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Preditores de dismorfia muscular em homens brasileiros de minoria sexual e de gênero

Muscle dysmorphia predictors among sexual and gender minority Brazilian men

RESUMO

Objetivos

Avaliar preditores de dismorfia muscular em homens brasileiros de minoria sexual e de gênero e descrever normas comunitárias para o Muscle Dysmorphic Disorder Inventory (MDDI), instrumento de avaliação de sinais e sintomas de dismorfia muscular.

Métodos

Trata-se de estudo transversal realizado com 1.444 homens brasileiros de minoria sexual e de gênero, com idade entre 18 e 50 anos. Por meio de uma pesquisa on-line , os participantes responderam a um questionário sociodemográfico, assim como medidas para avaliação dos sintomas de dismorfia muscular, busca pela muscularidade, internalização da aparência ideal e auto-objetificação. Foram realizadas análises descritivas e de correlação ( rho de Spearman) entre as variáveis do estudo, bem como uma análise de regressão linear múltipla ( stepwise forward ) para avaliar preditores de dismorfia muscular.

Resultados

Associação positiva e significante, de grande magnitude, foi observada entre os sintomas de dismorfia muscular, busca pela muscularidade, internalização da aparência ideal e auto-objetificação. Regressão linear múltipla demonstrou que todas essas variáveis são preditoras dos sintomas de dismorfia muscular em homens brasileiros de minoria sexual e de gênero.

Conclusões

Homens brasileiros de minoria sexual e de gênero apresentaram elevado risco para dismorfia muscular. Sintomas de dismorfia muscular estiveram associados com a busca pela muscularidade, internalização da aparência ideal e auto-objetificação, demonstrando que elas são preditoras de dismorfia muscular. Intervenções devem ser direcionadas a essa população, considerando a necessidade de criar estratégias de redução de sintomas de dismorfia muscular, da busca pela muscularidade, da internalização da aparência ideal e da auto-objetificação.

Transtornos dismórficos corporais; homens; minorias sexuais e de gênero; imagem corporal

ABSTRACT

Objectives

To evaluate predictors of muscle dysmorphia in sexual and gender minority Brazilian men and to describe community norms for the Muscle Dysmorphic Disorder Inventory (MDDI), an instrument for assessing muscle dysmorphia symptoms.

Methods

This cross-sectional study was carried out with 1.444 sexual and gender minority Brazilian men, with ages between 18 and 50 years. By means of an on-line survey the participants answered a sociodemographic questionnaire, as well as muscle dysmorphia symptoms, drive for muscularity, appearance-ideal internalization, and self-objectification measures. Descriptive and correlation (Spearman’s rho ) analysis were performed among the study variables, in addition to a multiple linear regression analysis (stepwise forward) to evaluate predictors of muscle dysmorphia.

Results

A positive and significant association of large magnitude was observed among muscle dysmorphia symptoms, drive for muscularity, appearance-ideal internalization, and self-objectification. Multiple linear regression showed that all these variables are predictors of muscle dysmorphia symptoms in sexual and gender minority Brazilian men.

Conclusions

Sexual and gender minority Brazilian men present high risk for muscle dysmorphia. Muscle dysmorphia symptoms were associated with drive for muscularity, appearance-ideal internalization, and self-objectification, showing that they are predictors of muscle dysmorphia. Interventions should target this population, considering the need to create strategies to reduce muscle dysmorphia symptoms, the drive for muscularity, appearance-ideal internalization, and self-objectification.

Body dysmorphic disorders; men; sexual and gender minorities; body image

INTRODUÇÃO

Homens de minoria sexual (isto é, homens que têm atração afetivo-sexual por indivíduos do mesmo gênero ou gêneros diversos) e de gênero (isto é, homens que se identificam com um gênero oposto ao designado em seu nascimento) apresentam elevados escores de insatisfação corporal, em comparação aos homens heterossexuais 11. Frederick DA , Essayli JH . Male body image: The roles of sexual orientation and body mass index across five national U.S. studies . Psychol Men Masculin . 2016 ; 17 ( 4 ): 336 - 51 . . A literatura indica ainda elevada incidência e prevalência de sinais e sintomas de dismorfia muscular 22. Nagata JM , Compte EJ , McGuire FH , Lavender JM , Brown TA , Murray SB , et al . Community norms of the Muscle Dysmorphic Disorder Inventory (MDDI) among gender minority populations . Body Image . 2021 ; 9 ( 87 ): 1 - 10 . em homens de minoria sexual e de gênero, psicopatologia na qual o indivíduo acredita ser pequeno ou fraco, quando, na verdade, é forte e musculoso 33. American Psychiatric Association . Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders . 5 th ed. Washington, DC : American Psychiatric Association ; 2013 . . Um estudo recente tem evidenciado que esses dados estão associados a alguns fatores estressores vivenciados por essa população, como o assédio e a discriminação, bem como as pressões (sub)culturais para alcançar uma aparência ideal dentro da comunidade Lésbica, Gay , Bissexual, Transsexual, Queer , Intersexual, Assexual, Pansexual e demais orientações afetivo-sexuais e identidades de gênero (LGBTQIAP+) 44. Convertino AD , Helm JL , Pennesi JL , Gonzales M , Blashill AJ . Integrating minority stress theory and the tripartite influence model: A model of eating disordered behavior in sexual minority young adults . Appetite . 2021 ; 163 : 105 - 204 . .

Duas perspectivas teóricas se destacam por elucidarem fatores relacionados ao desenvolvimento de distúrbios de imagem corporal em homens de minoria sexual e de gênero, a saber: a teoria de objetificação sexual 55. Fredrickson BL , Roberts TA . Objectification theory: Toward understanding women’s lived experiences and mental health risks . Psychol Women Quart . 1997 ; 21 ( 2 ): 173 - 206 . e a teoria sociocultural 66. Thompson JK , Heinberg LJ , Altabe M , Tantleff-Dunn S . Exacting beauty: Theory, assessment, and treatment of body image disturbance . Washington, DC : American Psychological Association ; 1999 . . Por exemplo, estudo populacional (n = 11.620) conduzido nos Estados Unidos da América (EUA) identificou que homens gays apresentaram maiores escores de vigilância e monitoramento corporal, assim como pressões socioculturais relacionadas à aparência (isto é, pressões da mídia e dos pares), internalização da aparência ideal, comparação social e auto-objetificação, em comparação aos homens heterossexuais 77. Frederick DA , Pila E , Malcarne VL , Compte EJ , Nagata JM , Best CR , et al . Demographic predictors of objectification theory and tripartite influence model constructs: The U.S. Body Project I . Body Image . 2022 ; 40 : 182 - 99 . . Realmente, em homens de minoria sexual e de gênero, a internalização da aparência ideal 88. Amodeo AL , Esposito C , Antuoni S , Saracco G , Bacchini D . Muscle dysmorphia: what about transgender people? Cult Health Sex. 2022 ;24(1):63-78. , a auto-objetificação 99. Santos CG. Avaliação psicométrica da Drive for Muscularity Scale e do Muscle Dysmorphic Disorder Inventory entre homens adultos cisgênero gays e bissexuais brasileiros. Juiz de Fora [Dissertação – Mestrado em Educação Física]. Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora; 2023 . e a busca pela muscularidade 1010. Tod D, Edwards C, Cranswick I. Muscle dysmorphia: current insights. Psychol Res Behav Manag. 2016 ;9:179-88. têm apresentado uma associação positiva e significante com os sinais e sintomas de dismorfia muscular.

Nesse contexto, estudos conduzidos com homens de minoria sexual e de gênero têm estabelecido normas comunitárias para o Muscle Dysmorphic Disorder Inventory (MDDI) 22. Nagata JM , Compte EJ , McGuire FH , Lavender JM , Brown TA , Murray SB , et al . Community norms of the Muscle Dysmorphic Disorder Inventory (MDDI) among gender minority populations . Body Image . 2021 ; 9 ( 87 ): 1 - 10 . , 1111. Nagata JM, Compte EJ, Cattle CJ, Lavender JM, Brown TA, Murray SB, et al. Community norms of the Muscle Dysmorphic Disorder Inventory (MDDI) among cisgender sexual minority men and women. BMC Psychiatry. 2021 ;21(297):1-9. , principal instrumento para avaliação dos sintomas cognitivos, afetivos e comportamentais da dismorfia muscular 1212. Hildebrandt T, Langenbucher J, Schlundt DG. Muscularity concerns among men: Development of attitudinal and perceptual measures. Body Image. 2004 ;1(2):169-81. . Esses estudos têm identificado elevados escores de dismorfia muscular (avaliado pelo escore total do MDDI), bem como para as subescalas do instrumento, a saber: Drive for Size (DFS), Functional Impairment (FI) e Appearance Intolerance (AI). Utilizando ponto de corte sugerido pela literatura para o escore total do MDDI (escores > 39) 1313. Zeek A, Welter V, Alatas H, Hildebrandt T, Lahmann C, Hartmann A. Muscle Dysmorphic Disorder Inventory (MDDI): Validation of a German version with a focus on gender. PLoS One. 2018 ;13(11):e0207535. , homens de minoria sexual e de gênero apresentam risco elevado para o desenvolvimento de dismorfia muscular (isto é, variando de 6,5% a 14,7%) 1111. Nagata JM, Compte EJ, Cattle CJ, Lavender JM, Brown TA, Murray SB, et al. Community norms of the Muscle Dysmorphic Disorder Inventory (MDDI) among cisgender sexual minority men and women. BMC Psychiatry. 2021 ;21(297):1-9. , 1414. Fabris MA, Longobardi C, Badenes-Ribera L, Settanni M. Prevalence and co-occurrence of different types of body dysmorphic disorder among men having sex with men. J Homosexual. 2022 ;69(1):132-44. .

Os indivíduos que apresentam risco elevado para o desenvolvimento de dismorfia muscular tendem a adotar atitudes e comportamentos insalubres e/ou compensatórios de busca pela muscularidade, como, por exemplo, a prática excessiva de exercícios físicos (mesmo na presença de dores, lesões ou fadiga) e o uso e/ou abuso de suplementos alimentares e esteroides anabolizantes androgênicos 77. Frederick DA , Pila E , Malcarne VL , Compte EJ , Nagata JM , Best CR , et al . Demographic predictors of objectification theory and tripartite influence model constructs: The U.S. Body Project I . Body Image . 2022 ; 40 : 182 - 99 . , 1515. Nagata JM, Ganson KT, Austin SB. Emerging trends in eating disorders among sexual and gender minorities. Curr Opin Psychiatr. 2020 ;33(6):562-7. , 1616. Nagata JM, McGuire FH, Lavender JM, Brown TA, Murray SB, Greene RE, et al. Appearance and performance-enhancing drugs and supplements, eating disorders, and muscle dysmorphia among gender minority people. Int J Eat Disord. 2022 ;55(5):678-87. . De fato, homens gays apresentam uso elevado de suplementos alimentares e esteroides anabolizantes androgênicos, o que tem sido associado a maior sintomatologia de dismorfia muscular, em comparação aos homens heterossexuais 1616. Nagata JM, McGuire FH, Lavender JM, Brown TA, Murray SB, Greene RE, et al. Appearance and performance-enhancing drugs and supplements, eating disorders, and muscle dysmorphia among gender minority people. Int J Eat Disord. 2022 ;55(5):678-87. . Esse aspecto pode ser ainda mais preocupante em homens transgênero (isto é, homens que foram designados ao sexo feminino quando nasceram, mas identificam-se como do gênero masculino) que apresentam disforia de gênero, pois a associação dessas crenças com os sinais e sintomas de dismorfia muscular pode fomentar o uso elevado de esteroides anabolizantes androgênicos como recurso para reafirmação do gênero masculino 1515. Nagata JM, Ganson KT, Austin SB. Emerging trends in eating disorders among sexual and gender minorities. Curr Opin Psychiatr. 2020 ;33(6):562-7. .

No contexto brasileiro, até o presente momento, não se tem conhecimento de nenhum estudo que tenha buscado avaliar sinais e sintomas de dismorfia muscular e seus fatores preditores em homens de minoria sexual e de gênero. Contudo, essa deve ser uma preocupação emergente, visto que homens brasileiros de minoria sexual e de gênero demonstram maior prevalência de problemas de saúde mental e maior demanda por serviços dessa natureza, comparados aos homens heterossexuais 1717. Ghorayeb DB, Dalgalarrondo P. Homosexuality: Mental health and quality of life in a Brazilian socio-cultural context. Int J Soc Psychiatr. 2011 ;57(5):496-500. . Ademais, minorias sexuais e de gênero do Brasil têm sofrido considerável discriminação e violência, com dados do Grupo Gay da Bahia (organização não governamental voltada para a defesa dos direitos de minorias sexuais e de gênero do Brasil) relatando que mais de 537 vítimas foram mortas por crimes de ódio em 2021 1818. Oliveira JMD, Mott L. Mortes violentas de LGBT+ no Brasil: relatório 2021. 1ª ed. Salvador: Grupo Gay da Bahia; 2021. .

Existe ainda uma carência de dados normativos (distribuição de escores do instrumento MDDI) para avaliação dos sinais e sintomas de dismorfia muscular na população brasileira, incluindo populações de alto risco, como homens de minoria sexual e de gênero. Adicionalmente, não está claro quais construtos podem contribuir para o desenvolvimento de sinais e sintomas de dismorfia muscular nessa população. Destaca-se que a ausência desses dados e informações pode impactar a prevenção, o diagnóstico e/ou o tratamento da dismorfia muscular. Não obstante, a ausência dessas informações pode aumentar a “desinformação” e, consequentemente, o preconceito, a discriminação e a estigmatização, já experenciados por minorias sexuais e de gênero nos diversos níveis de atenção à saúde 1919. Brooks H, Llewellyn CD, Nadarzynski T, Pelloso FC, Guilherme FS, Pollard A, et al. Sexual orientation disclosure in health care: a systematic review. Brit J Gen Pract. 2018 ;68(668):e187-96. . Destaca-se que os processos de estigmatização, discriminação e patologização voltados a identidades de gênero e orientação afetivo-sexual dissidentes dos padrões cis e heteronormativos se configuram como os principais determinantes dos agravos à saúde física e mental da população LGBTQIAP+ 2020. Costa AB, Rosa Filho HT, Pase PF, Fontanari AMV, Catelan RF, Mueller A, et al. Healthcare needs of and access barriers for Brazilian transgender and gender diverse people. J Immigr Minor Healt. 2018 ;20(1):115-23. , incluindo sinais e sintomas de dismorfia muscular 2121. Oshana A, Klimek P, Blashill AJ. Minority stress and body dysmorphic disorder symptoms among sexual minority adolescents and adult men. Body Image. 2020 ;34:167-74. .

Compreendendo a escassez de estudos dessa natureza no contexto nacional, bem como reconhecendo o fato de que homens de minoria sexual e gênero podem apresentar particularidades em relação aos sinais e sintomas de dismorfia muscular, os objetivos do presente estudo foram: (a) descrever os sintomas de dismorfia muscular, assim como as normas para a comunidade de homens brasileiros de minoria sexual e de gênero; (b) examinar a correlação dos sintomas de dismorfia muscular com medidas de busca pela muscularidade, internalização da aparência ideal e auto-objetificação; e (c) avaliar se a busca pela muscularidade, a internalização da aparência ideal e a auto-objetificação são variáveis preditoras dos sintomas de dismorfia muscular em uma amostra de homens brasileiros de minoria sexual e de gênero. Consistente com estudos prévios 22. Nagata JM , Compte EJ , McGuire FH , Lavender JM , Brown TA , Murray SB , et al . Community norms of the Muscle Dysmorphic Disorder Inventory (MDDI) among gender minority populations . Body Image . 2021 ; 9 ( 87 ): 1 - 10 . , 1111. Nagata JM, Compte EJ, Cattle CJ, Lavender JM, Brown TA, Murray SB, et al. Community norms of the Muscle Dysmorphic Disorder Inventory (MDDI) among cisgender sexual minority men and women. BMC Psychiatry. 2021 ;21(297):1-9. , foram criadas as seguintes hipóteses: (a) homens brasileiros de minoria sexual e de gênero apresentarão um risco elevado para o desenvolvimento de dismorfia muscular, considerando o ponto de corte > 39 pontos no MDDI; (b) os sintomas de dismorfia muscular apresentarão correlação positiva e significante com a busca pela muscularidade, internalização da aparência ideal e auto-objetificação; e (c) as variáveis de busca pela muscularidade, internalização da aparência ideal e auto-objetificação serão preditoras dos sinais e sintomas de dismorfia muscular, em uma amostra de homens brasileiros de minoria sexual e de gênero.

MÉTODOS

Desenho do estudo e aspectos éticos

Trata-se de um estudo transversal 2222. Lakatos EM, Marconi MA. Fundamentos de Metodologia Científica. 9ª ed. São Paulo: Atlas; 2021 . , aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Universidade Federal de Juiz de Fora, com o número de registro 44553021.8.0000.5147 e parecer de aprovação nº 4.690.224. Todos os procedimentos estão de acordo com a Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde e a Declaração de Helsinki.

Participantes

Foram convidados a participar homens brasileiros de minoria sexual e de gênero. Os critérios de inclusão foram: (a) ser cidadão brasileiro; (b) autoidentificar seu sexo (biológico) como masculino; (c) autoidentificar sua orientação afetivo-sexual como qualquer outra que não a heterossexual; (d) ter idade entre 18 e 50 anos; e (d) ter capacidade de ler e responder a um questionário escrito em língua portuguesa (Brasil). Os critérios de exclusão foram: (a) ter qualquer condição médica autorreferida que possa influenciar direta ou indiretamente a aparência física, incluindo doenças reumáticas ou autoimunes, câncer ou queimaduras graves; (b) participantes que, mesmo tendo assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), tenham solicitado expressamente a não utilização de seus dados; e (c) participantes que tenham deixado mais do que 80% do protocolo de coleta em branco.

Procedimentos

Após a aprovação ética, os homens foram convidados a participar da pesquisa por meio de redes sociais (Facebook ® , Instagram ® e LinkedIn ® ), de agosto a dezembro de 2021. A pesquisa foi divulgada em perfis, grupos e comunidades específicos(as) da cultura LGBTQIAP+. Em especial, foco foi dado nas comunidades do Facebook ®: “LDRV”, “LGBT Brasil”, “Nação LGBT”, “Resistência LGBT”, “LGBTQI+ Resistência pela Democracia!” e “LGBT Brasília”. Os convites incluíam os objetivos e procedimentos da pesquisa, bem como um link que direcionava os participantes para um protocolo on-line de coleta de dados, via Google Forms . Inicialmente, os participantes tiveram acesso a uma versão digital do TCLE, no qual deram sua anuência em participar da pesquisa. Logo após, foram direcionados aos demais instrumentos do estudo (listados abaixo). Importa destacar que os instrumentos foram aleatorizados para controlar possíveis efeitos de ordem.

Instrumentos

Questionário sociodemográfico

As informações sociodemográficas dos participantes foram autorrelatadas e incluíram as seguintes questões: (a) idade (anos), (b) raça, cor e/ou etnia, (c) identidade de gênero, (d) orientação afetivo-sexual, (e) estado civil, (f) massa corporal (quilogramas [kg]), (g) estatura (metros [m]), (h) se é estudante universitário, (i) classe socioeconômica, por meio do Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB) 2323. Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa. Alterações na aplicação do Critério Brasil, válidas a partir de 01/06/2021. Disponível em: https://www.abep.org/criterioBr/01_cceb_2021.pdf . Acesso em: 23 set. 2022 .
https://www.abep.org/criterioBr/01_cceb_...
, e (j) presença de condição médica, incluindo doenças reumáticas ou autoimunes, câncer ou queimaduras graves. O índice de massa corporal (IMC) foi calculado por meio da massa corporal dividida pela estatura ao quadrado (kg/m 2 ) 2424. WHO Expert Committee. Physical Status: the use and interpretation of anthropometry. WHO Technical Report Series nº 854. Geneva: WHO; 1995 . . Em relação ao CCEB, os participantes foram classificados nas seguintes classes econômicas: A (45-100 pontos), B1 (38-44 pontos), B2 (29-37 pontos), C1 (23-28 pontos), C2 (17-22 pontos) e D/E (0-16 pontos) 2323. Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa. Alterações na aplicação do Critério Brasil, válidas a partir de 01/06/2021. Disponível em: https://www.abep.org/criterioBr/01_cceb_2021.pdf . Acesso em: 23 set. 2022 .
https://www.abep.org/criterioBr/01_cceb_...
.

Muscle Dysmorphic Disorder Inventory (MDDI)

O MDDI é um instrumento de autorrelato composto por 13 itens desenvolvidos para avaliar os principais sintomas afetivos, cognitivos e comportamentais associados à dismorfia muscular 1212. Hildebrandt T, Langenbucher J, Schlundt DG. Muscularity concerns among men: Development of attitudinal and perceptual measures. Body Image. 2004 ;1(2):169-81. . A estrutura fatorial do MDDI é composta por três subescalas, sendo: DFS (itens 1, 4, 5, 6 e 8), FI (itens 10, 11, 12 e 13) e AI (itens 2, 3, 7 e 9) 1212. Hildebrandt T, Langenbucher J, Schlundt DG. Muscularity concerns among men: Development of attitudinal and perceptual measures. Body Image. 2004 ;1(2):169-81. . Os itens do instrumento são respondidos em uma escala do tipo Likert de cinco pontos (1 = nunca a 5 = sempre). O escore das subescalas é obtido com base na soma dos itens que a compõem, de modo que o escore total é obtido por meio da soma de todos os itens do instrumento, podendo variar de 13 a 65 1212. Hildebrandt T, Langenbucher J, Schlundt DG. Muscularity concerns among men: Development of attitudinal and perceptual measures. Body Image. 2004 ;1(2):169-81. . Escores superiores a 39 pontos indicam um risco elevado para o desenvolvimento de dismorfia muscular 1313. Zeek A, Welter V, Alatas H, Hildebrandt T, Lahmann C, Hartmann A. Muscle Dysmorphic Disorder Inventory (MDDI): Validation of a German version with a focus on gender. PLoS One. 2018 ;13(11):e0207535. . A versão brasileira do MDDI foi utilizada no presente estudo 2525. Gomes VMGM, Compte EJ, Almeida M, Campos PF, Queiroz ACC, Pereira LF, et al. Psychometric properties of the Muscle Dysmorphic Disorder Inventory among physically active Brazilian college men. Psychol Men Masculin. 2020 ;21(4):622-31. . Na presente amostra, o MDDI total (alfa de Cronbach [α] = 0,72 [IC 95% = 0,70-0,74]) e as subescalas DFS (α = 0,84 [IC 95% = 0,83-0,85]), AI (α = 0,80 [IC 95% = 0,78-0,82]) e FI (α = 0,78 [IC 95% = 0,76-0,79]) apresentaram adequada consistência interna.

Drive for Muscularity Scale (DMS)

A DMS é uma escala de autorrelato constituída por 15 itens destinados à avaliação das atitudes e comportamentos de busca pela muscularidade 2626. McCreary DR, Sasse DK. An exploration of the drive for muscularity in adolescent boys and girls. J Am Coll Health. 2000 ;48(6):297-304. . Os itens são pontuados em uma escala do tipo Likert de seis pontos (1 = sempre a 6 = nunca). A versão brasileira da DMS p-ossui 12 itens e foi utilizada no presente estudo 2727. Campana ANNB, Tavares MCGCF, Swami V, Silva D. An examination of the psychometric properties of Brazilian Portuguese translations of the Drive for Muscularity Scale, the Swansea Muscularity Attitudes Questionnaire, and the Masculine Body Ideal Distress Scale. Psychol Men Masculin. 2013 ;14(4):376-88. . Nessa versão, o escore total da DMS pode variar de 12 a 72, de modo que quanto maior a pontuação, maior a busca pela muscularidade 2727. Campana ANNB, Tavares MCGCF, Swami V, Silva D. An examination of the psychometric properties of Brazilian Portuguese translations of the Drive for Muscularity Scale, the Swansea Muscularity Attitudes Questionnaire, and the Masculine Body Ideal Distress Scale. Psychol Men Masculin. 2013 ;14(4):376-88. . Destaca-se que todos os itens foram revertidos para calcular o escore total da medida 2727. Campana ANNB, Tavares MCGCF, Swami V, Silva D. An examination of the psychometric properties of Brazilian Portuguese translations of the Drive for Muscularity Scale, the Swansea Muscularity Attitudes Questionnaire, and the Masculine Body Ideal Distress Scale. Psychol Men Masculin. 2013 ;14(4):376-88. . Entre os participantes do presente estudo, a DMS apresentou adequada consistência interna (α = 0,89 [IC 95% = 0,89-0,90]).

Sociocultural Attitudes Towards Appearance Questionnaire-4 Revised (SATAQ-4R)

O SATAQ-4R, em sua versão masculina, é uma medida de autorrelato que contém 28 itens desenvolvidos para avaliar a internalização da aparência ideal e as pressões socioculturais relacionadas à aparência 2828. Schaefer LM, Harriger JA, Heinberg LL, Soderberg T, Thompson JK. Development and validation of the Sociocultural Attitudes Towards Appearance Questionnaire-4 Revised (SATAQ-4R). Int J Eat Disord. 2017 ;50(2):104-17. . Os itens pertinentes à internalização da aparência ideal da versão brasileira da SATAQ-4R foram utilizados no presente estudo 2929. Claumann GS. Tradução e Validação das Versões Brasileiras de Três Instrumentos de Avaliação da Imagem Corporal em Mulheres Universitárias. Florianópolis [Tese – Doutorado em Ciências do Movimento Humano]. Florianópolis: Universidade do Estado de Santa Catarina; 2019 . . Os itens são pontuados em uma escala do tipo Likert de cinco pontos (1 = discordo totalmente a 5 = concordo totalmente). A pontuação total é calculada pela média dos valores obtidos para os itens, podendo variar, portanto, de 1 a 5. Altas pontuações são indicativas de maior internalização da aparência ideal. Ressalta-se que dois itens (itens #6 e #7) possuem escore reverso. Na presente amostra, a internalização da aparência ideal avaliada pelos itens da SATAQ-4R obteve adequada consistência interna (α = 0,80 [IC 95% = 0,78-0,82]).

Self-Objectification Beliefs and Behaviors Scale (SOBBS)

A SOBBS é uma medida de autorrelato composta por 14 itens destinados à avaliação das crenças e comportamentos de auto-objetificação 3030. Lindner D, Tantleff-Dunn S. The development and psychometric evaluation of the Self-Objectification Beliefs and Behaviors Scale. Psychol Women Quart. 2017 ;41(2):254-72. . Os itens são respondidos em uma escala do tipo Likert de cinco pontos (1 = discordo totalmente a 5 = concordo totalmente). A versão brasileira da SOBBS foi utilizada no presente estudo 2929. Claumann GS. Tradução e Validação das Versões Brasileiras de Três Instrumentos de Avaliação da Imagem Corporal em Mulheres Universitárias. Florianópolis [Tese – Doutorado em Ciências do Movimento Humano]. Florianópolis: Universidade do Estado de Santa Catarina; 2019 . . A pontuação total é calculada pela média dos itens da escala, podendo variar de 1 a 5. Elevados escores são indicativos de maiores crenças e comportamentos de auto-objetificação 2929. Claumann GS. Tradução e Validação das Versões Brasileiras de Três Instrumentos de Avaliação da Imagem Corporal em Mulheres Universitárias. Florianópolis [Tese – Doutorado em Ciências do Movimento Humano]. Florianópolis: Universidade do Estado de Santa Catarina; 2019 . . No presente estudo, a SOBBS demonstrou ótima consistência interna (α = 0,92 [IC 95% = 0,91-0,93]).

Análise dos dados

Inicialmente, os participantes que apresentaram > 80% de dados ausentes ao nível dos instrumentos de medida foram deletados listwise 3131. Parent MC. Handling item-level missing data: Simpler is just as good. Couns Psychol. 2013 ;41(4):568-600. . Ademais, o teste de Little (1988) foi utilizado para avaliar se os demais dados ausentes nos itens dos instrumentos eram consistentes com missing completely at random (MCAR). Nesse caso, os dados ausentes foram imputados pelo método de expectation maximization 3131. Parent MC. Handling item-level missing data: Simpler is just as good. Couns Psychol. 2013 ;41(4):568-600. .

As variáveis contínuas e ordinais foram descritas pela média (M), mediana (Md), percentis, desvio-padrão (DP) e intervalo interquartil (IIQ). Ademais, as variáveis categóricas foram descritas pela frequência relativa e absoluta. Possíveis outliers ao nível dos instrumentos foram avaliados por meio da inspeção visual do boxplot . O teste Shapiro-Wilk indicou que os dados apresentaram uma distribuição não paramétrica; assim, testes não paramétricos foram realizados.

Para avaliar a associação entre as variáveis, foi utilizado o coeficiente de correlação de Spearman (rho). Seguindo as recomendações de Cohen 3232. Cohen J. Quantitative methods in psychology: A power primer. Psychol Bull. 1992 ;112(1):155-9. , correlações entre 0,10-0,29, 0,30-0,49 e acima de 0,50 foram consideradas pequena, moderada e grande, respectivamente.

Posteriormente, foi conduzida análise de regressão linear múltipla ( stepwise forward ) a fim de investigar se as variáveis de internalização da aparência ideal (SATAQ-4R), busca pela muscularidade (DMS) e auto-objetificação (SOBBS) são potenciais preditoras dos sinais e sintomas de dismorfia muscular (avaliada pelo MDDI) em homens brasileiros de minoria sexual e de gênero. A entrada das variáveis preditoras no modelo aconteceu por etapas, levando em consideração a magnitude das correlações (rho) encontradas com a variável dependente (MDDI), em uma ordem decrescente. Ademais, diferentes ordens de entrada foram testadas com base no coeficiente de determinação (R 22. Nagata JM , Compte EJ , McGuire FH , Lavender JM , Brown TA , Murray SB , et al . Community norms of the Muscle Dysmorphic Disorder Inventory (MDDI) among gender minority populations . Body Image . 2021 ; 9 ( 87 ): 1 - 10 . ) ajustado de cada variável preditora, buscando identificar o modelo mais parcimonioso 3333. Marôco J. Análise de Equações Estruturais: Fundamentos teóricos, softwares & aplicações. 2ª ed. Pêro Pinheiro: Report Number; 2014 . . O pressuposto de multicolinearidade foi avaliado por meio do Variance Inflation Factor (VIF), de modo que valores ≤ 5 foram considerados adequados 3333. Marôco J. Análise de Equações Estruturais: Fundamentos teóricos, softwares & aplicações. 2ª ed. Pêro Pinheiro: Report Number; 2014 . . Devido à distribuição não paramétrica dos dados, foi utilizado o bootstrapping de 5.000 reamostragens 3434. Özkale MR, Altuner H. Bootstrap confidence interval of ridge regression in linear regression model: A comparative study via a simulation study. Commun Stat - Theor M. 2022:1-37. .

A confiabilidade de todas as medidas foi avaliada pelo coeficiente α de Cronbach. Valores superiores a 0,70 foram considerados adequados 3535. Hair Jr F, Black WC, Babin BJ, Anderson RE. Multivariate data analysis. 7th ed. Upper Saddle River: Prentice Hall; 2009 . . Para todas as análises, foi utilizado o software JASP versão 0.16.3 (Equipe JASP, Universidade de Amsterdã, Holanda) e o nível de significância de 5%.

RESULTADOS

Inicialmente, 12 participantes apresentaram mais de 80% de dados ausentes e foram excluídos listwise 3131. Parent MC. Handling item-level missing data: Simpler is just as good. Couns Psychol. 2013 ;41(4):568-600. . Em seguida, o teste de Little (1988) demonstrou que os dados ausentes ao nível dos itens para o MDDI (n = 75, 0,38%; χ 2 [172] = 216,98, p = 0,07), DMS (n = 88, 0,39%; χ 2 [356] = 326,49, p = 0,87), SATAQ-4R (n = 44, 0,36%; χ 2 [245] = 225,89, p = 0,80) e SOBBS (n = 26, 0,12%; χ 2 [153] = 128,88, p = 0,92) foram consistentes com MCAR. Assim, os dados ausentes foram imputados pelo método de expectation maximization 3131. Parent MC. Handling item-level missing data: Simpler is just as good. Couns Psychol. 2013 ;41(4):568-600. . Por fim, 68 outliers ao nível dos instrumentos foram identificados e excluídos.

A amostra final foi composta por 1.444 homens brasileiros de minoria sexual e de gênero. A média de idade dos participantes foi de 26,94 anos ( DP = 5,60); já o IMC variou de 12,24 a 52,52 kg/m 2 ( M = 25,96; DP = 5,32). As informações sociodemográficas podem ser visualizadas na Tabela 1. Observa-se que a maior parte dos participantes autorrelatou ser da cor/raça branca, assim como autoidentificou sua orientação afetivo-sexual e identidade de gênero como homossexual e cisgênero, respectivamente. Não obstante, grande parte dos participantes relatou pertencer ao estado civil solteiro, não ser estudante universitário, bem como integrar a classe econômica B2. Um total de 251 participantes (17,4%) apresentou risco elevado para o desenvolvimento de dismorfia muscular. Finalmente, as normas comunitárias para o escore total do MDDI, assim como das subescalas DFS, AI e FI, podem ser visualizadas naTabela 2. É possível observar que uma parte substancial da amostra apresenta escore elevado para dismorfia muscular.

Tabela 1
Características sociodemográficas de homens brasileiros de minoria sexual e de gênero
Tabela 2
Média, desvio-padrão, mediana, intervalo interquartil e percentis do Muscle Dysmorphic Disorder Inventory entre homens brasileiros de minoria sexual e de gênero

A correlação bivariada entre todas as variáveis do estudo pode ser visualizada na Tabela 3. Evidencia-se que o escore total do MDDI apresentou uma associação positiva e significante, de grande magnitude, com os escores da DMS, SATAQ-4R e SOBBS.

Tabela 3
Correlação bivariada entre variáveis do estudo

Os resultados da análise de regressão linear múltipla ( stepwise forward ) podem ser visualizados na Tabela 4. A magnitude das correlações foi utilizada para construção do modelo teórico; contudo, identificou-se que melhor parcimônia foi encontrada invertendo-se a ordem das variáveis de auto-objetificação (SOBBS) e internalização da aparência ideal (SATAQ-4R). Todas as variáveis inseridas no modelo obtiveram um VIF ≤ 2,12, sendo incluídas na análise de regressão. O modelo identificado inclui todas as variáveis previsoras avaliadas (busca pela muscularidade, auto-objetificação e internalização do ideal de aparência) e exibe um potencial de explicar 58,3% da variância observada nos escores de dismorfia muscular (avaliada pelo MDDI).

Tabela 4
Análise de regressão linear múltipla (forward stepwise) utilizando o Muscle Dysmorphic Disorder Inventory como variável dependente entre homens brasileiros de minoria sexual e de gênero

DISCUSSÃO

Embora homens de minoria sexual e de gênero apresentem maior incidência e prevalência de sinais e sintomas de dismorfia muscular, comparados aos homens heterossexuais 11. Frederick DA , Essayli JH . Male body image: The roles of sexual orientation and body mass index across five national U.S. studies . Psychol Men Masculin . 2016 ; 17 ( 4 ): 336 - 51 . , 77. Frederick DA , Pila E , Malcarne VL , Compte EJ , Nagata JM , Best CR , et al . Demographic predictors of objectification theory and tripartite influence model constructs: The U.S. Body Project I . Body Image . 2022 ; 40 : 182 - 99 . , essa população continua sendo negligenciada nas publicações sobre essa temática 22. Nagata JM , Compte EJ , McGuire FH , Lavender JM , Brown TA , Murray SB , et al . Community norms of the Muscle Dysmorphic Disorder Inventory (MDDI) among gender minority populations . Body Image . 2021 ; 9 ( 87 ): 1 - 10 . , 1111. Nagata JM, Compte EJ, Cattle CJ, Lavender JM, Brown TA, Murray SB, et al. Community norms of the Muscle Dysmorphic Disorder Inventory (MDDI) among cisgender sexual minority men and women. BMC Psychiatry. 2021 ;21(297):1-9. . Nosso estudo forneceu as primeiras normas comunitárias para o MDDI, instrumento de avaliação de sinais e sintomas de dismorfia muscular, em uma amostra de homens brasileiros de minoria sexual e de gênero. Ademais, demonstrou que existe elevado risco para o desenvolvimento de dismorfia muscular em homens brasileiros de minoria sexual e de gênero, bem como associação dos sintomas de dismorfia muscular com a busca pela muscularidade, internalização da aparência ideal e auto-objetificação.

Confirmando nossa primeira hipótese, observou-se que homens brasileiros de minoria sexual e de gênero apresentam risco elevado para o desenvolvimento de dismorfia muscular. A frequência de risco para dismorfia muscular em homens brasileiros de minoria sexual e de gênero observada no presente estudo é superior àquela encontrada em estudos prévios com homens de minoria sexual e de gênero dos EUA e Itália, nos quais a frequência de risco variou de 6,5% a 14,7% 22. Nagata JM , Compte EJ , McGuire FH , Lavender JM , Brown TA , Murray SB , et al . Community norms of the Muscle Dysmorphic Disorder Inventory (MDDI) among gender minority populations . Body Image . 2021 ; 9 ( 87 ): 1 - 10 . , 1414. Fabris MA, Longobardi C, Badenes-Ribera L, Settanni M. Prevalence and co-occurrence of different types of body dysmorphic disorder among men having sex with men. J Homosexual. 2022 ;69(1):132-44. .

A segunda hipótese do estudo também foi confirmada. Os sintomas de dismorfia muscular em homens de minoria sexual e de gênero apresentaram correlação positiva e significante com a busca pela muscularidade, internalização da aparência ideal e auto-objetificação. Esses resultados estão de acordo com estudos prévios desenvolvidos com a população de minorias sexuais e de gênero 88. Amodeo AL , Esposito C , Antuoni S , Saracco G , Bacchini D . Muscle dysmorphia: what about transgender people? Cult Health Sex. 2022 ;24(1):63-78.

9. Santos CG. Avaliação psicométrica da Drive for Muscularity Scale e do Muscle Dysmorphic Disorder Inventory entre homens adultos cisgênero gays e bissexuais brasileiros. Juiz de Fora [Dissertação – Mestrado em Educação Física]. Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora; 2023 .
- 1010. Tod D, Edwards C, Cranswick I. Muscle dysmorphia: current insights. Psychol Res Behav Manag. 2016 ;9:179-88. .

Por fim, as variáveis de busca pela muscularidade, internalização da aparência ideal e auto-objetificação foram previsoras significantes dos sinais e sintomas de dismorfia muscular, o que confirma nossa terceira hipótese. Realmente, em homens cisgênero, independentemente da orientação afetivo-sexual, a internalização da aparência ideal e a busca pela muscularidade são mediadores centrais para o desenvolvimento de sinais e sintomas de dismorfia muscular 3636. Bégin C, Turcotte O, Rodrigue C. Psychosocial factors underlying symptoms of muscle dysmorphia in a non-clinical sample of men. Psychiat Res. 2019 ;272:319-25. , 3737. Klimek P, Murray SB, Brown T, Gonzales M, Blashill AJ. Thinness and muscularity internalization: Associations with disordered eating and muscle dysmorphia in men. Int J Eat Disord. 2018 ;51(4):352-7. . Nossos resultados corroboram esses achados e avançam ao destacar que, além dessas variáveis, para homens de minoria sexual e de gênero, a auto-objetificação é uma preditora significante para o desenvolvimento de sinais e sintomas de dismorfia muscular.

Em estudo populacional desenvolvido nos EUA (n = 11.620), homens gays apresentaram maiores escores de vigilância e monitoramento corporal, assim como pressões socioculturais relacionadas a aparência, internalização da aparência ideal, comparação social e auto-objetificação, em comparação aos homens heterossexuais e bissexuais 77. Frederick DA , Pila E , Malcarne VL , Compte EJ , Nagata JM , Best CR , et al . Demographic predictors of objectification theory and tripartite influence model constructs: The U.S. Body Project I . Body Image . 2022 ; 40 : 182 - 99 . . Assim, sugere-se que estudos futuros avaliem o papel mediador da internalização da aparência ideal, da busca pela muscularidade e da auto-objetificação no desenvolvimento e manutenção dos sinais e sintomas de dismorfia muscular em homens brasileiros de minoria sexual e de gênero. Essa deve ser uma preocupação emergente, visto que essa população tem demonstrado piores indicadores de saúde mental e maior demanda por serviços dessa natureza, quando comparada aos homens heterossexuais 1717. Ghorayeb DB, Dalgalarrondo P. Homosexuality: Mental health and quality of life in a Brazilian socio-cultural context. Int J Soc Psychiatr. 2011 ;57(5):496-500. .

O presente estudo é inédito e contribui para o campo de investigação sobre a dismorfia muscular em homens brasileiros de minoria sexual e de gênero, ao disponibilizar dados de grande proporção de uma amostra específica e pouco explorada na literatura nacional. Os resultados da presente pesquisa contribuem diretamente para o entendimento da etiologia, status nosológico, natureza, fatores predisponentes e precipitantes dos sinais e sintomas de dismorfia muscular em homens brasileiros de minoria sexual e de gênero.

Embora o presente estudo apresente uma série de contribuições, ele possui algumas limitações. Primeiro, a amostra do presente estudo foi composta, principalmente, por homens gays e bissexuais, o que pode limitar a generalização dos nossos achados. Segundo, foram utilizados instrumentos de autorrelato, o que pode incidir em viés de desejabilidade social dos respondentes. No entanto, essa é uma característica dos instrumentos de autorrelato. Ademais, todos os instrumentos apresentaram adequada consistência interna. Por fim, o presente estudo apresenta um delineamento transversal e não avalia o início e a duração dos sintomas de dismorfia muscular. Assim, recomenda-se que estudos futuros, com um delineamento prospectivo e longitudinal, avaliem os sintomas de dismorfia muscular em homens brasileiros de minoria sexual e de gênero.

CONCLUSÕES

Conclui-se que 17,4% dos homens brasileiros de minoria sexual e de gênero avaliados apresentam risco para o desenvolvimento de sintomas de dismorfia muscular. Sintomas de dismorfia muscular nessa população apresentaram associação positiva e significante, de grande magnitude, com as variáveis de busca pela muscularidade, internalização da aparência ideal e auto-objetificação. Por fim, essas variáveis foram preditoras dos sintomas de dismorfia muscular.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem à Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), pelo apoio financeiro à realização do trabalho. Agradecemos também aos membros do Núcleo Interprofissional de Estudos e Pesquisa em Imagem Corporal e Transtornos Alimentares (NICTA/CNPq), pelo apoio.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    14 Dez 2022
  • Aceito
    20 Jun 2023
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