Resumos
OBJETIVO: Traduzir a Escala do Ambiente Familiar (Family Environment Scale) para a língua portuguesa e aplicar o instrumento para sua validação. MÉTODOS: A tradução foi aplicada a membros de famílias brasileiras, visando avaliação da consistência interna e a concordância entre membros da mesma família. Foram selecionados 154 voluntários não sujeitos a qualquer intervenção para lidar com problemas familiares, residentes na cidade de São Paulo, em 2003. As pontuações médias nas dez subescalas do instrumento foram comparadas entre homens e mulheres e entre membros da mesma família. Avaliou-se a consistência interna pelo alfa de Cronbach. RESULTADOS: A pontuação máxima possível era nove em cada subescala (bom funcionamento familiar), exceto em relação a conflito e controle. Na maioria das subescalas, a pontuação média da amostra estudada esteve entre 5,1 e 7,6 (homens) e entre 5,4 e 7,7 (mulheres). Nas subescalas conflito e controle as médias variaram entre 1,8 e 4,6 (homens) e entre 1,6 e 4,6 (mulheres), sendo semelhantes às relatadas em estudos internacionais, exceto maior pontuação nas subescalas coesão e organização, e menor na subescala conflito. Não houve diferença estatisticamente significativa entre as pontuações atingidas por homens e mulheres. A confiabilidade da escala avaliada pelo alfa de Cronbach variou entre 0,61 e 0,78 para as dez subescalas. CONCLUSÕES: Fatores culturais podem ter influenciado os resultados obtidos em algumas subescalas. A versão em português da Escala do Ambiente Familiar apresentou razoável consistência interna que permite sua utilização para avaliar alterações no ambiente ou funcionamento familiar, e após intervenções terapêuticas.
Família; Relações familiares; Fatores socioeconômicos; Escalas de Graduação Psiquiátrica; Tradução; Questionários; Reprodutibilidade dos testes
OBJECTIVE: To translate the Family Environment Scale into Portuguese and apply the instrument to validate it. METHODS: The translation was applied to members of Brazilian families with the aim of evaluating its internal consistency and the concordance between members of the same family. One hundred and fifty-four volunteers living in the city of São Paulo in 2003 who were not receiving any kind of intervention for dealing with family problems were selected. The mean scores in the ten subscales of the instrument were compared between men and women, and between members of the same family. The internal consistency was evaluated by means of Cronbach's alpha. RESULTS: The maximum possible score in each subscale was nine (good family functioning), except in relation to conflict and control. In most of the subscales, the mean score of the sample studied ranged from 5.1 to 7.6 (men) and 5.4 to 7.7 (women). In the conflict and control subscales, the means ranged from 1.8 to 4.6 (men) and 1.6 to 4.6 (women). These were similar to scores reported in international studies, except for higher scores in the cohesion and organization subscales, and lower score in the conflict subscale. There were no statistically significant differences between the scores attained by men and women. The reliability of the scale, evaluated according to Cronbach's alpha, ranged from 0.61 to 0.78 for the ten subscales. CONCLUSIONS: Cultural factors may have influenced the results obtained in some of the subscales. The Portuguese version of the Family Environment Scale presented reasonable internal consistency that enables its use for evaluating changes in the family's environment and its functioning and after therapeutic interventions.
Family; Family relations; Socioeconomic factors; Psychiatric Status Rating Scales; Translations; Questionnaires; Reproducibility of results
ARTIGOS ORIGINAIS
Versão em português da Family Environment Scale: aplicação e validação
Vânia P T Vianna; Eroy Aparecida da Silva; Maria Lucia O Souza-Formigoni
Unidade de Dependência de Drogas. Departamento de Psicobiologia. Universidade Federal de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil
Correspondência Correspondência: Maria Lucia O. S. Formigoni Departamento de Psicobiologia Universidade Federal de São Paulo Rua Botucatu, 862 1º andar 04023-062 São Paulo, SP, Brasil E-mail: mlformig@psicobio.epm.br
RESUMO
OBJETIVO: Traduzir a Escala do Ambiente Familiar (Family Environment Scale) para a língua portuguesa e aplicar o instrumento para sua validação.
MÉTODOS: A tradução foi aplicada a membros de famílias brasileiras, visando avaliação da consistência interna e a concordância entre membros da mesma família. Foram selecionados 154 voluntários não sujeitos a qualquer intervenção para lidar com problemas familiares, residentes na cidade de São Paulo, em 2003. As pontuações médias nas dez subescalas do instrumento foram comparadas entre homens e mulheres e entre membros da mesma família. Avaliou-se a consistência interna pelo alfa de Cronbach.
RESULTADOS: A pontuação máxima possível era nove em cada subescala (bom funcionamento familiar), exceto em relação a conflito e controle. Na maioria das subescalas, a pontuação média da amostra estudada esteve entre 5,1 e 7,6 (homens) e entre 5,4 e 7,7 (mulheres). Nas subescalas conflito e controle as médias variaram entre 1,8 e 4,6 (homens) e entre 1,6 e 4,6 (mulheres), sendo semelhantes às relatadas em estudos internacionais, exceto maior pontuação nas subescalas coesão e organização, e menor na subescala conflito. Não houve diferença estatisticamente significativa entre as pontuações atingidas por homens e mulheres. A confiabilidade da escala avaliada pelo alfa de Cronbach variou entre 0,61 e 0,78 para as dez subescalas.
CONCLUSÕES: Fatores culturais podem ter influenciado os resultados obtidos em algumas subescalas. A versão em português da Escala do Ambiente Familiar apresentou razoável consistência interna que permite sua utilização para avaliar alterações no ambiente ou funcionamento familiar, e após intervenções terapêuticas.
Descritores: Família. Relações familiares. Fatores socioeconômicos. Escalas de Graduação Psiquiátrica. Tradução (Produto). Questionários. Reprodutibilidade dos testes.
INTRODUÇÃO
Na área da saúde é importante a obtenção de dados a respeito do ambiente familiar, pois pode influenciar de modo decisivo o desenvolvimento de vários distúrbios e a evolução de diversos tipos de tratamento. Moos & Moos17 definem ambiente familiar como a percepção que cada membro possui de sua família, ou seja, o clima sociofamiliar decorrente dos relacionamentos, crescimento pessoal, organização e controle do sistema familiar. Esses mesmos autores consideram que o ambiente familiar influencia os membros da família e seu processo de adaptação às situações. As características pessoais dos membros da família, suas habilidades de enfrentamento e seu bem-estar podem afetar a qualidade das relações familiares. Assim, quando um membro da família apresenta um distúrbio emocional ou comportamental, provavelmente todo o ambiente familiar é afetado.
Vários instrumentos foram padronizados com a finalidade de avaliar o ambiente familiar ou alguns de seus componentes.14,17 Existem poucas escalas traduzidas e validadas para o Brasil para avaliação do funcionamento familiar, indicando a necessidade de instrumentos breves e de fácil compreensão. A Family Environment Scale (FES), desenvolvida por Moos & Moos,17 permite descrever o ambiente familiar, contrastar a percepção dos pais e dos filhos, planejar e monitorar mudanças familiares. Também pode ser utilizada para avaliar o impacto do aconselhamento ou de outras intervenções.3,11,16 O conjunto de itens iniciais da FES foi desenvolvido a partir de entrevistas estruturadas com membros de diferentes tipos de famílias e adaptação de itens de outras escalas de clima social.17 A escolha e teor dos itens foram guiados por três dimensões de ambiente social: relações interpessoais, crescimento pessoal e manutenção do sistema.17 A FES pode ser utilizada em três formas: para avaliação do ambiente real (forma R), do ambiente idealizado (forma I) ou do ambiente esperado (forma E). A confiabilidade da FES foi avaliada, obtendo-se índices de consistência interna (alfa de Cronbach) que variaram entre 0,61 e 0,78 para as dez subescalas.17 A validade discriminante e a validade de construto foram avaliadas em vários estudos, evidenciando sua boa capacidade de discriminação entre famílias com ambiente familiar funcional daquelas com problemas.4,20,21 A FES também pode ser utilizada para avaliar o resultado de intervenções, o nível de adaptação de crianças e adultos ao ambiente familiar, e para discriminar o ambiente familiar de grupos que diferem quanto à idade, etnia e saúde mental.2,10,13,19 Em outros países, a FES tem sido utilizada em estudos recentes para avaliar a influência do ambiente familiar em características psicológicas de filhos adolescentes e transtornos psiquiátricos, incluindo transtornos bipolares e alcoolismo.8,18
O presente estudo teve por objetivo traduzir a Escala do Ambiente Familiar (Family Environment Scale FES)* * O uso da Family Environment Scale é regulamentado por direitos autorais. As autoras tiveram permissão de tradução para o idioma português pela Instrumentos de Desenvolvimento Humano (IDH), representante brasileira da Consulting Psychology Press (CPP). para a língua portuguesa e aplicar o instrumento para avaliação de sua consistência interna.
MÉTODOS
Foi utilizada no estudo a forma R da FES, destinada à avaliação do ambiente real, com a finalidade de descrever a situação real do ambiente familiar, existente no momento da aplicação. A escala é composta por 90 afirmativas, destinadas a avaliar a percepção de cada membro da família a respeito do ambiente atual, isto é, o clima social e interpessoal da família. O respondente deve avaliar cada afirmativa como "verdadeira" ou "falsa" em relação ao ambiente de sua família. Cada resposta recebe a pontuação zero ou um para indicar, respectivamente, a ausência ou a presença do item avaliado. A presença de problemas é indicada por alta pontuação nas escalas de conflito e controle, e baixa pontuação nas demais escalas. A soma de pontos de cada área fornece o escore da área. As afirmativas são agrupadas em dez subescalas, pertencentes a uma de três dimensões. A primeira dimensão, relacionamento interpessoal, inclui três subescalas coesão (ajuda e suporte entre os membros da família), expressividade (expressão de sentimentos) e conflito (expresso abertamente na família). A segunda dimensão, crescimento pessoal, inclui cinco subescalas: independência (capacidade de decisão), assertividade (atividades orientadas para um objetivo), interesses culturais (atividades políticas, intelectuais e culturais), lazer (atividades sociais e recreacionais) e religião (questões éticas e valores religiosos). A terceira dimensão, manutenção do sistema, inclui duas subescalas: organização (no planejamento de atividades familiares) e controle (presença de regras e procedimentos na vida familiar cotidiana).
A tradução da FES foi feita por duas pessoas bilíngües e outras duas participaram do processo de retro-tradução, sendo que uma delas tinha o inglês como língua nativa, segundo recomendação de Garyfallos et al.12 Foi realizada uma aplicação piloto em amostra de dez famílias para verificar problemas de compreensão do instrumento, para os quais foram realizados ajustes na tradução. Após o processo de retro-tradução da versão final, o instrumento foi submetido à apreciação do autor do instrumento original, que a aprovou. Uma especialista em terapia familiar, bilíngüe, constatou equivalência semântica da versão final do instrumento.
Uma amostra de conveniência foi composta por 76 famílias voluntárias, tendo sido entrevistados pelo menos dois membros por família, totalizando 154 indivíduos. Estas famílias foram convidadas a participar do estudo por meio de mensagens de mídia eletrônica ou convites realizados pessoalmente pela entrevistadora. Foi adotado como critério de inclusão possuir, no mínimo, quatro anos de educação formal. Os critérios de exclusão foram presença de déficit cognitivo ou comorbidades psiquiátricas que inviabilizassem a aplicação do instrumento; estar sob tratamento psicoterápico ou psiquiátrico (que poderiam afetar o relacionamento familiar) no momento do convite para participação; fazer uso abusivo ou ser dependente de álcool ou outras substâncias.
A coleta de dados foi realizada em uma única ocasião, durante nove meses no ano de 2003, nas residências dos indivíduos, no Município de São Paulo ou em centro de pesquisa universitário, pela psicóloga entrevistadora. Responderam aos questionários a pessoa com a qual foi feito o contato inicial e ao menos um outro membro da família que concordasse em participar do estudo. Os dados sociodemográficos foram coletados utilizando um questionário aplicado pela entrevistadora. O tempo médio gasto para preenchimento foi cerca de 20 min, e na maioria das famílias houve a participação de duas pessoas. Alguns participantes apresentaram dúvidas em algumas questões de formulação negativa, (por ex.: "Em nossa família nós não rezamos.") que foram prontamente esclarecidas pela entrevistadora. Cada voluntário recebeu uma ajuda de custo para ressarcimento de despesas de transporte.
Os dados sociodemográficos de homens e mulheres foram comparados por meio do teste do c2. Foram calculados as médias e desvios-padrão dos escores de cada subescala da FES, considerando-se tanto as 154 pessoas avaliadas em conjunto, como homens e mulheres separadamente. As comparações dos escores médios de homens e mulheres foram realizadas utilizando-se o teste t de Student. As pessoas inicialmente abordadas foram comparadas com seu(s) familiar(es) utilizando-se o teste t de Student para amostras pareadas. Foi também realizada uma comparação entre as médias da amostra estudada e as obtidas em cinco estudos internacionais, citados pelo autor da escala original no manual Family Environment Scale Manual 3rd edition,17 sendo quatro estudos de Moos & Moos (estudo 1: população americana de famílias normais; estudo 2: famílias afro-americanas e de origem latina; estudo 3: pais de filhos adolescentes; e estudo 5: adultos normais)17 e o estudo realizado por Carlson et al6 (1991) com adultos normais (estudo 4). As comparações das médias de cada estudo com as da amostra estudada foram realizadas utilizando-se o teste t de Student. A confiabilidade da versão brasileira da escala FES foi avaliada utilizando-se o índice alfa de Cronbach como medida da consistência interna e o método das metades (Split-half reliability). Em todos os testes adotou-se 5% como nível de significância. Os critérios propostos por Landis & Koch15 (1977) foram adotados para interpretação do grau de concordância: quase perfeita (0,80 a 1,00); substancial (0,60 a 0,80); moderada (0,40 a 0,60); regular (0,20 a 0,40); discreta (zero a 0,20); e pobre (-1 a zero).
Os voluntários foram esclarecidos previamente a respeito do objetivo do estudo e assegurados quanto à confidencialidade das informações coletadas. Todos os participantes assinaram o termo de consentimento, aprovado com o projeto de pesquisa, pelo Comitê de Ética Médica em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), projeto nº 1184/01.
RESULTADOS
A Tabela 1 apresenta os dados sociodemográficos da amostra estudada, formada por 56% de mulheres e 44% de homens, na maioria (57,8%) solteiros, com renda familiar de até oito salários mínimos. Em geral, as mulheres viviam com a família de origem e os homens, com a família constituída.
A Tabela 2 apresenta as médias atingidas nas subescalas por homens e mulheres, não tendo sido detectadas diferenças significativas entre elas. A comparação entre as médias obtidas nas entrevistas das pessoas inicialmente abordadas com as de seus familiares mostrou que, na maioria das subescalas, não houve diferença significativa. No entanto, as mães pontuaram mais do que seus filhos na escala independência (média 7,5 ± 1,3 versus 6,6 ± 1,3), as esposas menos do que seus maridos na escala assertividade (média 5,8 ± 1,6 versus 6,5±0,8), e mais do que eles na escala de lazer (média 5,5 ± 2,2 versus 4,9 ± 2,2). Não houve diferenças entre parentes nas outras subescalas.
A Tabela 3 mostra a comparação das pontuações médias obtidas nas dez subescalas na amostra estudada e em cinco estudos internacionais. Nas subescalas coesão e organização, a pontuação dos indivíduos do presente estudo foi significativamente maior do que as relatadas em todos os cinco estudos internacionais. A amostra estudada atingiu maiores níveis médios de pontuação nas subescalas assertividade e religião do que os de famílias americanas normais, relatados no estudo 1. Quando comparada à amostra de famílias afro-americanas e latinas (estudo 2) a amostra estudada apresentou maior pontuação nas subescalas expressividade e independência; também obteve pontuação média acima da observada no estudo 3, na subescala religião e no estudo 5, na subescala expressividade. Na subescala conflito, a pontuação da amostra estudada esteve abaixo da relatada em todos os estudos estrangeiros. A amostra estudada também apresentou menor pontuação que a relatada no estudo 2 na subescala assertividade e no estudo 3 na subescala interesses culturais. Em relação ao quarto estudo internacional, a amostra estudada apresentou menor pontuação média nas subescalas de lazer e interesses culturais.
A Tabela 4 apresenta a confiabilidade da versão em português da escala FES, avaliada pelo índice alfa de Cronbach (consistência interna). Os melhores índices de confiabilidade foram atingidos para as subescalas coesão (0,87), conflito (0,83) e expressividade (0,78). A maioria das subescalas apresentou índices razoáveis de consistência interna. Entretanto, algumas subescalas apresentaram índices baixos: religião (0,20), assertividade (0,39) e independência (0,49). A avaliação pelo método das metades indica boa confiabilidade da maioria das escalas, excetuando-se as de independência e assertividade. Em três subescalas da amostra do presente estudo (independência, assertividade e religião) foram encontrados níveis mais baixos de consistência do que no estudo relatado por aqueles autores. A análise dos itens revelou que algumas questões ("Em nossa família, nós tiramos nossas próprias conclusões sobre as coisas", "As pessoas da família quase sempre são auto-suficientes quando aparece um problema" e "Em nossa família, nós não somos encorajados a dizer o que pensamos") apresentaram baixa correlação com o total da subescala; o índice alfa de Cronbach aumentaria para 0,62 se elas fossem eliminadas do cômputo. O exame de cada questão em particular revelou que talvez a redação da primeira questão acima mencionada estivesse pouco clara. Quanto à segunda questão acima mencionada é possível que a redação fosse complexa para o nível de escolaridade da maioria da amostra. Além disso, o uso de redação com construção negativa na terceira questão mencionada possa ter causado dificuldades de entendimento.
Em relação à religiosidade e valores éticos, o valor de confiabilidade foi baixo (a=0,20). A análise estatística dos itens indicou que a retirada das questões "As pessoas da família tem idéias firmes acerca do que é certo e do que é errado", "Em nossa família, cada pessoa tem idéias diferentes sobre o que é certo e o que é errado" e "Nós acreditamos que existem algumas coisas nas quais simplesmente se deve acreditar" elevaria o índice alfa de Cronbach para 0,56. Isto pode ser decorrente do fato de essas duas primeiras questões se referirem a aspectos éticos e não à religiosidade propriamente dita. Estas três questões apresentaram baixa correlação com o total da escala, sugerindo que dois aspectos diferentes (religiosidade e ética) estariam sendo avaliados por esta subescala. Além disso, a redação da terceira questão, que é de certo modo reticente, pode ter causado dificuldade de interpretação por parte dos respondentes.
Quanto à assertividade, o índice de confiabilidade foi a=0,39. As questões "Para nós, não importa quanto dinheiro uma pessoa ganha" e "As pessoas da família são freqüentemente comparadas com outras pessoas em relação a se eles estão indo bem no trabalho ou na escola" apresentaram baixa correlação com a pontuação total da subescala, sua retirada elevaria o alfa para 0,65.
DISCUSSÃO
O presente estudo é o primeiro que avaliou a utilidade da FES na avaliação do ambiente familiar no Brasil. Estudos realizados em outros países já haviam comprovado que a FES é um instrumento efetivo para detectar diferenças entre famílias funcionais e famílias com problemas em relação ao ambiente familiar.4,20,21 Alguns autores adotam a denominação "famílias clínicas" para se referir àquelas que buscam tratamento psicológico ou psiquiátrico para algum transtorno que ocorre no sistema familiar.1,22 Vários estudos ressaltam a importância de realizar investigações sistematizadas do ambiente familiar que sirvam como base para melhor definir o que é uma família funcional e quais fatores influenciam sua avaliação.
No presente estudo não foram detectadas diferenças significativas entre homens e mulheres na pontuação média das dez subescalas da FES. Estes dados confirmam, em parte, os relatados por Brinson5 que não observou, em seu estudo envolvendo gênero e dependência de drogas em famílias clínicas, diferenças entre homens e mulheres nas subescalas da FES: coesão, conflito, assertividade, interesses intelectuais, lazer e controle. No entanto, naquele estudo os homens pontuaram abaixo das mulheres nas subescalas expressividade, independência, religião e organização. Em um outro estudo9 envolvendo distúrbios alimentares, mulheres obtiveram menor pontuação que homens na subescala organização e os homens menor pontuação na escala de conflitos.
A amostra de famílias do presente estudo apresentou algumas diferenças estatisticamente significativas em relação às descritas nos cinco estudos internacionais descritos por Moos & Moos.17 Foi observada maior coesão e organização em relação aos estudos internacionais. A coesão pertence à dimensão relacionamento interpessoal, que avalia o grau de ajuda e suporte mútuo na família. A organização se refere à manutenção do sistema e avalia sua existência clara e estruturada, que permita o planejamento das atividades familiares. Aparentemente, as famílias analisadas apresentam maior grau de coesão do que as famílias funcionais estudadas nos cinco estudos internacionais, podendo ser esta uma diferença cultural.
A menor pontuação na subescala conflito, que avalia o grau de agressividade e conflito expresso abertamente entre os membros da família, quando comparada às dos estudos internacionais poderia ser também devida a características culturais. A cultura norte-americana incentiva a competição e a luta pelos direitos. Diferentemente, no Brasil, até meados do século XX, a organização social brasileira era fortemente influenciada por uma estrutura hierárquica, centrada na figura paterna autoritária. Isto poderia caracterizar um ambiente social relativamente repressivo, que pode ter contribuído para coibir a expressão de comportamentos agressivos e evitar conflitos.
Ao contrário do esperado, foram observadas maiores diferenças entre as famílias brasileiras e as famílias americanas de origem africana e latina, do que em relação à população americana geral. A menor assertividade e a maior expressividade observadas nas famílias brasileiras estudadas podem ser resultantes de diferenças socioculturais em relação a comportamentos considerados assertivos na cultura norte-americana, indicando a importância de se considerar o modelo social vigente.
A maior pontuação na subescala religião obtida no presente estudo pode estar associada à forte religiosidade da população brasileira.1,** ** Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico de 2000. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/populacao/religiao_Censo 2000.pdf [Acesso em 7 ago 2005] Quanto à subescala interesses culturais, o fato de a amostra estudada ter pontuado abaixo das amostras americanas gera a hipótese de que aquelas populações disponham de maior número de opções, oportunidades e interesses culturais. Porém, na amostra do presente estudo, existia diferença substancial de renda mensal comparada com as famílias americanas, dificultando o acesso a muitas atividades culturais.
É possível que a maior pontuação observada na subescala organização se deva ao fato de a família brasileira ser mais coesa e com definição clara da hierarquia. Entretanto, vários autores no Brasil consideram que a família brasileira está em processo de transição, apresentando alterações na sua organização.7,23 Tem sido observado um aumento significativo do número de famílias monoparentais e redução do número de pessoas em cada família. No entanto, no País, ainda é preponderante o modelo patriarcal de família nuclear, ou seja, pai, mãe e filhos coabitando. Além disso, há diferentes formas de organização em cada classe social. Entre as famílias de classe social baixa, por exemplo, existe maior prevalência de ligações transitórias e concubinatos.24
Em relação à consistência interna da escala, algumas diferenças observadas talvez se devam a fatores culturais. Por exemplo, o fato de a assertividade ser um aspecto menos valorizado na cultura brasileira do que em algumas amostras da população americana17 (adultos afro-americanos e latinos) pode ser responsável pela reduzida consistência interna desta escala quando todos os itens originais são mantidos. A retirada de questões que valorizam aspectos competitivos aumentou significativamente a confiabilidade.
A versão no idioma português da FES possui boa consistência interna, exceto para as subescalas religião, assertividade e independência, podendo ser útil para avaliar alterações no ambiente, funcionamento familiar antes e após intervenções terapêuticas, ou ainda para comparar grupos de pacientes, particularmente em relação à coesão, expressividade e conflito. É provável que algumas questões utilizadas nas subescalas com baixa consistência interna sejam inadequadas à cultura brasileira e poderiam ser eliminadas ou substituídas por outras. Entretanto, dado que o instrumento possui registro de direitos autorais, estas adaptações dependem da autorização dos detentores dos direitos. Esse processo de adaptação com substituição ou retirada de itens encontra-se em estudo.
São necessários estudos mais abrangentes, com amostras representativas da população brasileira, incluindo famílias com diferentes níveis sociais e educacionais, assim como a comparação com famílias clínicas, para uma avaliação mais abrangente da confiabilidade da FES. Encontra-se em andamento um estudo comparando esta amostra com uma amostra de famílias de dependentes de álcool e outras drogas.
AGRADECIMENTOS
À equipe do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (PROAD) e da Unidade de Atendimento a Dependentes (UNIAD), setores dos Departamentos de Psiquiatria e Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo, que viabilizaram o acesso a famílias de dependentes e a todas as famílias voluntárias que colaboraram no estudo. Ao Dr. Rudolf Moos (Center for Health Care Evaluation, Menlo Park, Califórnia) pela verificação da retro-tradução e sugestões.
Recebido: 8/8/2006
Revisado: 23/10/2006
Aprovado: 29/10/2006
Estudo financiado pela Associação Fundo de Incentivo à Psicofarmacologia (AFIP).
Artigo baseado na tese de mestrado de VPT Vianna, apresentada ao programa de pós-graduação em Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo, em 2004. Apresentado no XVII Congresso da Associação Brasileira de Estudos de Álcool e Drogas (ABEAD) 3/9/2005.
VPT Vianna foi bolsista de Mestrado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). MLOS Formigoni recebe bolsa de produtividade pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
- 1. Ackerman NW. Diagnóstico e tratamento das relações familiares. Porto Alegre: Artes Médicas; 1986.
- 2. Barry KL, Fleming MF. Family cohesion, expressiveness and conflict in alcoholic families. Br J Addict. 1990;85(1):81-7.
- 3. Billings A, Moos RH. Psychosocial processes of recovery among alcoholics and their families: implications for clinicians and program evaluators. Addict Behav. 1983;8:205-18.
- 4. Boake C, Salmon PG. Demographic correlates and factor structure of the Family Environment Scale. J Clin Psychol. 1983;39(1):95-100.
- 5. Brinson JA. A comparison of the family environments of black male and female adolescent alcohol users. Adolescence. 1991;26(104):877-84.
- 6. Carlson CI, Cooper CR, Spradling VY. Developmental implications of shared versus distinct perceptions of the family in early adolescence. New Dir Child Dev. 1991;51:13-31.
- 7. Carneiro TF. Família: diagnóstico e terapia. 2Ş ed. Petrópolis: Vozes; 1996.
- 8. Chang KD, Blasey C, Ketter TA, Steiner H. Family environment of children and adolescents with bipolar parents. Bipolar Disord. 2001;3(2):73-8.
- 9. Felker KR, Stivers C. The relationship of gender and family environment to eating disorder risk in adolescents. Adolescence. 1994;29:821-34.
- 10. Filstead WJ, McElfresh O, Anderson C. Comparing the family environment of alcoholic and normal families. J Alcohol Drug Educ. 1981;26:24-31.
- 11. Finney J, Moos RH. Environmental assessment and evaluation research: examples from mental health and substance abuse programs. Eval Program Plann. 1984;7:151-67.
- 12. Garyfallos G, Karastergiou A, Adamopoulou A, Moutzoukis C, Alagiozidou E, Mala D, et al. Greek version of the General Health Questionaire: accuracy of translation and validity. Acta Psychiatr Scand. 1991;84:371-8.
- 13. Godley MD, Kahn JH, Dennis ML, Godley SH, Funk RR. The stability and impact of environmental factors on substance use and problems after adolescent outpatient treatment for cannabis abuse or dependence. Psychol Addict Behav. 2005;19(1):62-70.
- 14. Halvorsen JG. Self-report family assessment instruments: an evaluative review. Fam Pract Res J. 1991;11(1):21-55.
- 15. Landis JR, Koch GG. The measurement of observer agreement for categorical data. Biometrics. 1977;33:159-74.
- 16. Moos RH, Moos BS. Clinical applications of the Family Environment Scale. In: Filsenger EE, editor. Marriage and family assessment. Beverly Hills (CA): Sage; 1983. p. 253-73.
- 17. Moos RH, Moos BS. Family Environment Scale manual. 3nd ed. Palo Alto (CA): Consulting Psychologists Press; 1994.
- 18. Pressman LJ, Loo SK, Carpenter EM, Asarnow JR, Lynn D, McCracken JT, et al. Relationship of family environment and parental psychiatric diagnosis to impairment in ADHD. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry. 2006;45(3):346-54.
- 19. Reynolds FD, O'Leary MR, Walker RD. Family environment as a predictor of alcoholism treatment outcome. Int J Addict. 1982;17:505-12.
- 20. Roosa MW, Beals J. Measurement issues in family assessment: the case of the Family Environment Scale. Fam Process. 1990;29(2):191-8.
- 21. Saito S, Nomura N, Noguchi Y, Tezuka I. Translatability of family concepts into the Japanese culture: using the Family Environment Scale. Fam Process. 1996;35(2):239-57.
- 22. Skinner HA, Steinhauer PD, Santa-Barbara J. The family assessment measure. Can J Commun Ment Health. 1983;2(2):91-105.
- 23. Sudbrack MF. Terapia familiar sistêmica. In: Seibel SD, Toscano Jr. A. Dependência de drogas. São Paulo: Atheneu; 2001. p. 403-16.
- 24. Wagner A, Bornholdt EA, Halpern SC. Configuração e estrutura familiar: um estudo comparativo entre famílias originais e reconstituídas. Psico (Porto Alegre). 1999;30(2):63-73.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Maio 2007 -
Data do Fascículo
Jun 2007
Histórico
-
Aceito
29 Out 2006 -
Revisado
23 Out 2006 -
Recebido
08 Ago 2006