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Sobre as consequências filosóficas do primado da percepção em Merleau-Ponty

Resumo

O propósito deste texto é mostrar que os problemas enfrentados por Merleau-Ponty, ao longo de seu percurso de pensamento, decorrem dos pressupostos dicotômicos dos quais ele parte. Assim, procuramos trazer à tona outras consequências de se assumir tal pressuposto, o do primado de uma experiência perceptiva muda como solo natal de todas as outras modalidades da experiência. Para tanto, tomam-se em consideração tanto a primeira como a segunda fase do pensamento de Merleau-Ponty.

Palavras-chave:
Merleau-Ponty; Percepção; Temporalidade; Sensibilidade; Corpo.

Abstract

Our purpose is to show that the problems faced by Merleau-Ponty throughout his path of thought arise from the dichotomous assumptions from which he begins. Thus, we seek to shed light on the other consequences of assuming a presumption such as the primacy of a mute perceptual experience as the native soil of all other experience’s modes. Therefore, the first as well as the second phases of Merleau-Ponty’s thought are taken into account.

Keywords:
Merleau-Ponty; Perception; Temporality; Sensitivity; Body.

Em última instância, ninguém pode escutar mais das coisas, livros incluídos, do que aquilo que já sabe. Não se tem ouvido para aquilo a que não se tem acesso a partir da experiência. (NIETZSCHE, Ecce Homo, 200917. NIETZSCHE F. Ecce Homo. São Paulo: Cia das Letras, 2009. (EH))

Introdução

O objetivo deste texto é investigar por que Merleau-Ponty, embora tenha o propósito explícito de superar as dicotomias do pensamento clássico, recai nos mesmos dualismos que ele critica. Como hipótese de leitura, propomos que é seu pressuposto teórico inicial a fonte dos impasses com os quais ele se depara. Nesse sentido, a admissão do primado da percepção, que se apresenta como a fonte positiva de seu pensamento e também como o ponto de partida para operar a crítica ao empirismo e ao intelectualismo, leva Merleau-Ponty a embaraços na passagem do movimento do corpo anônimo à linguagem e na articulação entre natureza e cultura.

Como é já bastante conhecido, em O visível e o invisível (1964), Merleau-Ponty dirige uma autocrítica aos seus textos iniciais, A estrutura do comportamento (1942), O primado da percepção e suas consequências filosóficas (1946), O metafísico no homem (1947) e, principalmente, a Fenomenologia da percepção (PhP, 1945). Segundo Merleau-Ponty (2007, p. 189, grifo nosso): “Os problemas colocados na PhP são insolúveis porque eu parto aí da distinção ‘consciência’ - ‘objeto’.” Duas perguntas se fazem, então, necessárias: quais problemas são colocados pela Fenomenologia da percepção, para que, devido à permanência da dicotomia consciência-objeto, eles se mostrem insolúveis? E no que consiste exatamente tal dicotomia consciência-objeto?

1 Primeiro problema da Fenomenologia da percepção

O problema principal da Fenomenologia da percepção é o de compreender as relações entre a alma e o corpo, isto é, o de entender a articulação entre o psicológico e o fisiológico, o que é ali também denominado como articulação entre para si e em si. Com a solução desse problema, visa-se superar uma série de prejuízos, tanto da Filosofia clássica como da Psicologia e da Fisiologia modernas, dentre os quais o principal é a compreensão da experiência humana, tendo por base (muitas vezes implícita) o dualismo sujeito-objeto.

A resposta a esse problema é encontrada na estrutura temporal. Enquanto movimento de ir além, o escoamento temporal se lança ao porvir, ao mesmo tempo em que retoma seu passado. Isso quer dizer que algo novo só se apresenta na medida em que os desdobramentos temporais se apoiam naquilo que já fora adquirido anteriormente. Segundo essa lógica, para que haja apreensão perceptiva de algo, é preciso que, a partir do primeiro contato dos sentidos com o mundo, o movimento temporal se lance a um porvir, distanciando-se do primeiro contato dos sentidos com o mundo. Em outras palavras, apoiando-se no primeiro contato dos sentidos com as coisas, passa-se além, cria-se uma distância face à imediatez inicial entre os sentidos e as coisas. Esse distanciamento permite que um objeto se mostre, seja apreendido em um campo de objetos. Dessa forma, só vejo algo, porque “olho à distância”, isto é, afasto-me no futuro, remetendo meu primeiro contato com o mundo ao passado próximo. O objeto visto só aparece em decorrência do afastamento no futuro e, contudo, ele se mostra como o “primeiro motor”, o “estímulo” da apreensão - ele se apresenta como anterior à sua própria aparição (MERLEAU-PONTY, 20069. MERLEAU-PONTY M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006c. (PhP)c, p. 321).

Isso quer dizer que os desdobramentos temporais (a virtualidade de tomadas possíveis, de afastamentos no futuro), nos quais se desenha a consciência de algo, só são capazes de se projetar ao porvir, se há um apoio empírico do qual eles se servem. A união entre a alma e o corpo é, portanto, a articulação temporal entre adquirido e porvir, entre constituído e constituinte, entre apoio sensível e as superações próprias do movimento temporal, isto é, ela se dá como retenção (retomada) e protensão (projeção). Isso acontece, não apenas no nível da apreensão perceptiva, mas também na relação entre doença e saúde (como no caso Schneider), na articulação entre fala falada e fala falante e na liberdade. Face à deterioração da região occipital de seu cérebro, Schneider não consegue projetar-se em novas situações, pois a imaginação depende do apoio sensível da região cerebral afetada. A fala falante, inédita, só pode se fazer retomando e reorganizando as falas faladas, cristalizadas na linguagem cotidiana, as quais lhe servem de apoio, para ir além das formulações já conhecidas. E a liberdade só pode se decidir diante das possibilidades de uma situação já dada, as quais, ainda que não totalmente conhecidas, interferem na perspectiva assumida.

Ora, é o corpo que porta as equivalências sensoriais, é ele o “fundo” perceptivo em relação ao qual as coisas se oferecem; ele é a perspectiva, o ponto de vista implícito de toda apreensão perceptiva. Ele porta a transcendência, e o mundo sem o corpo - isto é, sem direções, referências, acima, à frente, ao lado - seria uma plenitude em si. Se, na Fenomenologia da percepção, se fala em “mundo natural” ou em “sentido autóctone do mundo”, essa ideia está sempre bem delimitada, pois o “mundo natural [...] é a típica das relações intersensoriais” (MERLEAU-PONTY, 20069. MERLEAU-PONTY M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006c. (PhP)c, p. 438). Ele é o sensível, a comunicação inaugurada pelo primeiro contato entre corpo e mundo. Se “tempo e sentido são um e o mesmo” - se os perfis temporais configuram todas as manifestações da experiência, de maneira que cada manifestação expressa o desdobramento dos perfis temporais -, então, não é apenas o escoamento temporal que se inicia com a primeira percepção da criança, senão que o acontecimento do nascimento possibilita que a interação de corpo e mundo crie a primeira situação perceptiva. Consequentemente, a unidade corpo e mundo é fundada pela primeira experiência sensorial, isto é, pelo pacto originário entre corpo e mundo, pelo primeiro contato, comércio ou comunicação entre eles (MERLEAU-PONTY, 2006c, p. 440, 579). Diante de tais pressupostos, não reapareceria, com outra roupagem, a velha dicotomia sujeito-objeto?

Em uma nota sobre o Cogito tácito, em O visível e o invisível, Merleau-Ponty comenta que o cogito de Descartes pressupõe “um contato pré-reflexivo de si consigo mesmo (consciência não tética (de) si Sartre) ou um cogito tácito (ser junto de si) - eis como raciocinei na PhP” (MERLEAU-PONTY, 200712. MERLEAU-PONTY M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2007. (VI), p. 167, nota jan. de 1959). Merleau-Ponty parece salientar que o problema é a ideia equivocada de um contato antepredicativo de si consigo, o que também teria acometido Sartre, mas não que a ideia de Cogito tácito presente na Fenomenologia da percepção seja equivalente ao para si sartriano, como se ele apenas tivesse reproduzido a filosofia de Sartre. Ele não diz que refez integralmente o dualismo de O ser e o nada, mas que os problemas de sua primeira fase “existem porque conservei em parte a filosofia da ‘consciência’” (MERLEAU-PONTY, 2007, p. 176, nota Fev. de 1959; grifo meu). Trata-se de uma conservação parcial da metafísica, porque, embora ele tenha redescoberto o percebido e o corpo próprio, ao mesmo tempo, fez da relação corpo e mundo um novo tipo de dualismo, já que o corpo se apresentava, na década de 1940, como portador da transcendência e das significações linguísticas.

É, pois, o corpo (e não o para si sartriano) que, ao nascer, traz as virtualidades temporais para o interior de um mundo pleno. “Nascer é ao mesmo tempo nascer do mundo e nascer no mundo” (MERLEAU-PONTY, 20069. MERLEAU-PONTY M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006c. (PhP)c, p. 608, grifo nosso). O primeiro contato entre corpo e mundo abre uma possibilidade de situações que não existiria sem essa primeira comunicação - por isso, nascer do mundo; e o primeiro objeto apreendido se mostra como anterior à sua própria aparição, como “estímulo” da percepção, mas ele só apareceu, porque as equivalências corporais se afastaram no futuro, remetendo seu primeiro contato com o mundo ao passado imediato, isto é, os sentidos, os “Eus naturais” já haviam se lançado ao mundo, antes mesmo que houvesse consciência de algo - por isso, nascer no mundo. Essa relação equívoca, escorregadia, entre constituído e constituinte, corpo e mundo, é denominada ambiguidade, pois os desdobramentos temporais indicam que o corpo e o mundo são ao mesmo tempo ativos e passivos em relação um ao outro. Todavia, se há um mundo pleno, objetivo, sem dimensões temporais, e uma subjetividade, o corpo, portadora da transcendência, não se está tentando reconciliar sujeito e objeto? E se a temporalidade está localizada no lado do corpo, da subjetividade, daria ela conta dessa reconciliação? Se é assim, esse problema não seria insolúvel, no que diz respeito à Fenomenologia da percepção, posto que ela apresenta o corpo como o portador da transcendência?

Se o corpo é o “mediador de um mundo” (MERLEAU-PONTY, 20069. MERLEAU-PONTY M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006c. (PhP)c, p. 201), no sentido exposto acima, então o problema elementar da Fenomenologia da percepção não é o da descida de uma consciência constituinte sobre o corpo, como sugere Moura (200114. MOURA C A R. Linguagem e experiência em Merleau-Ponty. In: MOURA, C. A. R. Racionalidade e crise. São Paulo: Discurso Editorial e Editora UFPR, 2001. p. 295-335., p. 295-335), mas a relação mesma entre corpo e mundo - relação que a Fenomenologia da percepção descreve como ambiguidade. Talvez uma palavrinha de Nietzsche seja pertinente: “já rimos, ao ver ‘homem e mundo’ colocados um ao lado do outro, separados tão somente pela sublime presunção da palavrinha ‘e’!” (NIETZSCHE, 201218. NIETZSCHE F. A gaia ciência. São Paulo: Cia das Letras, 2012. (GC), p. 213). O “e”, nesse caso, não articula apenas, mas justapõe uma coisa junto à outra, soma uma coisa à outra. A reformulação empreendida por Merleau-Ponty, a partir dos anos 1950, decorreria em parte desse problema, o da conciliação entre corpo e mundo, isto é, de corpo mais mundo. Daí o aparecimento de uma sensibilidade do próprio mundo (carne, quiasma, Natureza), que engloba o corpo e da qual ele emerge.

2 Segundo problema da Fenomenologia da percepção

Outro problema fundamental da Fenomenologia da percepção é o da articulação entre percepção e linguagem. Desde que se assumiu a experiência perceptiva como solo inaugural de todas as experiências humanas (como linguagem, pensamento, cultura), desde que se conferiu à relação entre os sentidos e as coisas o primado na configuração das outras modalidades da experiência, inevitavelmente surgiu a questão de como a linguagem apareceu no solo natal perceptivo.

A estrutura temporal, por si só, não é capaz de explicar esse surgimento. O escoamento temporal se projeta ao porvir, ou melhor, o porvir se anuncia, frequenta o presente. No movimento do corpo anônimo, que ainda não fala, devem então se anunciar significações diversas da simples apreensão sensível, para que o corpo anônimo possa criar os apoios necessários para chegar a tais significações. Dessa maneira, ele estaria apto a criar a palavra (sons diferenciados), para enfim chegar às significações que a estrita sensibilidade não podia lhe dar. O problema dessa presumível passagem é o seguinte: como o corpo pode já antever as significações às quais ele quer chegar, se elas só poderiam lhe ser anunciadas, se ele já estivesse na linguagem? Como ele poderia ter previamente a experiência daquilo que ele ainda nunca havia experimentado? Não há como significações linguísticas estarem presentes, frequentarem, se anunciarem, em um âmbito antepredicativo, anônimo. Do contrário, este já seria na verdade falante. Assim, destaca Merleau-Ponty (2007, p. 167, nota jan. de 1959):

O que chamo cogito tácito é impossível. Para possuir a ideia de “pensar” (no sentido de “pensamento de ver e de sentir”), para fazer a “redução”, para retornar à imanência e à consciência de... é preciso possuir as palavras.

O presumível contato mudo de si consigo, a coincidência psicológica, é já uma construção linguística, e não anterior à fala. Nesse sentido, comenta Merleau-Ponty (2007, p. 173, nota fev. de 1959):

[...] ingenuidade de um cogito silencioso que se acreditasse adequação à consciência silenciosa, quando sua própria descrição do silêncio repousa inteiramente sobre as virtudes da linguagem.

A pressuposição do primado silencioso da percepção sobre as outras modalidades da experiência humana (linguagem, liberdade, cultura) só poderia levar ao problema insolúvel da origem da linguagem: como passar do antepredicativo ao predicativo, do corpo anônimo à fala, isto é, como unir o que é ao que não é? Como conciliar a linguagem que somos à pretensa experiência muda que teríamos sido? Não seria esse o mesmo caso de pretender ter em vida certa experiência anterior ao próprio nascimento? Seria algo assim como uma experiência muda, efetivamente dado à experimentação? Em linguagem kantiana, isso seria negligenciar perigosamente os limites da experiência possível, os limites da subjetividade. E, em linguagem nietzschiana, seria apenas mais um exemplo de niilismo: pressupor algo fora da experiência como seu começo originário, isto é, como seu fundamento.

Na tentativa de entender esse problema, alguns comentadores, como Moura (200114. MOURA C A R. Linguagem e experiência em Merleau-Ponty. In: MOURA, C. A. R. Racionalidade e crise. São Paulo: Discurso Editorial e Editora UFPR, 2001. p. 295-335., p. 313), concluem que o problema da fala (seja do surgimento da fala, seja da fala falante) resulta da permanência de um intelectualismo, nos textos da década de 1940. Expressões como “silêncio por trás da linguagem”, “apreensão de si a si”, “Cogito tácito” e “para si” revelariam que a consciência já possui as significações às quais ela quer chegar - caso flagrante de intelectualismo. O silêncio da consciência seria o conhecimento prévio das significações expressas nas novas formulações linguísticas, assim como o termo “não-ser” seria o equivalente da descida da subjetividade constituinte sobre o corpo. Nessa lógica, ao escrever, Merleau-Ponty seria na verdade o médium do espírito metafísico de Sartre. Outros comentadores, como Ferraz (2009), concentram-se por sua vez em mostrar que o próprio movimento do corpo anônimo é que porta as significações, já que ele possui um saber cego, emoções que seriam traduzidas em palavras - o que configura nomenclaturismo.

Seja como for, no que diz respeito ao conteúdo lógico da Fenomenologia da percepção, esse problema é insolúvel. Por isso, mais tarde, Merleau-Ponty dirá, dirigindo-se à consciência silenciosa da Fenomenologia da percepção: “Mitologia de uma autoconsciência a que a palavra ‘consciência’ se reportaria” (MERLEAU-PONTY, 200712. MERLEAU-PONTY M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2007. (VI), p. 168). O silêncio da consciência, a autoconsciência por trás de cada manifestação seria apenas a manutenção dos pressupostos básicos da Filosofia clássica; a pressuposição de um saber prévio que o corpo anônimo não poderia ter acesso sob pena de nunca ter sido anônimo. Assim, nas notas de O visível e o invisível, Merleau-Ponty (2007, p. 171, grifo nosso) retoma seu problema insolúvel:

O Cogito tácito não resolve evidentemente esses problemas. Mostrando-o como fiz desde a PhP não cheguei a uma solução (meu capítulo sobre o Cogito não se liga ao capítulo sobre a palavra): ao contrário, levantei um problema. O Cogito tácito deve tornar compreensível como a linguagem não é impossível, mas não pode fazer compreender como ela é possível. Fica o problema da passagem do sentido perceptivo ao sentido referente à linguagem, do comportamento à tematização.

Os problemas insolúveis da Fenomenologia da percepção são, primeiro, a articulação entre para si e em si assentada no comércio/contato entre corpo e mundo; e, segundo, como consequência, a passagem do âmbito mudo ao falante. Enfim, parte-se ali da “distinção ‘consciência-objeto’” em dois níveis: no primeiro, faz-se do corpo o portador da transcendência e do mundo um puro objeto (um mundo em geral) sem produtividade; em seguida, a linguagem não tem alternativa senão se apresentar como tradução, quer de significações previamente conhecidas (intelectualismo), quer de emoções do corpo anônimo (nomenclaturismo). Acrescente-se a isso ainda o vocabulário reprodutor em demasia de fórmulas dicotômicas (BARBARAS, 1998), como “Cogito tácito”, “em si e para si”, “consciência”, “sujeito”, “plenitude do ser em si”, “contato de si consigo”, “relação de a si” etc. E, além disso, o “idealismo subjetivista” (ALQUIÉ , 1947; FERRAZ, 2009), o qual consiste na redução da experiência àquilo que pode ser apreendido pelo repertório psicomotor do corpo humano, visto ser o mundo natural aquilo mesmo que é fornecido pelas equivalências corporais.

3 Generalização da sensibilidade do corpo

A solução para isso só poderia ser a generalização, universalização da sensibilidade (temporalidade) corporal para todos os âmbitos da Natureza, a qual então se revela produtiva no sentido pleno da palavra, antecipando até mesmo a reflexividade própria do corpo humano. Ao invés de negar os pressupostos da Fenomenologia da percepção que o conduziam a paradoxos insolúveis, Merleau-Ponty procura ampliar suas concepções básicas. Ele entende que a Fenomenologia da percepção não havia sido suficientemente crítica no inquérito das fórmulas conceituais que podem reproduzir o pensamento clássico, devendo-se, por conseguinte, progredir nesse intuito.

Por isso, da redução do ser àquilo que pode ser apreendido pelo repertório perceptivo motor, Merleau-Ponty passa a uma ampliação tal do ser que então o ser percebido aparece como um recorte do ser total: “o ser visto é aqui menos que o ser” (MERLEAU-PONTY, 20069. MERLEAU-PONTY M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006c. (PhP)a, p. 382) ou o ser é “mais que o ser-percebido” (MERLEAU-PONTY, 2007, p. 131).

A Natureza, o ser total, porta nela mesma a espessura temporal, de sorte que ela é passagem, produtividade, espontaneidade por si mesma. Essa conclusão decorre da análise de determinados casos exteriores à estrita Filosofia, casos vindos da chamada “não-filosofia”, como, por exemplo, a animalidade sob o ponto de vista científico. O abetouro molda seu comportamento face à sua nova situação. Ele adota o guarda do zoológico, caça-lhe seus congêneres e procura levá-lo para o ninho. O comportamento animal, assim, não é determinado somente pelos fatores biológicos, senão que também moldado pela situação, o que quer dizer que ele também se realiza “fora dos limites da espécie” (MERLEAU-PONTY, 200310. MERLEAU-PONTY M. L'institution - La passivité. Paris: Belin, 2003. (IP), p. 51). Descobre-se assim certa “liberdade”, certo “simbolismo primitivo” presente já nos animais. O animal emprega uma experiência como substitutiva de outra. Isso só é possível, porque a espessura temporal do animal se abre ao porvir, ao mesmo tempo em que conserva certos padrões de comportamento. Já na análise da especificidade humana, como na puberdade e na linguagem, não há simples substituição, porém integração das apreensões mais antigas nas novas. A fase adulta integra em si a puberdade, não apenas a substitui, pois o desejo da infância encontra na fase adulta um objeto que pode ser objeto, isto é, alguém fora da família - assim como a linguagem sempre procura dizer a verdade das formulações linguísticas anteriores, isto é, ela as integra a si, supera-as ao mesmo tempo em que as conserva.

Há uma renovação do conceito de temporalidade na segunda fase do pensamento de Merleau-Ponty. Agora não se trata do perfilamento de identidades ou de coincidências, instantes presentes nos quais se daria o contato de si consigo ou Cogito tácito. Também não se faz mais a temporalidade depender das equivalências corporais, o que constituía caso de idealismo subjetivista, além de reproduzir no nível sensível a dicotomia sujeito (corpo) e objeto (mundo). Desde o texto Sobre a fenomenologia da linguagem (1951), passando por A instituição - A passividade (1954-55), a estrutura diacrítica descoberta na linguística de Saussure é utilizada para se compreender as outras modalidades da experiência, assim como a própria temporalidade. A língua, portanto, é pensada como um sistema opositivo de signos, no qual as palavras significam, diferenciando-se umas das outras. Tomadas isoladamente, as palavras não possuem significações que poderiam ser separadas do conjunto de vocábulos que formam a língua. Elas significam apenas na oposição que mantêm com as outras palavras. Embora tenha uma lógica interna (sincronia), cada sistema de expressão possui fendas, lacunas, desvios de sentido (diacronia), por meio dos quais novas significações se instituem. Em face disso, o movimento em direção ao novo (a temporalidade), substituindo ou integrando o já adquirido, é denominado instituição:

Entende-se aqui por instituição, portanto, esses acontecimentos de uma experiência que a dotam de dimensões duráveis, em relação às quais toda uma série de outras experiências terão sentido, formarão uma sequência pensável ou uma história - ou ainda os acontecimentos que depositam em mim um sentido, não a título de sobrevivência e de resíduo, mas como apelo a uma sequência, exigência de um futuro. (MERLEAU-PONTY, 200310. MERLEAU-PONTY M. L'institution - La passivité. Paris: Belin, 2003. (IP), p. 124, grifo nosso)

Outro caso revelador é o do mimetismo animal. Os animais reproduzem, em seu próprio corpo, os aspectos mais característicos de seu ambiente, das relações que travam entre si e com seu meio. Por exemplo, a plumagem de um pássaro o camufla no tronco das árvores de uma dada vegetação, reproduzindo em seu corpo as cores de seu ambiente. Isso quer dizer que há uma sensibilidade da própria Natureza. Assim como o pássaro vê sua presa, ele também é visto, embora não tenha saber tético disso. A visibilidade, a tangibilidade, a sonoridade etc. são dimensões da própria Natureza, as quais são partilhadas pelos seres vivos que a compõem. Dessa forma, ao nascer, o corpo não traz a transcendência para o mundo, como acontecia na Fenomenologia da percepção, mas somente recorta uma modalidade sensível no Ser total. Quer dizer, o corpo é apenas um modo da sensibilidade da Natureza. Corpo e coisas são feitos do mesmo estofo, isto é, eles partilham as propriedades sensíveis: visibilidade, tangibilidade, sonoridade, odor, paladar etc. Segundo Merleau-Ponty (2006a, p. 307), “o que o mimetismo parece [...] estabelecer é que o comportamento só se pode definir por uma relação perceptiva”.

4 A reflexividade

Contudo, o corpo humano é o único capaz de reflexão, de consciência. Tal possibilidade estaria também inscrita na Natureza? Se não, de onde ela viria? E por que surgiu apenas no corpo humano?

Ora, a reflexividade está já indicada na sensibilidade da Natureza. Como frisado acima, embora o animal não saiba, seu pelo imita a vegetação, porque ele não apenas vê as coisas, mas também é visível. Ele é vidente e visível ao mesmo tempo, assim como ouve e é audível, possuindo nas patas dispositivos para atenuar o som de sua movimentação de caça. Todavia, o corpo humano é o único que se sabe senciente-sensível. De onde vem essa reflexividade própria do corpo humano?

Apoiando-se em Teillard de Chardin, Merleau-Ponty (2006a, p. 424-425) argumenta: quando o ancestral do homem se tornou bípede, aconteceu a liberação das mãos, de maneira que então elas foram utilizadas para pegar. Em consequência, o maxilar perdeu sua função de preensão, o que fez com que seus músculos relaxassem. Como esses músculos estão presos à caixa craniana, seu relaxamento liberou o crânio da pressão que eles exerciam. O cérebro aumentou, o rosto diminuiu e os olhos se aproximaram, a ponto de poderem fixar os movimentos das mãos.

Essa transformação dos órgãos corporais possibilitou a reflexão, o corpo que se vê tocando as coisas, que se sabe visto por outrem, senciente e sensível. A metamorfose dos órgãos possibilitou “a vinda a si do Ser”, a consciência, a reflexividade humana. Nessa perspectiva, o corpo é uma dobra, a relação do sensível consigo mesmo, sensível que se vê. Ele é, enfim, quiasma, tanto no sentido de um entrecruzamento de tecidos - já que a relação entre os sentidos é sinestésica e a relação entre o corpo, outrem e mundo é de imbricação - como no sentido de um paralelismo invertido - posto que o corpo espelha a sensibilidade do mundo de maneira invertida, isto é, voltado para ela, espelhando-a, refletindo-a. No mesmo sentido de quiasma, aparecem ainda carne e reversibilidade, noções que alargam a compreensão do que seja a sensibilidade da própria Natureza, da qual o corpo é um modo (MERLEAU-PONTY, 200712. MERLEAU-PONTY M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2007. (VI), p. 135-136). O passo final no processo de vir a ser do homem foi a fala, no entanto, a reflexividade própria dela já estava indicada no gesto corporal:

[...] a reflexão é a vinda a si do Ser, Selbstung, através de um sentir, e a realização de uma intersubjetividade que é, em primeiro lugar, intercorporeidade e que só se torna cultura ao apoiar-se na comunicação sensível - corporal (o corpo como órgão para ser visto). (MERLEAU-PONTY, 20069. MERLEAU-PONTY M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006c. (PhP)a, p. 432, grifo nosso)

A reformulação do pensamento merleau-pontyano preserva, todavia, uma das teses básicas da Fenomenologia da percepção: o primado da percepção como solo originário das outras modalidades da experiência humana, como linguagem, pensamento e cultura. É certo que existem ampliações, no que concerne ao percebido. Na Fenomenologia da percepção, o percebido dizia respeito tanto a uma apreensão atual como à virtual, isto é, às possibilidades de apreensão futuras que já frequentam a tomada perceptiva presente. Nesse primeiro caso, o possível é uma perspectiva que ainda não se tornou atual, apenas se anunciando no horizonte do sujeito perceptivo. Nos textos da segunda fase, o percebido é ampliado, na medida em que ele passa a englobar a ausência, o negativo, o invisível. Estes não são apenas possibilidades que ainda não se tornaram atuais, mas o outro do visível, sua negação, aquilo que lhe é inaparente, que só se doa como ausência. A linguagem (idealidade), por exemplo, seria uma dimensão inaparente do sensível. Ela opera como uma matriz de ordenação, sob cuja membrana inaparente a diversidade percebida se organiza em regiões, espécies etc. Assim, a linguagem não é apenas um “invisível de fato”, uma possibilidade perceptiva anunciando-se na tomada atual, mas o “invisível deste mundo”, a dimensão inaparente através da qual o percebido se manifesta. Dessa forma, o percebido se amplia até certas dimensões negativas, as quais se doam apenas enquanto ausência.

Há dimensões invisíveis inclusive nas relações sensíveis das próprias coisas. Uma qualidade sensível, como a luz, por exemplo, generaliza-se como o estilo inaparente em torno do qual uma série de outras qualidades se organiza. A luz solar ou de uma lâmpada é a dimensão invisível ou negativa através da qual uma apreensão se oferece. Como cor dominante do campo, ela se torna o estilo através do qual as coisas se manifestam (MERLEAU-PONTY, 200712. MERLEAU-PONTY M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2007. (VI), p. 202, 217, notas nov. de 1959 e fev. de 1960). Logo, o percebido se realiza, segundo uma idealidade da experiência sensível, uma idealidade da carne (MERLEAU-PONTY, 2007, p. 146-147), estrutura que é retomada na consideração da linguagem.

5 Nova solução para a articulação entre percepção e linguagem

No que respeita à articulação entre percepção e linguagem, Merleau-Ponty apresenta o seguinte esquema. O mundo mudo da experiência perceptiva originária é já uma “primeira linguagem” (MERLEAU-PONTY, 200013. MERLEAU-PONTY M. Parcours Deux. Lagrasse: Verdier, 2000. (PD), p. 43). Isso é possível, porque a estrutura diacrítica da linguagem é a mesma encontrada na percepção. Em ambos os casos, as relações de sentido não se estabelecem entre identidades, signos ou coisas predeterminadas. O sentido se dá na relação que os termos mantêm entre si. O sentido que cada termo empresta, seja à frase, seja a uma apreensão perceptiva, se realiza face ao sentido total da frase ou da apreensão. Isto quer dizer que é a articulação entre os termos que lhes fornece um determinado sentido, ao invés de outro. Assim, nem a frase, nem a apreensão perceptiva, nem o signo ou a coisa vista possuem um sentido acabado. Antes, expressam por desvios, latências, que assumem um sentido determinado apenas momentaneamente na frase dita ou na manifestação de um dado campo perceptivo.

Não se trata, todavia, apenas de uma semelhança de estrutura entre dois âmbitos diferentes, pois os mesmos desvios e latências encontrados tanto nos signos linguísticos como na coisa vista possibilitam que haja transposição do sensível à fala e desta àquele. O vaivém entre sensível e linguagem é possível, porque ambos pertencem ao mesmo solo ontológico, a espessura temporal diacrítica, a sensibilidade da própria Natureza, o quiasma (entrecruzamento), a carne ou o “ser bruto”.

Na apreensão de uma coisa, há virtualidades que a frequentam, tomadas perceptivas possíveis, as que não são atuais - na segunda fase, amplia-se o escopo do sensível, mas não se negam seus perfis temporais. Cada apreensão é um caso particular entre diferentes situações possíveis. Como as outras situações frequentam a apreensão atual, é possível dizer que cada tomada “simboliza” todas as outras. Por sua vez, a linguagem se mostra como a “sublimação” da experiência sensível. O que quer dizer que ela “continua e conserva” a “simbólica primitiva” (a “primeira linguagem”) própria da percepção. A linguagem fixa, põe em relevo, diferencia as significações sensíveis, até que a simbólica própria da linguagem se torna tão variada e sistemática que o enunciado acaba por convir somente à situação mental à qual ele responde (MERLEAU-PONTY, 200013. MERLEAU-PONTY M. Parcours Deux. Lagrasse: Verdier, 2000. (PD), p. 42-43).

Face à questão de se os parâmetros culturais (linguagem) determinam ou não a apreensão perceptiva, alguns comentadores defendem que os conteúdos sensíveis não são “significações silenciosas simples” às quais se aplicariam nomes, palavras, rótulos verbais. Aconteceria, na verdade, a transfiguração de “fugidias experiências sensíveis” em idealidades linguísticas, culturais. Contudo, eles mesmos afirmam: “Certamente é preciso haver dados perceptivos, uma experiência do mundo, para que o princípio discriminativo da fala atue de modo a elaborar um sistema de oposições linguísticas” (FERRAZ, 2009, p. 78, grifo nosso). Ora, por mais “fugidias” (não-simples, mas diacrítico-silenciosas) que sejam tais experiências sensíveis, há uma abertura tácita primeira que a linguagem delimita e diferencia, conforme seus parâmetros culturais. Em consequência, impõe-se outra vez o velho problema da articulação entre percepção e linguagem: como o linguístico pode expressar o não linguístico, como o que é pode expressar o que não é?

Esse paradoxo também não é resolvido nos textos da segunda fase. EE é preciso aceder então às anotações dos cursos de Merleau-Ponty, contidas no Parcours Deux (1951-1961): “a abertura perceptiva não é linguística. É na percepção que ele vê o lugar natal da fala” (MERLEAU-PONTY, 200013. MERLEAU-PONTY M. Parcours Deux. Lagrasse: Verdier, 2000. (PD), p. 274). Apresentar a estrutura da linguagem e a estrutura da percepção como tendo um mesmo solo ontológico (a espessura temporal diacrítica) se revela insuficiente, não por elas possuírem uma similitude apenas formal, mas porque o ponto de partida do empreendimento ontológico (o primado do sensível tácito) preserva o dualismo entre sujeito e objeto, cultura e mundo sensível. Segundo o que esclarece O visível e o invisível, embora as palavras não digam respeito a significações positivas nem a uma autoconsciência por trás da linguagem, e, a despeito de as significações sensíveis não serem identidades positivas, “existe, entretanto, o mundo do silêncio, o mundo percebido, ao menos, é uma ordem onde há significações não linguísticas” (MERLEAUPONTY, 2007, p. 168, nota jan. de 1959, grifo nosso).

Se, na reformulação de seu pensamento, a partir dos anos 1950, Merleau-Ponty pretendia “desfazer a sedimentação que nos liga ora ao ser natural ora ao ser psíquico, ou nos encerra na dicotomia dos homens e das coisas”, e, assim, “redefinir o ser, em vez de pressupor a ontologia do em si e do para si” (MERLEAU-PONTY, 200310. MERLEAU-PONTY M. L'institution - La passivité. Paris: Belin, 2003. (IP), p. 164, 168, grifo nosso), reajuste que parece se direcionar à sua primeira fase, esse empreendimento mais uma vez encontra seu mais pertinaz algoz no pressuposto de um originário contato sensível mudo entre corpo e mundo. A questão não é a do mero formalismo entre os âmbitos perceptivo e linguístico, ou de a percepção poder ser já uma “primeira linguagem”, delimitando e diferenciando, mas de algo assim mudo (antepredicativo) ser possível, ser uma realidade.

6 As causas interiores

Merleau-Ponty fez do corpo, portanto, o mais novo refúgio da subjetividade. Tanto em relação à primeira como à segunda fase de seu pensamento, ou seja, ora como corpo próprio, ora como modo de uma reflexividade (sensibilidade) da própria Natureza, o corpo se tornou outro nome para sujeito, na acepção moderna da palavra. Em ambas as fases, a experiência é apresentada como articulação entre corpo e (mais) mundo, embora ora se privilegie o corpo, ora (na segunda) o mundo. Toda teoria que pretenda falar de um “terceiro termo” entre o psíquico e o fisiológico, de um psicossomático, não supera o dualismo sujeito e objeto. Antes o mantém na formulação mesma de sua ambiguidade psicofisiológica, da qual é exemplo o pensamento merleau-pontyano.

Em face disso, não se faz pertinente mais uma vez perguntar o que é corpo? No entanto, se corpo e mundo não podem estar assim separados, como duas instâncias constituidoras da experiência - desde que entrem em contato -, e sendo sempre preciso falar de realidades, não cabe, por conseguinte, falar tão somente mundo, o fora (BARBARAS, 20112. BARBARAS R. Fenomenologia e literatura: a não filosofia de Fernando Pessoa. In: BARBARAS, R. Investigações Fenomenológicas - Em direção a uma fenomenologia da vida. Curitiba: UFPR, 2011. p. 213-229.), que a cada vez aparece e sempre já apareceu? Não o fora em relação ao meu dentro, ao sujeito ou ao corpo, porque não há experiência nenhuma de algo tal como um dentro. Um tal “contato de si consigo”, “relação de si a si”, “Cogito tácito”, “Eu” é já supor demais, para não dizer uma velha e habitual crença na gramática: todo predicado tem um sujeito, isto é, “todo acontecer é um agir, todo agir é consequência de uma vontade, [...] um agente (um ‘sujeito’) introduziu-se por trás de todo acontecer” (NIETZSCHE, 200616. NIETZSCHE F. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Cia das Letras, 2006. (CI), p. 42). Em Descartes, esse agente é o “algo”, o “Eu” que resiste à dúvida hiperbólica. Em Merleau-Ponty, o agente é a intencionalidade, a temporalidade, em cujo movimento de “ir além” se desenha um “contato de si consigo”, uma apreensão muda de si mesmo. A necessidade de um agente por trás dos acontecimentos não dá testemunho de nenhuma seriedade ou rigor de pensamento, apenas atesta um dos erros mais comuns (acadêmico-populares) de raciocínio: o erro da falsa causalidade. Devido às línguas indo-europeias se constituírem segundo a articulação sujeito e predicado, e porque desde há muito acreditamos em “fatos interiores”, associamos nossas ações a uma causa interior, até que ela se firma como dado empírico, evidência empírica: primeiramente, a vontade figurou como causa interior do agir, depois, o espírito (consciência) e, enfim, o Eu (subjetividade). Criou-se assim, paulatinamente, um mundo de causas. Projetando para fora de si os seus “fatos interiores”, o Ocidente extraiu sua noção de ser das suas elaborações (vontade, espírito, Eu) da noção de “causa interior”. Dessa forma, energia, átomo, “coisa em si”, intencionalidade, temporalidade revelam-se apenas reflexos da crença no Eu como causa.

Tal “evidência empírica”, contudo, era apenas uma suposição. A vontade e o Eu estão longe de ter qualquer evidência empírica (NIETZSCHE, 200616. NIETZSCHE F. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Cia das Letras, 2006. (CI), p. 42). Nesse sentido, na primeira fase de Merleau-Ponty, temos um desdobramento temporal no qual se desenha um “algo”, um “contato de si consigo”, um “Eu” mudo, antepredicativo; e, na segunda fase, uma reflexividade (sensibilidade) já presente e atuante nas próprias coisas, em relação à qual a reflexividade própria do corpo humano (a consciência de algo) é somente o caso superior - e, recorde-se, uma sensibilidade, Natureza, que existiria, mesmo não sendo vista por ninguém, isto é, que estaria para além do horizonte de visão, do outro lado talvez. Logo, para completar o erro da falsa causalidade, temos: “O erro do espírito como causa confundido com a realidade! E tornado medida da realidade! E denominado Deus! - ” ou, nas palavras de Merleau-Ponty, Natureza! (NIETZSCHE, CI, p. 42)

7 As dimensões negativas

Outra questão relevante é a de se Merleau-Ponty teria confundido as dimensões negativas, os invisíveis, com realidades suprassensíveis. Teria ele descrito realidades que excedem as aparências fenomenais, realidades que não figuram na experiência?

Ao olhar de um especialista em Merleau-Ponty, cabe, é claro, uma resposta negativa. Bastaria acompanhar a argumentação do autor, para notar facilmente que ele designa, por exemplo, a linguagem como dimensão negativa, isto é, a membrana inaparente que ordena os eventos sensíveis; outro exemplo é o da vida psíquica (intenções, sentimentos, opiniões), a qual não se doa sensivelmente, porém, está sempre presente como dimensão inaparente, como avesso do corpo nas interações sociais. Esses seriam exemplos simples de dimensões invisíveis que “qualquer um” seria capaz de atestar, de sorte que Merleau-Ponty descreveria, enfim, realidades e não dimensões metafísicas (FERRAZZ, 2009).

Ora, o que está sempre implícito a esse tipo de consideração é uma diferença velada entre sensível e linguagem, corpo e vida psíquica. Outros exemplos de pares de opostos tão habituais, arraigados no olhar moderno. Não é, pois, “qualquer um” que pode facilmente atestar a linguagem e a vida psíquica como avessos, negativos, dimensões inaparentes do sensível e do corpo. Só um olhar metafisicamente treinado é capaz de ver tão “facilmente”, tão “simplesmente” - para não dizer tão “obviamente”. Felizmente, como dizia Kant, o óbvio é que se põe ao trabalho desconfiado do filósofo.

Nos textos de Merleau-Ponty, assim como nos de seus comentadores e talvez principalmente nestes, há sempre o pressuposto de que sensibilidade e linguagem são, no mínimo, graus diferentes de ser - mas quiçá seja mesmo possível dizer esferas diferenciadas. A linguagem seria a sublimação do “há prévio”, do movimento perceptivo mudo, um ser mais sutil face às estruturas sensíveis. Elas podem comungar a mesma estrutura diacrítica, não possuir identidades prévias, porém são níveis diversos de ser. O contato mudo é imediato. Já a linguagem opera universalizações, ordenações, ela fixa eventos. Por mais fugidias que sejam as apreensões sensíveis sobre as quais operam os dispositivos ordenadores da linguagem, originariamente elas existiam antepredicativamente. A linguagem integraliza (fenômeno propriamente humano) e as vozes do silêncio (pintura, animalidade) apenas substituem uma experiência por outra. A linguagem é sempre algo outro que a experiência perceptiva originária (natal), apesar da comunhão estrutural entre ambas. Na relação dialética entre comportamento e tematização (“um comportamento de grau mais elevado”), “a linguagem realiza quebrando o silêncio o que o silêncio queria e não conseguia” (MERLEAU-PONTY, 200712. MERLEAU-PONTY M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2007. (VI), p. 171, nota fev. de 1959). Ora, o que dizer desse par de opostos, percepção e linguagem? Seria ele uma boa medida para se entender mundo?

8 O fora a partir de Alberto Caeiro

Linguagem é mundo, é o fora. Apreensão sensível é algo acrescentado, secundário, atrasado, tardio; decorre do prejuízo moderno que sempre já viu na realidade abstrações, fantasmagorias que extrapolam os limites da simples experiência, ou seja, pares de opostos, ambiguidades, corpo e mundo, percepção e linguagem. Sensível e linguagem não são níveis diferentes de ser; a fala não é elevação de um comportamento perceptivo primeiro, certa sublimação ou qualquer outra sutileza; o fora é sempre já falante. Em Alberto Caeiro, temos o seguinte:

A manhã raia. Não: a manhã não raia./ A manhã é uma cousa abstrata, está, não é uma cousa./ Começamos a ver o sol, a esta hora, aqui./ Se o sol matutino dando nas árvores é belo,/ É tão belo se chamarmos à manhã “começarmos a ver o sol”/ Como o é se lhe chamarmos a manhã;/ Por isso não há vantagem em pôr nomes errados às cousas,/ Nem mesmo em lhes pôr nomes alguns (PESSOA, 2005, p. 136).

À primeira vista, ao declarar que a manhã é uma “cousa abstrata”, o poeta parece dizer que, por um lado, existem as coisas, e, por outro, os nomes que utilizamos para nos referirmos a elas e ordená-las. Dessa maneira, dizer “manhã” seria algo abstrato, em face do fato de começarmos a ver o sol com nossos sentidos. Todavia, “manhã” é algo abstrato, por não ser tão exato quanto o fato de “começarmos a ver o sol”, porque não é a manhã que raia, mas o sol. Ainda que seja belo dizer “manhã”, é tão belo quanto e ainda mais exato dizer “começamos a ver o sol”. Assim, não é necessário acrescentar nomes às coisas, se nesse acrescentar se coloca algo a mais nas coisas, algo que lá não está. Começamos a ver o sol, isso é um fato (uma coisa, na linguagem do poeta). A manhã raia, isso é já abstração, posto que nenhuma manhã raia, nem é uma coisa vista. Logo, não há vantagem em pôr nomes errados às coisas ou acontecimentos. E, se não há vantagem “[n]em mesmo em lhes pôr nomes alguns”, esse verso precisa ser entendido no contexto em que ele aparece. “Pôr nomes nas coisas” significa ali acrescentar abstratamente algo a alguma outra coisa; o que quer dizer também que a linguagem está sendo tomada como rótulo verbal para as coisas que existiriam silenciosamente. Isso não significa que o poeta assume essa concepção dualista da linguagem, mas que ele a enuncia para mostrar que, partindo-se dela, se cai em abstrações, como, por exemplo, que a palavra é nome para a coisa que existe antepredicativamente. Não há vantagem em pôr nomes nas coisas, se se parte da dicotomia coisa e palavra, pois assim não se vê a realidade tal como quando lhe pomos nomes errados (abstratos). Portanto, não há vantagem tanto em dar nomes errados como em entender que as palavras são meros nomes para as coisas. Dessa maneira, se “somos exterior essencialmente” é porque a linguagem não está dentro, mas é ela também fora, a realidade imediata que temos: “Sim, antes de sermos interior, somos exterior” (PESSOA, 2005, p. 120).

A vida psíquica não está dentro do corpo, atrás do olhar, do olho que vê. A reflexividade propriamente humana (embora essa linguagem seja muito carregada) não se dá dentro, mas fora; ela é tão somente o fora. Intenções, sentimentos, opiniões, o escuro dos olhos fechados, as figuras imaginárias não estão dentro; elas são modos de aparecer do fora. Eles não são “membrana inaparente”, avesso, dimensão ausente de determinada manifestação do ser. Eles são o fora, em seu aparecer mesmo. Nesse sentido, congelando toda a interioridade por trás da noção de vida psíquica, diz Caeiro:

Pastor do monte, tão longe de mim com as tuas ovelhas - / Que felicidade é essa que pareces ter - a tua ao a minha?/ A paz que sinto quando te vejo, pertence-me ou pertence-te?/ Não, nem a ti nem a mim, pastor./ Pertence só à felicidade e à paz./ Nem tu a tens, porque não sabes que a tens./ Nem eu a tenho, porque sei que a tenho./ Ela é ela só, e cai sobre nós como o sol [...] (PESSOA, 2005, p. 136).

A felicidade e a paz, outros exemplos de vida psíquica, não estão dentro do pastor do monte ou do poeta, mas sempre já fora, como o sol é fora. Assim como o sol cai sobre as personagens do poema, a felicidade e a paz não vêm do interior do poeta ou do pastor, mas são um sentir tal como sentir as coisas, as quais aparecem sem mais, como exterior, restando aquiescer ao seu aparecimento. Em outro poema, temos:

Seja o que for que esteja no centro do mundo,/ Deu-me o mundo exterior por exemplo de Realidade,/ E quando digo “isto é real”, mesmo de um sentimento,/ Vejo-o sem querer em um espaço qualquer exterior,/ Vejo-o com uma visão qualquer fora e alheio a mim (PESSOA, 2005, p. 136, grifo nosso).

Mesmo o que chamamos sentimentos, os quais entendemos como interiores, não se passam dentro, todavia, aparecem como as coisas aparecem, sempre fora. Isso não significa que tais sentimentos sejam exteriorizados, mas antes que eles aparecem sempre já fora, que eles são exteriores, tal como a Realidade é sempre exterior.

9 O auxílio da “não-filosofia”

Outro ponto essencial é considerar as descobertas das atividades “não filosóficas” que Merleau-Ponty utiliza, a fim de fundamentar sua ontologia indireta. Para comprovar que suas conclusões possuem um lastro de experiência, isto é, que as dimensões invisíveis propostas não são meras abstrações, senão que realidades atestáveis, Merleau-Ponty lança mão de certas pesquisas da embriologia. Dessa forma, ele pode incluir na reflexão filosófica, ou ontológica, domínios e dimensões de ser que escapam à observação direta.

Na interpretação de Coghill, se, num feto de oito semanas, o polegar se afasta dos outros dedos, antecipando o movimento de preensão que só será realizado pela criança um ano após seu nascimento, é porque um desenvolvimento local antecipa a manifestação de um comportamento; e, se os principais aspectos do eletrocardiograma de um feto de nove semanas e meia são similares aos de um adulto, é porque certos comportamentos se antecipam aos dispositivos neurais que, na fase adulta, os coordenariam, já que no feto não há ainda controle nervoso do coração. Isso quer dizer que o crescimento do organismo é um comportamento que antecipa seu desenvolvimento futuro, isto é, ele amadurece em referência a um futuro, a uma ausência. Os níveis superiores integram os níveis inferiores, e estes se desenvolvem em referência a uma totalidade ausente. O amadurecimento se realiza em referência a um princípio negativo, um vazio, uma falta que mais tarde será preenchida.

Merleau-Ponty usa essa descoberta para pensar o sensível, de modo a encontrar no percebido a mesma referência a um ausente: O “sentir é uma Urpräsentation daquilo que por princípio é Nichturpräsentiebar” (MERLEAU-PONTY, 200712. MERLEAU-PONTY M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2007. (VI), p. 218, nota fev. de 1960). Por dois motivos, o percebido se oferece como a presentificação originária do originariamente não apresentável. Primeiro, porque em cada tomada há possibilidades que apenas se anunciam, sendo preciso passar a outra perspectiva, para que elas se tornem atuais. Segundo, porque em cada arranjo perceptivo há invisíveis, ausências, que, embora não apareçam, constituem os eixos pelos quais a tomada perceptiva se faz.

Como podemos, contudo, atribuir à pesquisa científica a revelação da estrutura do ser? Ou lhe reservar a descoberta de dimensões do ser, cujo conhecimento seria impossível sem os instrumentos da ciência contemporânea? Em que medida a novíssima aparelhagem de laboratório efetivamente revela a natureza ou a realidade?

Por um lado, há o reconhecimento, em Merleau-Ponty, de que tanto a Filosofia como a ciência contemporânea são interpretações. Por outro, esse reconhecimento não tira todas as consequências de sua enunciação. Se “o ser é aquilo que de nós exige criação para que dele tenhamos experiência”, essa criação é bem limitada, pois, ao mesmo tempo, ela é a “expressão da experiência muda de si”, isto é, expressão do “‘Ser falando em nós’”, de maneira que criação é na verdade a “reintegração do ser”, ou seja, expressão de um solo natal mudo, o qual, por não poder falar por si mesmo, posto que é mudo, exige ser expresso indiretamente. Como tentativa de “reencontrar a sua origem”, tal criação (sempre linguística) é a “única maneira de obter uma adequação” com o ser mudo (MERLEAU-PONTY, 200712. MERLEAU-PONTY M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2007. (VI), p. 187, nota Jun. de 1959). Esse é o caso daquela consciência da verdade que, tal como o lagostim, “avança voltada para seu ponto de partida”, para a “estrutura da qual ela exprime a significação” (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 160). Mas, se tal ponto de partida é mudo, e se tal consciência filosófica é sempre já falante, como então ela pode ter um “saber” de algo a que ela não tem acesso a partir de sua experiência? Como ela pode procurar algo, se ela não sabe o que procura? Isso não seria a repetição daquele problema insolúvel encontrado na “passagem do comportamento à tematização”, da percepção originária muda à linguagem? Todavia, um tal momento originário mudo não havia se revelado tão somente uma suposição?

As pesquisas da Física levaram Merleau-Ponty a concluir que a percepção não é um dado imediato, pois a Física contemporânea havia descoberto que a relação entre a coisa observada e a medida de observação é uma relação de probabilidade, o que depende de como o pesquisador interfere no experimento. No estudo de ondas e corpúsculos, o aparelho de observação não é uma ampliação dos sentidos, contudo, ele realiza certa antecipação e fixação do objeto; ele é um modo de apresentar o objeto, uma interpretação. Isso revela uma probabilidade no tecido do real, uma Natureza indefinida, artificial, de maneira que os objetos observados não são nem ondas nem corpúsculos (MERLEAU-PONTY, 20069. MERLEAU-PONTY M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006c. (PhP)a, p. 146, 150). Tal probabilidade, ambiguidade, seria também encontrada nas coisas percebidas, as quais são “seres negativos”, isto é, que possuem dimensões de ausência, desvios, vazios, faltas, assim como os objetos do campo natural; elas são e não são, ao mesmo tempo, apresentam-se e se escondem. A probabilidade descoberta pelo estudo científico, e que veio à tona graças à aparelhagem de laboratório, torna-se, em Merleau-Ponty, medida do ser, o modo como as coisas se oferecem, de maneira que elas são descritas agora como “seres prováveis”, “um feixe de probabilidades” (MERLEAU-PONTY, 2006a, p. 160).

A Física contemporânea, todavia, não revela a Natureza enquanto probabilidade, senão que a cria, a inventa como tal. Não há dados revelados pela aparelhagem de laboratório que, a seguir, são interpretados pelo cientista em função da perspectiva teórica mais recente. A interpretação (pesquisa/estudo) cria os dados eles mesmos. Assim como em qualquer outro âmbito, a pesquisa em Física não extrai sua teoria a partir da observação (dos dados), mas é a teoria (certa interpretação, certa concepção ainda que não articulada) que orienta a observação e a seleção dos dados. Logo, é a perspectiva teórica inicial, a visão de mundo ou a ontologia implícita que inventa os instrumentos de laboratório que irão permitir a observação de determinados eventos. Não é a sofisticação do aparelho que leva a novíssimas descobertas no campo natural. Antes, é o aporte teórico prévio que requer um tipo determinado de aparelho para comprovar sua hipótese pela observação e registro. Na ausência de um corpo teórico, todo e qualquer fato (dado) tem a probabilidade de parecer relevante, de sorte que a coleta dos dados se faz então ao acaso. Essa situação de perplexidade só se resolve quando uma perspectiva teórica se afirma, selecionando fatos, eventos, e exigindo e direcionando a invenção de instrumentos para sua coleta e registro. Nesse sentido, Kuhn (20056. KUHN T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 2005., p. 37) oferece importante contribuição:

Nenhuma História Natural pode ser interpretada na ausência de pelo menos algum corpo implícito de crenças metodológicas e teóricas interligadas que permita a seleção, avaliação e a crítica. Se esse corpo de crenças já não está implícito na coleção de fatos - quando então temos à disposição mais do que “meros fatos” - precisa ser suprido externamente, talvez por uma metafísica em voga, por outra ciência ou por um acidente pessoal e histórico.

Em face disso, a ciência não se mostra um bom auxiliar na investigação filosófica. Ela não revela dimensões outras do ser não alcançáveis diretamente. Como toda e qualquer interpretação, a ciência cria, inventa ser. E ela possui sempre um corpo teórico que estimula sua inventividade instrumental, a aparelhagem de laboratório com a qual se alcançam os “lastros” de experiência, as “comprovações”, sob cuja base ela se apresenta tão útil, agradável e desejada. Ciência não é outra coisa senão metafísica utilitarista com ares de verdade, ou seja, é ainda uma Filosofia. Desde que ela inventa um mundo e então cria a aparelhagem para demonstrá-lo, ela já não tem mais direito a reivindicar seus resultados como fenômenos imediatos, como os verdadeiros dados da realidade. Para falar com Nietzsche (201415. NIETZSCHE F. Além do bem e do mal. São Paulo: Cia das Letras, 2014. (ABM), p. 19):

Começa a despontar em cinco, seis cérebros, talvez, a ideia de que também a física é apenas uma interpretação e disposição do mundo [...], e não uma explicação do mundo: porém, na medida em que se apoia na crença nos sentidos, ela passa, e deverá passar durante muito tempo, por algo mais, isto é, por explicação.

Considerações finais

Em conclusão, notamos que as questões que Merleau-Ponty procura pensar, seja na década de 1940, seja nas duas décadas posteriores, têm como fundo problemático a postulação de um solo originário antepredicativo - razão dos problemas insolúveis nos quais ele recai. A ampliação da sensibilidade, de modo que ela diga respeito à própria Natureza, deixa intacto o pressuposto dos primeiros livros e, inevitavelmente, na segunda fase, os problemas reaparecem com outra roupagem.

A aproximação com a moderna investigação científica, isto é, com a “não-filosofia”, de maneira que nesta seria possível encontrar elementos para auxiliar as suposições do filósofo, também se revela comprometedora. Tal como na fenomenologia de Merleau-Ponty, a moderna investigação científica parte da suposição implícita de que há um polo, a natureza, ao lado de outro polo, a cultura. De fato, a medida de observação interfere na apreensão e registro dos pretensos “dados naturais”, como visto acima. Uma tal interferência não seria possível sem a dicotomia dos polos.

As consequências de se assumir um tal pressuposto, o primado da percepção (experiência muda, anônima), são os problemas insolúveis com os quais Merleau-Ponty se depara - os quais são também, em grande medida, as questões que a investigação cientifica procura resolver. Tais questões só podem aparecer devido à dicotomia inicial, a qual diz respeito, de forma renovada, ao dualismo sujeito-objeto.

Referências

  • 1
    ALQUIÉ F. Une philosophie de l'ambiguïté. L'existentialisme de Merleau-Ponty. Fontaine. Vol. IX, n. 59, 1947.
  • 2
    BARBARAS R. Fenomenologia e literatura: a não filosofia de Fernando Pessoa. In: BARBARAS, R. Investigações Fenomenológicas - Em direção a uma fenomenologia da vida. Curitiba: UFPR, 2011. p. 213-229.
  • 3
    BARBARAS Renaud. Le tournant de l'expérience. Paris: VRIN, 1998.
  • 4
    FERRAZ Marcus S. Merleau-Ponty entre ontologia e metafísica. Cadernos Espinosanos. São Paulo, USP, v. 20, p. 74-89, 2009.
  • 5
    FERRAZ Marcus S. Fenomenologia e ontologia em Merleau-Ponty. São Paulo: Papirus, 2009.
  • 6
    KUHN T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 2005.
  • 7
    MERLEAU-PONTY M. A Natureza. São Paulo: Martins Fontes, 2006a. (N)
  • 8
    MERLEAU-PONTY M. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac & Naif, 2002. (PM)
  • 9
    MERLEAU-PONTY M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006c. (PhP)
  • 10
    MERLEAU-PONTY M. L'institution - La passivité. Paris: Belin, 2003. (IP)
  • 11
    MERLEAU-PONTY M. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. (OE)
  • 12
    MERLEAU-PONTY M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2007. (VI)
  • 13
    MERLEAU-PONTY M. Parcours Deux. Lagrasse: Verdier, 2000. (PD)
  • 14
    MOURA C A R. Linguagem e experiência em Merleau-Ponty. In: MOURA, C. A. R. Racionalidade e crise. São Paulo: Discurso Editorial e Editora UFPR, 2001. p. 295-335.
  • 15
    NIETZSCHE F. Além do bem e do mal. São Paulo: Cia das Letras, 2014. (ABM)
  • 16
    NIETZSCHE F. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Cia das Letras, 2006. (CI)
  • 17
    NIETZSCHE F. Ecce Homo. São Paulo: Cia das Letras, 2009. (EH)
  • 18
    NIETZSCHE F. A gaia ciência. São Paulo: Cia das Letras, 2012. (GC)
  • 19
    PESSOA F. Poesia completa de Alberto Caeiro. São Paulo. Cia das letras, 2005.
  • 1
    . Professor de Filosofia na Faculdade Vicentina (FAVI), Curitiba, PR. https://orcid.org/0000-0002-6960-6110 e-mail: acasadeasterion@gmail.com
  • 2
    . http://dx.doi.org/10.1590/0101-3173.2020.v43esp.17.p231
  • 3
    . “Nós nos perguntávamos, por exemplo, como compreender as relações entre a alma e o corpo, e era uma tentativa sem esperança ligar o para si a certo objeto em si do qual ele deveria sofrer a operação causal. [...] Mas se o para si, a revelação de si a si, não é senão o vazio no qual o tempo se faz, e se o mundo ‘em si’ não é senão o horizonte de meu presente, então o problema redunda em saber como um ser que é por vir e passado também tem um presente - quer dizer, o problema se suprime, já que o porvir, o passado e o presente estão ligados no movimento de temporalização.” (MERLEAU-PONTY, 2006c, p. 577)
  • 4
    . “O corpo próprio está no mundo assim como o coração no organismo; ele mantém o espetáculo visível continuamente em vida, anima-o e alimenta-o interiormente, forma com ele um sistema.” (MERLEAU-PONTY, 2006c, p. 273)
  • 5
    . “Existe um sentido autóctone do mundo, que se constitui no comércio de nossa existência encarnada com ele, e que forma o solo de toda Sinngebung decisória. ” (MERLEAU-PONTY, 2006c, p. 591)
  • 6
    . “O que é verdadeiro [...] é que existe uma natureza, não a das ciências, mas a que a percepção me mostra”. (MERLEAU-PONTY, 2006c, p. 579, grifo nosso)
  • 7
    . “é preciso que minha primeira percepção e meu primeiro poder sobre o mundo me apareçam como a execução de um pacto mais antigo concluído entre X e o mundo em geral, que minha história seja a sequência de uma pré-história da qual ela utiliza os resultados adquiridos [...]” (MERLEAU-PONTY, 2006c, p. 342, grifo nosso). A “pré-história” que minha individualidade utiliza é a da generalidade de meus sentidos, os quais já se lançaram ao mundo antes que eu disso tivesse consciência; não se trata de certa organização do mundo anterior ao nascimento do corpo.
  • 8
    . O passado e o futuro “[...] só existem quando uma subjetividade [o corpo] vem romper a plenitude do ser em si, desenhar ali uma perspectiva, ali introduzir o não-ser. Um passado e um porvir brotam quando eu [corpo] me estendo em direção a eles” (MERLEAU-PONTY, 2006c, p. 564), isto é, inicia-se uma situação perceptiva, quando um corpo, ao nascer, traça direções, referências, intenciona, visa a algo, assume uma perspectiva em um campo de horizontes.
  • 9
    . No prefácio de A instituição - A passividade, Claude Lefort comenta que “a instituição supõe uma não-coincidência entre instituinte e instituído. É isso que faz [Merleau-Ponty] dizer que o tempo é o modelo da instituição”. (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 7)
  • 10
    . “A ideia é este nível, esta dimensão, não é, portanto, um invisível de fato, como objeto escondido atrás de outro, não é um invisível absoluto, que nada teria a ver com o visível, mas o invisível deste mundo, aquele que o habita, o sustenta e torna visível, sua possibilidade interior e própria, o Ser desse ente.” (MERLEAU-PONTY, 2007, p. 146)
  • 11
    . Com o termo “simbolizar”, Merleau-Ponty entende “sistema de correspondências”.
  • 12
    . “Por mim, escrevo a prosa dos meus versos/ E fico contente,/ Porque sei que compreendo a Natureza por fora;/ E não a compreendo por dentro/ Porque a Natureza não tem dentro;/ Senão não era a Natureza.” (PESSOA, 2005, p. 53.)
  • 13
    . Em uma passagem da Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty (2006c, p. 229) comenta: “as funções sensoriais por si sós não me fazem ser no mundo”. A existência natural do corpo, o fato de ele possuir órgãos dos sentidos não é condição suficiente para que haja experiência de algo, pois assim ele estaria preso ao instante que não passa, no qual não é possível fixar, delimitar uma apreensão, e no qual o presente perde sua “consistência”, suas dimensões de passado e futuro, e se torna uma eternidade. Se ao corpo falta a “plenitude da existência como coisa”, isto é, se ele não é uma coisa no sentido da coisa natural, é porque sua existência é sempre “trabalhada por um nada ativo” (MERLEAU-PONTY, 2006c, p. 228), ou seja, pela intencionalidade, temporalidade, a qual o faz ser uma “verdadeira presença no mundo”, isto é, que ele vise algo, que uma intenção, uma perspectiva sempre se esboce em seu campo de presença. Assim, o agir, o comportamento, o visar algo dos órgãos dos sentidos possui uma agente impulsionando seu intencionar.
  • 14
    . E Merleau-Ponty considerava mesmo que sua ontologia consistia em dar outro nome para aquilo que o Grande Racionalismo do século XVII havia chamado Deus: “Para mim, a filosofia consiste em dar outro nome ao que há muito tempo foi cristalizado sob esse nome de Deus”. (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 371)
  • 15
    . Apesar de se utilizar dos dados trazidos à tona pela ciência, como da embriologia e da etologia, Merleau-Ponty também reconhece que o modo como a ciência compreende esses dados se faz por um “pensamento de sobrevoo”, isto é, ela se reduz à prática, autônoma e engenhosa, de captar, ensaiar, transformar, operar sem ter consciência de que também ela é construção. Dessa maneira, para que ela pudesse compreender a si mesma, deixando de ser apenas “pensamento ‘operatório’”, e para que ela viesse a redescobrir o “solo do mundo sensível” ou “mundo bruto”, seria preciso que ela voltasse a ser Filosofia. (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 13-15)
  • 16
    . CAMARGO, J. On the philosophical consequences on the primacy of perception in Merleau-Ponty. Trans/form/ação, Marília, v. 43, p. 231-256, 2020. Edição Especial.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    03 Maio 2018
  • Aceito
    23 Fev 2020
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