) pode estar associado ao fato do agente de pesquisa ser uma pessoa estranha à equipe de balconistas de cada farmácia, inibindo os compradores habituais.
A predominância do uso de medicamentos entre as mulheres também se verifica em outros contextos e é parcialmente atribuída à exploração pela propaganda de medicamentos de papéis sociais tradicionalmente atribuídos às mulheres, dentre eles o de prover a saúde da família10.
Os presentes dados confirmam a importância do estudo da automedicação e apoiam a hipótese da ingênua e excessiva crença da sociedade atual no poder dos medicamentos, o que contribui para a crescente demanda de produtos farmacêuticos para qualquer tipo de transtorno, por mais banal, autolimitado que seja. Dessa forma, o medicamento foi incorporado à dinâmica da sociedade de consumo, e, portanto, está sujeito às mesmas tensões, interesses e dura competição de qualquer setor do mercado, afastando-se de sua finalidade precípua na prevenção, diagnóstico e tratamento das enfermidades8. Tais resultados reforçam a necessidade de se informar a população sobre o uso adequado de medicamentos, além de medidas cabíveis que garantam a oferta de produtos necessários, eficazes, seguros e de preço acessível.
AGRADECIMENTOS
Ao Departamento de Farmacologia da "Universidad Autónoma de Barcelona", "Institut Catalá de Farmacologia" (Espanha), e à Dra. Lynn Silver da Fundação Oswaldo Cruz-RJ, pela colaboracão prestada.
Correspondência para/Correspondence to: Paulo Sérgio D. Arrais - Grupo de Prevenção ao Uso Indevido de Medicamentos. Caixa Postal 3212 - 60431-327 Fortaleza, CE - Brasil. Fax: (085)243.9276
Edição subvencionada pela FAPESP. Processo 96/5999-9.
Recebido em 5.2.1996. Reapresentado em 12.6.1996. Aprovado em 22.8.1996.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Ago 2001 -
Data do Fascículo
Fev 1997
Histórico
-
Recebido
05 Fev 1996 -
Revisado
12 Jun 1996 -
Aceito
22 Ago 1996