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Entrevistando a pombagira. Sobre sujeitos e novos modos de pensar o espiritual - Homenagem a Marcia Contins1 1 Texto apresentado em 21 de novembro de 2023, no ciclo de debates “Ciências Sociais na UERJ: Temas, Trajetórias e Perspectivas”, realizado em homenagem a Marcia Contins pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPCIS/UERJ).

Interviewing the pombagira. About subjects and new ways of thinking the spiritual

Resumos

Resumo: O artigo reflete brevemente sobre a importância do trabalho da antropóloga Marcia Contins para a compreensão das religiões afro-brasileiras nas classes trabalhadoras da cidade do Rio de Janeiro, sobre a delicada relação entre arte e religião e sobre a agência espiritual.

Palavras-chave:
Religiões Afro-Brasileiras; Arte; Religião; Pombagira; Agência espiritual


Abstract: The article briefly reflects on the importance of the work of the anthropologist Marcia Contins for understanding Afro-Brazilian religions in the working classes of the city of Rio de Janeiro, on the fine relationship between art and religion and on spiritual agency.

Keywords:
Afro-Brazilian religions; Art; Religion; Pombagira; Spiritual agency


Em 1978, formada em ciências sociais, Marcia Contins vai trabalhar com Yvonne Maggie e Patrícia Monte-Mor em um projeto sobre os objetos rituais retirados pela polícia de terreiros no Rio de Janeiro durante as primeiras décadas do século XX, e posteriormente abrigados no acervo do Museu da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Nesse momento a maior preocupação era saber como essas práticas religiosas sofriam acusações, sendo associadas, por exemplo, às “práticas de magia negra e cartomancia”.

Além disso, o projeto tinha como objetivo discutir como era pensada a noção de “arte” no contexto cotidiano desses grupos religiosos. Qual seria o status conferido à chamada “Arte Afro-Brasileira”? Essas questões são importantes para entender não apenas a arte como estratégia de reprodução de suas cosmovisões, mas de que modo também poderíamos afirmar a ideia do sagrado como arte.

Nos anos 70 e 80, não obstante a diminuição do cerceamento aos terreiros pela polícia, e a paulatina constituição de uma agenda de patrimonização, a regulação estatal era bastante perceptível para Contins, uma vez que esse cerceamento se perpetuava também na classificação do Estado sobre o afrorreligioso, porém havia interstícios.

Foi a partir dessas questões que as pesquisadoras desenvolveram uma pesquisa inicialmente intitulada “Arte nas Religiões Afro- Brasileiras e sua relação com o Estado”, analisando a coleção de objetos rituais do acervo do Museu da Academia de Polícia Militar do Rio de Janeiro. Ressignificar feitiço em arte faz pensar em como o religioso se compõe, assim como traz a possibilidade estética de se ver no mundo, como se produz, como se performa; remove o verniz colonial do conceito de fetiche e trabalha com outra possibilidade, mais aberta, de lidar com o mágico, retirando-o do campo acusatório.

Essa coleção era chamada de “Coleção de Magia Negra”. Foi a primeira do gênero a ser tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Era composta por objetos obtidos durante a repressão a terreiros de umbanda e candomblé no Rio de Janeiro na primeira metade do século XX. Outras coleções semelhantes puderam ser localizadas no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas e no Instituto Histórico e Geográfico da Bahia.

As pesquisadoras realizaram trabalho de campo com visitas constantes ao Museu da Polícia, classificaram e descreveram as peças religiosas afro-brasileiras numa espécie de catálogo. Esse material tinha sido organizado pelo próprio diretor do Museu da Polícia, um detetive que também era umbandista. Na organização das estantes da coleção, a preocupação fundamental era definir os objetos segundo sua relação com o ritual, e não com o local ou origem das peças, como seria de se esperar num procedimento museológico profissional.

Todas as implicações e problemas e questões nesse projeto foram fundamentais não apenas na carreira de antropóloga de Marcia Contins, mas também foram determinantes para entender os objetos como peças em um museu, a relação dessas peças com terreiros semelhantes aos que conheceu, assim como o uso de material da imprensa enquanto objeto de análise. Tudo isso fez parte do desenvolvimento do seu projeto de mestrado.

A dissertação intitulada O Caso da Pombagira: reflexões sobre crime, possessão e identidade feminina foi defendida em 1983 no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O trabalho abordou temas ressonantes àqueles que começou a trabalhar em colaboração com Yvonne Maggie. Nessa pesquisa, ela revisita as abordagens clássicas do pensamento social brasileiro que analisaram a ideia de transe nessas religiões e faz uso da noção de “drama social” para analisar o material sob o ponto de vista do conflito e das novas possibilidades de rearranjo a partir deste (Cf. Contins 1983).

As noções de ritual, possessão e pessoa, todas discutidas no mestrado, foram decisivas para a análise do material da pesquisa. O estudo analisou um crime que aconteceu na cidade do Rio de Janeiro, em que uma mulher pede a outra que mate o seu marido. No caso, a interferência religiosa se dá porque todos são consulentes da mãe de santo Celina, que recebe o espírito de dona Maria Padilha, que acaba sendo envolvida no crime, pois uma das principais suspeitas diz ter agido sobre sua influência espiritual.

Novas questões do transe, da presença na esfera pública, das construções de femininos sobrepostos tanto pela pombagira que vira depoente no processo, quanto nas narrativas que são produzidas pelos vários atores sociais do caso: pais de santo, imprensa, populares, advogados (umbandistas e não umbandistas) suspeitos, mãe de santo envolvida no caso, cambono do terreiro e alguns de seus clientes.

A presença ou não da pombagira era usada de diferentes formas, seja para atestar ou não sua participação no crime, com base na ideia de transe como um duplo, ou seja, ela e a Maria Padilha são uma unidade, ou na total ausência de consciência, implicando que em tudo o que Celina falava não havia a ação da pombagira. Mas, ao final, O Globo informava que, para o delegado Faria, Ce lina entrara no inquérito como ela mesma, e não como “o espírito de Maria Padilha”, que ela dizia receber. Ser médium de nascença ou ser doutrinado implica no controle do sujeito sobre a entidade. Nesse sentido, o caráter isolado da médium Celina que incorpora a pombagira pro picia a acusação (por parte da umbanda) de mistificação e falsificação não apenas pelo campo jurídico, mas dentro das leituras religiosas de outras religiões mediúnicas. Isso envolveria a ideia de “macumba carioca” (?) como algo isolado, e que deveria ser substituída pela doutrina de umbanda. Nas narrativas vemos as diferenças e disputas internas do campo afrorreligioso, as narrativas jurídicas e policiais e ainda muitas questões de gênero.

Nas camadas populares a pombagira Maria Padilha era e ainda é considerada uma entidade muito “forte”, que pode re solver os problemas das pessoas que a consultam. Ao chamar atenção para a relação entre umbanda e loucura, Marcia Contins cita o estudo de Simone Guedes. Na interpretação dos religiosos, a maioria das “manifestações nervosas” não é considerada doença, mas sim atribuída a eguns e exus. Segundo um informante de Guedes: “A mediunidade não desenvolvida ou paralisada provoca perturbações mentais. Os médiuns do Terreiro já retiraram, com autorização dos médicos, pessoas internadas para desenvolver-se no Terrei ro e estes ficaram curados quando foi retirado o encosto'' (Guedes 1971:93 apud Contins 1983:107, nota 5). Apesar de uma certa regulação no campo jurídico, médico e midiático, havia espaços de discussão e negociação na esfera pública e uma lenta inserção dos grupos afrorreligiosos também nesses mesmos campos. Nas palavras de Contins:

Dentro desse ponto de vista afirma-se, em primeiro lugar, que o médium deveria “desenvolver-se” para que estivesse ligado à en tidade que diz incorporar, ou seja, dentro da linha da entidade, que seria sempre “positiva”. Em segundo lugar, o “transe inconsciente”, como não é controlado, é uma forma de poder. Pode levar o médium a cometer atos que este não tem nenhum controle sobre e les, levado por um “espírito mau” (segundo o Pai-de Santo) (Contins 1983CONTINS, Marcia. (1983), O Caso da Pomba Gira: reflexões sobre crime, possessão e imagem feminina. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, UFRJ.:106).

Beliso-De Jésus ao estudar o trânsito da santeria entre Cuba e EUA, em Eletric Santeria, mostrou a importância da copresença: espíritos, orixás, líderes religiosos, vídeo, tecnologia e mídia produzem o sagrado (Cf. Beliso-De Jésus 2015BELISO-DE JESÚS, Aisha. (2015), Electric Santería: Racial and Sexual Assemblages of Transnational Religion. New York: Columbia University Press.). No texto de Contins, temos a presença da pombagira que se multiplica em narrativas e se desdobra em uma complexa teia sobre a possessão, mescla religião e ciência e produz uma ressonância pública. Como afirma Beliso-De Jésus, os eguns adoram uma tela, apropriando-se das imagens como correntes espirituais. A pombagira dominou a imprensa carioca nos anos 70.

As religiões afro religiosas cresceram a partir dos anos 40 e atingiram um ápice de visibilidade nos anos 70, havendo desafios e retrações nos anos posteriores com o crescimento de pentecostais e neopentecostais e sua diversificação e sua entrada na política nos anos 90.

A pombagira e seus companheiros nos anos 70 estava presente não só na delegacia, mas já havia transitado nos programas de televisão com seu Sete da Lira. Dona Cacilda de Assis, ao incorporar seu exu, fazia com que muitas pessoas no programa do Chacrinha entrassem em transe, causando mal-estar na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e em outros segmentos cristãos. Rádio, imprensa e demais meios de comunicação mostravam sacerdotes da nação omolocô, como Tata Tancredo, que escrevia entre os anos 50 e 70 no jornal o Dia, e Joãozinho da Goméia - também presente na imprensa carioca - e, mais tarde, o Melodias de terreiro de Átila Nunes.

A análise de Contins do campo espiritual como parte do campo religioso, trazendo a pombagira para a frente da cena pública, tema presente em “Transas e Transes: Sexo e Gênero nos Cultos Afro-Brasileiros, um Sobrevôo”, de Patricia Birman (2005BIRMAN, Patricia. (2005), “Transas e transes: sexo e gênero nos cultos afro-brasileiros, um sobrevôo”. Revista Estudos Feministas, vol. 13, nº 2: 403-414.), mostra em diferentes momentos uma agencialidade com uma gama de seres humanos e não humanos, que cada vez mais se amplia, posteriormente, seja com os novos campos teóricos, seja com o assemblage de Latour, Guattari e Deleuze. Ou ainda, com o inovador trabalho de campo de Kelly Hayes, e outros autores que mostram essa ampliação teórica que traz novos personagens no campo, e como a complexa relação entre médium e entidade deve ser considerada para pensar na construção de subjetividades.

A construção da pessoa, a possessão, o mau-olhado e seus males sociais representados, respectivamente, nos trabalhos de Goldman, Contins e Birman e outros, mostram as nuances não apenas do aspecto cosmológico e público dessas religiões na vida social. Em especial, o trabalho de Contins mostrou a importância crescente de se pensar as materialidades que escapam dos terreiros e vão para os museus, o que pode ser o afrorreligioso como arte, a possessão como fato social e suas implicações. E se exu é um tropos, elemento definidor (ou não) de uma sociedade brasileira, como no recente trabalho de Vagner Gonçalves da Silva (2013GONÇALVES DA SILVA, Vagner. (2013), “Exu do Brasil: tropos de uma identidade afro-brasileira nos trópicos”. Revista De Antropologia, vol. 55, nº 2: 1086-1114.); isto é, Exu, personagem que nos ensinaria o caos como princípio lógico. Se o Exu apresentado por Silva reivindica essa construção de tropos, a pombagira da Marcia Contins traz personagens e seus conflitos e realidades mais nuançadas do subúrbio carioca.

Ao fim e ao cabo, a pombagira é um caso inédito na história da criminologia brasileira, pois não se conhece qualquer registro em que uma entidade espiritual tenha dado depoimento perante uma autoridade terrena, um delegado, e que este depoimento tenha tomado a forma de documento oficial com a supervisão de um pai de santo, um pastor, um psicólogo e um parapsicólogo. A lógica religiosa imiscuída às demais lógicas da vida social, tema tão caro às análises mais sofisticadas da vida moderna, parece transitar pelos corredores da mesma delegacia.

Se seu Sete da Lira estava na televisão, por que não entrevistar a pombagira na delegacia e nos jornais para saber qual a sua narrativa sobre o crime? Seus cavalos são mulheres e trazem ao vivo e em cores como esse aspecto espiritual pode ser visto e pensado fora dos terreiros, pois assim é em suas cosmologias, que unem corpos e elementos de múltiplas materialidades. Essas médiuns trazem o transe para a cena pública e obrigam a antropóloga a se desconstruir.

Como seus personagens também são meio pombagiras, matizam seus dramas com uma linguagem religiosa e mostram sua complexidade. Os caminhos de construção de uma subjetividade estão ali reflexionados na construção religiosa, não de um modo imediato, colado a uma representação, mas como produtora de novas virtualidades.

Não preciso dizer que sou apaixonada por esse personagem pulsante: a pombagira. E menos ainda que o trabalho de Contins traz elementos, envoltos numa temporalidade dos anos 70 e 80, mostrando as mudanças no campo religioso mais amplo.

A vida carioca, os subúrbios, o crescimento religioso... Que agencialidades a pombagira traz para pensarmos gênero nas camadas populares? Indo além da representação primária sobre a pombagira como defensora das mulheres, podemos pensar em como seus giros continuam a desafiar lógicas, na importância da mediunidade na construção de subjetividades, e muito além disso.

Bibliografia

  • BELISO-DE JESÚS, Aisha. (2015), Electric Santería: Racial and Sexual Assemblages of Transnational Religion New York: Columbia University Press.
  • BIRMAN, Patricia. (2005), “Transas e transes: sexo e gênero nos cultos afro-brasileiros, um sobrevôo”. Revista Estudos Feministas, vol. 13, nº 2: 403-414.
  • CONTINS, Marcia. (1983), O Caso da Pomba Gira: reflexões sobre crime, possessão e imagem feminina Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, UFRJ.
  • GONÇALVES DA SILVA, Vagner. (2013), “Exu do Brasil: tropos de uma identidade afro-brasileira nos trópicos”. Revista De Antropologia, vol. 55, nº 2: 1086-1114.
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    Texto apresentado em 21 de novembro de 2023, no ciclo de debates “Ciências Sociais na UERJ: Temas, Trajetórias e Perspectivas”, realizado em homenagem a Marcia Contins pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPCIS/UERJ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    22 Nov 2023
  • Aceito
    24 Mar 2024
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