Acessibilidade / Reportar erro

Múltiplos Benefícios da Reabilitação em Paciente com Insuficiências Cardíaca e Renal

Insuficiência cardíaca / reabilitação; Exercício; Insuficiência Renal / reabilitação; Terapia por Exercício

Introdução

A insuficiência cardíaca está associada à elevada mortalidade e à capacidade de exercício significativamente reduzida em muitos casos, apesar do tratamento médico. Os pacientes podem apresentar, também, insuficiência renal, uma das comorbidades mais importantes, o que contribui ainda mais para um mau prognóstico, especialmente em pacientes que já estão realizando sessões de diálise 1Harnett JD, Foley RN, Kent GM, Barre PE, Murray D, Parfrey PS. Congestive heart failure in dialysis patients: prevalence, incidence, prognosis and risk factors. Kidney Int. 1995;47(3):884-90.. A redução da função renal ocorre em aproximadamente 25% dos pacientes com insuficiência cardíaca crônica, independentemente da gravidade da disfunção ventricular esquerda 1Harnett JD, Foley RN, Kent GM, Barre PE, Murray D, Parfrey PS. Congestive heart failure in dialysis patients: prevalence, incidence, prognosis and risk factors. Kidney Int. 1995;47(3):884-90..

O treinamento físico é formalmente recomendado como uma intervenção não farmacológica segura em insuficiência cardíaca estável 2Piña IL, Apstein CS, Balady GJ, Belardinelli R, Chaitman BR, Duscha BD, et al; American Heart Association Committee on exercise, rehabilitation, and prevention. Exercise and heart failure: a statement from the American Heart Association Committee on exercise, rehabilitation, and prevention. Circulation. 2003;107(8):1210-25.,3Leite JJ, Mansur AJ, de Freitas HG, Chizola PR, Bocchi EA, Terra-Filho M, et al. Periodic breathing during incremental exercise predicts mortality in patients with chronic heart failure evaluated for cardiac transplantation. J Am Coll Cardiol. 2003;41(12):2175-81.. No entanto, muitos pacientes em estágio grave são extremamente sintomáticos e se consideram incapazes de participar de um programa de treinamento de exercício. A associação da insuficiência cardíaca com a insuficiência renal, em uso de Diálise Peritoneal Ambulatorial Contínua (CAPD, sigla do inglês Continuous Ambulatory Peritoneal Dialysis), torna tal atendimento ainda mais complicado. Os médicos também são inseguros e resistentes ao recomendar reabilitação cardiopulmonar para um paciente com muitas limitações.

Este relato de caso teve por objetivo descrever os efeitos clínicos e fisiológicos de um programa de exercício em um paciente com insuficiência cardíaca grave e insuficiência renal em diálise peritoneal.

Relato do caso

Paciente com 54 anos, do sexo masculino, com insuficiência cardíaca de origem idiopática há 8 anos e em classe funcional III-IV da New York Heart Association (NYHA). Evoluiu com insuficiência renal há 6 anos e iniciou sessões de diálise peritoneal nos últimos 3 anos ( realizando 21 sessões de CAPD por semana). Há 2 anos fora submetido a implante de cardiodesfibrilador (CDI) com ressincronização cardíaca devido às freqüentes descompensações. Embora sua terapêutica farmacológica tivesse sido otimizada (furosemida 40 mg/dia, espironolactona 25 mg/dia, bloqueador do receptor da angiotensina 80 mg/dia e Carvedilol 50mg/dia) o paciente persistia extremamente limitado em suas atividades diárias. Assim, fora encaminhado para o nosso serviço intra‑hospitalar de reabilitação cardiopulmonar e metabólica (RCPM) supervisionada, a fim de tentar promover ganho de capacidade física e maior estabilização clínica.

Antes e após a reabilitação, foram avaliados: Fração de Ejeção do Ventrículo Esquerdo (FEVE), pelo método de Simpson; Teste Cardiopulmonar (TCP) de exercício máximo e submáximo de carga constante (“Endurance”); Qualidade de Vida (questionário Short Form (36) Health Survey – SF-36); níveis séricos de uréia/ creatinina e peptídeo natriurético tipo B (BNP).

O TCP máximo, com protocolo incremental em esteira, foi utilizado não só para obter a capacidade de exercício, mas também para definir o limiar de treinamento físico durante a reabilitação. Ainda durante o TCP máximo foi avaliada a inclinação da ventilação minuto / produção de gás carbônico (VE/VCO2) durante a fase incremental e a queda da frequência cardíaca no primeiro minuto da fase de recuperação, que foi utilizada para investigar o sistema nervoso autônomo 4Cole CR, Foody JM, Blackstone EH, Lauer MS. Heart rate recovery after submaximal exercise testing as a predictor of mortality in a cardiovascular healthy cohort. Ann Intern Med. 2000;132 (7):552-5..

O TCP submáximo ou de “Endurance” foi realizado a 80% da carga máxima do teste incremental máximo avaliou a tolerância limite ao esforço (TLim) e as mudanças em diferentes sistemas orgânicos (cardiovascular, ventilatório e muscular periférico) antes e após a intervenção da reabilitação. Para avaliar a eficiência do metabolismo oxidativo periférico após o treinamento físico, usamos a constante de tempo de consumo de oxigênio (equivalente a 63% do VO2 máx atingido no teste submáximo de carga constante), através da análise cinética (software Sigmaplot 10.0).

As sessões de exercícios de reabilitação, com duração de 45 minutos, quatro vezes por semana, durante oito semanas, foram supervisionadas. Exercícios aeróbicos, com duração de 20 a 30 minutos, foram realizados em esteira e bicicleta ergométrica no limiar anaeróbio alcançado em TCP máximo (VO2 = 4,7 mL.kg-1 .min-1, 42% do VO2max); os exercícios de resistência para os membros superiores e inferiores foram realizados com 40% da contração voluntária máxima, três séries de dez repetições, com um minuto de descanso para cada série 6Carvalho VO, Mezzani A. Aerobic exercise training intensity in patients with chronic heart failure: principles of assessment and prescription. Eur J Cardiovasc Prev Rehabil. 2011;18(1):5-14.,7Carvalho VO, Guimarães GV. An overall view of physical exercise prescription and training monitoring for heart failure patients. Cardiol J. 2010;17(6):644-9.. Como esse paciente apresentava insuficiência cardíaca grave, a contração voluntária máxima foi estimada utilizando 12 a 15 repetições voluntárias atingindo grau moderado de fadiga (11 a 13 na Escala de Percepção Subjetiva de Esforço de Borg), o que representa cerca de 30 a 40% de uma repetição máxima (1-RM) para os membros superiores e de 40 a 50% para os membros inferiores 6Carvalho VO, Mezzani A. Aerobic exercise training intensity in patients with chronic heart failure: principles of assessment and prescription. Eur J Cardiovasc Prev Rehabil. 2011;18(1):5-14..

Para verificar possíveis arritmias, o paciente foi monitorado por um sistema de telemetria multicanal durante todos os exercícios.

Discussão

Após dois meses de reabilitação (Tabela 1), o paciente apresentou melhora importante no desempenho máximo de exercício (distância e pico de VO2), eficiência ventilatória (inclinação VE/VCO2), aumento da pressão arterial sistólica delta e maior FEVE. A função renal também melhorou substancialmente, diminuindo as sessões de diálise de 21 para 4 por semana. O paciente tornou-se menos sintomático ( New York Heart Association – NYHA II). A Qualidade de Vida foi substancialmente beneficiada em todos os domínios do SF‑36 e ele regressou para seu trabalho (trabalho em escritório).

Tabela 1
Exercício, variáveis metabólicas e hemodinâmicas obtidas durante o teste incremental máximo antes e após a reabilitação cardiopulmonar

O aumento na tolerância ao exercício e a redução dos sintomas são prováveis conseqüências dos benefícios sobre os sistemas orgânicos, levando em conta, principalmente, o cardiovascular, músculo-esquelético, respiratório e renal. Nesse caso, o treinamento físico resultou em incremento do desempenho cardíaco, refletido mesmo em repouso pela FEVE superior. A redução da inclinação da relação ventilação‑minuto / produção de gás carbônico VE/VCO2 frente ao esforço (Figura 1B), indica maior eficiência ventilatória. Tal efeito é resultante da melhor performance na integração entre os sistemas cardiovascular e respiratório.

Figura 1
Testes submáximos de carga constante (80% do teste incremental máximo), antes e após a reabilitação cardiopulmonar. A) VCO2: produção de gás carbônico versus o tempo; B) Comportamento da ventilação; C) Equivalente ventilatório de oxigênio; D) Cinética do V’O2: cinética do consumo de oxigênio; τ = (tau)constante de tempo.

Outro estímulo aferente para o centro respiratório é o CO2 produzido nos músculos esqueléticos. Considerando-se os testes de resistência, após a intervenção, o paciente foi capaz de tolerar maior quantidade de exercício com uma produção de CO2 significativamente menor dos músculos periféricos (Figura 1A). Esse fenômeno reflete uma melhor eficiência metabólica após o treinamento. Já se sabe que a reabilitação cardiovascular apresenta implicações relevantes sobre o metabolismo muscular, principalmente devido à maior capilarização (maior oferta de oxigênio) e ao aumento da densidade mitocondrial pela maior proporção de fibras oxidativas 3Leite JJ, Mansur AJ, de Freitas HG, Chizola PR, Bocchi EA, Terra-Filho M, et al. Periodic breathing during incremental exercise predicts mortality in patients with chronic heart failure evaluated for cardiac transplantation. J Am Coll Cardiol. 2003;41(12):2175-81.,7Carvalho VO, Guimarães GV. An overall view of physical exercise prescription and training monitoring for heart failure patients. Cardiol J. 2010;17(6):644-9.. A análise da cinética de oxigênio mostra o comportamento do metabolismo oxidativo do músculo no exercício, apresentando os pacientes graves um atraso nessa variável. O presente caso demonstrou uma melhoria na cinética de O 2Piña IL, Apstein CS, Balady GJ, Belardinelli R, Chaitman BR, Duscha BD, et al; American Heart Association Committee on exercise, rehabilitation, and prevention. Exercise and heart failure: a statement from the American Heart Association Committee on exercise, rehabilitation, and prevention. Circulation. 2003;107(8):1210-25., sendo o estado estável alcançado num período de tempo mais curto, após reabilitação (Figura 1D). Assim, no presente caso, houve um ganho evidente nos músculos periféricos, enquanto que seu metabolismo energético se tornou mais eficiente depois da reabilitação.

Não só a ventilação inferior foi relevante para este paciente, mas também o padrão de respiratório (Figura 1B e 1C). Antes da reabilitação, no TCP incremental, havia um padrão nítido de ventilação periódica durante a fase de incremento e também recuperação. Após o programa, a ventilação periódica não foi abolida, mas diminuiu significativamente. Embora os mecanismos da respiração periódica não estejam totalmente elucidados, estão presente exatamente em pacientes com insuficiência cardíaca grave e se deve destacar que apresentam implicações prognósticas 2Piña IL, Apstein CS, Balady GJ, Belardinelli R, Chaitman BR, Duscha BD, et al; American Heart Association Committee on exercise, rehabilitation, and prevention. Exercise and heart failure: a statement from the American Heart Association Committee on exercise, rehabilitation, and prevention. Circulation. 2003;107(8):1210-25.,3Leite JJ, Mansur AJ, de Freitas HG, Chizola PR, Bocchi EA, Terra-Filho M, et al. Periodic breathing during incremental exercise predicts mortality in patients with chronic heart failure evaluated for cardiac transplantation. J Am Coll Cardiol. 2003;41(12):2175-81.. Os benefícios adquiridos por este paciente estiveram certamente associados à melhoria da função cardíaca (houve redução de 50% do valor do BNP) após a RCPM.

Finalmente, houve benefício também na insuficiência renal, já que a frequência de sessões de diálise diminuiu de 21 para quatro vezes por semana. Isso representou um efeito interessante de reabilitação cardiopulmonar e esteve, provavelmente, relacionada com um melhor equilíbrio no sistema nervoso autônomo − mais ainda com o sistema renina-angiotensina. Estudos anteriores já haviam descrito uma menor atividade simpática após o programa de exercícios, o que está de acordo com a recuperação mais rápida da frequência cardíaca após teste incremental, sugerindo menor ativação simpática após a reabilitação neste paciente 8Yang HT, Prior BM, Lloyd PG, Taylor JC, Li Z, Laughlin MH, et al. Training induced vascular adaptations to ischemic muscle. J Physiol Pharmacol. 2008;59 Suppl 7:57-70.. Além disso, a redução do sistema renina-angiotensina-aldosterona é também um resultado do programa de exercício, o que leva a um maior fluxo de sangue nas artérias renais e, dessa forma, a uma melhor filtração 9Zucker IH, Patel KP, Schultz HD, Li YF, Wang W, Pliquett RU. Exercise training and sympathetic regulation in experimental heart failure. Exerc Sport Sci Rev. 2004;32(3):107-11. Erratum in Exerc Sport Sci Rev. 2004;32(4):191.,1010 Wan W, Powers AS, Li J, Ji L, Erikson JM, Zhang JQ. Effect of post-myocardial infarction exercise training on the renin-angiotensin-aldosterone system and cardiac function. Am J Med Sci. 2007;334(4):265-73..

Em suma, esse caso demonstra que mesmo em pacientes com significativa limitação da capacidade funcional, deve ser considerada a possibilidade da intervenção multidisciplinar de programas como o descrito de RCPM.

  • Fontes de financiamento
    O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
  • Vinculação acadêmica
    Não há vinculação deste estudo com dissertações e teses de pós-graduação.

References

  • 1
    Harnett JD, Foley RN, Kent GM, Barre PE, Murray D, Parfrey PS. Congestive heart failure in dialysis patients: prevalence, incidence, prognosis and risk factors. Kidney Int. 1995;47(3):884-90.
  • 2
    Piña IL, Apstein CS, Balady GJ, Belardinelli R, Chaitman BR, Duscha BD, et al; American Heart Association Committee on exercise, rehabilitation, and prevention. Exercise and heart failure: a statement from the American Heart Association Committee on exercise, rehabilitation, and prevention. Circulation. 2003;107(8):1210-25.
  • 3
    Leite JJ, Mansur AJ, de Freitas HG, Chizola PR, Bocchi EA, Terra-Filho M, et al. Periodic breathing during incremental exercise predicts mortality in patients with chronic heart failure evaluated for cardiac transplantation. J Am Coll Cardiol. 2003;41(12):2175-81.
  • 4
    Cole CR, Foody JM, Blackstone EH, Lauer MS. Heart rate recovery after submaximal exercise testing as a predictor of mortality in a cardiovascular healthy cohort. Ann Intern Med. 2000;132 (7):552-5.
  • 5
    Koike A, Yajima T, Adachi H, Shimizu N, Kano H, Sugimoto K, et al. Evaluation of exercise capacity using submaximal exercise at a constant work rate in patients with cardiovascular disease. Circulation. 1995;91(6):1719-24.
  • 6
    Carvalho VO, Mezzani A. Aerobic exercise training intensity in patients with chronic heart failure: principles of assessment and prescription. Eur J Cardiovasc Prev Rehabil. 2011;18(1):5-14.
  • 7
    Carvalho VO, Guimarães GV. An overall view of physical exercise prescription and training monitoring for heart failure patients. Cardiol J. 2010;17(6):644-9.
  • 8
    Yang HT, Prior BM, Lloyd PG, Taylor JC, Li Z, Laughlin MH, et al. Training induced vascular adaptations to ischemic muscle. J Physiol Pharmacol. 2008;59 Suppl 7:57-70.
  • 9
    Zucker IH, Patel KP, Schultz HD, Li YF, Wang W, Pliquett RU. Exercise training and sympathetic regulation in experimental heart failure. Exerc Sport Sci Rev. 2004;32(3):107-11. Erratum in Exerc Sport Sci Rev. 2004;32(4):191.
  • 10
    Wan W, Powers AS, Li J, Ji L, Erikson JM, Zhang JQ. Effect of post-myocardial infarction exercise training on the renin-angiotensin-aldosterone system and cardiac function. Am J Med Sci. 2007;334(4):265-73.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov 2014

Histórico

  • Recebido
    09 Out 2013
  • Revisado
    28 Dez 2013
  • Aceito
    18 Fev 2014
Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@cardiol.br