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Representação simbólica e linguagem de uma criança com autismo no ato de brincar

Symbolic representation and language of a child with autism at play

Representación simbólica y lenguaje de un niño con autismo al jugar

Resumo

Objetiva analisar as representações simbólicas produzidas no espaço da brinquedoteca, por meio do jogo de faz de conta de uma criança autista, sexo masculino, cinco anos, oriunda da comunidade Vitória/ES. Usa o método qualitativo, a partir de observação participante, videogravação, fotografias e registros em diário de campo. Os dados analisados evidenciam o quanto a experiência de brincar da criança autista favorece a internalização desse elemento da cultura (a brincadeira), na medida em que implica a (re)significação de objetos e a representação de situações de vida, com o uso de múltiplas possibilidades de linguagens e a potencialização do processo de desenvolvimento intra/interpessoal.

PALAVRAS-CHAVE
Representação simbólica; Autismo; Linguagem; Brincadeira

Abstract

This work aims at analyzing symbolic representations produced in a playroom, through pretend play, by a five-year-old male child with autism from the city of Vitória, State of Espirito Santo. The qualitative method is used from participant observation, video filming, photographs and field notes. The analyzed data shows the extent to which the play experience of the child with autism favors the internalization of this cultural element as it implies object (re) signification and representation of life situations, by utilizing multiple language possibilities and enhancing intra/interpersonal developmental process.

KEYWORDS
Symbolic representation; Autism; Language; Play

Resumen

El objetivo es analizar las representaciones simbólicas producidas en la sala de juegos, a través del juego de la imaginación de un niño autista, de sexo masculino, de cinco años de edad, oriundo de la comunidad de Vitória/ES. Se utiliza el método cualitativo, a partir de la observación del participante, videograbación, fotografías y registros en diario de campo. Los datos analizados muestran cuánto la experiencia de jugar de un niño autista favorece a la internalización de ese elemento de la cultura, en la medida en que implica la (re) significación de objetos y la representación de situaciones de vida, utilizando las múltiples posibilidades de lenguajes y potencializando el proceso de desarrollo intra/interpersonal.

PALABRAS CLAVE
Representación simbólica; Autismo; Lenguaje; Juegos

Introdução

A pesquisa 1 1 Projeto de pesquisa aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa (CEP/Ufes), sob o número de registro 076/10. A pesquisa contou com o Termo de Consentimento Livre Esclarecido autorizado pelos pais para a divulgação das fotos e demais materiais. Os nomes apresentados são fictícios. A pesquisa vigorou de 1° de agosto de 2010 a 31 de julho de 2011. em tela objetiva analisar as representações simbólicas produzidas por uma criança com autismo, ao participar de atividades lúdicas no espaço da brinquedoteca localizada no Laboratório de Educação Física Adaptada, Centro de Educação Física e Desportos, Universidade Federal do Espírito Santo (Laefa/CEFD/Ufes).

A opção pelo estudo do autismo pauta-se no desejo de possibilitar aos sujeitos com essa síndrome experiências educativas e também corporais que potencializem seu desenvolvimento. De que forma? Explorando outros tipos de linguagens, para além das socialmente impostas (verbal e escrita), oferecendo atividades em que a criança se sinta pertencente ao grupo, para que assim possamos, ao mesmo tempo, trabalhar a socialização desse sujeito que muitas vezes acaba ficando recluso por uma leitura engessada de seu diagnóstico.

O autismo é um transtorno que se manifesta antes dos três anos, caracterizado, de maneira geral, por problemas nas áreas de comunicação, interação social, bem como por padrões restritos, repetitivos e estereotipados de comportamento. Geralmente está associado a outras síndromes e é facilmente confundido com deficiência intelectual. Autores como Falkenbach; Diesel e Oliveira (2010)Falkenbach AP, Diesel D, Oliveira LCd. O jogo da criança autista nas sessões de psicomotricidade relacional. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas 2010;31(2):203-14., Sá (2008)Sá MGCS. Cartografando processos inclusivos na educação infantil em busca de movimentos instituintes. 2008. 205 f. Tese (Doutorado em Educação) — Programa de Pós-Graduação em Educação, Centro de Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2008., Orrú (2009)Orrú SE. Autismo, linguagem e educação: interação social no cotidiano escolar. Rio de Janeiro: Wak; 2009., Baptista e Bosa (2002)Baptista CR, Bosa C. (Org.). Autismo e educação: reflexões e propostas de intervenção. Porto Alegre: Artmed, 2002. têm enfrentado o desafio, como nós, de encontrar os meios de educar todas as crianças no mesmo espaço-tempo de interação e de contribuir para o processo ensino-aprendizagem desses indivíduos com características tão peculiares.

O eixo teórico deste estudo baseou-se na abordagem histórico-cultural, em especial no debate que essa concepção promove acerca dos processos de significação humana, por meio das interações socioculturais, no intuito de melhor compreender a forma como esses processos se configuram a partir das experiências vividas, bem como que elementos medeiam tais relações e os possíveis conhecimentos que ali são produzidos/significados.

No que se refere ao campo dos estudos acerca das práticas pedagógicas na/da educação física, apoiamo-nos no referencial da cultura corporal de movimento (Soares et al., 1992Soares CL, Taffarel CNZ, Varjal E, Castellani Filho L, Escobar MO, Bracht V. Metodologia do ensino da educação física. São Paulo: Cortez; 1992.), por concebermos que os sujeitos, ao longo de seu processo de formação humana, se apropriam das diferentes/diversas práticas corporais, (res)significando-as a partir de fatores sócio-históricos e culturalmente produzidos.

O conteúdo promovido na intervenção em tese se refere ao jogo infantil, aqui caracterizado pela livre escolha e pelo controle interno da criança, pela relevância do processo de brincar e pela incerteza (Kishimoto, 1998Kishimoto TM. O jogo e a educação infantil. In: Kishimoto TM. (Org.) Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. 11. ed. São Paulo: Cortez, 1998. 13-43.), com foco para o jogo de faz de conta, que se torna significativo neste estudo.

Entendemos que a criança, ao evidenciar uma situação imaginária, congrega na brincadeira, os elementos da realidade social em que está inserida, facilitando a compreensão desse contexto. Logo, consideramos a brinquedoteca, com seus inúmeros brinquedos distribuídos em cantinhos temáticos, como a casinha de bonecas, o cantinho de carrinhos, de fantasias etc., um espaço significativamente potencializador para o aprendizado e desenvolvimento infantil.

A perspectiva histórico-cultural

Vygotsky (2007)Vygotsky LS. A formação social da mente. 7ª. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2007. centra-se no princípio de que os seres humanos podem apropriar-se e transmitir os produtos de sua cultura diferentemente dos animais, visto que esses são completamente dependentes da herança genética. Dessa maneira, os seres humanos "dominando o conhecimento e a sabedoria incorporados na cultura humana, podem dar um passo decisivo no sentido da emancipação em relação à natureza" (Veer e Valsiner, 1999Veer RVD, Valsiner J. Vygotsky: uma síntese. 3ª. ed. São Paulo: Edições Loyola; 1999., p. 213).

As características humanas, portanto, são adquiridas pelos processos de significação e a apropriação/internalização da cultura é feita por meio da interação social. A esse processo, que ocorre no plano pessoal, o sujeito tem condição de acessar a cultura e (re)criar/(res)significar os seus conceitos, a partir dos significados que essa tem para si (Pino, 2005Pino A. As marcas do humano: as origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev. S. Vigotski. São Paulo: Cortez; 2005.). É nesse sentido que, para Vygotsky, o homem (sujeito) se caracteriza como um ser simbólico, humano, cultural, histórico, já que "o ser humano integra em si realidades culturais, portanto simbólicas" (Padilha, 2001Padilha AML. Práticas pedagógicas na educação especial: a capacidade de significar o mundo e a inserção cultural do deficiente mental. Campinas: Autores Associados; 2001., p. 14).

Para a teoria histórico-cultural, as crianças não nascem aptas a desempenhar papéis sociais; elas se desenvolvem num processo sócio-histórico de apropriação da linguagem, com base nas experiências por elas vividas de forma singular.Vygotsky (2007)Vygotsky LS. A formação social da mente. 7ª. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2007. compactua com o entendimento de que a aprendizagem se inicia muito antes do ensino escolar, que ela nunca parte do zero, é transformada qualitativamente na/pela cultura.

O autor postula ainda que a aprendizagem deve ser coerente com o nível de desenvolvimento em que a criança se encontra, isto é, com a zona de desenvolvimento proximal, que é caracterizada pela distância entre o nível de desenvolvimento real – determinado pela capacidade de solução, sem ajuda, de problemas – e o nível de desenvolvimento potencial – medido por meio da solução de problemas sob a orientação de adultos ou em colaboração com crianças mais experientes.

Nessa relação, o professor deve visualizar o que a criança consegue fazer sozinha, de maneira a delimitar essa zona real, com o foco no que a criança poderá fazer para além do que já faz, lançando desafios e estratégias a fim de potencializar o seu desenvolvimento.

Apenas conhecendo o que as crianças são capazes de fazer com e sem ajuda externa é que se pode conseguir planejar as situações de ensino e avaliar os progressos individuais. Desse modo, a perspectiva histórico-cultural caminha no sentido de uma proposta prospectiva, ou seja, a criança aprende para então se desenvolver.

Nesse contexto, ganha destaque o conceito de mediação, aqui compreendido, segundo a definição de Oliveira (1993, p. 26)Oliveira MK. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento um processo sócio-histórico. São Paulo, 1993., como "o processo de intervenção de um elemento intermediário numa relação; a relação deixa, então, de ser direta e passa a ser mediada por esse elemento". A mediação é um ponto forte na teoria de Vygotsky, pois considera que os processos psíquicos são mediados e essa ação é auxiliada pelos instrumentos psicológicos – os signos – que estão imersos e caracterizam a cultura humana (Padilha, 2001Padilha AML. Práticas pedagógicas na educação especial: a capacidade de significar o mundo e a inserção cultural do deficiente mental. Campinas: Autores Associados; 2001.).

Assim, para Vygotsky (2007)Vygotsky LS. A formação social da mente. 7ª. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2007., aquilo que hoje a criança faz com o auxílio dos adultos amanhã ela poderá fazer sozinha. Nesse processo, ganha destaque o papel do outro, exercendo a ação mediadora entre a criança e o mundo, situação na qual os professores são de suma importância.

Considerando o processo de mediação, alguns elementos ganham destaque: os instrumentos, os signos e as linguagens. O instrumento se faz presente externamente ao homem, visto que ele é um recurso interposto entre o homem e a natureza, ampliando as possibilidades do primeiro de atuar transformando a segunda. Por exemplo, o brinquedo, no espaço da brinquedoteca, vai funcionar como instrumento mediador entre a criança e a brincadeira.

Os signos podem ser definidos, de acordo com Oliveira (1993, p. 30)Oliveira MK. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento um processo sócio-histórico. São Paulo, 1993., "como elementos que representam ou expressam outros objetos, eventos, situações. A palavra mesa, por exemplo, é um signo que representa o objeto mesa". Os signos trazem a possibilidade de o homem ser capaz de controlar por si só suas atividades psicológicas e expandir sua capacidade de atenção, memória e armazenamento de informações. Por exemplo: a criança ao brincar de faz de conta. Nessa situação, verificamos o quanto o ato de imaginar é um elemento novo para a criança e como esse ato "representa uma forma especificamente humana de atividade consciente" (Vygotsky, 2007Vygotsky LS. A formação social da mente. 7ª. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2007., p. 109). No processo se estabelece a ligação entre a brincadeira e as funções psicológicas do indivíduo.

As linguagens são percebidas como elementos de comunicação/interação do indivíduo com/no meio social. As linguagens permitem ao homem estruturar seu pensamento, traduzir o que sente, registrar o que conhece e comunicar-se com outros homens, marcando, desse modo, seu ingresso na cultura.

Nessa linha de pensamento, Givigi (2007, p. 47)Givigi RCN. Tecendo redes, pescando ideias: (re) significando a inclusão nas práticas educativas da escola. 2007. 233 f. Tese (Doutorado em Educação) — Programa de Pós-Graduação em Educação, Centro de Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2007. entende que as linguagens se encontram imbricadas a um campo de formação de sentidos/significados construído na/pelas relações sociais com diferentes significações de ordem emocional, cognitivo, pessoal e comunicativo, cuja "atividade dialógica possibilita um novo leque de interpretações, que [também se] constitui [como] um rico material de análise".

Por esse aspecto, consideramos um fator importante a aquisição/produção das linguagens para as crianças com autismo, visto que elas apresentam déficit nessa aquisição linguística e, a partir dessa estagnação, há uma maior dificuldade de interação, pois a criança não será facilmente interpretada com base em seus balbucios, expressões ou outros modos de significação da linguagem.

Não pretendemos afirmar que se a criança não fala ela não interage, até porque consideramos as outras formas de linguagens. Enfatizamos a importância da linguagem verbal (mas não só), pois prezamos uma educação voltada para a autonomia do sujeito. Quando a criança adquire a linguagem oral, ela se apropria desse código de comunicação construído culturalmente em um processo gradativo, potencializa suas relações sociais e torna-se independente em suas ações.

Delineamento teórico-metodológico

Estudo qualitativo baseado no estudo de caso, no intuito de compreender a constituição do processo de desenvolvimento da criança em tela, a partir da apropriação/aprendizagem dos elementos culturais presentes nas relações sociais estabelecidas com outros sujeitos, objetos e elementos sígnicos (Stake, apud André, 2005André MEDA. Estudo de caso em pesquisa e avaliação educacional. Brasília: Líber Livro; 2005.).

Para tanto, apoiamo-nos também em alguns pressupostos da pesquisa-ação, com ênfase na observação participante existencial (Barbier, 2007Barbier R. A pesquisa-ação. Brasília: Líber Livro; 2007.), no intuito de possibilitar ao pesquisador participar, junto com a equipe de atendimento, do momento da intervenção/planejamento/avaliação, criando, dessa forma, um estreito vínculo com os sujeitos e com o ambiente onde a pesquisa foi feita.

O sujeito foco deste estudo (aqui conhecido como Leonardo) é uma criança com autismo, do sexo masculino, com cinco anos, oriunda da comunidade Vitória/ES. Desde seu diagnóstico, aos três anos e seis meses, seus pais buscaram todas as possibilidades para melhorar seu desenvolvimento. A criança tem uma rotina repleta de atividades, passando pelo ensino regular, sessões de fonoaudiologia, psicopedagogia, natação e equoterapia. Durante o atendimento escolar, Leonardo era inserido em uma turma de dez crianças, com desenvolvimento típico, de ambos os sexos, com entre quatro e cinco anos, oriundos do Centro de Educação Infantil da Ufes.

O processo de intervenção foi desenvolvido na brinquedoteca, localizada no Laboratório de Educação Física Adaptada do Centro de Educação física e Desportos da Universidade Federal do Espírito Santo (Laefa/CEFD/Ufes), de agosto a novembro de 2010. O ambiente da brinquedoteca tem um amplo espaço organizado por meio de cantinhos temáticos, visando a ampliar as possibilidades de brincar das crianças.

Os atendimentos foram feitos por seis estagiários do Curso de Educação Física, contando com um aluno bolsista que fazia a observação participante, outro aluno responsável pelo registro de videogravação/fotos e mais quatro alunos que se encarregavam da função de brinquedistas. O encontro era de caráter semanal, no turno vespertino, das 14 às 15 horas. Nesse momento de intervenção, havia os e spaçostempos2 2 A junção dos termos dá-se pelo fato de que eles não se constituem de forma separada, mas estão imbricados, enraizados um no outro (Oliveira e Alves, 2008). da brinquedoteca.

A dinâmica inicial da brinquedoteca é caracterizada pelo acolhimento das crianças, a conversa inicial em roda, quando buscávamos dialogar com elas sobre os acontecimentos da aula anterior e sobre as atividades previstas para aquele momento. Em um segundo momento da intervenção, chamado de "Explorando a brinquedoteca", as crianças buscam, a partir de seus interesses, os cantinhos temáticos para iniciar as brincadeiras, havendo mediação dos brinquedistas. Para finalizar, fazíamos com as crianças uma conversa em roda a respeito das atividades vivenciadas durante a aula. Após o momento da intervenção, a orientadora da pesquisa, o aluno bolsista e o grupo de brinquedistas/estagiários de educação física reuniam-se para avaliar a intervenção, bem como planejar as próximas atividades e, também, estudar assuntos emergentes da prática. Foram feitas 12 intervenções.

A intervenção apoiou-se numa perspectiva hermenêutica, na busca de interpretar as ações representativas da criança foco, orientando-se por um caráter descritivo e exploratório, a fim de não só descrever os episódios de faz de conta, mas também explorá-los à medida que apareciam ao longo das representações simbólicas (André, 2005André MEDA. Estudo de caso em pesquisa e avaliação educacional. Brasília: Líber Livro; 2005.).

Como instrumentos de coleta de dados, foram usados observação participante, videogravação das sessões, fotografias, registros em diário de campo. Para a feitura da pesquisa, fizemos uso do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido devidamente lido e assinado pelos pais, para a divulgação de informações e imagens.

A análise dos dados fundamentou-se na técnica de análise de conteúdo (Bardin, 2009Bardin L. Análise de conteúdo, 70. Lisboa: Edições; 2009.) com vistas à feitura de uma descrição analítica dos dados a partir das seguintes categorias:

  1. Leonardo e suas (re)significações no ato de brincar – no intuito de se analisar a (res)significação atribuída a um dado objeto, destacando o quanto essa ação contribui para o desenvolvimento da criança em tela, no que tange às possibilidades de internalização do conhecimento.

  2. Leonardo com seus modos de significação nas/pelas linguagens – com vistas à problematização sobre os modos de simbolização expressos pelas diversas possibilidades de linguagens.

Para tanto, analisaremos, a seguir, as representações simbólicas produzidas no espaço da brinquedoteca por meio do jogo de faz de conta com crianças autistas, a partir da narrativa de alguns episódios vividos.

Leonardo e suas (res)significações no ato de brincar

Nessa categoria, buscamos analisar a (res)significação que a criança atribui a um dado objeto à luz da interpretação do pesquisador, destacando como esse ato amplia as possibilidades de ação/brincadeira e o quanto isso contribui para o seu desenvolvimento.

O episódio descrito a seguir nos ajuda a compreender essa proposição.

Episódio I:

As brincadeiras começaram. Algumas crianças foram brincar do que sempre brincam, já outras preferiram brincar com os "novos" materiais disponíveis (um corrimão duplo que virou um túnel, pneus, carrinhos feitos de caixa de papelão, pés de lata, entre outros). Leonardo (sujeito foco) foi uma das crianças que escolheu um material "novo". Ele pegou um par de pés de lata (fig. 1), mas não o usou da forma usual, ou seja, colocando seus pés sobre o objeto e se deslocando com ele como se fosse seu calçado. Do seu modo, ele atribuiu novos significados e funcionalidades ao referido brinquedo, usando de seu potencial criativo e simbólico. Ele amarrou a corda desse brinquedo no corrimão de metal de uma das barras paralelas de uma passarela, usou o objeto na forma de um pêndulo, depois começou a se deslocar pela sala, puxando o brinquedo pelo cordel, como se estivesse arrastando um carrinho (DIÁRIO DE CAMPO 4, 16-9-2010).

Figura 1
Representação de Leonardo.

Nesse episódio, trouxemos para a análise a representação/o significado que a criança atribui a um dado objeto e suas possíveis implicações no ato de brincar. Notamos que Leonardo, ao manipular o brinquedo (que tem a funcionalidade de ser usado como um "pé de lata"), explora-o nas suas mais distintas possibilidades, atendendo, desse modo, à proposta da aula daquele dia, que, de acordo com o objetivo, era brincar com os brinquedos para além de seu caráter funcional, de forma criativa e autônoma.

No momento em que ele estava atribuindo outros significados para ao uso daquele brinquedo, estava aprendendo: a) experiências corporais diferenciadas, descobrindo suas limitações e potencialidades; b) novas possibilidades no uso do material.

Para Vygotsky (2007, p. 117)Vygotsky LS. A formação social da mente. 7ª. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2007., "a criação de uma situação imaginária não é algo fortuito na vida da criança, pelo contrário, é a primeira manifestação da emancipação da criança em relação às restrições situacionais". Em se tratando de uma criança com autismo, é bastante significativo.

Nesse sentido, percebemos que a situação do brincar proporcionou a Leonardo um universo para além do concreto, do visível, levando-o para um universo simbólico em que ele, como sujeito da ação, pôde agir com autonomia e segurança.

Na aula, de maneira geral, com a atividade desenvolvida, objetivamos que as crianças pudessem vislumbrar o caráter simbólico do objeto, atribuindo outros significados. Assim, identificamos como as crianças exploraram as suas inúmeras possibilidades de brincar, conferindo significados diferenciados a um mesmo objeto e possibilitando também experiências corporais significativas para o seu desenvolvimento dentro desse contexto.

Leonardo com seus modos de significação nas/pelas linguagens

Nessa categoria, problematizamos o simbolismo/(res)significação expressos/as pelas diversas possibilidades de linguagens e destacamos uma situação na qual a criança resgata da memória informações sobre um objeto que já manipulou e os modos como ela produz suas linguagens para ter novamente o objeto. Em outro episódio, observamos como a criança usa suas possibilidades de linguagens para apresentar os sentidos/significados que as situações/pessoas representam para si.

Episódio I:

Comecei3 3 Continuação do episódio do pé de lata. a perceber que essa situação poderia se agravar, pois agora ele corria muito rápido com o pé de lata. Ele poderia se machucar, ou machucar algum colega. Tentei conversar com ele, mas ele saiu correndo. Diante daquela situação, não pensei em outra coisa a não ser tirar o brinquedo da mão dele. Assim fiz e escondi o pé de lata no escritório - local de estudo do grupo. Leonardo continuava insistentemente pedindo o brinquedo. Ele dizia: "É ata... é ata", referindo-se ao pé de lata, e respondi que o brinquedo havia sumido. Ele falava: "Miu não, miu não...", mostrando-me que ele sabia que o brinquedo não havia ‘sumido'. Nesse momento, Leonardo estava completamente expressivo, dando a impressão de um início de choro (fig. 2) e, apesar de ser contrariado, ele não demonstrou agressividade. Reconheço que, nesse episódio, faltou mediação pedagógica da minha parte,4 4 É válido lembrar que os brinquedistas (estagiários de educação física) encontravam-se em processo de formação inicial. Estavam se constituindo professores a partir das experiências formativas que vivenciavam. Sabemos que a estagiária poderia ter conversado com a criança sobre a possibilidade de a ação machucar um colega. Poderia propor outras maneiras de brincar com aquele brinquedo ou explorar tantos outros que há na brinquedoteca. pois quis solucionar o problema tirando o brinquedo (DIÁRIO DE CAMPO 4, 16-9-2010).

Nesse episódio, notamos o quanto Leonardo demonstra que sente falta do "pé de lata", já que ele resgata na memória as informações sobre o objeto que já manipulou. Observamos que ele, ao tentar representar o seu desejo, suas vontades de ter novamente o brinquedo, faz uso das linguagens (fala/expressão/choro) para ser compreendido, a fim de que possa novamente obter o objeto.

Padilha (2001)Padilha AML. Práticas pedagógicas na educação especial: a capacidade de significar o mundo e a inserção cultural do deficiente mental. Campinas: Autores Associados; 2001. explicita que é justamente nas formas de representação das linguagens que o sujeito produz os seus modos de significar o mundo/situações/objetos/pessoas/relações/conhecimento/cultura. Assim, considerando essas distintas possibilidades de linguagem, devemos estar atentos à fala, à expressão, ao silêncio apresentados pelos sujeitos, pois são carregados de significações. Cabe destacar que, em sujeitos com autismo, a linguagem comunicativa/expressiva é pouco comum, portanto devemos como professores nos sensibilizar para essas outras formas de linguagem, sempre no intuito de compreender o que o outro busca comunicar.

Episódio II:

O Laboratório de Educação Física Adaptada (Laefa) oferta atividades extensivas a crianças de três, quatro e cinco anos e, para encerrar as atividades do semestre letivo de 2010/2, resolvemos estruturar uma confraternização com diversas brincadeiras e um lanche coletivo para os grupos de crianças. Quando Leonardo chegou, nós o recepcionamos e recebemos dele um papel que continha um desenho. Procuramos saber o que ele queria representar com aquelas imagens e quando perguntamos quem era a pessoa do meio ele apontou para Z. (estagiária). Depois indagamos quem seria a pessoa ao lado e ele falou seu nome: "Leonardo". No desenho ainda continha o nome de Z. acima e o dele ao lado, bem como a data.

Depois que recebemos Leonardo, nós o encaminhamos para as brincadeiras e fomos conversar com seu pai 5 5 Responsável que o acompanhou no dia, pois sempre era mãe quem o levava para a Ufes nos dias de atendimento. sobre o desenho produzido. Ele relatou que, naquele dia de manhã, a mãe de Leonardo falou que aquela quinta-feira (16-11-2010) era o dia de ir à Ufes e que seria o último dia de atendimento. Depois disso, Leonardo produziu a imagem evidenciada no Desenho 1. Quando foi perguntado por sua mãe sobre quem seriam as pessoas do desenho, ele falou "Zê", referindo-se a Z., pronunciando seu nome em seguida. E, assim, sua mãe foi ditando 6 6 Leonardo encontrava-se matriculado no ensino regular e estava em processo de alfabetização, como as demais crianças da sua idade. Ele conhecia/reconhecia/escrevia/pronunciava as letras. as letras dos nomes e ele foi escrevendo no papel.

Sobre o desenho produzido (fig. 1), Leonardo nos apresenta alguns indícios que possibilitam o nosso entendimento quanto à representação de um processo construído e vivenciado por ele. Trazemos, como destaque: a) a relação entre os tamanhos das pessoas (Z.-adulto e Leonardo-criança); b) a dimensão da boca da pessoa maior indica a professora que, nos momentos de intervenção, tinha mais a condução da turma; c) o cabelo representado da pessoa maior era ligeiramente curto (quando houve as intervenções, a professora Z. realmente estava com o cabelo curto).

Pelo desenho, Leonardo anuncia: a) os detalhes do ambiente/pessoas/situações das quais ele se apropriou; b) os sentidos/significados que as pessoas tinham com ele; c) como ele estrutura e (res)significa outras formas de linguagens pelo modo como estão arraigadas nos processos de significação e como são possíveis de interpretações pelo outro.

E é por esse viés, sobre o (re)significar as maneiras como as linguagens se concretizam, que Vygotsky (2007)Vygotsky LS. A formação social da mente. 7ª. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2007. vem reforçando que o uso dos signos propicia ao indivíduo um desenvolvimento das funções psicológicas superiores, visto que o sujeito não necessariamente precisa de um objeto para pensar sobre ele, apenas com uma palavra, fala ou um desenho o sujeito já imagina o objeto e sabe qual é sua função. É claro que o indivíduo só terá essa capacidade se já tiver alguma experiência anterior com o objeto mencionado.

Ainda nessa perspectiva, Luria (1991)Luria AR. O papel da linguagem na formação de conexões temporais e a regulação do comportamento em crianças normais e oligofrênicas. In: Luria AR, Leontiev A, Vygotsky LS, editors. Psicologia e pedagogia: bases psicológicas da aprendizagem e do desenvolvimento. São Paulo: Moras; 1991. p. 77-94., em seu estudo A função fundamental da linguagem, aponta a linguagem mediada como o meio pelo qual o homem se apropria das experiências construídas através dos tempos. Para o autor, apesar de as aprendizagens não ocorrerem somente no ambiente escolar, cabe ao professor/a sistematizar os conhecimentos a serem produzidos por seus alunos/as a partir de suas aprendizagens efetivas, oportunizando as generalizações consideradas como função principal da linguagem.

Ao remetermos tais considerações para o âmbito do desenvolvimento infantil, em especial para as crianças com autismo, compreendemos que as representações/discursos/linguagens produzidos/as na/pela cultura podem potencializar seu desenvolvimento. Nesse caminho, Vygotsky (2007, p. 17-18)Vygotsky LS. A formação social da mente. 7ª. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2007. esclarece que os signos e as palavras constituem nas crianças "um meio de contato social com outras pessoas. As funções cognitivas e comunicativas da linguagem tornam-se, então, a base de uma nova e superior forma de atividade nas crianças".

Considerações finais

No desenrolar da pesquisa, encontramos evidências de que a experiência de brincar da criança autista, no espaço da brinquedoteca, a partir jogo de faz de conta, favorece a internalização desse elemento da cultura, na medida em que implica a (res)significação de objetos e a representação de situações de vida, com o uso das múltiplas possibilidades de linguagens, potencializando o processo de desenvolvimento intra/interpessoal.

Em nosso entender, essa experiência do brincar tornou-se uma significativa ferramenta para que Leonardo fosse capaz de conhecer sobre si e sobre o mundo vivido, auxiliando positivamente na construção da sua autonomia na/para a vida, visto que, para se instituir tal condição, precisamos estimulá-lo a pensar sobre seu contexto, a fim de que possa estruturar sua concepção de homem-mundo-sociedade.

Outro aspecto interessante que destacamos é a respeito das relações que foram constituídas ao longo do processo. No início dos atendimentos, o grupo de crianças estava se (re)conhecendo como um grupo. Vale destacar que os estagiários estavam em processo de formação inicial, o que, de certo modo, dificultou entender e lançar estratégias para facilitar o acolhimento/envolvimento de Leonardo pelos colegas, bem como sobre sua compreensão acerca dos tempos (rotina) daquele espaço (brinquedoteca).

Para tanto, estabelecemos como meta uma relação dialógica, a fim de ouvirmos/vermos o que a criança quisesse expressar. Investimos também em uma relação com mais sentimento de confiança para estreitar nosso vínculo, para que Leonardo visse a figura dos estagiários como pessoas em que ele pudesse confiar para desenvolver determinadas atividades.

A partir da nossa mudança, percebemos o quanto Leonardo estava envolvido com o grupo nas atividades. Ao seu tempo, ele guardava os brinquedos e participava, a seu modo, dos momentos de conversa, respeitando/compreendendo os espaços/tempos daquele ambiente.

Nessa experiência, destacamos também a importância de que os educadores usem um olhar sensível para seus respectivos alunos, tenham eles deficiências ou não, no sentido de ampliar sua concepção sobre as múltiplas/diferentes formas de linguagem produzidas socialmente, em detrimento da concepção restrita de oralidade em que tanto nos apoiamos ao lidar com a expressão humana.

Nessa perspectiva, é fundamental, para o desenvolvimento de crianças com autismo, a promoção de estímulos que favoreçam sua capacidade simbólica, vislumbrando, nesse processo de simbolização, um instrumento significativo para que a criança autista tenha condições de interpretar as diversas realidades culturalmente instituídas, constituindo-se efetivamente como sujeito social, visto ser "no coletivo que a criança aprende a conhecer, conceituar, elaborar e a significar [(res)significar/apropriar] o mundo" (Raymundo, 2010Raymundo DN. Indícios da aprendizagem da criança com deficiência intelectual: contribuições da abordagem histórico-cultural e a formação de educadores de educação infantil. 2010. 210 f. Dissertação (Mestrado em Educação) — Programa de Pós-Graduação em Educação, Centro de Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2010., p. 50).

  • Financiamento
    Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da Universidade Federal do Espírito Santo.
  • 1
    Projeto de pesquisa aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa (CEP/Ufes), sob o número de registro 076/10. A pesquisa contou com o Termo de Consentimento Livre Esclarecido autorizado pelos pais para a divulgação das fotos e demais materiais. Os nomes apresentados são fictícios. A pesquisa vigorou de 1° de agosto de 2010 a 31 de julho de 2011.
  • 2
    A junção dos termos dá-se pelo fato de que eles não se constituem de forma separada, mas estão imbricados, enraizados um no outro (Oliveira e Alves, 2008Oliveira IB, Alves N. (Org.). Pesquisa nos/dos/com os cotidianos das escolas: sobre rede de saberes. Petrópolis: DP et Alii, 2008.).
  • 3
    Continuação do episódio do pé de lata.
  • 4
    É válido lembrar que os brinquedistas (estagiários de educação física) encontravam-se em processo de formação inicial. Estavam se constituindo professores a partir das experiências formativas que vivenciavam. Sabemos que a estagiária poderia ter conversado com a criança sobre a possibilidade de a ação machucar um colega. Poderia propor outras maneiras de brincar com aquele brinquedo ou explorar tantos outros que há na brinquedoteca.
  • 5
    Responsável que o acompanhou no dia, pois sempre era mãe quem o levava para a Ufes nos dias de atendimento.
  • 6
    Leonardo encontrava-se matriculado no ensino regular e estava em processo de alfabetização, como as demais crianças da sua idade. Ele conhecia/reconhecia/escrevia/pronunciava as letras.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    18 Out 2012
  • Aceito
    19 Jul 2013
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