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Experência familiar de cuidado na situação crônica

Resumos

Ensaio que tem por objetivo refletir sobre a experiência familiar de cuidado na situação crônica, ampliando a compreensão da família como cuidadora primária. Embasa-se em estudos de abordagem compreensiva realizados em três pesquisas matriciais que abordaram experiências familiares de cuidado. Tomamos três eixos para organizar nossas reflexões: a) conformação do cuidado familiar na situação crônica, destacando os múltiplos custos gerados à família, que podem exaurir seus potenciais de cuidado, instaurando ou ampliando sua vulnerabilidade se não for amparada por redes de apoio e sustentação; b) rearranjos familiares para o cuidado, dando visibilidade aos núcleos de cuidado compartilhados pelos diversos entes familiares, de modo dinâmico, plural e mutável; c) cuidado próprio modelando o cuidado familiar, apontando a gama de condições de possibilidades da pessoa adoecida se cuidar apoiada pelas pessoas que lhe são próximas. Compreendemos que a família cuida de si e de seus entes no bojo da vida, assim como na experiência de adoecimento, tecendo redes que a sustentem ao longo do tempo. As práticas profissionais em saúde precisam modelar-se, então, tendo por referência o cuidado familiar, amparando-o naquilo que lhe seja próprio.

Cuidados à saúde; Família; Cuidadores familiares; Doença crônica; Pesquisa qualitativa


An essay that aims to reflect on the family experience of care in chronic situation, increasing the understanding of the family as the primary caregiver. It is based on comprehensive approach in studies conducted in three matrix searches from family care experiences. We have taken three axes to organize our reflections: a) conformation of family care in chronic situation, highlighting the multiple costs incurred to the family, which can exhaust the potential of care and establish or increase its vulnerability if it is not backed by networks support and sustenance; b) family rearrangements for the care, giving visibility to care cores in which many loved family members share the care, dynamic, plural and changeable way; c) self care modeling family care, pointing to the range of possibilities of the person taking care of diseased conditions supported by people close to them. We learn that the family takes care of itself in everyday life and in the illness experience, creating networks that can provide you support and sustenance. Thus, professionals in health practices should shape up in a longitudinal and very personal way, by reference to the family care, supporting him in what is his own.

Health care; Family; Family caregivers; Chronic disease; Qualitative research


Estudio tuvo como objetivo reflexionar sobre la experiencia familiar de lo cuidado en situación crónica, aumentando la comprensión de la familia como el cuidador principal. Se basa en la comprensión e fuera realizado en tres búsquedas principales sobre experiencias de cuidado familiar. Tomamos três ejes para organizar nuestro piensamento: a) conformación de atención a la familia en situación crónica, esta situación crea múltiples costos para la familia, que puede agotar el potencial de la atención y establecer o aumentar su vulnerabilidad si no está respaldada por el apoyo y soporte in sus redes; b) reordenamientos de la familia para el cuidado, dando visibilidad a núcleos del cuidado en los que muchos miembros de la familia lo comparten de manera dinámica, plural y cambiante; c) autocuidado en la familia que hace el cuidado adecuado, apunta a la gama de posibilidades para el cuidar en las condiciones enfermas con el apoyo de las personas cercanas a ellos. Nos enteramos de que la familia ocupa de sí mismo y de su vida cotidiana y, en él, la experiencia de la enfermedad, la creación de redes que las sostien al longo del tiempo. Los profesionales en las prácticas de salud deben tener como referencia el cuidado de la familia, dando el apoyo a él en lo que es la suya.

La atención de salud; Familia; Los cuidadores familiares; Enfermedad crónica; La investigación cualitativa


Introdução

Delineando nosso olhar

Este ensaio busca evidenciar algumas noções acerca do cuidado familiar oriundas de estudos de abordagem compreensiva, cujos participantes foram pessoas e famílias que vivenciam situação crônica (11. Corrêa GHLST, Bellato R, Araújo LFS. Networks to care woven by elderly and her family experiencing situations of chronic illness. Rev Min Enferm. 2014; 18(2): 346-355.). O esforço reflexivo que fazemos tem por base estudos por nós conduzidos, ao longo de sete anos no bojo de três grandes pesquisas matriciais, alguns desses aqui referenciados, como publicação em artigo e capítulo de livro, de modo a evidenciar que esse conhecimento vem sendo paulatinamente construído por nós.

Partimos do entendimento de que a família cuida de seus entes, não somente para prover e/ou reestabelecer a saúde, mas cuida da vida e para a vida. Interessa-nos, sobremaneira, visibilizar tal cuidado em seus variados modos e lugares de acontecer – seja como cuidado próprio, no âmbito da família, ou por meio da tecitura de redes que a sustente e apoie.

Na tecitura de uma rede de sustentação, constituída por pessoas mais próximas, como parentes e amigos, se faz presente tanto para o alcance dos recursos quanto na busca por garanti-los, em quantidade e qualidade suficientes nas variadas situações de cuidado vivenciadas ao longo do tempo. Desse modo, a família intenta garantir o ‘melhor em saúde’ na e para a urdidura do cuidado a cada um de seus entes.

Também a rede de apoio se faz presente, constituída por relações de menor proximidade e densidade afetiva, acionada mais pontualmente, porém não sendo menos importante para a garantia da manutenção do cuidado, particularmente daquele externo à esfera familiar. Dela podem fazer parte os serviços e profissionais de saúde, bem como outras instituições. Assim, podemos afirmar que há diferenciados planos de implicação e afetamento possíveis nas trajetórias de busca pelas condições para o cuidar pela família, particularmente na vivência da situação crônica.

Tomamos a concepção de situação crônica como aquela que envolve o adoecimento e os muitos cuidados requeridos, assim como os afetamentos do próprio adoecer e buscar cuidados no viver da pessoa e de sua família, tendo certa perdurância, conforme procuraremos discutir ao longo do texto.

Embasado nessas prerrogativas, este ensaio objetivou tecer reflexões sobre a experiência familiar de cuidado na situação crônica ampliando a compreensão da família como cuidadora primária. Para tanto, organizamos nossa reflexão em torno de três eixos: conformação do cuidado familiar; rearranjos familiares para o cuidado; o cuidado próprio modelando o cuidado familiar.

Nossa intenção é provocar e convocar profissionais de saúde, notadamente enfermeiros, à reflexão sobre a participação dos serviços de saúde nas redes para o cuidado tecidas pelas famílias; e, também, conferir relevo a necessidade de que as práticas profissionais possam se modelar tendo como referência o cuidado familiar, amparando-o naquilo que lhe seja próprio. Talvez, então, como modo desejável de cuidado às famílias, as práticas profissionais possam se configurar como personalíssimas e, assim sendo, serem mais efetivas.

Como imagem-síntese de nossa compreensão de cuidado neste ensaio, trazemos a “rosácea do cuidado na situação crônica” (Fig. 1).

Fig. 1
Rosácea do cuidado na situação crônica.

CONFORMAÇÃO DO CUIDADO FAMILIAR NA SITUAÇÃO CRÔNICA

Como já apontado amparamo-nos na compreensão de que a família é a cuidadora primária de seus entes, visto ser nesse âmbito que se engendra a miríade de cuidados reveladora do seu esforço na concepção, criação e execução de cuidados a cada ente e ao longo da vida. Nominamos como ‘miríade’ o modo de expressão desses cuidados, em geral pouco visíveis, pois sutis, diversos e múltiplos, extrapolando, em muito, aquilo que é racionalizado como tal pelo campo saúde.

Destarte, a família engendra cuidados para a vida, que “vão desde as interações afetivas necessárias ao pleno desenvolvimento da saúde mental e da personalidade madura de seus membros”, passando pela aprendizagem dos cuidados cotidianos com o corpo e o ambiente, bem como aqueles requeridos na ocorrência de adoecimento (22. Gutierrez DMD, Minayo MCS. Produção de conhecimento sobre cuidados da saúde no âmbito da família. Ciênc Saúde Coletiva. 2010;15(Supl. 1):1497-1508.).

No entanto, é importante assinalar que a família cuida com os potenciais que dispõe e, não raro, em situações de vulnerabilidade nas quais estes potenciais vão se exaurindo, na medida mesma em que tais situações se prolonguem e/ou impactem consideravelmente sobre suas possibilidades concretas de cuidar. Assim, a família, como principal provedora de cuidados, mostra-se bastante exigida na ocorrência de situação crônica, por vezes envolvendo mais de um ente familiar. Nessa vivência, estudos (11. Corrêa GHLST, Bellato R, Araújo LFS. Networks to care woven by elderly and her family experiencing situations of chronic illness. Rev Min Enferm. 2014; 18(2): 346-355.,33. Bellato R, Araújo LFS, Faria AP, Costa ALRC, Maruyama SAT. Itinerário terapêutico de famílias e redes para o cuidado na condição crônica: alguns pressupostos, In: Pinheiro R, Martins PH, editores. Avaliação em saúde na perspectiva do usuário: uma abordagem multicêntrica. Rio de Janeiro: CEPES/UERJ/UFPE, ABRASCO; 2009. p. 187-194.

4. Hiller M, Bellato R, Araujo LFS. Cuidado familiar à idosa em condição crônica por sofrimento psíquico. Esc Anna Nery. 2011;15(3): 542-549.
-55. Araújo LFS, Bellato R, Hiller M. Itinerários terapêuticos de famílias e redes para o cuidado na condição crônica: algumas experiências. In: Pinheiro R, Martins PH, editores. Avaliação em saúde na perspectiva do usuário: uma abordagem multicêntrica. Rio de Janeiro: CEPES/UERJ/UFPE, ABRASCO; 2009. p. 203-214..)têm destacado a produção pessoalizada de cuidados a cada um, de modo continuado e prolongado no tempo, o que exige grande esforço familiar para mantê-los.

Se a centralidade do cuidado recai sobre a família, ressalta-se a importância de compreender como ela vivencia a situação crônica, apreendendo suas possibilidades de, na cotidianidade, prover cuidados na medida das necessidades diversificadas que se apresentam; bem como, de mantê-los ao longo do tempo.

Relevando, ainda, estudos nesta perspectiva, corroboramos com autores (66. Buchbinde M, Longhofer J, MCcue K. Family routines and rituals when a parent has cancer. Fam Syst Health. 2009; 27(3): 213-227.) que afirmam a importância de tomar a família em sua inteireza ao se rearranjar em sua organização engendrando novas rotinas e respostas diante do adoecimento crônico; esse movimento e suas consequências recaem sobre todos os membros da família.

Temos considerado que, nessa vivência, a família articula elementos diversos no seu cuidar intentando proporcionar bem estar à pessoa, o que excede, em muito, o foco no tratamento da doença. Essa percepção ampliada do que seja cuidado reflexiona para o que, idealmente, tem sido nominado como integralidade do cuidado pelo campo saúde (77. Cecílio LCO. Apontamentos teórico-conceituais sobre processos avaliativos considerando as múltiplas dimensões da gestão do cuidado em saúde. Interface. 2011; 15(37):589-599.). Todavia, a concepção de que tal integralidade é posta em movimento pela família ao cuidar de seus entes nos faz deslocar sua discussão do contexto exclusivo dos serviços de saúde, para os diferentes contextos do cotidiano, como lugar da vida, onde o cuidado e o adoecimento são vividos pelas pessoas.

O cotidiano é tomado como o espaço-tempo privilegiado do vivido, onde as coisas acontecem e ganham sentidos próximos e próprios, constituindo-se na referência de ‘pertencimento a um lugar’, e tendo a casa como sua concretude. É no cotidiano da família, pois, que as situações acontecem, tanto em sua repetição rotineira quanto na forma de evento instaurado de modo abrupto e/ou instável, devendo ser rearranjadas na medida das possibilidades de cada pessoa e família (88. Bellato R, Araújo LFS, Mufato LF, Musquim CA. Mediação e mediadores nos itinerários terapêuticos de pessoas e famílias em Mato Grosso. In: Pinheiro R, Martins PH, editores. Usuários, redes sociais, mediações e integralidade em saúde, Rio de Janeiro: UERJ, IMS, LAPPIS; 2011. p. 177-184.). Dentre essas situações, o adoecimento se mostra grande mobilizador de energias e recursos da família no engendrar e prover o cuidado requerido. Os afetamentos, de diversas ordens, que cada situação de adoecimento produz, precisam ser gerenciados na medida das condições possíveis de cada ente e da família, o que delineia contornos próprios a cada situação por eles vivida (88. Bellato R, Araújo LFS, Mufato LF, Musquim CA. Mediação e mediadores nos itinerários terapêuticos de pessoas e famílias em Mato Grosso. In: Pinheiro R, Martins PH, editores. Usuários, redes sociais, mediações e integralidade em saúde, Rio de Janeiro: UERJ, IMS, LAPPIS; 2011. p. 177-184.).

A naturalização da experiência de cuidado pela família, essencial na manutenção da vida, culmina na atribuição da responsabilização moral pelo cuidado, derivada da história familiar e da socialização dos seus membros, dentre outros. Assim, cuida-se pelos valores familiares e pela afetividade entre as pessoas (99. Alves JMPM. Vidas de Cuidado(s): uma análise sociológica do papel dos cuidadores informais [dissertação]. Coimbra (PT): Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 2011.). No entanto, tal responsabilização moral da família pelo cuidado tem incluído, até mesmo, situações para as quais os serviços e profissionais de saúde teriam obrigação ético-legal de dar respostas, sendo elas reiteradamente pouco efetivas, no entanto. Resulta, portanto, a experiência solitária das famílias na provisão do cuidado.

Exemplarmente, estudo com família que vivencia o adoecimento de dois adolescentes por anemia falciforme (1010. Silva AH, Bellato R, Araújo LFS. Cotidiano de família que experiencia a condição crônica por anemia falciforme em dois adolescentes. Rev. Eletr. Enf. 2013;15(2): 437-446. ), evidenciou a profissionalização da mãe na área de enfermagem com objetivo de atender as necessidades de cuidado de seus filhos. A família assumiu diversos cuidados profissionais no domicilio e, por vezes, tais cuidados foram indiscriminadamente transferidos à mãe cuidadora. Por esta forma foram transferidas, de forma correspondente, as responsabilidades que seriam dos profissionais, além destes se distanciarem do cuidado integral às crianças e à família.

Estudos (44. Hiller M, Bellato R, Araujo LFS. Cuidado familiar à idosa em condição crônica por sofrimento psíquico. Esc Anna Nery. 2011;15(3): 542-549.,1010. Silva AH, Bellato R, Araújo LFS. Cotidiano de família que experiencia a condição crônica por anemia falciforme em dois adolescentes. Rev. Eletr. Enf. 2013;15(2): 437-446. -1111. Musquim CA, Araújo LFS, Bellato R, Dolina JV. Genograma e ecomapa: desenhando itinerários terapêuticos de família em condição crônica. Rev. Eletr. Enf. 2013;15(3): 656-666. ) têm mostrado os serviços de saúde atuam, via de regra, nos períodos de ‘agudização’ da doença, demandados pela família frente a episódios específicos e respondendo, então, de maneira pontual ao evento do momento. No entanto, o adoecimento crônico apresenta “relevos, movimentos e densidades próprios, impressos de inúmeras formas, de modo instável e movimentando-se entre os pólos crise-normalidade” (88. Bellato R, Araújo LFS, Mufato LF, Musquim CA. Mediação e mediadores nos itinerários terapêuticos de pessoas e famílias em Mato Grosso. In: Pinheiro R, Martins PH, editores. Usuários, redes sociais, mediações e integralidade em saúde, Rio de Janeiro: UERJ, IMS, LAPPIS; 2011. p. 177-184.) sendo, portanto, vivenciado pela pessoa e família sem que se delineie uma limitação específica entre esses pólos. A família cuida cotidianamente, o que inclui, certamente, o cuidado em situações bastante comprometedoras da vida, precisando gerenciar recursos próprios, muitas vezes escassos, para produzi-lo (88. Bellato R, Araújo LFS, Mufato LF, Musquim CA. Mediação e mediadores nos itinerários terapêuticos de pessoas e famílias em Mato Grosso. In: Pinheiro R, Martins PH, editores. Usuários, redes sociais, mediações e integralidade em saúde, Rio de Janeiro: UERJ, IMS, LAPPIS; 2011. p. 177-184.,1212. Dolina JV, Bellato R, Araújo LFS. Research Experience with a Person Going through the Process of Dying and Death. Journal Palliative Medicine. 2014; 17(2):244-245.). Portanto, destacamos que a família seja considerada uma unidade que também demanda cuidado devendo, por isso, ser amparada no enfrentamento das implicações do próprio adoecer e das dificuldades advindas do cuidado cotidiano que realiza (55. Araújo LFS, Bellato R, Hiller M. Itinerários terapêuticos de famílias e redes para o cuidado na condição crônica: algumas experiências. In: Pinheiro R, Martins PH, editores. Avaliação em saúde na perspectiva do usuário: uma abordagem multicêntrica. Rio de Janeiro: CEPES/UERJ/UFPE, ABRASCO; 2009. p. 203-214..).

Contudo, mesmo em situação de pouco amparo e sob a responsabilização moral imputada, é acrescida a família a obrigação social e jurídica de cuidar. Como exemplo desta reiteração de obrigações, o Estatuto do Idoso (1313. Brasil. Lei n.10.741 de 10 de outubro de 2003. Dispõe sobre o estatuto do idoso e dá outras providências. Parecer nº 1301, de 2003, Brasília, DF, 2003.), no seu artigo 3º, situa-a como responsável pelo cuidado à pessoa idosa, nomeando-a em primeiro lugar nesta obrigatoriedade, seguida pela comunidade, sociedade e Estado. Entretanto, nem o texto legal, nem as políticas públicas, têm garantido condições efetivas que sustentem a família frente a tal delegação jurídica de responsabilidade.

Também situados entre os limites frágeis da vida, a criança e o adolescente têm garantias reverberadas de direito no Brasil - pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Este, no seu artigo 4º responsabiliza, primeiramente, a família na efetivação dos direitos relativos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer e à profissionalização, dentre outros (1414. Brasil. Ministério da saúde. Estatuto da criança e do adolescente, Brasília, DF; 2008.). E, igualmente, tal dispositivo não expõe sobre a garantia de condições concretas para que a família possa cuidar de suas crianças e adolescentes.

Por certo, face à responsabilização que lhe é comumente imputada, a família pode ter seus potenciais exauridos em situações de pouca sustentação para o cuidado (88. Bellato R, Araújo LFS, Mufato LF, Musquim CA. Mediação e mediadores nos itinerários terapêuticos de pessoas e famílias em Mato Grosso. In: Pinheiro R, Martins PH, editores. Usuários, redes sociais, mediações e integralidade em saúde, Rio de Janeiro: UERJ, IMS, LAPPIS; 2011. p. 177-184.). Tal exaustão de potenciais é tão ou mais problemática quando na ocorrência do adoecimento crônico, dado a exigência de provimento de cuidados que se renovam, ampliam e prolongam no tempo.

Assim, sobre a família recaem múltiplos custos decorrentes do adoecimento em si e das inúmeras exigências de provisão do cuidado. Estes custos, em termos gerais, apresentam-se como: a) desgastes - entendidos como energias e potenciais familiares que se exaurem em decorrência do esforço de prover o cuidado; b) dispêndios – tomados como esforços ampliados exigidos para além dos movimentos cotidianos da vida familiar, sendo tão mais necessários na provisão de cuidados decorrentes da instauração de recorrentes agudizações no adoecimento; e, c) desperdícios - compreendidos como o estreitamento das margens de possibilidades de realização dos projetos de vida familiar, dada a pouca sustentação e apoio que a família recebe frente à intensa provisão do cuidado por período prolongado de tempo.

Estes custos são de variada natureza, desde emocional, econômica, social, bem como aquela decorrente do desgaste do potencial de cuidado próprio e familiar. Eles se instauram na vida familiar como elementos que se reforçam mutuamente, produzindo efeitos negativos em cascata, conformando movimentos que se confluem e intensificam o sofrimento familiar. Geram, portanto, um círculo vicioso por tudo aquilo que passa a ser ‘mal sustentado’(55. Araújo LFS, Bellato R, Hiller M. Itinerários terapêuticos de famílias e redes para o cuidado na condição crônica: algumas experiências. In: Pinheiro R, Martins PH, editores. Avaliação em saúde na perspectiva do usuário: uma abordagem multicêntrica. Rio de Janeiro: CEPES/UERJ/UFPE, ABRASCO; 2009. p. 203-214..).

Assim, a vulnerabilidade familiar se instaura ou é dilatada em decorrência da pouca sustentabilidade ao cuidado familiar por parte dos serviços e profissionais de saúde, uma vez que seus potenciais se exaurem ao longo do tempo mediante as exigências de cuidado, constantemente renovadas e ampliadas que enfrenta na situação crônica.

Partindo da concepção de condição crônica trazida pela Organização Mundial de Saúde (1515. Organização mundial de saúde. Cuidados inovadores para as condições crônicas: componentes estruturais para ação. Relatório mundial, Brasília, DF: OMS; 2003.), referindo-se aos agravos de saúde que têm, em comum, requerer certo grau de gerenciamento ao longo de um tempo pelos serviços de saúde; consideramos que tal conceito ainda se embasa na expressão individual da doença. A compreensão da situação crônica, aqui defendida, busca ampliar o olhar para os múltiplos contingenciamentos que pesam sobre as pessoas e famílias ao vivenciarem o adoecer e, nele, as possibilidades concretas delas se cuidarem e serem cuidadas, pondo em evidência os modos de existência que lhes sustentam o cuidado. Assim, abranger a vivência dessa situação de adoecimento implica “compreender, necessariamente, o adoecimento como modo próprio de experienciação da doença pelas pessoas e aquilo que almejam de ‘o melhor cuidado’. De igual modo, requer compreender as situações de vida que as inscrevem em circuitos de vulnerabilidade, mais ou menos abrangentes, que produzem inflexões e mudanças diversas em seus potenciais cuidativos – próprio e familiar” (1616. Correa GHLST, Bellato R, Araujo LFS. Different forms of family care for elderly in chronic situation. Cienc Cuid Saúde. 2015; 14(1):796-804.). Os circuitos de vulnerabilidade comportam uma tríade de elementos, referidos ao âmbito: a) individual, que remete aos valores, crenças, afetos, pulsões das pessoas; b) social, referindo-se às condições de vida e trabalho, cultura, situação econômica, ambiente, bem como as relações geracionais, de gênero, de classe, dentre outras; e, c) programático, ao referir-se aos elementos que estruturam e qualificam o Sistema de Saúde (1717. Ayres JRCM, França JI, Calazans GJ, Saletti FH. O conceito de vulnerabilidade e as práticas em saúde: novas perspectivas e desafios. In: Czeresnia D, Freitas C M. Promoção da saúde. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2003. p. 117-139.).

As pessoas não são vulneráveis a priori, mas podem estar vulneráveis em determinados momentos da vida. Assim, a vulnerabilidade não é uma condição humana de ‘ser’, mas uma contingência, ‘um estar em situação de’.

A partir da consideração da família como unidade primária de cuidado que, por isso, deva também ser cuidada, consideramos que seus potenciais possam se constituir em importantes analisadores de vulnerabilidades, especialmente nas situações que requerem prover cuidados continuados, prolongados e renovados (88. Bellato R, Araújo LFS, Mufato LF, Musquim CA. Mediação e mediadores nos itinerários terapêuticos de pessoas e famílias em Mato Grosso. In: Pinheiro R, Martins PH, editores. Usuários, redes sociais, mediações e integralidade em saúde, Rio de Janeiro: UERJ, IMS, LAPPIS; 2011. p. 177-184.).

Tal compreensão é importante para o campo saúde dado que esferas de vulnerabilidades se produzem, em maior ou menor medida, em decorrência da sustentação que os profissionais e serviços de saúde possam oferecer às pessoas e famílias frente aos inúmeros afetamentos produzidos nessa experiência. Logo, a vulnerabilidade tem permanência e intensidade variadas, não sendo uniforme e, sim, emergir em situações específicas. Assim, pode-se estar vulnerável em determinados momentos para gerir dimensões específicas da vida, não o estando para outras; decorre que a vulnerabilidade se conjuga no plural e em contexto.

Parece-nos que a ‘sustentação’ na experiência de adoecer e cuidar possa ser elemento essencial tanto na gênese como na possibilidade de superação de vulnerabilidades. Para tal sustentação se implicam e se reforçam, em movimentos de positividade ou negatividade, os potenciais de cuidado constituídos nos diferentes âmbitos - pessoal, familiar, comunitário e dos sistemas de saúde.

A obrigação formal, inclusive ético-legal, do sistema de saúde na atenção às pessoas e famílias reforça sua obrigação em, efetivamente, amparar-lhes as experiências de cuidar; no entanto, a falta de garantia de cuidados institucionais (88. Bellato R, Araújo LFS, Mufato LF, Musquim CA. Mediação e mediadores nos itinerários terapêuticos de pessoas e famílias em Mato Grosso. In: Pinheiro R, Martins PH, editores. Usuários, redes sociais, mediações e integralidade em saúde, Rio de Janeiro: UERJ, IMS, LAPPIS; 2011. p. 177-184.,1818. Correa GHLST, Bellato R, Araujo LFS, Hiller M. Itinerário Terapêutico de idosa em sofrimento psíquico e família. Cienc Cuid Saúde. 2011; 10(2):274-283.) - aqueles produzidos sob responsabilidade dos serviços e profissionais de saúde, tem ampliado e prolongado as situações de vulnerabilidade familiar; ou seja, faz acentuar o componente programático em sua gênese e manutenção (1717. Ayres JRCM, França JI, Calazans GJ, Saletti FH. O conceito de vulnerabilidade e as práticas em saúde: novas perspectivas e desafios. In: Czeresnia D, Freitas C M. Promoção da saúde. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2003. p. 117-139.). Entendemos ser esta uma das grandes contradições presentes na atenção profissional em saúde, visto que as práticas aí produzidas deveriam sinergizar-se com o cuidado familiar, reforçando e ampliando seus potenciais; e não exauri-los pelo aumento no esforço da busca, pouco frutífera, por cuidado.

Autores (1919. Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília, DF: Unesco, Ministério da Saúde; 2002. ,2020. Mendes EV. O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da estratégia da saúde da família. Brasília, DF: Organização Pan-Americana da Saúde; 2012.) defendem que os serviços de saúde precisam se constituir em fonte segura de provimento de cuidado para as pessoas e família, perdurando ao longo de suas experiências de adoecimento. Nominando de longitudinalidade no cuidado essa permanência da atenção profissional em saúde, afirmam ser este o grande desafio para o enfrentamento das condições crônicas no mundo atual.

Mas, para que serviços e profissionais de saúde possam melhor amparar o cuidado familiar, é necessário conhecer os modos próprios como a família cuida, o que discorremos a seguir, com ênfase aos rearranjos cotidianos na vivência do adoecimento crônico.

REARRANJOS FAMILIARES PARA O CUIDADO NA SITUAÇÃO CRÔNICA

Na experiência de adoecimento diversos entes compartilham o cuidado familiar, de modo dinâmico, plural e mutável, intercambiando diferentes elementos do cuidado requeridos em cada situação. Estudos que abarcam a experiência familiar de cuidado (1616. Correa GHLST, Bellato R, Araujo LFS. Different forms of family care for elderly in chronic situation. Cienc Cuid Saúde. 2015; 14(1):796-804.,1818. Correa GHLST, Bellato R, Araujo LFS, Hiller M. Itinerário Terapêutico de idosa em sofrimento psíquico e família. Cienc Cuid Saúde. 2011; 10(2):274-283.,1111. Musquim CA, Araújo LFS, Bellato R, Dolina JV. Genograma e ecomapa: desenhando itinerários terapêuticos de família em condição crônica. Rev. Eletr. Enf. 2013;15(3): 656-666. ,2121. Almeida KBA, Araújo LFS, Bellato. Family caregiving in chronic illness: a young person’s experience. Rev. Min Enferm. 2014; 18(3):724-732.) evidenciam que a família se rearranja constituindo, por vezes, núcleos de cuidado; tal noção relativiza,, a presença de um ‘cuidador principal’, tal como conceitua o Ministério da Saúde (2222. Brasil. Secretaria especial dos direitos humanos, Subsecretaria de promoção e defesa dos direitos humanos. Cuidar melhor e evitar a violência: Manual do Cuidador da Pessoa Idosa. Brasília: Série A. Normas e Manuais Técnicos; 2008.), como aquele que se responsabiliza por quase todo trabalho diário com a pessoa doente, sendo seu papel suprir suas necessidades durante o período de doença ou incapacidade.

Depreendemos que a sustentação necessária ao bem-estar da pessoa adoecida e da própria família se dá com base nas relações familiares e, principalmente, nos laços de parentesco (2323. Mufato LF, Araújo LFS, Bellato R, Nepomuceno MAS.(Re)organização no cotidiano familiar devido às repercussões da condição crônica por câncer. Cienc Cuid Saúde. 2012; 11(1): 89-97.). Nesse sentido, os laços familiares – que diferenciam ‘a família’ e ‘os outros’ - possibilitam resposta às necessidades, tanto de cunho material quanto afetivo. Também aqueles outros que, embora não sendo parentes, apresentam estreita vinculação, são tomados ‘como se fossem da família’, passando a fazer parte do ‘nós’ de pertença e de referência (2424. Portugal S. A alquimia do parentesco. Para uma discussão da relação entre dádiva e família. Rev Realis. 2013; 3(1):153-174.).

Então, o núcleo de cuidado se conforma nesse entretecer de relações próximas e próprias, como modo de rearranjo do cuidado engendrado pela família; e constitui fonte mais ou menos segura de sua provisão. Assim, o núcleo busca garantir cuidado com certa permanência espaço-temporal, ou seja, busca provê-lo com certa regularidade, duração e intensidade. Como “lugar” de cuidado, tal núcleo comporta certa proximidade afetiva e de convívio entre os entes que cuidam e aquele que é cuidado, sendo que tal convívio não se traduz, necessariamente, em coabitação (1818. Correa GHLST, Bellato R, Araujo LFS, Hiller M. Itinerário Terapêutico de idosa em sofrimento psíquico e família. Cienc Cuid Saúde. 2011; 10(2):274-283.,2323. Mufato LF, Araújo LFS, Bellato R, Nepomuceno MAS.(Re)organização no cotidiano familiar devido às repercussões da condição crônica por câncer. Cienc Cuid Saúde. 2012; 11(1): 89-97.).

O núcleo de cuidado familiar pode ser modificável em sua constituição ao longo da situação de adoecimento, variando os entes que dele fazem parte, conferindo-lhe o caráter de transitividade e reversibilidade (33. Bellato R, Araújo LFS, Faria AP, Costa ALRC, Maruyama SAT. Itinerário terapêutico de famílias e redes para o cuidado na condição crônica: alguns pressupostos, In: Pinheiro R, Martins PH, editores. Avaliação em saúde na perspectiva do usuário: uma abordagem multicêntrica. Rio de Janeiro: CEPES/UERJ/UFPE, ABRASCO; 2009. p. 187-194.). É possível, também, haver a conformação concomitante, em diferentes espaços, de mais de um núcleo a mesma pessoa adoecida (1818. Correa GHLST, Bellato R, Araujo LFS, Hiller M. Itinerário Terapêutico de idosa em sofrimento psíquico e família. Cienc Cuid Saúde. 2011; 10(2):274-283.). Tal conformação acompanha a dinamicidade da vida familiar e, nela, as premências cotidianas que se apresentam para o cuidar, e não, propriamente, uma lógica de preparo antecipado.

Essa compreensão nos distancia do entendimento do Ministério da Saúde (2525. Brasil. Ministério da saúde. Secretaria de atenção à saúde, Secretaria de gestão do trabalho e da educação na saúde. Guia prático do cuidador. Brasília: Série A. Normas e Manuais Técnicos, 2008.) de que o cuidado familiar à pessoa adoecida deva ser previamente planejado, com vistas a evitar o estresse e desgaste do cuidador principal. Pode haver uma pessoa que seja considerada ‘referência de cuidado ao ente adoecido’ pelos demais entes familiares e/ou profissionais de saúde; todavia, tal pessoa é, via de regra, sustentada e apoiada por outras pertencentes às redes familiares. Destarte, essa conformação de ‘cuidado familiar sustentado em rede’ distancia-se, por certo, da figura do cuidador principal.

A possibilidade de evidenciar a constituição desses núcleos de cuidado tem se dado em nossos estudos pelo emprego do genograma, demarcando-os a partir daquilo que é apontado pela própria família. O genograma possibilita compreender a constelação familiar consangüínea e/ou de parentesco e/ou de afetividade em sua transgeracionalidade, expressando a qualidade dos vínculos e a dinamicidade da tecitura das relações, bem como a constituição dos núcleos de cuidado (44. Hiller M, Bellato R, Araujo LFS. Cuidado familiar à idosa em condição crônica por sofrimento psíquico. Esc Anna Nery. 2011;15(3): 542-549.).

É importante compreender que na constituição do núcleo de cuidado familiar pesam elementos inter-relacionados que têm certa sinergia com os modos de ser da família. Tal núcleo assume, portanto, conformações próprias em diferentes momentos da vida desta, conferindo peculiar dinamicidade no cuidado a cada um de seus entes ao longo da vida em família.

Dentre os elementos que pesam na constituição do núcleo de cuidado familiar salientamos:

a) proximidade afetiva, evidenciada pela diversidade de afetos que constituem os laços entre os entes e destes com a pessoa adoecida. Tais afetos se mostram em graus variados de intensidade e duração, pesando relativamente para isso as vinculações consanguíneas, a posição na família, os sentimentos de atração-repulsa que se estabelecem entre os entes, o convívio mais próximo ou mais distanciado, a ligação transgeracional e intergeracional. Estes laços não são estáveis, contínuos ou permanentes, mas movimentam-se, afastando ou aproximando as pessoas, em que pesem as exigências de cuidado e os potenciais cuidativos, tanto pessoal como familiar;

b) a biografia familiar e os eventos marcantes que direcionam a família a assumir novas configurações, como situações de nascimento, casamento, separação, morte, dentre outras; e cuja instauração traz exigências diferenciadas de cuidado;

c) os potenciais e condições de possibilidades da família e cada um de seus entes desenvolver ações de cuidar. Consideramos potenciais de cuidado tanto aqueles presentes e disponíveis concretamente, quanto os que sejam mobilizáveis pelo acionamento das redes de sustentação e apoio da família;

d) atitude de cuidar, que reflete dimensões mais subjetivas que envolvem, diferentemente, cada ente familiar no cuidado, evidenciando modos diversos de prontidão e disposição, saberes construídos ao longo da experiência, amadurecimento emocional que sustente o lidar com os afetamentos produzidos na situação de adoecimento, dentre outros;

e) valoração do cuidado e do cuidar conferindo-lhes maior ou menor visibilidade. Pesa para esta valoração certa regulação e valor moral, social, econômico e cultural, base para a atribuição de sentidos ao cuidado e ao cuidar pela família.

Ressaltamos, também, que a reciprocidade do cuidado não se faz de modo objetivo, linear e/ou simétrico, mas sim, com base na ajuda recebida dos diversos entes familiares, em suas diversas modulações e substâncias. Cuida-se ‘na escala de uma vida’, ou seja, o tempo em que o cuidado foi oferecido pode não ser o mesmo em que será retribuído por quem o recebeu inicialmente (2626. Portugal S. O que faz mover as redes sociais? Uma análise das normas e dos laços. Revista Crítica de Ciências Sociais. 2007; 79(1): 35-36.). Assim, a afetividade e a confiança conferem certa dimensão atemporal ao cuidado no que se refere à retribuição que ele possa requerer ao longo da vida dos entes familiares, constituindo-se em uma espécie de ‘crédito a longo prazo’ (2626. Portugal S. O que faz mover as redes sociais? Uma análise das normas e dos laços. Revista Crítica de Ciências Sociais. 2007; 79(1): 35-36.).

Há que se considerar que a família produz e mobiliza, de modo continuado, o cuidado para manutenção da vida diária de seus entes, a demanda de cuidados personalizados pode ser ampliada na situação de adoecimento, dada as necessidades próprias da pessoa adoecida. Portanto, as especificidades da pessoa adoecida e do seu adoecimento também pesam na constituição do núcleo de cuidado familiar, modelando-o conforme sua natureza e tempo de permanência.

Deste modo, o adoecimento que se instaura desde o nascimento tem uma configuração de necessidades de cuidado diferenciada daquele que ocorre numa fase mais avançada da vida; da mesma forma, as necessidades no adoecimento por agravo degenerativo progressivo diferenciam-se daquelas que permeiam o adoecimento crônico de curso mais estável no tempo. A família, então, se rearranja e constitui núcleos de cuidado de acordo com tais especificidades.

É necessário considerar que também a pessoa adoecida se cuida, quando apresenta condições e maturidade para tal, sendo esse cuidado próprio essencial para o seu bem viver.

A seguir procuramos dar relevo ao cuidado próprio, elemento importante da modelagem do cuidado familiar que precisa ser considerado em suas peculiaridades.

O CUIDADO PRÓPRIO MODELANDO O CUIDADO FAMILIAR

Os rearranjos familiares para o cuidado estão relacionados aos potenciais de cuidado de cada pessoa, ao que nomeamos cuidado próprio. Numa perspectiva experiencial, o cuidado próprio conforma-se como modo pessoal de se cuidar no cotidiano, almejando o bem viver. É um cuidado amplo, para a existência, amparado por saberes significativos, próximos e próprios, elaborados ao longo da vida, conformando o sentido do que seja ‘cuidar-se’.

Composto de uma miríade de pequenas e invisíveis ações e atitudes, o cuidado próprio não se vincula, apenas, à circunstância de saúde ou à plena ‘capacidade funcional’ da pessoa. Assim, mesmo vivenciando a situação crônica que lhe impõe certos limites e restrições no dia a dia, a pessoa pode guardar certo quantum de potencial de cuidado próprio, variável em termos de qualidade e possibilidades, ao longo do tempo e no espaço (11. Corrêa GHLST, Bellato R, Araújo LFS. Networks to care woven by elderly and her family experiencing situations of chronic illness. Rev Min Enferm. 2014; 18(2): 346-355.).

Entendemos que o cuidado próprio se vincula, de modo intenso, à experiência de vida e de cuidado ao outro que nos é próximo. Tomamos aqui a compreensão do que seja experiência como “o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca” (2727. Bondía JL. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev Bras Educ. 2002; 19: 20-28.). Por isso, o cuidado próprio também se mostra numa perspectiva relacional, visto referenciar-se a situações vividas em comum, nas quais circulam modos de cuidar e se constituem saberes compartilhados; ou seja, conforma-se em interdependência ou co-autonomias. Relaciona-se, portanto, a uma gama de condições de possibilidades pessoais, como também partilhadas, especialmente, com pessoas próximas.

Diferentemente, o conceito de “auto-cuidado”, cunhado pelo campo saúde, parece-nos pautado na idéia de autonomia e independência, com fins de emancipação do indivíduo. Tal ideia apresenta-se polarizada pela concepção de dependência, significada como um valor negativo e depreciativo.

Consideramos que os termos autonomia e independência possam ser relativizados, pois a vida em sociedade é constituída na interdependência por meio do cuidado (2828. Medeiros M, Diniz D. Envelhecimento e deficiência. SérieAnis. 2004; 36. Brasília: Letras Livres. p. 1-8. -2929. Milligan C. There’s no place like home: Place and care in an ageing society. Ageing Soc. 2009;30(5): 917-919.). Decerto, o ser humano não é, e não será, totalmente independente ou autônomo; pois, em dadas situações, pode precisar de apoios e suportes para potencializar seu cuidado próprio e o governo da própria vida (11. Corrêa GHLST, Bellato R, Araújo LFS. Networks to care woven by elderly and her family experiencing situations of chronic illness. Rev Min Enferm. 2014; 18(2): 346-355.).

Se o cuidado próprio é engendrado para e na vida cotidiana, a situação crônica não prescinde dele; ao contrário, tem reforçada a sua exigência em diferentes graus e duração. Daí precisar ser sustentado em seus potenciais. Há de se questionar, no entanto, se a situação de adoecer remete, incondicionalmente, à determinação de dependência da pessoa adoecida, pois tal concepção anularia a consideração de seus potenciais de cuidado próprio, ainda que estes se apresentem limitados ou constituídos de elementos mais sutis.

Estudo (11. Corrêa GHLST, Bellato R, Araújo LFS. Networks to care woven by elderly and her family experiencing situations of chronic illness. Rev Min Enferm. 2014; 18(2): 346-355.) evidenciou modos próprios de prover o cuidado por família de pessoa idosa com múltiplos agravos crônicos e que reside sozinha por opção. A família se rearranjou em seu cotidiano para engendrar possibilidades de cuidado à idosa, assim como potencializar e amparar o seu cuidado próprio, atendendo-a em suas necessidades e se fazendo constantemente presente, mesmo residindo em casas separadas.

Necessário se faz relativizar o entendimento de que a pessoa idosa é dependente, pois frágil e com capacidades funcionais limitadas, o que lhe restringiria a possibilidade de cuidado, pois, pautada na visão de ‘funcionamento’ ao nível orgânico e meramente instrumental. Assim, o cuidado deve ser considerado em suas múltiplas dimensões e sempre ‘em situação’, incluindo a possibilidade de o cuidado próprio e o cuidado familiar se sinergizarem de modo dinâmico e pessoalizado.

Indagamos, também, como os serviços e profissionais de saúde podem apoiar essa sinergia de esforços para o cuidado cotidiano das pessoas. Temos evidenciado que a permanência da provisão do cuidado se faz, essencialmente, no cenário familiar cotidiano, onde as pessoas se cuidam e cuidam umas das outras, com os potenciais e condições que dispõem. Já a atenção profissional tem se mantido bastante restrita ao espaço institucional, sendo acionada pela família em momentos específicos e intervindo de modo pontual. E quando as pessoas buscam esse espaço, têm enfrentado constrangimentos das mais diversas ordens, particularmente, ao terem os seus modos próprios de cuidar e se cuidar desvalorizados ou desconsiderados. Tal postura dos profissionais em suas práticas tem sido pouco efetivo em contribuir com o cuidado das pessoas e famílias, naquilo que lhe é específico.

Ponderamos que o cenário doméstico das famílias necessite ser visibilizado e valorizado como ‘o lugar do cuidar/cuidado’, pois é na cotidianidade da vida das pessoas que elas sustentam suas experiências. Afirmamos, então, que a atenção profissional deva estar implicada no cuidado próprio e familiar, para que possa ampará-los no seu modo singular de ser produzido. Esta atenção não prescinde, no entanto, do espaço institucional, sempre que este se faça necessário, dadas certas especificidades das intervenções que só aí podem ser realizadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: POR UM CUIDADO SUSTENTADO

Neste ensaio buscamos ampliar a compreensão da família como principal provedora de cuidado, destacadamente na situação crônica. Temos, reiteradamente, evidenciado que a família cuida de si e dos seus no cotidiano da vida e, nele, também na experiência de adoecimento, não obstante o faça com base em intensa tecitura de redes que possam propiciar-lhe sustentação e apoio.

Destacamos a importância desta tecitura na ocorrência de adoecimento crônico em que a exigência de cuidados de variada natureza se faz superlativa, por serem continuados, prolongados e, não raro, paulatinamente mais intensos e permanentes, escasseando ou exaurindo os potenciais de cuidado familiar. E, à medida que os serviços e profissionais de saúde ofereçam respostas pouco resolutivas às suas necessidades, mais amplo se mostra o esforço da família em tecer redes que possam lhe garantir a efetividade do cuidado, ainda que por outras vias.

Ao tratarmos dos recursos para o cuidado, tomamo-los em sentido amplo, dado que uma miríade de condições, sentimentos, afetos, artefatos e saberes são necessários para que possa ser produzido, diuturnamente. Angariar e ter a disposição tais recursos, na medida da necessidade da pessoa adoecida, conforma uma intrincada trama de providências que demandam muito esforço da família, além daquele já exigido para modelá-los em cuidado na vida cotidiana.

Com base nas reflexões aqui apresentadas, compreendemos que o cuidado à saúde na situação crônica não é modelado, isoladamente, pela família e sua rede de sustentação, assim como não o é apenas pelos serviços e profissionais de saúde. Constitui-se, porém, em um amálgama de diferentes modos de cuidar para responder às necessidades de cuidado continuado e prolongado que cada situação exige, sendo modelado de maneira personalíssima, conforme buscamos expressar, imageticamente, na rosácea do cuidado.

Afirmamos, assim, que a sinergia de esforços para o cuidado – familiar, próprio e das redes – deva ser a referência para os serviços e profissionais de saúde na organização das práticas de atenção em saúde, de modo que sejam, de fato e primordialmente, orientadas para a pessoa adoecida e família, alcançando maior efetividade e contribuindo para minimizar seu sofrimento naquilo que se mostre resultante de desgastes, dispêndios e desperdícios dos seus potenciais de cuidado e de vida. Desse modo, e apenas assim, poderemos, por direito, autonominar nossas práticas profissionais como ‘cuidado’, na sua dimensão substantiva daquilo que seja desejável pelas pessoas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    26 Mar 2015
  • Aceito
    14 Nov 2015
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