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Aplicabilidade de teorias: microneoclássica e estratégia empresarial

Applicability of theories: microneoclassicaland entrepreneurial strategy

RESUMO

A matemática é um capital geral e lógico bom para a construção da ciência empírica. A ciência empírica pura (por exemplo, a Teoria do Finn) é um capital lógico, mas específico, bom para a construção da ciência empírica aplicada. Este último (Estratégia Corporativa como exemplo correspondente) é um capital dialético e específico para o aprimoramento da arte da ciência. A complementaridade entre essas distintas esferas de conhecimento é óbvia. No entanto, é obscurecido pelo vício ricardiano dos economistas. Um estudo do trabalho de Ansoffs - ele é o principal protagonista da Teoria da Estratégia Corporativa - é realizado sob essa perspectiva.

PALAVRAS-CHAVE:
Metodologia da economia indeterminação de Senior; vício Ricardiano

ABSTRACT

Mathematics is a general and logical capital good for the construction of empirical science. Pure empirical science (e.g. Theory of the Finn) is a logical but specific capital good for the construction of applied empirical science. The latter (Corporate Strategy as a corresponding example) is a dialectical and specific capital good for the improvement of the art of science. The complementarity among these distinct spheres of knowledge is obvious. It is however obscured by the economists’ Ricardian Vice. A study of Ansoffs’ work- he is the chief protagonist of the Theory of Corporate Strategy - is conducted under this perspective.

KEYWORDS:
Economic methodology; senior indeterminacy; Ricardian vice

1. INTRODUÇÃO

Em trabalho anterior (Silveira, 1991SILVEIRA, A. M. (1991). ‘’The Public Choice perspective and Knight’s institucionalist bent”. Anais do 19º Encontro Nacional de Economia, Curitiba: ANPEC, vol. 4, pp. 69-94.), mostrei que o conhecimento é mantido e desenvolvido ao longo de três níveis de abstração: ciência abstrata (lida com a lógica do fenômeno), ciência aplicada (lida com a dialética do fenômeno) e arte da ciência ou conhecimento profissional e prático (lida com a totalidade do fenômeno). Fiz então uma analogia, em todos os níveis, entre os especialistas de três campos do conhecimento, quais sejam matéria inerte (físico, cientista da engenharia, engenheiro profissional), vida (biólogo, cientista da medicina, médico profissional) e sociedade (economista abstrato, economista aplicado, economista profissional), estudando comprometimentos, motivações, linguagens e habilidades desses especialistas, assim como os conflitos paradigmáticos e as cegueiras científicas ou profissionais de que são vítimas. Cheguei à formulação de uma indeterminação do conhecimento científico, denominando-a Indeterminação de Senior. Pode-se colocá-la nos termos seguintes:

As proposições da economia abstrata (teoria do crescimento, por exemplo) não autorizam conclusões normativas, mas não podem ser ignoradas. A economia aplicada positiva (desenvolvimento econômico, como exemplo correspondente) pressupõe as teorias abstratas da economia e, com relevância variável, todas as demais ciências. Conclusões normativas - sob a forma do que não deve ser feito - são deriváveis das proposições da economia aplicada, mas são ainda qualificáveis pelas especificidades presentes em cada ocorrência do fenômeno. Incorre-se no Vício Ricardiano quando se ignoram as especificidades em qualquer aplicação de teoria, ou quando se derivam proposições normativas a partir de teorias abstratas.

A Indeterminação é vista num corte da história, um corte de já estabelecidos os três níveis de abstração no conhecimento. É óbvio que os três se complementam, e que é numa interação dinâmica, ou melhor, evolutiva, que ocorrem hoje os grandes saltos do saber. É também óbvio que a Indeterminação não estabelece qualquer precedência histórica. Pelo contrário, a ordem histórica foi geralmente inversa: a física surgiu depois de muita tecnologia, e as generalizações empíricas da tecnologia (ciência da engenharia) só ocorreram após muita perda de tempo em empirismo puro, puro saber-como.

Assim também Senior (década de 1830) deu origem à economia hipotético-dedutiva, logo depois da formulação abstrata de Ricardo (década de 1810), mas ambos trabalhando a partir da economia aplicada de Smith (década de 1770), marco inicial da ciência ao lado de Turgot e Beccaria. Os três construíram sobre os trabalhos dos filósofos morais e de muitos outros, corno Maquiavel (década de 1520), Sully (década de 1600) e Galiani (década de 1750), tendo estes emergido do empirismo.

Este artigo focaliza a ciência aplicada positiva, um conhecimento ordenado e testado, que se desenvolve hodiernamente sob a iluminação de distintas teorias (a ciência da engenharia iluminada pela física, pela química etc.; a medicina pela biologia, pela bioquímica etc.; a economia aplicada pela economia abstrata, pela sociologia, pela demografia etc.). O comprometimento do especialista é com a aplicabilidade das teorias (ou modelos, se o ponto é enfatizar a maior proximidade com as entidades do mundo real). A linguagem da ciência aplicada não se restringe à lógica. Se todas as ciências abstratas, inclusive a física deste século, se apresentam com teorias distintas e mutuamente inconsistentes, a despeito de perfeitas consistências internas, não há como pretender consistência lógica na construção interdisciplinar. Há, entretanto, que se discernir as inconsistências oriundas apenas da parcialidade dos modelos, que não passam assim de contradições espúrias.

A linguagem da ciência aplicada é a dialética, não a lógica ou a aritmomorfia (de forma aritmética), na expressão de Georgescu-Roegen, Em oposição à física newtoniana, os conceitos da economia não possuem unicidade no próprio mundo das ideias, eles são aritmomórficos, não atendem ao princípio da não-contradição da lógica (“é” versus “não é”). Knight, um mestre da economia abstrata e da lógica em seu trabalho teórico, não o é menos da economia aplicada e da dialética em sua obra econômico-filosófica. Um bom exemplo tirado de suas discussões sobre o construto Homem Econômico:

“O conceito de homem econômico é válido e útil; é fundamentalmente verdadeiro que, em extensão importante, os homens se comportam economicamente, isto é, como homens econômicos. Mas também em extensão importante eles não o fazem; a motivação é composta; eles agem de muitas maneiras distintas, e até parcialmente misturadas. A visão econômica do homem está longe de ser o todo da realidade humana, ou mesmo de uma descrição acurada em que é válida como descrição parcial, abstrata” (Knight, 1960, p. 71).

Este artigo aborda um aspecto da interação evolutiva entre os três níveis de abstração, e uma evidência empírica mostrando a ciência administrativa como nível aplicado da economia e da política, em analogia com a ciência da engenharia em relação à física e à química. A evidência é de importância maior, pois já mostra a evolução histórica do conhecimento científico coincidindo com a ordem de precedência da Indeterminação: a teoria neoclássica da firma (economia abstrata) informando a construção do modelo de estratégia empresarial (economia aplicada ou ciência da administração); com as tentativas de aplicação, o modelo demonstra-se insatisfatoriamente incompleto, sendo então estendido e aperfeiçoado, mas agora sob a iluminação complementar da ciência política, entre outras. Vê-se isso na evolução da obra de um dos grandes pioneiros, Ansoff (1965-1987ANSOFF, H. I. (1965). Corporate Strategy. Nova York: McGraw-Hill. (Nova edição: Harmondsworth, Middlesex, Penguin Books, 1987.), 1980ANSOFF, H. I. (1980). Strategic Management. Londres: Macmillan.).

A seção 2 é dedicada ao estudo das decisões estratégicas, no que seria, usual e impropriamente, chamado “teoria econômica aplicada”. A seção introduz o economista a um tratamento mais realista das decisões empresariais, restringindo-se à versão original da teoria na formulação de Ansoff. A microeconomia neoclássica (doravante micro) trata as decisões numa dicotomia: o curto prazo, cuidando da escolha entre preços e quantidades produzidas, e o longo prazo, acrescentando a escolha de bens de capital.

A ciência administrativa parte de uma tricotomia, classificando as decisões em operacionais, administrativas e estratégicas. Numa correspondência frouxa, as duas primeiras abrangem a dicotomia da micro, enquanto a terceira destaca a decisão sobre o campo de situação da firma. Formula-se não a racionalidade do agente, mas a do processo decisório. A maximização reduz-se a um ótimo factível, em que o lucro se espelha numa lista-mestra de subobjetivos realisticamente tratáveis. A escolha envolve uma busca ordenada e inteligente, que gradualmente constrói as alternativas de investimento que redefinem a firma.

A seção 3 enriquece o conteúdo da matéria. Passa à segunda fase de Ansoff, e mostra a incompletitude da primeira versão de sua teoria econômica aplicada. Pela definição que derivei de Mill, ela não absorvia, das demais ciências sociais, o necessário para que se pudesse chegar a conclusões normativas, vale dizer, para que se tivesse uma compreensão minimamente abrangente do fenômeno da estratégia empresarial. Essa seção aborda as irreversibilidades das decisões estratégicas, e considera as influências da estrutura interna de poder, entre outras questões.

Um trabalho multidisciplinar requer introdução mais longa, além de uma previsão mais específica do leitor. Escrevo para economistas com conhecimento ligeiro da teoria de estratégia empresarial e da filosofia econômica. Logo, é preciso resumir seletivamente Ansoff, e dosar bem a filosofia, parecendo-me desejável uma abordagem gradualista. Não cabe um tratamento compreensível da estratégia empresarial. Fiz uma apresentação condensada da Indeterminação de Senior nesta introdução, atendendo aos que não leram Silveira (1991SILVEIRA, A. M. (1991). “A Indeterminação de Senior”. Revista de Economia Política 11 (4), pp. 70-88, out-dez.). Para estes, acrescento que o objetivo maior deste artigo é esclarecê-la melhor, e fundamentá-la com o melhor exemplo, ou estudo de caso, que encontrei. Espero assim que o entendimento seja crescente ao longo da leitura.

2. A RACIONALIDADE ECONÔMICA DO PROCESSO DECISÓRIO

Estratégia empresarial é o estudo das decisões de mudança da carteira de produtos mercados da firma, grandes corporações integradas sendo geralmente tomadas como referência. Na caracterização de Ansoff, decisões sob condições de ignorância parcial (em oposição a risco ou incerteza), decisões que não são repetitivas ou auto-regenerativas, decisões que não se impõem oportuna e automaticamente à atenção do agente. Knight (1936KNIGHT, F. H. (1936). The Ethics of Competition and Other Essays. Londres: Allen & Unwin., p. 64) discorre bem sobre a importância delas no âmbito pessoal, importância que se transfere em parte para o caso da firma:

“Vale a pena observar que o caráter excessivamente crucial de decisões únicas, não-repetitivas, é um fenômeno comum em todas as fases da vida, uma das principais fontes de suas tragédias e sofrimentos. Ao planejar qualquer aspecto de nossas carreiras, raramente podemos fazer experiências suficientes para testar a nossa real habilidade de julgamento. E, quando pensamos na possibilidade de desenvolver um juízo melhor, deparamo-nos com a tragédia essencial de brevidade da própria vida”.

No âmbito empresarial, acrescente-se que as decisões estratégicas são essencialmente centralizadas, definindo o campo de atuação presente e futuro da firma. Decisões estratégicas distinguem-se das decisões operacionais - em que se pode destacar a fixação de preços e quantidades produzidas-, e das decisões administrativas, em que Ansoff (ibid., p. 8) engloba matérias como contratação e desenvolvimento de recursos ou fatores de produção, ou como fluxos de autoridade e de responsabilidade, etc. O autor lamenta que por estratégia não se entenda apenas regras para decisão sob ignorância parcial, mas também regras relacionando a firma à sua ambiência. Como cientista aplicado, entretanto, fica no lamento e até desculpa a prática, tendo em vista que as condições de ignorância parcial prevalecem na relação com a ambiência (ibid., pp. 120-1).

A ignorância parcial com que se depara o decisor pode ser percebida na assimetria de informações entre o campo atual e o campo futuro da firma. No atual, conta-se com conhecimento direto sobre produtos, mercados, tecnologias e clientes como dados internos de acuidade conhecida - além de boa noção das imperfeições, inclusive falsificações, com que são publicados -, e sabe-se das especificidades através da experiência direta, experiência que informa toda a perícia acumulada e imediatamente disponível. Já o conhecimento sobre os concorrentes é assimetricamente menor. Em princípio, o campo futuro de grandes corporações é escolhido levando-se em conta todos os demais setores da economia. O conhecimento destes é comparativamente ínfimo, indireto, mesmo depois de seleções prévias que reduzem o universo a meia dúzia de setores alternativos, que poderiam, efetivamente, compor-se com o atual na definição da firma de amanhã.

Ignorância parcial define então um estado de conhecimento bem inferior ao que é estabelecido para situações de incerteza (quando se conhecem as alternativas), ou para situações de risco (quando se conhecem ainda mais as probabilidades de ocorrência das alternativas). Ignorância parcial corresponde ao que Georgescu (1967GEORGESCU-ROEGEN, N. (1967). Analytical Economics. Cambridge, MA: Harvard University Press., p. 63) chama conhecimento incompleto, em oposição a conhecimento imperfeito, que abrange risco e incerteza. Não se pode supor conhecimento apenas imperfeito em estratégia empresarial; por definição, a ciência aplicada incorpora o saber-como, e não há como saber de todas as alternativas de produtos-mercados, a não ser que se faça uma busca exaustiva na economia; incorrendo-se em custo infinitamente grande.

A especificação, por Ansoff, de sete estados do conhecimento quando da ocorrência de inovações ou novidades na ambiência da firma, permite uma visualização ainda mais nítida do conceito de ignorância parcial. Nas palavras do autor:

“(1) Senso de Turbulência: convicção de que descontinuidades estão pendentes. (2) Identificação da Fonte: a tecnologia, a fonte de distúrbio do mercado, ou a mudança sociopolítica. (3) Identificação do Impacto: características, natureza, gravidade e ocasião do impacto podem ser estimadas, sujeitos a incerteza de ocorrência. (4) Determinação da Reação: ocasião, programas e orçamentos podem ser identificados. (5) Estimativa do Resultado: o resultado da reação é computável, sujeito a incerteza. (6) Primeiro Impacto: resultados operacionais acusam primeiros efeitos. (7) Pleno Impacto” (Ansoff, 1980ANSOFF, H. I. (1980). Strategic Management. Londres: Macmillan., p. 49).

O primeiro estado é talvez o mais impreciso, estando exemplificado como uma sensação de que algo estava por acontecer na indústria eletrônica no início dos anos 40. O segundo veio com a consciência de que a fonte do distúrbio residia no fenômeno da semicondução. A invenção do transistor, o terceiro estado, só ocorreu em 1946, passando-se ainda três anos para o início da comercialização, o sexto estado. Observe que os quatro primeiros estados mostram graus distintos de ignorância parcial, que decrescem, a partir do incomodador “senso de turbulência”, até um ponto que permite a “determinação da reação”.

A progressiva aquisição do conhecimento, que está condicionada à passagem do tempo, leva ao quinto estado, “estimativa do resultado da reação”. Observe também que só então o conteúdo de informação se torna compatível com a teoria de decisão, pois já existe apenas “incerteza sobre a ocorrência de resultados de eventos plenamente especificáveis” (ibid., pp. 47-8). Posso derivar da Indeterminação de Senior um teorema relevante para esclarecer melhor o “senso de turbulência” do primeiro estado e orientar operacionalmente o setor estratégico da firma Teorema.

Um desenvolvimento significativo na ciência abstrata tende a provocar mudanças nas ciências aplicadas em que ela se mostra relevante, e possivelmente noutras, constituindo-se num indício, prenúncio ou alerta de inovações tecnológicas importantes.

“Possivelmente noutras” porque inovações são fontes de mudança nas fronteiras do conhecimento. A importância da proposição merece um recurso a Maquiavel (1968MAQUIAVEL, N. (1963). The Prince. Nova York: Washington Square., p. 9), no início do século XVI: “Nos primeiros estágios [de uma doença] é fácil curá-la, mas é difícil reconhecê-la, enquanto com o curso do tempo ... é fácil reconhecê-la, mas difícil curá-la”. Proponho assim o seguimento das revoluções nas ciências abstratas é também meio de aperfeiçoar a fase de percepção do processo decisório, é meio de prestar atenção nas oportunidades ou necessidades de decidir.

A teoria de investimento do capital focaliza apenas as fases de avaliação e escolha das alternativas, deixando no escuro as etapas de percepção e formulação delas; Ansoff (ibid., pp. 14-8) reconhece a contribuição de Simon (1960SIMON, H. A. (1960). The New Science of Management Decision. Nova York: Harper&Row.) na elucidação das quatro fases envolvidas no processo decisório. A teoria do capital, quando muito, estabelece que a formulação ocorre em busca que prossegue enquanto seu custo esperado for inferior à expectativa de ganho em nova alternativa. Como costuma acontecer com teorias abstratas, tem-se então não mais do que uma diretriz para a abordagem aplicada.

A fase de formulação das alternativas, incluindo as seleções prévias, é parte crucial da decisão estratégica. Também o é a fase de percepção da necessidade ou da oportunidade da própria decisão, pois, como já dito, esta não se impõe oportuna e automaticamente à atenção do decisor. De fato, as quatro fases não são cobertas sequencialmente pelo decisor estratégico. A formulação é um processo de busca exequível, ou inteligente, que exige avaliação e escolha enquanto as alternativas são construídas. A percepção tende a ocorrer na medida em que a firma mantém sua ambiência sob observação e análise.

2.1 O livro clássico

O livro de Ansoff, Estratégia Empresarial (1965ANSOFF, H. I. (1965). Corporate Strategy. Nova York: McGraw-Hill. (Nova edição: Harmondsworth, Middlesex, Penguin Books, 1987.)), um pioneiro e um clássico da área, foi escrito na Carnegie-Mellon University, então Carnegie Institute of Technology, mas incorpora a experiência profissional direta do autor. Este, aliás, enxerga-se dividido entre a atividade profissional e a ciência social aplicada. A matéria do livro se enquadra consistentemente nessa fronteira. Vê-se o reconhecimento da limitação temporal e espacial da análise, e o seu endereçamento explícito aos altos executivos dos EUA. Manifesta-se a esperança de que venha a ser semelhantemente útil a professores e estudantes de administração. Nas palavras do autor, “tentamos construir um arcabouço analítico prático ... emergiu um arcabouço qualitativo-quantitativo, desenvolvido em linguagem de negócios, e diretamente utilizável para a solução de problemas do mundo real... Um livro que procura unir teoria e prática ... “ (ibid., pp. viii-ix).

Trata-se de uma extensão da teoria comportamental da firma, mas fortemente vinculada à teoria neoclássica. Está ligeira mas oportunamente informada pela teoria de seleção de carteiras (ibid., pp. 22-3, 68- 71) e, menos ainda, pela teoria dos jogos (ibid., pp. 180-2)- as duas últimas achavam-se então longe do estágio de integração atual com o neoclassicismo. Não se observa qualquer crítica negativa das teorias abstratas, tudo se passando como se fosse geralmente reconhecido que estas são mesmo de aplicabilidade indireta, e que não fazem mais do que iluminar a construção de teorias aplicadas. É da prática, ou indiretamente da teoria comportamental, que se deriva o que pode ser relacionado com sociologia ou ciência política.

Busca-se a racionalidade do processo decisório (Simon 1978SIMON, H. A. (1978). “Racionality as process and as product of thought”. American Economic Review, 68, pp. 1-16, maio.), e é interessante observar que o autor se revela embaraçado por não chegar deterministicamente à escolha final - programável “para computadores”-, deixando transparecer ainda a expectativa de que futuramente se alcance uma teoria sem esse “defeito” (ibid., p. 206)! O “defeito teórico” chega, entretanto, a ser visto como uma vantagem para o decisor prático, pois atenção pode em consequência ser dada às especificidades, cabendo também lugar para preferências pessoais. Vê-se aqui uma indicação segura de que o autor estava longe de uma assimilação consciente da Indeterminação de Senior.

Lê-se maximização a todo o tempo, mas é do satisfazimento que se deriva essencialmente a concepção do processo decisório. Existe, entretanto, margem genuína para o meio a meio em que o autor se coloca. Volto-me para esse ponto usando uma conexão já feita entre Knight e Simon (Silveira, 1991SILVEIRA, A. M. (1991). “A Indeterminação de Senior”. Revista de Economia Política 11 (4), pp. 70-88, out-dez., pp. 80-2). O Homem Administrativo deste é dotado de um nível de aspiração e de um mecanismo de busca. Quando a realização cai para níveis menores que os da aspiração, o Homem Administrativo empreende buscas sequenciais por uma alternativa aceitável, alternativa que iguale realidade e aspiração, ou que faça a primeira exceder a última. A busca é encerrada pelo encontro dessa alternativa (satisfazimento).

O nível de aspiração depende da realização própria no passado, e da realização de grupos de referência, entre outros fatores, como a passagem do tempo e o próprio processo de busca. Uma continuada ambiência adversa, como o Brasil dos anos 80, produz lenta decaída da aspiração, e vice-versa. A velocidade da queda pode ser retardada por relativos sucessos na busca, ou acelerada por repetidos fracassos, valendo novamente o oposto. Logo, o sistema converge para uma solução única (March e Simon, 1959MARCH, J. G. and H. A. Simon, (1959). Organizations. Nova York: John Wiley & Sons., pp. 47-50, 182-3).

Vê-se claramente que o construto Homem Administrativo é compatível com abordagens históricas e evolucionárias (a evolução será discutida a seguir). Por outro lado, maximização e satisfazimento podem ser tomados teoricamente equivalentes no longo prazo, como o próprio Simon declara, e Hahn (1984HAHN, F. (1984). Equilibrium and Macroeconomics. Oxford: Basil Blackwell., p. 2), entre outros, confirma. Mas não há prova disso mostrando formalmente o que precisa ser deixado de fora, como, por exemplo, a passagem do tempo (tempo histórico ou evolucionário).

Volto-me para a conexão entre Simon e Ansoff. Definindo-se nível mínimo e meta para o objetivo ou aspiração da firma, podem-se acumular alternativas de investimentos que satisfaçam o nível mínimo, alternativas aceitáveis, enquanto a busca produz combinações que atingem a meta. A busca é encerrada quando o número de alternativas em análise se esgota. Esse número é sucessivamente reduzido, num processo iterativo com grau crescente de detalhamento e de acúmulo de informações sobre as alternativas julgadas aceitáveis em cada fase. Começando por todas as alternativas vislumbráveis e em nível setorial da economia, finda-se por alternativas viáveis e individualizadas em nível de produtos e mercados específicos.

Tem-se um ótimo factível. Mínimo e meta crescem sob ambiência propícia e sob sucesso na busca, e vice-versa. Esses valores não variam “lentamente” com a passagem do tempo, garantindo a convergência, como em Simon. Esses valores são “restrições abertas”, revistas consciente e objetivamente na medida em que a análise progride, e em que testes de aceitabilidade e de viabilidade evidenciam a necessidade ou oportunidade de revisões. Mas Ansoff não faz essa vinculação de modelos, muito menos fala em convergência; sua consciência da importância das especificidades, entretanto, nada deixa a desejar:

“No nível prático, limitações de dados levam geralmente ao uso de fluxos de caixa típicos de uma categoria produto-mercado, não de fluxos específicos para as oportunidades em questão. Mas a firma necessita não de fluxos típicos, mas de particulares, que reflitam as vantagens competitivas únicas da oportunidade produto-mercado, tais como qualidade superior, ocasião de lançamento do produto, apelo ao consumidor e reações de concorrentes” (ibid., pp. 17-8).

Na decisão estratégica, parte-se não de um, mas de um conjunto de objetivos preliminares que, relacionados às previsões correntes, produzem hiatos (aspirações menos realizações) a serem cobertos pela expansão e diversificação da firma. Esse processo em si já leva a uma revisão mais realista dos objetivos e, em consequência, dos hiatos. Constrói-se em seguida um perfil da firma, relacionando suas capacitações humanas e organizacionais, assim como seus equipamentos e instalações. Faz-se em sequência o mesmo para seu campo de atuação, obtendo-se um perfil de excelência a partir do que de melhor existe entre seus concorrentes. A comparação dos perfis mostra as oportunidades preliminares de expansão, assim como até que ponto é possível reduzir os hiatos com um esforço máximo dentro do atual campo. O que resta dos hiatos fica então para diversificação.

A preferência pela expansão deve-se ao risco resultante da maior ignorância parcial inerente à diversificação. Recursos financeiros para expansão e diversificação constituem-se em testes de viabilidade e são obtidos a partir das estimativas de resultados operacionais e das limitações em aumentos do capital próprio e de terceiros, sob cada configuração possível da firma.

No processo de identificação das alternativas, os objetivos constituem os fins, o conjunto de “finalidades e restrições abertas”, enquanto a sinergia, o vetor de crescimento e a vantagem competitiva formam as diretrizes ou regras estratégicas para uma busca inteligente. Pode-se definir sinergia mnemonicamente como “dois mais dois é diferente de quatro”. Pode-se defini-la imperfeitamente como a operacionalização da teoria neoclássica, quando esta estabelece que apenas receitas e custos marginais devem ser considerados na análise de alternativas de investimento. E assim é, afinal, como Ansoff considera teoricamente a questão, ao definir sinergia “como medida dos efeitos conjuntos”, e ao afirmar que seu uso “surge de necessidades práticas em vez de teóricas” (ibid., p. 75).

Convém ressaltar que o autor pensa apenas no neoclassicismo quando aqui fala de teoria, e não se refere a antíteses, ou a críticas ao individualismo metodológico (a unidade de análise do comportamento coletivo é o indivíduo). Hayek (1975HAYEK, F. A. von (1975). “The Pretense of Knowledge ”. In Les Prix Nobel em 1974. Estocolmo: Nobel Foundation.), por exemplo, parece evitar o fato de que a interação dos elementos individuais provoca mudanças que tornam o comportamento coletivo parcial ou totalmente inexplicável em termos dos atributos de seus indivíduos; trata-se de grande limitação do individualismo metodológico e, em consequência, de todas as teorias que o adotam, começando pela neoclássica.

Devo observar que o oposto holismo metodológico é igualmente qualificável em termos similares. O holismo mantém o coletivo como unidade de análise, isto é, o coletivo explicando o comportamento individual. Georgescu (1967GEORGESCU-ROEGEN, N. (1967). Analytical Economics. Cambridge, MA: Harvard University Press., pp. 17-129) analisa profundamente a questão das mudanças qualitativas, chamando-as novidades na composição. Novidades ou mudanças como as que impedem a explicação do comportamento humano a partir dos elementos químicos que compõem o organismo, ou, menos descontinuamente, o comportamento de grupos a partir dos indivíduos que os formam. Tem-se aqui talvez a maior limitação da lógica e da matemática na economia, e um aspecto não menos crucial da sinergia.

O vetor de crescimento é outro componente da estratégia da firma, mostrando elos comuns entre seus produtos e mercados. Definem-se aqui as diversas formas de expansão e diversificação da firma. Mas não há espaço para desenvolvê-las, cabendo apenas algumas considerações ligeiras sobre o terceiro componente da estratégia, a vantagem competitiva. Estudam-se nesta os atributos de produtos-mercados que tendem a proporcionar à firma uma posição concorrencial segura. Limito-me a dois exemplos, pois necessito elaborar bem a questão dos objetivos da firma.

A antecipação de tendências e oportunidades vantajosas é uma forma de conseguir vantagem competitiva. Cabe exemplificar com o caso limite da Sony: “O gravador de fita era uma ideia tão nova no Japão que quase ninguém sabia do que se tratava, e mesmo os que sabiam não viam por que comprá-lo” (Morita, 1986MORITA, A. (1986). Made in Japan. São Paulo: Cultura., p. 67).

O controle de concorrência é outra dimensão do estudo da vantagem competitiva. A Alcoa constitui-se num bom exemplo (Cohen e Cyert, 1965COHEN, K. J. and R. M. Cyert (1965). Theory of the Firm: Research Allocation in a Marked Economy. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall., pp. 200-2). O monopólio na produção do alumínio foi mantido por mais de cinquenta anos, através do aperfeiçoamento do produto e de seu processo de fabricação, de um lado, e de várias práticas de controle de entrada, do outro. De 1888 a 1909 destaca-se a proteção por patente; de 1910 a 1912 a exclusividade com fornecedores da principal matéria-prima, bauxita, e o cartel com concorrentes externos, mantendo-os fora do mercado dos EUA. De 1913 a 1945, valeram mais a capacidade instalada sempre acima da demanda e a autocontenção no preço monopólico. Coube ao governo encerrar tais práticas, através do leilão de usinas, depois da Segunda Guerra Mundial.

A Alcoa é também um ótimo caso para exemplificar a dialética. É fato que a manutenção das liberdades econômicas exige uma participação ativa do governo na economia. O testemunho analítico de Erhard, Bem-Estar para TodosEHARD, L. (s/d). Bem-Estar para Todos. Rio de Janeiro: Livros de Portugal., mostra a intensidade desse tipo de intervenção no chamado “milagre alemão”. Knight (1936KNIGHT, F. H. (1936). Intelligence and Democratic Action. Cambridge, MA: Harvard University Press.) analisa a matéria, que pode ser perfeita, mas provocativamente apresentada como “a contradição ou incompatibilidade lógica entre o laissez-faire e as liberdades econômicas”. Sem provocações, as liberdades exigem dialeticamente a intervenção ativa do governo na prevenção de formações monopólicas; ou, ainda, essa intervenção é uma “exceção” à regra laissez-faire. Nesse sentido, vale a proposição popular “a exceção que confirma a regra”. O ponto é que, nas ciências aplicadas, o contraexemplo não invalida necessariamente um teorema.

2.2 Objetivos

A maximização do lucro a longo prazo é aceita no abstrato, donde não mais do que norteia a formulação do conjunto operacional de subobjetivos. Falar de maximização na ciência aplicada é tão grotesco e impróprio quanto faltar com a lógica no abstrato. Falar em conseguir a melhor taxa de retomo que se pode vislumbrar para o capital acionário já se toma inteligível. Nesse ótimo factível está o reconhecimento de que ninguém sabe como maximizar na vida real, dadas as limitações cognitivas do ser humano, isoladamente ou em grupos. Também está a aceitação e o uso dos dados contábeis e gerenciais existentes, em virtude do elevado custo em substituí-los. Está ainda a segmentação das decisões, quando as administrativas e as operacionais foram deixadas de fora do processo estratégico.

Talvez seja apenas pela força da expressão que se continua a falar de maximização.

Entende-se, naturalmente, que é a melhor taxa de retomo que se pode vislumbrar ou executar num horizonte indefinidamente longo. A operacionalização do “indefinidamente longo” exige que o objetivo seja subdividido em duas dimensões ou categorias: médio e longo prazos. A falta de confiabilidade dos dados, na medida em que o horizonte se estende, limita a utilidade ou o significado de fluxos de caixa a alguns poucos anos, e dispensa o uso de equivalências financeiras. Dentro desse reduzido horizonte, faz sentido estimar fluxos financeiros e calcular taxas médias de retomo, entendidas apenas como receita líquida sobre investimento. Tais taxas atendem ao “objetivo de médio prazo” da firma, isto é, mostram contribuições para sua rentabilidade de médio prazo - Ansoff fala de período próximo, estimado em três a cinco anos nos EUA.

O “objetivo de longo prazo”, que, enfatizo, é uma segunda dimensão em que a firma e as alternativas são analisadas, não pode ser medido diretamente. Valores típicos não devem ser utilizados além das iterações preliminares, pois, como visto acima, e como a Indeterminação de Senior estabelece, as especificidades (“vantagens competitivas únicas”) qualificam as generalidades (“fluxos típicos”), assumindo eventualmente importância maior. Por outro lado, sabe-se dos fatores que tendem a garantir o retomo a prazos mais longos, podendo-se englobá-los num grupo de subobjetivos. Alguns, como taxa de crescimento das vendas e de utilização da capacidade, apontam para o “poder competitivo” da firma; outros, como grau de especialização da força de trabalho e de antiguidade dos ativos fixos, para a sua “eficiência interna”.

Prever o imprevisível é tão ineficiente quanto não se prevenir para tal. Mesmo com seguimento permanente da ambiência, várias ocorrências colocam-se eventualmente como imprevisíveis para a firma: inovações tecnológicas ou choques externos, guerras ou catástrofes, mudanças de valores ou de gostos, choques da política econômica ou ecológica, mudanças constitucionais ou de sistema econômico (Leste europeu), etc. Logo, existe uma terceira dimensão não operacionalizada do objetivo, a qual pode ser expressa por um grupo de subobjetivos de “flexibilidade”. Financeiramente, tem-se os índices contábeis de liquidez. Do lado real, o grau de independência de tecnologias, mercados e clientes traduz a chamada “flexibilidade defensiva”, enquanto o número existente de tecnologias férteis e a capacitação em pesquisa e desenvolvimento significa uma “flexibilidade ofensiva”.

Em outras palavras, há uma prevenção quanto a choques imprevisíveis, tanto em termos financeiros - a keynesiana preferência pela liquidez- quanto em termos reais - investindo-se na diversificação de tecnologias e mercados, e preparando-se para introduzir inovações maiores ou para assimilar rapidamente o que venha a ser introduzido por outros. As três dimensões não esgotam obviamente a operacionalização do objetivo. Sob o ponto de vista aplicado, não se pode ignorar o fato ostensivo de que firmas seguem também os objetivos privados de seus executivos e, menos frequentemente, de seus trabalhadores. São objetivos que muitas vezes conflitam com o retomo dos acionistas, para não dizer daqueles que se constituem em fraudes mais ou menos nítidas.

Por outro lado, entender que só os participantes têm objetivos, e que os ditos objetivos distintos da firma não são mais do que institucionalizações do que objetivavam participantes do passado, não resolve o problema do cientista aplicado. Essa redução filogenética, mesmo se verdadeira, não desmente o fato de que objetivos institucionalizados afetam o comportamento dos decisores atuais. É interessante observar que Ansoff não responde aqui a seguidores da Escolha Pública, revolução ou sedição incipiente na época (Silveira, 1990SILVEIRA, A. M. (1990). “The Public Choice sedition: variations on the theme of scientific warfare”. Anais do 18º. Encontro Nacional de Economia, Brasília: ANPEC, vol. 1, pp. 147-66, 1990.), mas a Cyert e March, dois expoentes da teoria comportamental (Ansoff, ibid., pp. 60-1): “Como nosso interesse não é histórico, mas reside no problema imediato de proporcionar assistência aos decisores, reconheceremos tanto as influências institucionais quanto os objetivos pessoais como afetando as decisões estratégicas da firma”.

Numa quarta e última dimensão do objetivo da firma agrupam-se então os objetivos econômicos e não-econômicos dos atuais participantes, mais as restrições legais e institucionais, como segurança no emprego, além de responsabilidades historicamente assumidas, como financiamento de atividades filantrópicas ou de pesquisa. Nessa categoria, Ansoff lista vinte e um subobjetivos, que, quando adicionados a nove na flexibilidade, a vinte no longo prazo e a um no médio, totalizam cinquenta e um subobjetivos (ibid., pp. 44-66)! Trata-se, evidentemente, de uma lista-mestra, donde é possível extrair o que é relevante para cada firma, e em cada estágio de sua evolução. Apesar dos números, não se pode pretender que a enumeração seja exaustiva, nem muito menos que a lista inclua especificidades; cabe ao profissional fazê-lo em cada caso.

Tais números evocam a importância da ênfase de Hayek (1975HAYEK, F. A. von (1975). “The Pretense of Knowledge ”. In Les Prix Nobel em 1974. Estocolmo: Nobel Foundation., pp. 251-2) na caracterização dos fenômenos econômicos como estruturas de complexidade organizada de essência, estruturas que exibem um enorme número de elementos, cujo comportamento conjunto depende não apenas de suas frequências, mas também da forma como interagem. São estruturas que só comportam previsões de padrões, previsões de apenas alguns de seus atributos gerais. Ansoff não cita Hayek, nem fala da complexidade organizada, mas tem consciência do problema, e esforça-se para mantê-lo em mente durante todas as fases de sua modelagem. Hayek por certo desconhecia Ansoff, mas seu trabalho ganharia em realismo e força se o conhecesse. Um bom exemplo de Ansoff (ibid., pp. 46- 7) para Hayek

“Apesar de muitas aquisições de produtos individuais, de clientes ou de companhias não poderem ser antecipadamente especificadas, as características das indústrias em que elas ocorrerão, a probabilidade de suas ocorrências e seus atributos gerais podem. Por exemplo, uma firma interessada em entrar na indústria eletrônica pode não ser capaz de especificar antecipadamente os produtos e mercados que terá em dois anos. Pode, contudo, diagnosticar a espécie de tecnologia que caracterizará a linha de produtos, a perspectiva de crescimento geral, a natureza da competição, os padrões típicos de retorno nas vendas, o retorno no investimento, e índices preço/lucro”.

Alguns dos cinquenta e um subobjetivos parecem formalmente dedutíveis de outros, alguns mais ou menos acarretam outros ou, vale talvez dizer, são dialeticamente dedutíveis de outros. Muitos são mutuamente conflitantes, quantificáveis uns, incomensuráveis vários. Nada da simplicidade e elegância do abstrato em sua lógica, mas muito da aplicabilidade que, em última instância, justifica indiretamente o trabalho abstrato, tanto social quanto economicamente. Uma boa questão é evocável de imediato: como decidir entre alternativas aceitáveis, descritas ao longo de atributos tão díspares e tão irregularmente tratados. Primeiro, o número de atributos ou subobjetivos operacionais é, a qualquer tempo, bem pequeno na prática, como veremos nas seções 3.1 e 3.2. Segundo, Ansoff advoga que notas podem ser dadas e médias ponderadas calculadas. Cabe ao decisor e aos seus peritos fazê-lo, se simulações preliminares indicarem que o exercício se manifesta promissor.

O que se postula na teoria mais abstrata é o lucro. Ansoff busca claramente uma implementação viável. Reduzindo-se o grau de abstração, postula-se uma ordenação de preferências (subobjetivos) numa escala, digamos, uma função de utilidade. A solução não difere, em forma, da classificação que o cientista faz de seus alunos, graduando-os em termos de habilidade de pesquisa, originalidade, iniciativa, seriedade etc., através de notas que, agregadas em médias ponderadas, levam finalmente aos “5% melhores”, aos 10%, etc. Permito-me acrescentar que rigidez, nessa redução a um ou a poucos números, ou dependência exclusiva ou maior neles, quando se lida no nível aplicado, é aritmomorfia incabível. Não tanto quanto pensar no medir o tamanho do carro e de uma vaga, quando se procura estacioná-lo, mas o suficiente para evocar o exemplo.

Em termos da Indeterminação de Senior, a postura de Friedman é a antítese de Mill, como já indicado (Silveira, 1990SILVEIRA, A. M. (1990). “The Public Choice sedition: variations on the theme of scientific warfare”. Anais do 18º. Encontro Nacional de Economia, Brasília: ANPEC, vol. 1, pp. 147-66, 1990., p. 156; p. 80). Ao discutir o irrealismo dos pressupostos em seu clássico metodológico, Friedman (1953FRIEDMAN, M. (1953). “The methodology of positive economics”. In Essays in Positive Economics. Chicago: University of Chicago Press.) refere-se, entretanto, a um uso deles que é similar ao aqui feito por Ansoff, para chegar da maximização do lucro à média ponderada da linha-mestra de subobjetivos. Um exemplo de Friedman é o desconcertante postulado ficcionista: “As folhas (de uma árvore) se posicionam como se cada qual delas procurasse, deliberadamente, maximizar a quantidade de luz solar que recebe, tendo em conta o posicionamento de folhas vizinhas...” (ibid., p. 19).

O postulado seria um instrumento, um “simples sumário de regras... O enunciado é mais compacto e, ainda, não menos abrangente do que a lista” (ibid., p. 24). A última afirmação é uma das inúmeras peças que compõem o que deve ter levado Samuelson a outro “enunciado compacto”, mas sumariando o próprio artigo de Friedman: é como se “os chicaguenses usassem a metodologia para eliminar objeções ao que dizem” (Samuelson, 1963SAMUELSON, P. A. (1963). “Comments to prof. Nagel’s article”. American Economic Review LIII, pp. 229-36, May., p. 233). Não se pode obviamente derivar de um postulado (ou do conjunto de postulados de uma teoria) algo além do que aquilo que está logicamente contido nele. Friedman exemplificou o “sumário de regras” através do exemplo da maximização das folhas em vez do da maximização do lucro. Ele não poderia ter feito o que Ansoff fez, porque desconhecia estratégia empresarial. Não há como criar a passagem do postulado abstrato para a sua versão aplicada sem conhecer a prática.

A passagem não é uma dedução. Não se trata de derivar, mas sim de fazer sentido de um postulado abstrato, através da incorporação de elementos, que não estão nele contidos. Expressei isso falando há pouco de “nortear a formulação”, de “acarretar mais ou menos” ou talvez de “deduzir dialeticamente”. Tem-se aqui um exemplo factual e claro de uma forma em que a ciência abstrata ilumina a construção da ciência aplicada - Friedman, naturalmente, evita falar de ciência aplicada, e o “como se” de Samuelson é também sugestivo quanto à causa. Não se pode, contudo, retirar de Friedman o mérito de ter enfatizado essa utilização dos conceitos abstratos. Registre-se também a sua “elegância” (Occam), merecendo um exemplo, se reinterpretado à luz da Indeterminação de Senior (Friedman 1953FRIEDMAN, M. (1953). “The methodology of positive economics”. In Essays in Positive Economics. Chicago: University of Chicago Press., p. 25): “O modelo é a corporificação lógica da meia verdade, nada há de novo sob o sol; as regras de aplicação do modelo não podem, por sua vez, ignorar a igualmente significativa meia verdade. A História jamais se repete”.

3. A RACIONALIDADE SOCIOECONÔMICA DO PROCESSO DECISÓRIO: CIÊNCIA APLICADA

A importância da estratégia depende do campo de atuação da firma, isto é, do nível de turbulência tecnológica, política e social de sua ambiência. É crucial, por exemplo, no caso da EMBRAER, que trabalha com tecnologias de ponta, com a mais alta frequência e intensidade de inovações, e negocia com o setor de defesa nacional. A defesa adquire produtos na fase de projeto, ou pré-projeto, acelerando as inovações, pois busca a excedência de desempenho (Ansoff, 1965ANSOFF, H. I. (1965). Corporate Strategy. Nova York: McGraw-Hill. (Nova edição: Harmondsworth, Middlesex, Penguin Books, 1987.), p. 95). Esse fato estabelece um subsídio à aviação civil, mesmo que disfarçado, como nos EUA, e uma dependência maior no grau de turbulência da política em geral, e da política econômica em particular. Esta tende a não ser menos turbulenta do que a tecnologia no Brasil. Sendo a EMBRAER uma firma governamental, o problema se agrava acentuadamente, com o perigo de queda em armadilha estratégica (Ansoff, 1980ANSOFF, H. I. (1980). Strategic Management. Londres: Macmillan., p. 71).

Para cada indústria que apresenta eficácia econômica positiva sob condições de laissez-faire existe uma configuração de restrições que a toma inerentemente não lucrativa. Chamaremos tal configuração de regras de armadilha estratégica. Tal configuração pode ser imposta pelo governo a suas firmas, como ao transformá-las em instrumento de política de curto prazo. Pode, por outro lado, ser conduzida pelos próprios servidores delas, como ao esvaziá-las através de transferências contratuais para seus fundos de pensão (a quarta dimensão do objetivo vista na seção 2.2, os subobjetivos pessoais econômicos). Tal configuração é particularmente perigosa sob o império da tecnocracia econômica e sob o Vício Ricardiano. A tecnocracia, versão moderna da teocracia, entroniza autoridades que, ignorante ou mistificadoramente, “decidem em nome da ciência econômica”! O Vício Ricardiano leva ao estabelecimento de regras gerais derivadas de teorias abstratas, e, como tais, invariantes em relação ao campo de atuação das estatais. Resultam regras que podem assim gerar armadilhas.

O problema é novamente crucial no caso da EMBRAER, em particular quando vista em oposição às firmas governamentais de participação e de finanças, cujo conteúdo estratégico se resume apropriadamente à vantagem competitiva (Ansoff, 1965ANSOFF, H. I. (1965). Corporate Strategy. Nova York: McGraw-Hill. (Nova edição: Harmondsworth, Middlesex, Penguin Books, 1987.), p. 115).

A firma produtiva completamente integrada é a que necessita da estratégia mais compreensiva ou abrangente. Como suas decisões de produto-mercado envolvem longos períodos de maturação, existe necessidade de orientação para a pesquisa e desenvolvimento, assim como de habilitação para antecipar mudanças. Muito do seu investimento é irreversível, pois destina-se à pesquisa e desenvolvimento, o que não pode ser desfeito, ou destina-se a ativos físicos, o que é de difícil revenda. Ela precisa, portanto, minimizar a chance de tomar uma decisão ruim.

3.1 O princípio da irreversibilidade do tempo

Volto ao próprio conceito de decisões estratégicas, ao “caráter excessivamente crucial de decisões únicas, não-repetitivas”, segundo Knight, ao princípio da irreversibilidade do tempo, ou princípio de Georgescu-Roegen, como o chama Hicks. A matéria merece ser frisada com um enigma: o melhor relógio é o que menos mostra a passagem do tempo (Georgescu-Roegen, ibid., p. 72). Não é difícil decifrá-lo. O relógio mostra intervalos de tempo (um minuto, uma hora etc.) que se sucedem ao longo da passagem do tempo. Quanto melhor o relógio, tanto menor será o seu desgaste, e tanto mais idênticos serão os intervalos que mede ao longo da passagem do tempo. O relógio em si é um fenômeno mecânico cuja história se reduz ao seu desgaste, na ausência de acidentes. A teoria abstrata em questão, a mecânica racional ou a física newtoniana, ignora o desgaste, não levando em conta esse elemento do fenômeno; logo, os intervalos de tempo teóricos são perfeitamente idênticos, e invariantes ao longo da passagem do tempo.

Nos fenômenos sociais, a história não se reduz ao desgaste apenas, sendo muito, muitíssimo mais do que isso. A estratégia empresarial envolve um pouco desse muito, mesmo quando tratada à luz da economia, como o faz Ansoff na primeira edição do clássico. Gastos em desenvolvimento de produtos não são recuperáveis, sendo apenas parcialmente aproveitáveis. O produto certo na hora errada- o prematuro lançamento da TV em cores pela RCA (Ansoff, 1965ANSOFF, H. I. (1965). Corporate Strategy. Nova York: McGraw-Hill. (Nova edição: Harmondsworth, Middlesex, Penguin Books, 1987.), p. 84) - pode significar tanta perda quanto o produto errado na hora certa: o fenômeno depende crucialmente da passagem do tempo, da ocasião ou hora certa. Os seres humanos têm memória, e as firmas também. E a história, que se encontra parcialmente registrada na memória, determina muito do comportamento, pois “a história faz os homens, muito mais do que os homens fazem a história” (Knight, 1960, p. 36).

Capacitação da firma para cuidar da estratégia, assim como para pesquisa e desenvolvimento, é a formação de equipes, que exige tempo (intervalo de tempo). Mas as equipes devem estar formadas a tempo (passagem do tempo), e devem variar pouco com as expansões e contrações usuais da política monetária (stop-and-go), ou com regras para estatais: além das perdas irrecuperáveis, demissões e contratações ficam registradas na memória, afetando o comportamento da força de trabalho no tempo (passagem do tempo) - microeconomicamente, equipes poderiam ser tidas como custos fixos. Como visto anteriormente (seção 2.2), objetivos institucionalizados são operacionais, e o são por estarem na memória ou cultura da firma. É óbvio que se pode modificar a cultura, e que há que se fazê-lo frequentemente nas diversificações. Mas mudança de cultura é um empreendimento que exige tempo e recursos. Ciclo de vida de uma firma ou indústria é um conceito na história, na passagem do tempo:

“Uma pequena firma, tentando afirmar-se no mercado, pode não ter recursos gerenciais e financeiros para mais do que uma concentração na rentabilidade de curto prazo. Quando sua posição for mais segura, ela poderá olhar à frente, e adicionar objetivos de médio e longo prazos. Na fase madura, ela será capaz de dar alta prioridade para flexibilidade ... O conceito de ciclo de vida da indústria proporciona um bom veículo para discussão. Nos primeiros estágios exploratórios, a preocupação prevalente dos participantes é com a força competitiva externa, e com o uso de tecnologia recém disponível para implantar novas linhas de produtos e mercados. Na medida em que a indústria se torna estruturada, o objetivo norteador é a eficiência interna ...” (Ansoff, 1965ANSOFF, H. I. (1965). Corporate Strategy. Nova York: McGraw-Hill. (Nova edição: Harmondsworth, Middlesex, Penguin Books, 1987.), pp. 68- 70).

Vê-se como prioridades naturalmente estabelecidas pela fase histórica em que a firma se encontra limitam substancialmente o conjunto de subobjetivos operacionais. O problema prático é menos complexo do que lidar simultaneamente com cinquenta e um subobjetivos. A função de utilidade (os subobjetivos e seus pesos) varia com a passagem do tempo, tornando-se mais tratável na prática. É justamente o oposto do que acontece na teoria, em que a tratabilidade começa com a invariância imposta, e em que usualmente importa menos o número de argumentos, desde que entre eles existam regras de compensação simples e estáveis.

Assim como a teoria mecânica, a neoclássica está fora da história, abstrai a passagem do tempo. Tempo não é mais do que intervalo de tempo na “dinâmica” neoclássica, exatamente como na física. Diferentemente do fenômeno físico, entretanto, o fenômeno econômico está muito mais na história, depende muito mais crucialmente da passagem do tempo. Logo, nesse aspecto o grau de abstração da teoria neoclássica é muito mais alto do que o da mecânica, seguindo-se que a aplicabilidade daquela é muito mais indireta do que a desta. Definindo-se realismo em termos do grau de abstração, repete-se o que já foi dito quando se afirma que, nesse aspecto, o irrealismo do neoclássico é muito maior do que o do físico newtoniano. Esse é um primeiro teste para o realismo de uma teoria, um teste comparativo, e que pode estender-se ao longo de vários aspectos, e de distintas teorias.

Nada de errado ou depreciativo aqui. Cumpre-se, aliás, a “ambição maior (dos fundadores da escola neoclássica) de construir uma ciência econômica nos moldes da mecânica, ou (nas palavras de W. Stanley Jevons) uma ciência econômica vista como a mecânica da utilidade e do interesse próprio” (Georgescu-Roegen, 1975GEORGESCU-ROEGEN, N. (1967). Analytical Economics. Cambridge, MA: Harvard University Press., p. 347). Mecânica no caso significa lógica, teoria hipotético-dedutiva, e a lógica da utilidade ou do auto-interesse, construída já iluminando a construção de dialéticas da utilidade e do auto-interesse, como esse modelo de estratégia empresarial.

É nessa iluminação que reside muito do valor social de qualquer teoria abstrata.

E é noutra abordagem comparativa, agora da lógica e da dialética do mesmo fenômeno - teorias neoclássica e estratégica da firma -, que se tem um segundo teste comparativo para o grau de realismo da teoria abstrata. Uma segunda bateria de testes, novamente, pois são inúmeras as áreas de aplicação. Reconhecer as duas categorias de testes é caminhar na formalização de um campo de trabalho empírico mais relevante para o desenvolvimento da ciência do que a econometria de hoje:

“A palavra ‘significado’ recebeu, nas mãos dos estatísticos, o sentido de ‘improvável que se tenha manifestado por acaso’. Ora, submetendo a teste as hipóteses extremadas - tipos ideais (construtos, termos teóricos) - não desejamos, primordialmente, saber se há, nas observações, desvios ‘significativos’ neste sentido, com respeito à teoria. Muito mais importante é saber se são significativos no sentido de que a aproximação da teoria à realidade ultrapassa os limites de nossa tolerância. Enquanto esta última noção de significância não estiver apropriadamente formalizada e incorporada à metodologia estatística, não estaremos em condições de dar tratamento metodológico adequado às hipóteses extremadas” (Simon, 1963SIMON, H. A. (1963). “Comments to prof. Nagel’s article”. American Economic Review LIII, pp. 229-31, maio., p. 231).

Comparar a teoria com a realidade diretamente percebida seria uma terceira bateria de “testes”, mas é necessária alguma reserva na inclusão destes, pois os problemas de validade intersubjetiva são qualitativamente distintos, e mais sérios. De fato, vejo-os como indispensáveis no trabalho cotidiano do pesquisador em toda ciência empírica, cabendo incluir o valor da introspecção no caso da ciência social. Vejo-os também comparecer sempre na literatura econômica em geral. Na introdução, citei. Knight ao fazê-lo, quando comparava o construto Homem Econômico diretamente com sua percepção do comportamento real do ser humano. Em sua extensão do significado da racionalidade econômica, March (1978MARCH, J. G. (1978) “Bounded rationality, ambiguity and engineering of choice”. Bell Journal of Economics. 9, pp. 587-608, outono.) utiliza-se muito bem da introspecção e da percepção direta da realidade, assim como do resultado de ciências aplicadas, para indicar linhas de desenvolvimento para a pesquisa abstrata.

As proposições da economia abstrata não autorizam conclusões normativas, mas não podem ser ignoradas. Estendi-me nessa primeira parte da Indeterminação de Senior, apresentando parcialmente a teoria estratégica, ressaltando grandes questões e frisando as conexões com a teoria neoclássica. Meu problema não exigiu a discussão de outras lógicas da economia, de outras escolas de pensamento econômico, pois Ansoff não se utilizou diretamente delas. No caso, basta-me afirmar aqui que elas partem de outras visões do fenômeno, focalizando facetas parcialmente superpostas, e podem ser igualmente úteis, apesar dos antagonismos.

Melhor dizendo, lógicas são “caixas de ferramentas” - na colocação de Joan Robinson, tão entusiasticamente popularizada por Schumpeter-, ferramentas que são variavelmente úteis de acordo com o problema em foco, e com a habilitação do pesquisador aplicado. Ansoff modelou o fenômeno da estratégia empresarial estendendo a teoria comportamental e usando a “caixa neoclássica”. Essas teorias eram do que pessoalmente dispunha em 1965, assim como o era a vivência empresarial - seu vasto conhecimento direto do fenômeno tem análogo em suas próprias mãos, para continuar com a representação de Robinson.

Ansoff construiu um modelo inovador, uma teoria aplicada, talvez demasiadamente marcada (suja?) pelo trabalho manual - isso porque alguns podem preferir classificar seu livro clássico como “testemunho analítico”, mais descritivo do que teórico. Apesar disso, o modelo que parecia aplicado não se aplicava, ou causava uma série de dificuldades, inclusive falências de firmas, quando sob aplicação forçada. O problema é que não se tratava de teoria aplicada no sentido em que a segunda parte de minha formulação da Indeterminação de Senior manda: a economia aplicada positiva pressupõe as teorias abstratas da economia e, com relevância variável, todas as demais ciências.

3.2 A teoria na prática é outra, ou melhor, a teoria aplicável é outra

Foi a prática que mostrou a Ansoff que outras “caixas de ferramentas” eram também indispensáveis. A nova edição do clássico apareceu em 1987, em versão mais descritiva que dantes, mas agora ampliada, e introduzindo “o leitor às variáveis políticas, sociológicas e psicológicas inerentes ao trabalho do executivo” (Ansoff, 1987, p. 13). Mas é na introdução do livro mais teórico que o autor já demonstra uma excelente consciência da Indeterminação de Senior, apesar de, seguramente, nunca ter lido Senior e Mill ou, por certo, nem mesmo Schumpeter ou Knight:

“Nossa preocupação neste livro é com o comportamento de organizações complexas em ambiências turbulentas ... Uma maior lacuna é que a teoria e a tecnologia prática estão vagamente relacionadas, se tanto ... O objetivo maior é cobrir a lacuna ... Nas ciências naturais, tais explicações recebem o nome de teoria aplicada - um nível de conhecimento intermediário entre teoria pura e engenharia. A teoria aplicada lida com conceitos genéricos, mas em linguagem e formato que são traduzíveis na solução prática dos problemas... é multidisciplinar no sentido em que busca uma ótica apropriada ao problema, e não uma disciplina científica em particular... (Significa) trabalhar a partir do problema do mundo real, levar ao abstrato os elementos que parecem críticos para a explicação do comportamento, e tomar então emprestado, seletivamente, os enfoques teóricos que possam estar disponíveis ... Ocorreu que uma das disciplinas mais relevantes era ciência política ... “ (Ansoff, 1980ANSOFF, H. I. (1980). Strategic Management. Londres: Macmillan., pp. 1-4).

A teoria estratégica trouxe muitos problemas e insucessos porque descuidava da cultura da firma, porque não sopesava devidamente a dificuldade, ou a resistência à sua mudança - convém especificar melhor, lembrando que, “na linguagem de negócios, cultura é frequentemente descrita como orientação da administração ou mentalidade da administração” (ibid., p. 238). A teoria era inaplicável porque ignorava poder, dentre vários outros elementos que estão sempre presentes em toda ocorrência do fenômeno econômico. Não se trata de especificidades, de elementos contingentes. No fenômeno econômico, poder e cultura são elementos tão universais e necessariamente presentes quanto interesse próprio. E mais, todos os três e muitos outros têm significâncias igualmente variáveis. -Não estou me posicionando na disputa entre neoclássicos e institucionalistas. A afirmação institucionalista típica é bem distinta, e pode ser buscada em Samuels (1989SAMUELS, W. J. (1989). “Determinate solutions and valuational processes: overcoming the foreclosure of process”. Journal of Post Keynesian Economics, pp. 531- 46, verão., p. 545):

“Só porque não é possível reduzir poder a uma função simplista não significa que os economistas devam ser substraídos de uma atenção significativa a esse fator - quando todos os economistas que pensaram seriamente sobre a matéria sabem que poder é, de fato, importante ... A maioria dos economistas neoclássicos concordaria com a importância, mas diria que não é economia. Trata-se, naturalmente, de uma diferença entre neoclássicos e outras escolas econômicas, como pós-keynesianos, institucionalistas, economia social etc.”.

Apesar de se aproximar da compreensão da Indeterminação de Senior, Samuels demonstra claramente que, pelo menos, não a tem suficientemente assimilada. Toda teoria na esfera de abstração maior, toda teoria occamiana, para colocá-la numa expressão, é mais ou menos “simplista” no sentido usado. Formaliza-se simplisticamente o pouco que se considera por causa das limitações da lógica e da matemática, associadas às limitações da própria comunidade de economistas acadêmicos. O progresso ocorre, apesar de lento. A impaciência com este processo é maior quando revoluções científicas estão em pauta, como no caso. A disputa paradigmática entre “neoclássicos e outras escolas” encontra-se desinformada sobre a Indeterminação de Senior, em ambos os lados. Ignora-se, em particular, a natureza da ciência aplicada. Voltando a Ansoff (1987), e exemplificando o reconhecimento da iluminação trazida por outras ciências sociais ao problema estratégico, seleciono algumas proposições na série seguinte:

“A experiência e a psicologia mostram que os indivíduos resistirão a mudanças que os tornam inseguros. Isso ocorre quando: ... (b) são chamados a assumir riscos que não coadunam com a sua maneira de ser; ... (f) são incapazes ou não estão dispostos a aprender novas habilidades e comportamentos ... “ (p. 241).

“A literatura em ciência política, assim como observações diretas, mostra que grupos: (a) coalescem e agem como centros de poder dentro do resto da organização; (b) procuram acumular poder e influência ... “ (p. 242).

“A literatura sociológica e a experiência prática mostram que: grupos de administradores que compartilham tarefas e preocupações desenvolvem, ao longo do tempo, comportamentos e aparências comuns ... normas e valores que premiam certos tipos de comportamento e punem outros ... (assim como) um consenso, que os sociólogos chamam um modelo da realidade, sobre os comportamentos que produzem resultados desejáveis ou não ... uma fidelidade à cultura comum ... “ (p. 242).

Essas proposições são suficientes para que se perceba que é possível deduzir, não lógica, mas dialeticamente, o teorema seguinte, o qual “pode ser inferido de Maquiavel: a resistência à mudança é proporcional ao grau de descontinuidade que ela introduz na cultura e/ou na estrutura de poder” (Ansoff, ibid., p. 238). O teorema indica que uma tentativa de implementar mudança estratégica tende ao fracasso quando o projeto não leva em conta os grupos de poder existentes na firma. É talvez fadada ao fracasso quando a firma tem o poder descentralizado - a não ser em situações especiais, como quando a firma se encontra em crise de sobrevivência. A simplicidade do fenômeno inerte permite que se afirme geralmente mais. Digamos, está fadada ao fracasso uma tentativa de implementar mudança significativa em qualquer máquina a partir de projeto que não leva em conta o atrito dos materiais.

Há muito mais sobre a importância de considerações de poder na estratégia. Finalizo, contudo, com uma proposição do livro mais teórico: “As escolhas estratégicas são feitas numa interação de grupos e indivíduos que possuem diferentes preferências e poderes para sustentá-las” (Ansoff, 1979, p. 105). Pode-se vislumbrar então que a distribuição de poder também reduz significativamente o conjunto de subobjetivos operacionais que são simultaneamente considerados pela firma na prática - um ponto tocado na seção 2.2, retomado em 3.1 e finalizado agora. Não posso analisar os demais elementos não econômicos ignorados na formulação original da teoria. Muito menos cabe apresentar a teoria em seu todo. O principal objetivo, penso, está cumprido.

A seleção das proposições na penúltima citação foi cuidadosa no sentido de manter a suavidade com que o autor passa, agora bem conscientemente, do individualismo para o holismo metodológico -v. seção 2.1. Quando a lógica é a linguagem, grupos não podem determinar o comportamento de indivíduos, sendo o oposto também verdade. Quando a dialética é a linguagem, como na teoria estratégica, a contradição é espúria. Em termos simples, a realidade mostra os dois fenômenos, havendo uma teoria parcial a iluminar um deles, e outra a esclarecer outro.

Quando a lógica é a linguagem, elétrons não podem ser partículas e ondas ao mesmo tempo. Físicos lutam há décadas para superar essa contradição, inteiramente inaceitável, em seu corpo teórico. Para o cientista da engenharia, cujo comprometimento é com a aplicabilidade das teorias, a inaceitabilidade parece “onda”; isso não o impedirá de aplaudir o físico se e quando a imperfeição for superada. A lógica, em sua rigidez, condenaria “racionalidades diferentes”. Veja a compreensão de Ansoff (1987, p. 238) sobre a complementaridade de lógicas distintas:

“Do ponto de vista do analista de estratégia, resistência (à mudança de campo de atuação) é uma manifestação de irracionalidade da organização, uma recusa no reconhecer novas dimensões da realidade, no raciocinar logicamente e no assumir as consequências das deduções lógicas. Mas, do ponto de vista do cientista político ou comportamental, resistência é uma manifestação natural de racionalidades diferentes, de acordo com as quais grupos e indivíduos interagem entre si”.

A relevância dessa análise não pode ser menosprezada. Basta lembrar a infinidade de situações em que o economista abstrato acusa os políticos pelo fracasso de planos de estabilização, no Brasil ou no mundo. É uma literatura rica na confirmação da generalidade epidêmica do Vício Ricardiano. Expressa em português ou em matemática, é uma deslocada literatura lógica que merece ser mesmo ignorada como “cansativa conversa de economista”. Valem aqui, mais do que em seu contexto original, as palavras seguintes de Brunner (1978BRUNNER, K. (1978). “Reflections on the political economy of government: the persistent growth of government”. Schweizericlie Zeitschrift fur Volkswirtschaft und Statistik (Heft 3), pp. 649-80.):

“Os economistas impressionam-se com a retórica das políticas de estabilização. Não obstante, a realidade política de tais programas associa-se aleatoriamente, na melhor das hipóteses, às questões de macroestabilização ...” (p. 661).

“A análise também sugere, a par disso, que são fundamentalmente irrelevantes quase todos os capítulos da teoria das macropolíticas econômicas, e implica que tais macropolíticas, ainda quando ponderadas e cuidadosas, têm poucas probabilidades de êxito” (p. 673).

Colocando Brunner no contexto deste trabalho, a assimilação consciente da Indeterminação de Senior manda substituir “associa-se aleatoriamente, na melhor das hipóteses ...” por “associa-se parcialmente às questões de estabilização”. De maneira similar, substitua-se “fundamentalmente irrelevantes ...” por “basicamente insuficientes e contaminados pelo Vício Ricardiano quase todos os capítulos ...”.

Uma analogia final para a evolução da teoria da estratégia empresarial. A teoria da relatividade e a teoria quântica revolucionaram a física, reduzindo a teoria newtoniana a caso-limite de qualquer delas. Marshall buscou uma síntese, mantendo os clássicos no lado da oferta, e incorporando os neoclássicos no lado da demanda. Guardadas as enormes proporções, Ansoff usou da mesma “estratégia”. Manteve, com ligeiras modificações, a sua teoria anterior, reduzindo-a a caso-limite, com o nome de planejamento estratégico. Incorporou então o que faltava das demais ciências sociais numa extensão, entrelaçando tudo e denominando o todo administração estratégica (Ansoff, ibid., p. 265):

“O planejamento estratégico está focalizado nas variáveis tecnológicas, econômicas e de negócios. A administração estratégica abre o foco para incluir as variáveis psicológicas, sociológicas e políticas. Assim, planejamento estratégico refere-se à escolha das coisas a fazer, enquanto administração estratégica refere-se à escolha das coisas a fazer e às pessoas que irão fazê-lo”.

4. CONCLUSÃO

Este trabalho fez, da evolução do pensamento de Ansoff, um estudo de caso para a Indeterminação de Senior. O próprio autor descreve sua evolução, e se enxerga como cientista aplicado. Tendo partido da iluminação neoclássica, e da embrionária economia comportamental, formalizou a arte da estratégia em livro pioneiro, de sucesso mundial. Mas ao êxito acadêmico de sua teoria aplicada corresponderam vários insucessos práticos, vários fracassos na arte da economia ou da administração, ocorrendo até falências de firmas. O comprometimento com a aplicabilidade da teoria, entretanto, determinou a sua reformulação, para incorporar o que a prática mostrou ser importante. E o que faltava de importante era do campo das demais ciências sociais.

Sem sabê-lo, Ansoff confessa ter caído no Vício Ricardiano, mas emergido construtivamente dele. Sem sabê-lo, o autor constata, do modo mais difícil e penoso, a veracidade de uma nota de rodapé de Mill (1877MULL, J. S. (1877). Essays on Some Unsettled Questions of Political Economy. Londres: Longmans, Green, and Co., p. 152), nota que erigi em um dos atributos definidores da ciência aplicada: “Cada arte pressupõe não uma ciência, mas ciência em geral; ou, pelo menos, muitas ciências distintas”. No caso, a arte da estratégia empresarial pressupõe a economia, a política, a sociologia e a psicologia. E, para o entrelaçamento dessas disciplinas parciais, em torno do problema de decidir sobre o campo de atuação da firma ao longo do tempo, uma teoria aplicada positiva é hoje indispensável.

Várias tendências estão envolvidas na origem dessa teoria; a complexidade crescente com que o fenômeno se apresenta é uma. A partir de meados do século, a firma dos EUA entrou na era da estratégia, emergindo das mais tranquilas eras de produção e de marketing. O próprio processo de evolução da ciência, com a propensão ao desenvolvimento de teorias de abstração ascendente, é outra tendência. O crescimento da especialização não pode ser esquecido pelos descendentes de Adam Smith. Smith era um economista aplicado, a julgar pelo que dele fala Solow:

“Colander e muitos críticos gostariam que voltássemos aos primeiros dias, quando filosofia e outras ciências sociais estavam entrelaçadas. Ele chega a argumentar que deveríamos voltar às vagas generalizações de Adam Smith. Minha admiração por Smith não é ilimitada, mas não é menor do que a de mais de uma dúzia de colegas, se tanto. Não vejo, contudo, A Riqueza das Nações como teoria. Não vejo nela coisa alguma com implicações políticas ... Eu necessito de algo mais preciso - menos amorfo, menos vago ... “ (Solow, 1989SOLOW, R. M. (1989). “Faith, hope and clarity”, In Colander and Coats, eds. The Spread of Economic Ideas. Cambridge: Cambridge University Press., pp. 37-8).

Fuks (1992FUKS, M. (1992). Considerações Preliminares sobre a Introdução do Conceito de Entropia na Ciência Econômica. Rio de Janeiro: FGV/EPGE, datil., pp. 34-40) mostrou muito bem o Vício Ricardiano em Solow. Essa evidência adicional é também marcante. No segmento do trecho citado, transparece a percepção de que o conhecimento só existe quando em formato hipotético-dedutivo (Georgescu-Roegen, em situação parecida, reduziu essa crença ao nível de outra: “a missa só é válida em latim”). Solow é um caso extremo de rejeição da ciência aplicada, rejeição que mostra toda a virulência da cegueira científica, a mesma cegueira que é encontrável no conflito paradigmático entre teorias abstratas em confronto dentro de uma disciplina.

O respeito pelo fundador da ciência impede o vitupério, mas não supera a rejeição da economia aplicada positiva de Smith. O entrelaçamento de fatores econômicos com os elementos não-econômicos com os quais a realidade se apresenta é “algo amorfo e vago”! Pode-se observar, em muitos cientistas aplicados, o mesmo grau de cegueira, a repulsa de nível idêntico pela abstração, o mesmo grau de rejeição do valor da teoria abstrata. Em termos muito mais amenos, Samuels mostrou um pouco disso quando discutia a importância do poder no fenômeno econômico, um ponto de honra dos institucionalistas. Em contraste, a consciente assimilação da Indeterminação de Senior implica a visão de complementaridade entre as duas esferas do saber. É um grande ponto a favor de Ansoff, que nada deixa a desejar nessa dimensão.

Espero ter deixado clara a importância social, assim como a fertilidade acadêmica, de meu programa de pesquisa. Está aberto, com esse trabalho, um subprograma a mostrar que a política econômica, como estratégia governamental, pressupõe, pelo menos, o mesmo conjunto de ciências sociais que ilumina a estratégia empresarial. Estão abertos para investigação e extensão do Vício Ricardiano em programas governamentais a possível recuperação à la Ansoff dos seus protagonistas maiores e o custo social que vêm assim impondo aos seus países.

Um problema é que os departamentos de pós-graduação em economia quase que se reduzem hoje à teoria abstrata. Os departamentos de administração pública não caminharam, e talvez não venham a fazê-lo, para a absorção do estudo multidisciplinar da política econômica e de vários outros subcampos da economia aplicada. Talvez a mais importante consequência prática de meu programa de pesquisa seja a identificação e a explicação dessa lacuna, seguindo-se a forma óbvia de como preenchê-la. É urgente a implantação de departamentos de política econômica, bem mais interdisciplinares que os de engenharia.

Não se trata de substituição dos departamentos de economia abstrata, mas da complementação deles. O convívio, dentro da universidade, não deverá ser muito distinto do que o existente entre física e engenharia. A propósito, tem-me sido particularmente gratificante perceber a alegria de alunos de graduação que, ao serem expostos à Indeterminação de Senior, passam a fazer sentido “da confusão de disciplinas” em que viam seus cursos (o entrelaçamento quase-lógico das diversas disciplinas que compõem qualquer curso, mesmo os de física, constitui-se em um excelente exemplo do tratamento dialético de um problema). A alegria dos alunos é ainda maior quando finalmente compreendem o Vício Ricardiano como causa maior da reação que observam contra os economistas no Brasil e no mundo.

Citei Brunner numa depreciação exagerada da macroeconomia, teoria para a qual tanto contribuiu antes, e numa apreciação indevida da Escolha Pública. Brunner passou do monetarismo, na forma clássica em que se encontrava até o princípio dos anos 70, para a abstração maior da Escolha Pública. Pode-se observar depois disso, entretanto, um sentido evolutivo para a compreensão da Indeterminação de Senior, como pretendo brevemente mostrar.

Sobre Simon, o relevante a antecipar nesse contexto é que ele, como Ansoff, partiu da iluminação neoclássica. Maximização era o tema de seu livro clássico, Administrative Behavior (1947SIMON, H. A. (1947). Administrative Behavior. Nova York: Macmillan.), da mesma forma em que satisfazimento passou a sê-lo noutro clássico revolucionário, em co-autoria com March, Organizations (1958). Como Ansoff depois dele, mas sem incorrer no Vício, Simon constatou na prática a inaplicabilidade direta da teoria neoclássica. Foi também o comprometimento com a aplicabilidade direta de seu trabalho teórico que o levou à mudança, à fundação do que está hoje estabelecido como economia comportamental. Apresentei diretamente para Simon essas primeiras verificações, numa conversa em junho de 1991. Ele não só confirmou, como indicou-me ainda o artigo em que o conceito de satisfazimento já apareceu bem caracterizado, “A behavioral model of rational choice” (1955SIMON, H. A. (1955). “A behavioral model of rational choice”. Quarterly Journal of Economics 69, pp. 99-118.) - a propósito, Simon gostou muito de minha tradução de satisficing para satisfazimento, palavra buscada no português arcaico, em vez de satisfação, como vem sendo divulgado no Brasil; ele também gastou tempo na busca da palavra inglesa apropriada. Devo ainda acrescentar que, no espectro em que se distribuem os cientistas aplicados, Simon parece localizar-se mais para a fronteira com o abstrato, enquanto Ansoff está claramente mais próximo da oposta, como artífice.

Não busco neste trabalho, de forma alguma, defender a teoria neoclássica, do que já me acusaram alguns colegas. Também não procuro atacá-la, como acusam outros. Ao mostrar o foco neoclássico, mostro simultaneamente a escuridão em que coloca muitas facetas da realidade. No sentido heisenberguiano, a teoria neoclássica ilumina infinitamente menos do que esconde, mas apenas um infinito de ordem superior em comparação com a física. No sentido kuhniano, parecem-me também mais sérios os “antolhos” que ajusta nos seus cientistas não-revolucionários.

A grande diferença comparativa que já estabeleci está no Vício Ricardiano. A Indeterminação de Senior é particularmente válida no mundo newtoniano, mundo em que a maioria dos neoclássicos ainda se fundamenta. Mas os físicos, ao contrário deles, não são adeptos do Vício. A própria comunidade possui autocontroles. O Vício entre os físicos torna o nome mais intimidador de charlatanismo, ou de falta de senso científico. E mais, se viciados existem, eles se encontram impedidos até por lei de exercer o campo profissional, de se apresentar como artífices.

Procurei ser cuidadoso ao mostrar o que se quer dizer com dialética como linguagem da ciência aplicada. Fica muito aquém de seu sentido em Marx e Hegel. Destaquei e exemplifiquei a questão ao longo do artigo. Sem reconhecê-la teoricamente, Ansoff mostra-se exímio em sua prática. Pode-se compreender intuitivamente que aplicar diretamente a lógica à realidade é incorrer num vício.

É preciso um pouco mais para entender que, se as teorias abstratas são planos lógicos que tocam a realidade em alguns pontos de verificação, as teorias aplicadas são superfícies quase lógicas a tangenciar a realidade. Tais superfícies podem eventualmente ser reduzidas a planos (lógica), mas planos de áreas bem restritas. São planos incompatíveis com a generalidade da teoria abstrata, como se pode exemplificar com os modelos de produção da engenharia industrial ou da administração, modelos cuja sofisticação matemática nada deixa a desejar em relação a qualquer teoria abstrata.

Estendi o significado do Vício Ricardiano, como definido em Schumpeter. Compreender que se incorre nele “quando se ignoram as especificidades em qualquer aplicação de teorias”, como posto na introdução, está dentro do espírito da conceituação do grande autor. Parece ser apenas um ajuste no avanço que fiz ao explicitar a ciência aplicada como positiva, na intermediação entre ciência abstrata e arte da ciência. Faltava esse passo em Georgescu e Knight, assim como no próprio Schumpeter, e mais ainda em Senior. Mill é que estava mais próximo, entre os cinco que me ajudaram. Em várias seções, destaquei e exemplifiquei a importância que Ansoff reconhece nas especificidades. Não observei nele qualquer traço do Vício pela desconsideração delas.

Finalmente, chamei de testes comparativos de realismo às conexões interdisciplinares de construtos e teoremas, visando estabelecer excedências e deficiências na aproximação com a realidade. É um pequeno passo na formalização do novo sentido de “desvios significativos” que Simon reclama dos estatísticos. Lopes (1992LOPES, C. L. R. (1992). A Indeterminação de Senior em von Mises. Rio de Janeiro: UFRJ/FEA, datil., pp. 12- 3), em seu competente trabalho sobre o Vício Ricardiano em von Mises, cita um belo trecho de Knight, trecho que me escapou por inteiro. Vale encerrar com ele, pois mostra ligeiramente o uso do teste comparativo, além de indicar quão perto Knight estava do reconhecimento da ciência aplicada:

“Mas nenhuma ciência teórica ou explicativa pode ser realista, jamais. Embora a mecânica teórica seja tão pouco realista quanto a economia analítica, as pessoas parecem possuir o suficiente senso para não aplicar o princípio das máquinas que operam sem fricção antes de fazer as necessárias qualificações e antes de obter, pela experimentação, os dados empíricos e quantitativos necessários, somando-os aos princípios abstratos. Dessa forma, os dois campos são mais ou menos comparáveis, mas as pessoas querem atirar fora a economia porque ela não é realista, ao passo que se dispõem a usar a engenharia física de maneira mais ou menos inteligente, embora a irrealidade não seja muito diferente”.

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  • **
    Este artigo é o segundo de uma série planejada a partir de Silveira (1991SILVEIRA, A. M. (1991). “A Indeterminação de Senior”. Revista de Economia Política 11 (4), pp. 70-88, out-dez.), devendo compor uma sequência de capítulos integrados, mas autocontidos, da pesquisa em andamento “Aplicabilidade de teorias econômicas: a Indeterminação de Senior”, financiada pelo PNPE- Programa Nacional de Pesquisas Econômicas- 1991; IPEA- Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Ver Revista de Economia Política, vol. 11, 4, out.-dez./91.
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    JEL Classification: B41; A11.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1994
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