RESUMO
O presente ensaio tem por objetivo apresentar como, por meio de uma escuta sensível das linguagens dos bebês e de um olhar atento a elas, uma professora se constituiu como professora de bebês e crianças muito pequenas em uma creche pública do interior de São Paulo e como as relações que ela travou estabeleceram, relativamente às injustiças do poder público no que concerne à superlotação na creche, uma singular apropriação do espaço físico escolar com base na pedagogia Freinet, tornando sua trajetória docente única e ímpar, naquela situação determinada.
Palavras-chave
Pedagogia Freinet; Educação infantil; Bebês
ABSTRACT
The purpose of this essay is to present how, through sensitive listening to the languages of babies and a careful look at them, a teacher was constituted as a teacher of very young children in a public daycare center in the interior of São Paulo, Brazil; and how the relationships she made established, in relation to the injustices of the public power with regard to overcrowding in the daycare center, a singular appropriation of the physical school space based on Freinet pedagogy, making her teaching trajectory unique and peculiar, in that determined situation.
Keywords
Freinet pedagogy; Early childhood education; Babies
Introdução
“Quem anda no trilho é trem de ferro,
sou água que corre entre pedras:
liberdade caça jeito.”
Manoel de Barros (2001)BARROS, M. Matéria de poesia. Rio de Janeiro: Record, 2001.
O presente ensaio tem por objetivo apresentar como, por meio de uma escuta sensível das linguagens dos bebês e de um olhar atento a elas, uma professora se constituiu como professora de bebês e crianças muito pequenas em uma creche pública do interior de São Paulo e como as relações que ela travou estabeleceram, relativamente às injustiças do poder público no que concerne à superlotação na creche, uma singular apropriação do espaço físico escolar com base na pedagogia Freinet, tornando sua trajetória docente única e ímpar, naquela situação determinada.
A professora Lu, como é conhecida, é uma profissional com 20 anos de atuação. Durante grande parte desse tempo profissional, trabalhou com crianças e jovens de 4 a 10 anos e, após o mestrado, concluído em 2010, deu início ao trabalho como professora de graduação e pós-graduação. Dessa maneira, ampliou a faixa etária do seu trabalho docente, que passou a atender pessoas de 4 a 70 anos.
No ano de 2015, ao assumir seu cargo de professora de educação infantil após um concurso público em um munícipio da grande região metropolitana de São Paulo, viu-se diante do desafio de ser professora de berçário, para trabalhar com crianças de 4 meses a 1 ano e 6 meses, uma situação nunca antes enfrentada em seus anos de docência.
Entendemos que ser professora de crianças bem pequenas exige uma série de conhecimentos e saberes, nem sempre trabalhados de modo a preparar o profissional para as especificidades da faixa etária de 0 a 3 anos. A profissão de professora na creche não é, como muitos acreditam, apenas a continuidade dos fazeres maternos, mas uma construção de profissionalização que exige bem mais que competências teórica, metodológica e relacional.
Fica para o senso comum de pais e educadores desavisados que o trabalho com os bebês diz respeito aos cuidados com a saúde e com a higiene, aspectos importantes, no entanto não suficientes para o desenvolvimento integral das crianças, garantido pela primeira vez pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), em 1996. De lá para cá, tivemos avanços na ampliação do número de vagas, bem como na formação dos profissionais que lidam com os bebês, porém questões como formação do sujeito e sua subjetividade, estabelecimento de vínculos afetivos, experiências sensoriais e contato com as diferentes linguagens dos bebês ainda são temas distantes da realidade de muitas instituições. Há boas iniciativas que estão para além dos cuidados, mas o que encontramos de modo mais recorrente em todo o país são as preocupações em atender o maior número possível de crianças por adultos e em diminuir o déficit de vagas.
O livro Educação de 0 a 3 anos: o atendimento em creche, de Elinor Goldschmied e Sonia Jackson (2006)GOLDSCHMIED, E.; JACKSON, S. Educação de 0 a 3 anos: o atendimento em creche. Porto Alegre: Artmed, 2006., apresenta pesquisas de mais de 30 anos de trabalho das autoras em creches no Reino Unido e em outros países da Europa com grande tradição em creche, como Espanha e Itália, e ambas são unânimes em dizer que o ideal é até quatro bebês por adulto responsável. Elas são categóricas ao afirmar que, quanto maior o número de crianças por adulto, maiores são as dificuldades de as crianças estabelecerem vínculos afetivos saudáveis, se sentirem seguras para interagir e se expressar, aspectos importantes para o bom desenvolvimento infantil.
No Brasil, não há especificação em forma de lei do número de bebês por adulto; o que encontramos é uma recomendação do Ministério da Educação (Parecer do Conselho Nacional de Educação nº 22/1998) que sugere uma professora ou um professor para cada seis a oito crianças de 0 a 2 anos. Por se tratar de uma recomendação, e não de uma lei, cada município tem a liberdade de estabelecer seu limite de crianças por adulto. Na rede municipal da cidade do interior paulista em que a professora Lu trabalha, ficou estabelecido o número de seis a oito crianças por adulto, conforme documento Termo de referência técnica 2016: educação infantil (PREFEITURA DE CAMPINAS, 2016PREFEITURA DE CAMPINAS. Termo de referência técnica 2016: educação infantil do Município de Campinas. Campinas: Prefeitura de Campinas, 2016. Disponível em: http://www.campinas.sp.gov.br/arquivos/educacao/e04_2015_termo_referencia_ed_infantil_anexo_a.pdf. Acesso em: 17 maio 2020.
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).
Além de o número ser o dobro do indicado por Goldschmied e Jackson (2006)GOLDSCHMIED, E.; JACKSON, S. Educação de 0 a 3 anos: o atendimento em creche. Porto Alegre: Artmed, 2006., ele é muito elevado em relação ao de outros países. As professoras enfrentam também o problema da alta quantidade de crianças por sala, que no município em que a professora Lu trabalha raramente é inferior a 24, chegando em alguns casos a 45 bebês no mesmo espaço. A superlotação das creches públicas desrespeita a LDBEN (1996), segundo a qual: “A educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade” (BRASIL, 1996BRASIL. Base Nacional Curricular de Educação Infantil. Brasil: Ministério da Educação, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_20dez_site.pdf. Acesso em: 17 maio 2020.
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).
Diante dessa premissa institucional e legal, perguntamo-nos: de que forma podemos garantir o desenvolvimento global da criança bem pequena se sabemos que o ser humano é um ser social e que nessa etapa da vida é fundamental a criação de vínculos fortes e saudáveis, se cada adulto tem sob sua responsabilidade oito bebês para serem trocados, alimentados, acarinhados, ninados?
Ante a tais condições de trabalho, faz-se necessário que os profissionais da educação que lidam com essa faixa etária pensem em táticas que, segundo Certeau (1994)CERTEAU, M. A invenção do cotidiano I: as artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 1994., vão contra o estabelecido, o instituído de cima para baixo, e permitam o contato desses profissionais com pequenos grupos de crianças por vez. É preciso pensar em primeiro lugar nas questões que o cotidiano apresenta para os profissionais da educação, notadamente as professoras (graduadas em Pedagogia) e agentes de educação infantil/monitores de educação (com formação de nível médio), e em brechas de respiro para dar vida à situação de sufoco dentro das salas superlotadas. “A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha” (CERTEAU, 1994CERTEAU, M. A invenção do cotidiano I: as artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 1994., p. 99).
Comumente, a superlotação de bebês nos espaços da educação infantil pode dar origem a alguns problemas, tais como: o tempo de espera dos bebês para realizarem atividades, o excessivo tempo em que são expostos à televisão e principalmente o cerceamento da criatividade e da liberdade.
O cotidiano da creche é um espaço de liberdade vigiada. Um tempo não produtivo. Fora a rotina estreita, se vigia a criança para que “cresça”, guardada, alimentada, protegida... Uma vigilância, entretanto, que não lhe permite crescer de fato porque a limita nas suas possibilidades. Limita o seu presente, modela o seu futuro. Desconsiderando o significado desses anos de existência, acaba por minar suas possibilidades de desenvolvimento como ser criativo e produtivo, e, ao mesmo tempo, ignora sua existência, como um ser atuante, desde já, numa realidade social e concreta
(BUJES; HOFFMANN, 1991BUJES, M.I.E.; HOFFMANN, J.M.L. A creche à espera do pedagógico. Perspectiva, Florianópolis, v. 9, n. 16, p. 112-131, jan./dez. 1991., p. 124).
Entendendo os bebês como seres atuantes, criativos e produtivos, faz-se necessário que as profissionais da educação comprometidas com essa perspectiva atuem de modo a criar táticas que favoreçam esse pleno desenvolvimento mesmo em contextos adversos e contraditórios, mas ainda possíveis em instituições públicas de educação infantil.
O que aprendemos com os bebês
Toda a história da professora Lu está marcada pelas reflexões propostas no contexto da pedagogia freinetiana e do pensamento de seu fundador, Célestin Freinet (1977FREINET, C. O método natural II: a aprendizagem do desenho. Lisboa: Estampa, 1977.; 1996aFREINET, C. Para uma escola do povo. São Paulo: Martins Fontes, 1996a.; 1996b)FREINET, C. Pedagogia do bom senso. São Paulo: Martins Fontes, 1996b.. Ela não só assumiu os princípios pedagógicos por ele defendido – a livre expressão, a cooperação, a autonomia e o trabalho –, como também sua humilde postura de aprender com os sujeitos aprendentes dos processos educativos – sejam crianças, jovens e adultos, sejam bebês.
Freinet acreditava que as crianças deveriam ser acolhidas em sua totalidade na escola. Como ele mesmo diz:
Precisam sentir que encontraram, em ti e na tua escola, aquela ressonância que lhes dá sentido e uma finalidade à vida. Têm necessidade de falar a alguém que as escute, de escrever a alguém que as leia ou que as compreenda, de produzir alguma coisa de útil e de belo que é a expressão de tudo o que nelas trazem de generoso e de superior
(FREINET, 1996bFREINET, C. Pedagogia do bom senso. São Paulo: Martins Fontes, 1996b., p. 23).
Por identificar-se com essa pedagogia e considerar-se uma militante (SOLIGO, 2015SOLIGO, R.A. A experiência da escrita no espaço virtual: a voz, a vez, uma conquista talvez. 219f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2015. Disponível em: https://rosaurasoligositeoficial.files.wordpress.com/2022/03/rosaura-soligo-tese-de-doutorado.pdf. Acesso em: 17 maio 2020.
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) desta, ao iniciar o trabalho com os bebês, a professora Lu sentiu-se desafiada a experimentar as técnicas freinetianas de organização do trabalho pedagógico optando por trabalhar em ateliês com crianças bem pequenas – os bebês.
É importante ressaltar que Freinet não falou em seus livros sobre essa faixa etária, pois, na França, na época (1896 a 1966), a educação de 0 a 3 anos ficava a cargo do serviço social. No entanto, como pensador comprometido com as crianças e seu desenvolvimento integral, ele nos apresentou algumas ideias – pode-se dizer que deixou pistas – quando diz que as crianças bem pequenas precisam vivenciar o máximo possível o contato com os elementos da natureza, para que assim construam uma reserva de infância que servirá de alicerce para toda a sua existência (FREINET, 1996aFREINET, C. Para uma escola do povo. São Paulo: Martins Fontes, 1996a.).
Num primeiro momento a professora Lu organizou os ateliês de acordo com as possibilidades de expressão para os bebês maiores, entre 8 meses e 1 ano e meio, ofertando uma mesa com materiais para desenho e recorte e colagem, cavalete de pintura, mesa para massinha de modelar, cantinho de biblioteca, tapete no chão com jogos de montar e empilhar, outro tapete com jogos de encaixe, um cantinho para brincar de casinha, um baú com fantasias e acessórios, caixa com instrumentos musicais, um cantinho com pista para carrinhos. Ao todo, era oferecido todos os dias o total de 11 ateliês.
Esse primeiro tateio da professora foi feito com as 24 crianças, no entanto logo se percebeu que aquela organização realizada a duras penas se mostrou inviável. Mesmo trabalhando os ateliês em pequenos grupos, no corredor da escola, os bebês dispersavam-se e fugiam da proposta.
Entre acertos e erros, a melhor situação acontecia quando a professora Lu dividia os 24 bebês (média diária) em dois grupos, para que um grupo fosse ao parque e o outro, com até oito crianças, ficasse com ela e uma monitora. Havia um rodízio entre as educadoras para que todas tivessem a oportunidade de participar dos momentos de ateliês, em sala. Depois de muitas tentativas, chegou-se a um número ideal de crianças para que a interação com os materiais, entre crianças e educadoras e entre crianças em si fluísse de maneira harmoniosa e instigante para os pequenos.
Dividir os bebês em pequenos grupos não é uma novidade na educação infantil, tampouco característica exclusiva da pedagogia Freinet. O que torna essa prática original é organizar o ambiente em ateliês com materiais diversificados, como se fossem pequenas estações, para que os bebês possam escolher e explorar livremente as diferentes linguagens presentes.
“Fazendo massa de areia, edificando cubos, brincando de barco, cavalo, de trenzinho, você verá, observando seu rosto, que ela dá toda a sua alma ao assunto em questão, que é tão absorvida em tudo isso quanto você em suas pesquisas sérias” (CHÂTEAU, 1987CHÂTEAU, J. O jogo e a criança. São Paulo: Summus, 1987., p. 44).
Na Fig. 1, podemos observar duas crianças bem pequenas, de 1 ano e 2 meses, pintando folhas de papel no cavalete. Na Fig. 2, um bebê, de pouco mais de 7 meses, tenta encaixar peças num jogo de encaixe.
A permanência dos bebês nos ateliês dura em média 30 minutos. A professora Lu percebeu que eles começavam a se cansar depois disso. No contexto da proposta pedagógica freinetiana, a professora Lu e a educadora do dia caminham pela sala, sentando-se junto com os bebês, perguntando, ajudando-os ou simplesmente observando os tateios experimentais que cada um realiza na relação com os materiais, com as outras crianças e com as educadoras. Nas palavras de Freinet (1996b, p. 82)FREINET, C. Pedagogia do bom senso. São Paulo: Martins Fontes, 1996b.: “Deixe a criança tatear, alongar os tentáculos, experimentar e cavar, inquirir e comparar, folhear livros e fichas, mergulhar a curiosidade nas profundezas caprichosas do conhecimento, numa busca, às vezes árdua, do alimento que lhe é substancial”.
Os ateliês permitem aguçar nossos olhos para as investigações que nós, seres humanos, somos capazes de fazer desde a mais tenra idade. No entanto, dada a superlotação dos espaços da educação infantil, infelizmente a professora Lu não conseguia propor esses ateliês de modo constante e regular, pois o espaço dos ateliês também era dormitório para um grupo de bebês mais novos, não havendo um espaço propício ou adequado para o desenvolvimento dessas atividades criativas e estimulantes.
O espaço e o desenvolvimento dos bebês
No contexto do desenvolvimento infantil e relativo às práticas pedagógicas no âmbito da educação infantil, o espaço desempenha papel fundamental na promoção das aprendizagens e expressões das crianças, como indicado na Base Nacional Curricular de Educação Infantil (BRASIL, 2017BRASIL. Base Nacional Curricular de Educação Infantil. Brasil: Ministério da Educação, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_20dez_site.pdf. Acesso em: 17 maio 2020.
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). Isso implica que a organização dos espaços de educação infantil precisa levar em conta diferentes ações educativas, de modo a promover o desenvolvimento integral dos bebês e das crianças pequenas.
Diante dessa importante diretriz educacional, a gestão da instituição na qual a professora Lu trabalhava sugeriu que um espaço desocupado, pouco utilizado e, talvez, inadequado na perspectiva de alguns profissionais de educação pudesse transformar-se em um espaço educador. A diretora da instituição sugeriu que fosse planejada uma reforma em um quiosque da área externa da creche. O quiosque era um espaço coberto, com uma pia, duas mesas para as turmas realizarem atividades externamente à unidade, porém pouco usado pelas educadoras da creche, como mostra a Fig. 3.
Apresentamos a proposta da reforma do quiosque para o conselho da escola, que a aprovou, com o objetivo de adequá-lo para que pudesse beneficiar todas as turmas. Assim, após muitas tentativas táticas, chegamos a um espaço e uma organização que têm nos permitido suavizar os problemas acarretados pela superlotação.
Com o espaço reformado, com os devidos cuidados de proteção, a professora Lu continuou com a divisão da turma em dois grupos de bebês. Enquanto duas educadoras com um grupo de 16 crianças ficavam no parque, a professora Lu e outra educadora permaneciam no quiosque com no máximo oito bebês, para as atividades de exploração em artes plásticas, jogos, brincadeiras e experiências sensoriais. Desse modo, foi possível perceber com maior cuidado e atenção as reações dos bebês, suas falas guturais e balbucios, suas descobertas e os interesses de cada um.
O tempo/espaço no quiosque proporcionou uma observação mais acurada e a percepção mais minuciosa do desenvolvimento de um conceito fundamental da pedagogia freinetiana: o tateamento experimental. Como diz Freinet (1996b)FREINET, C. Pedagogia do bom senso. São Paulo: Martins Fontes, 1996b., é ao caminhar que a criança aprende a andar, é ao falar que a criança aprende a falar. Ou seja, a pedagogia Freinet é uma pedagogia do fazer, do trabalho, da realização do sujeito sobre/no/com/para o mundo.
Além disso, um espaço adequado para os tateios experimentais dos bebês é também um espaço adequado para os docentes e profissionais da educação realizarem seus próprios tateios experimentais, possibilitando escolher novos usos do espaço, novas formas de explorar os materiais existentes, novos modos de como intervir nos processos de aprendizagem de cada um, bem como quando o calar se faz necessário e o olhar atento consegue apreender as singulares conquistas dos bebês, pois são com e por eles que criamos nossos fazeres pedagógicos.
O quiosque passou a ser um espaço no qual tanto os bebês como os adultos podiam brincar com tinta, massinha, argila sem se preocupar se estavam sujando o local, já que este era exclusivo para essas atividades lúdicas, e não dedicado a atividades que necessitavam de higiene, como é o caso de um local de dormir.
Para além de todas as vantagens relatadas, os bebês e as profissionais da educação ganharam outra vantagem muito especial, muito valorizada por Freinet (1977)FREINET, C. O método natural II: a aprendizagem do desenho. Lisboa: Estampa, 1977.: o contato direto com a natureza. O entorno do quiosque está repleto de pedrinhas, sementes, frutos, flores, folhas, gravetos, água, terra, que estão contribuindo para a reserva de infância de cada criança.
Assim, gostaríamos de compartilhar o primeiro dia no quiosque/ateliê, como relatado pela professora Lu:
No primeiro dia [em] que fomos para o quiosque, eu e uma monitora propusemos que as crianças pintassem um painel que ficaria exposto na porta da nossa sala, porém não levamos em conta que o quiosque era um espaço novo para as crianças e que elas gostariam de explorar todas as suas possibilidades, pois a pintura do painel fazia parte do nosso planejamento, mas não das crianças.
Elas até se divertiram pintando o painel com rolinho, algumas mostraram satisfação em molhar as mãos com guache, enquanto outras ficaram aflitas com as mãos meladas, mas foram unânimes no interesse em mexer com as duas torneiras presentes no espaço.
Assim, notamos qual era o real desejo delas e deixamos que experimentassem a alegria de abrir e fechar as torneiras
(registro do trabalho realizado no quiosque, 23 mar. 2018).
Pode-se observar na Fig. 4 o momento em que os bebês estão pintando no cavalete quando a primeira criança da esquerda enxerga as torneiras, ficando atenta ao movimento que naquele lugar se instala, como mostra a Fig. 5. Diz a Profa. Lu: “Que alegria poder fotografar esse exato momento!” (registro do trabalho realizado no quiosque, 23 mar. 2018).
Para Horn (2004, p. 28)HORN, M.G.S. Sabores, cores, sons, aromas: a organização dos espaços na educação infantil. Porto Alegre: Artmed, 2004., “é no espaço físico que a criança consegue estabelecer relações entre o mundo e as pessoas, transformando-o em um pano de fundo no qual se inserem emoções”. Assim, ele deixa de ser um simples local para se transformar num ambiente de vivências e aprendizagens.
Depois de as crianças brincarem, disputarem, testarem todas as possibilidades das torneiras, a professora Lu pensou ser prudente oferecer-lhes outra forma de contato com a água, de modo a não estimular o desperdício. Encheu algumas bacias com água, como as mostradas na Fig. 6, e levou as crianças para uma área externa, criando modos de explorá-la, possibilitando que os bebês brincassem com as bacias e os copos, vertendo a água com os copos, colocando sementes e frutinhas encontradas no gramado neles, ou simplesmente refrescando-se com a água.
Podemos imaginar que, em um primeiro momento, a reação de alguns adultos seria a de fechar a torneira e até dar um pito nas crianças, no entanto a atitude da professora Lu foi orientada pela certeza de que, como adulta que é, que permanece em contato com sua criança interior, ela se lembra da delícia que é brincar com água, de brincar de chuvinha com esguicho, da felicidade de ser pequeno e encontrar um objeto de gente grande em miniatura para ser explorado, explorando suas reservas de infância. Freinet (1996b, p. 23)FREINET, C. Pedagogia do bom senso. São Paulo: Martins Fontes, 1996b. diz:
Se você não voltar a ser como uma criança, não entrará no reino encantado da pedagogia. Ao invés de procurar esquecer a infância, acostume-se a revivê-la; reviva-a com os alunos, procurando compreender as possíveis diferenças originadas pela diversidade de meios e pelo trágico dos acontecimentos que influenciam tão cruelmente a infância contemporânea.
Voltando a ser criança com as ações dos bebês, a professora Lu aprende não só a construir um espaço educativo, como também torna a curiosidade dos bebês o ponto de partida para outras proposições pedagógicas.
Finalizando a reflexão, lutando pelos bebês e suas culturas na educação infantil
O referencial teórico proposto por Célestin Freinet em sua obra ajuda a compreender que o que poderia ser interpretado como bagunça ou até mesmo indisciplina é simplesmente a vida pulsando na creche.
Com o registro desse vivido e de outros tantos, a professora Lu pode realizar seus tateios experimentais, aprendendo a ser professora de bebês e crianças bem pequenas, errando e acertando no caminho de constituir-se uma professora da educação infantil. O livro de Fontana (2010)FONTANA, R.A.C. Como nos tornamos professoras? 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. Como nos tornamos professoras? auxilia também a entender a importância do registro do trabalho docente e como este é um instrumento para refletir, organizar e agir sobre as práticas pedagógicas, nas relações que as professoras estabelecem com o espaço, com as crianças e, de forma mais ampliada, com o mundo, construindo novas táticas diante das estratégias opressoras que as condições concretas muitas vezes insistem em apresentar. Diz a autora: “No ‘re-ver-se’, no ‘re-planejar’, estão embutidos nossos esforços de ‘encontrar uma explicação e um sentido para o vivido e/ou de ‘compreender a que se destina nosso fazer’, que deixam de ser dados, implícita e imediatamente no contexto do nosso trabalho” (FONTANA, 2010FONTANA, R.A.C. Como nos tornamos professoras? 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010., p. 45).
Das muitas lições que podemos depreender dessas breves reflexões constituídas no diálogo com a professora Lu, uma que ficou é a de que, apesar das duras condições de trabalho vivenciadas pelos profissionais da educação da rede pública de ensino no Brasil, é possível construir táticas que formam novos modos de trabalho educacional a favor das crianças pequenas e do estabelecimento das culturas infantis. Pensar a respeito de situações do cotidiano escolar colabora com a reflexão sobre o próprio trabalho e com a busca por saídas para problemas que, às vezes, parecem não ter solução, mas que possibilitam a criação de táticas que subvertem a ordem estabelecida.
Acreditar que os bebês são capazes e sujeitos de direito, merecedores de uma educação de qualidade, permite a reorganização dos espaços/tempos na creche para que, assim, adultos e crianças possam de forma livre e sensível expressar suas potencialidades e singularidades.
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Financiamento
Não se aplica. -
Declaração de disponibilidade de dados
Todos os dados estão disponíveis no decorrer do artigo. -
Número temático organizado por: Ana Flávia Valente Buscariolo e Daniela Dias dos Anjos
REFERÊNCIAS
- BARROS, M. Matéria de poesia Rio de Janeiro: Record, 2001.
- BRASIL. Base Nacional Curricular de Educação Infantil Brasil: Ministério da Educação, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_20dez_site.pdf Acesso em: 17 maio 2020.
» http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_20dez_site.pdf - BUJES, M.I.E.; HOFFMANN, J.M.L. A creche à espera do pedagógico. Perspectiva, Florianópolis, v. 9, n. 16, p. 112-131, jan./dez. 1991.
- CERTEAU, M. A invenção do cotidiano I: as artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
- CHÂTEAU, J. O jogo e a criança São Paulo: Summus, 1987.
- FONTANA, R.A.C. Como nos tornamos professoras? 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
- FREINET, C. O método natural II: a aprendizagem do desenho. Lisboa: Estampa, 1977.
- FREINET, C. Para uma escola do povo São Paulo: Martins Fontes, 1996a.
- FREINET, C. Pedagogia do bom senso São Paulo: Martins Fontes, 1996b.
- GOLDSCHMIED, E.; JACKSON, S. Educação de 0 a 3 anos: o atendimento em creche. Porto Alegre: Artmed, 2006.
- HORN, M.G.S. Sabores, cores, sons, aromas: a organização dos espaços na educação infantil. Porto Alegre: Artmed, 2004.
- PREFEITURA DE CAMPINAS. Termo de referência técnica 2016: educação infantil do Município de Campinas. Campinas: Prefeitura de Campinas, 2016. Disponível em: http://www.campinas.sp.gov.br/arquivos/educacao/e04_2015_termo_referencia_ed_infantil_anexo_a.pdf Acesso em: 17 maio 2020.
» http://www.campinas.sp.gov.br/arquivos/educacao/e04_2015_termo_referencia_ed_infantil_anexo_a.pdf - SOLIGO, R.A. A experiência da escrita no espaço virtual: a voz, a vez, uma conquista talvez 219f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2015. Disponível em: https://rosaurasoligositeoficial.files.wordpress.com/2022/03/rosaura-soligo-tese-de-doutorado.pdf Acesso em: 17 maio 2020.
» https://rosaurasoligositeoficial.files.wordpress.com/2022/03/rosaura-soligo-tese-de-doutorado.pdf
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Editoras Associadas:
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
27 Jun 2022 -
Data do Fascículo
May-Aug 2022
Histórico
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Recebido
01 Maio 2021 -
Aceito
30 Out 2021