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PODEMOS E A HIPÓTESE POPULISTA ENTREVISTA COM ÍÑIGO ERREJÓN1 1 Entrevista realizada na sede do Podemos, em Madri, em 9 de julho de 2015.

Íñigo Errejón é o secretário político do Podemos, partido político espanhol nascido em janeiro de 2014. Transformado de pesquisador com doutorado recente em figura cotidiana na grande mídia, Errejón havia coordenado a campanha para as eleições do Parlamento Europeu, em maio de 2014, quando o Podemos surpreendeu com a eleição de cinco deputados. No dia dessa vitória, o partido anunciou que buscaria a presidência e, ao longo do primeiro ano de vida, recebeu pela internet a filiação de cerca de 400 mil pessoas.

Desde sua criação, o Podemos enfrentou vários desafios políticos. Críticos internos se desencantaram com sua forma de estruturação, demandando pluralismo e poder para as bases; a mídia empreendeu duros ataques aos líderes do partido; as eleições regionais trouxeram altos e baixos, com resultados piores do que o esperado, mas garantiram a entrada do Podemos em parlamentos regionais e nos governos eleitos por plataformas cidadãs em cinco grandes cidades espanholas.

Esta entrevista se realizou em Madri, em julho de 2015. Independentemente do cenário que se abra após as eleições de 20 de dezembro, o Podemos já é um elemento incontornável nas discussões sobre novos caminhos políticos.

Queria perguntar sobre a sua reflexão sobre o sujeito político popular, que é uma discussão do Podemos e foi também na sua tese de doutorado sobre a Bolívia, onde encontramos nações e sujeitos coletivos que tornam mais complexa a ideia clássica de povo da tradição política populista. Por outro lado, na Bolívia e na América do Sul aparece a ideia da classe média como nova identidade na qual os indígenas também se integram cada vez mais. Como construir ou ter um povo como interlocutor num contexto em que este é concebido como composto por “cidadãos”, e não necessariamente como as massas populares ou indígenas que encontramos na Bolívia e em outros lugares da América do Sul? Como vocês vivem essa questão, como tática e como projeto político, considerando também a composição do próprio Podemos?

Parto de uma compreensão do fenômeno político segundo a qual esse sujeito não é nenhuma derivação de nenhum componente de classe nem de nenhuma posição sociológica na estrutura produtiva, nem na economia.É uma construção fundamentalmente narrativa,produção de uma vontade comum. Acredito ser necessário levar em conta três elementos no caso espanhol.

Em primeiro lugar, não temos um Estado falido, nem um Estado com zonas cinzentas ou de sombra. Temos um Estado que funciona; que administra o território, que gera certezas. Que tem instituições que canalizam as reivindicações, dá segurança às pessoas e governa o conjunto do território. O que significa isso? Que é uma população fundamentalmente de cidadãos e produziu muito mais cidadania do que povo. Ou seja, as pessoas estão acostumadas às certezas: se você tem o problema um vai ao guichê um, se tem o problema dois vai ao guichê dois, se tem o problema três guichê vai ao guichê três, não precisa interditar o trânsito para que os postes de iluminação da sua rua voltem a ter luz. Esse é um dado central, e qualquer possibilidade de ruptura do sistema de partidos e de construção de uma vontade popular nova passa pelo fato de que estamos trabalhando com uma sociedade na qual os processos de cidadania têm sucesso.Quando voltei da América Latina,onde morei,aprendi a observar isso nos aspectos mais cotidianos. Isso configura drasticamente quais são as bases para que possa haver mudança política, com o que se constrói a possibilidade de uma maioria diferente.

Em segundo lugar, com relação à questão das classes médias, o fundamental que está ocorrendo na Espanha é que há uma crise de expectativas. Não são os setores mais atingidos que estão se mobilizando, não são eles que lideraram os protestos ou mesmo o voto em sentido transformador. Fundamentais são aqueles setores que viram bloqueada a possibilidade da mobilidade social ascendente.E viram que,pela primeira vez em três gerações na história da Espanha, vão viver pior que seus pais. Portanto, é rompido o mito de ascensão social individual e de progresso. Boa parte da reação de que são tributários o Podemos e o movimento 15-M tem a ver com uma crise de expectativas. E, se me permite, é uma reação de cunho conservador. Não em termos ideológicos,mas porque quer devolver a uma parcela os direitos corroídos pela gestão da crise… e há a sensação de logro, porque não se está contestando o pacto da Constituição de 1978 no sentido da superação revolucionária.

O último elemento é que foi ocorrendo a aproximação progressiva entre o Partido Socialista [Operário Espanhol (PSOE)] e o Partido Popular [PP],como duas opções que muitos cidadãos foram percebendo como semelhantes. A subordinação dos dois aos interesses da Troika na Europa e a dificuldade econômica de obter recursos para comprar a obediência na Espanha foram gerando um processo de alienação de boa parte de nossa população em relação às elites políticas e econômicas; sobretudo políticas, infelizmente. Elas vão sendo culpadas pela crise e, sobretudo, associadas: “Bom, vocês, centro-esquerda e centro-direita, são a mesma coisa” e, fundamentalmente, “a principal diferença não é a que separa vocês uns dos outros, mas a que separa todos vocês de nós”.

Isso foi produzindo a possibilidade de construir uma vontade popular nova que, em todo caso, na Espanha se assenta em trinta anos de derrota cultural da esquerda. De seus símbolos, suas bandeiras,suas canções,seu tecido associativo.De modo que as pessoas, quando saem para protestar e contestar o que existe, fazem isso fora das narrativas tradicionais, dos símbolos que estavam disponíveis na esquerda para a contestação do que existe e para tentar superá-lo. Não tanto por uma espécie de dissidência autônoma em relação à esquerda,uma vez que,para muitos dos que saem para protestar,ela já nem sequer é referência. São esses os elementos com que temos agido para alterar essa divisão simbólica entre esquerda e direita, e tentar construir uma vontade popular em oposição aos que mandam. É um tipo de construção semelhante à feita pela Frente Nacional na França - digo isso com total intenção polêmica -, mas com sentido ideológico antagônico, uma vez que não apresentamos como bode expiatório os mais fracos, os imigrantes.

Tentamos construir um bloco alternativo, cujo núcleo duro é composto pelos setores mais atingidos (ao menos em suas expectativas), os perdedores da crise, digamos, e esse núcleo deve poder articular em torno de si um acordo de país diferente. Isso, obviamente, não se esgota na luta eleitoral. Estamos nos centrando na batalha eleitoral porque foi para isso que nascemos e porque identificamos que, sem essa batalha tática, não poderá haver o restante dos combates estratégicos. É preciso intervir no ciclo eleitoral como uma cunha que evite que ele gire em falso e que seja mais ou menos fechado pelas elites e seus velhos partidos. Mas a construção dessa vontade popular nova vai muito mais além e tem muitas tarefas às quais não chegamos necessariamente e para as quais faz falta a contribuição de muitos outros setores da sociedade civil.

O que você está dizendo lembra a irrupção do Podemos (que já parece ter acontecido faz décadas), em maio de 2014, com uma localização clara da lógica populista amigo-inimigo na casta e nos partidos do regime: o PP e o PSOE. Mas nesse ano e meio se nota uma flexibilização, uma modificação na maneira como está sendo construído o adversário no Podemos. De um lado, buscando o eleitor do PSOE, eventualmente o do PP, e propondo disputar com a direita a ideia de pátria. Por outro, pela possibilidade de pactos com o PSOE, como se viu depois das eleições das comunidades autônomas, considerando que possivelmente não se chegará a um resultado como os de Chávez, Evo, Cristina, de mais de 50%?

Começo por uma coisa muito honesta, que acredito que tem de ser dita para não construirmos teoria à margem da prática política: nem tudo o que fazemos é pensado. Normalmente, há sempre uma tentação vaidosa de reconstruir a posteriori como operações magníficas ou dificuldades. Infelizmente, a política tem uma lógica acelerada e de decisões muito imediatistas.Então,quem não se adapta a esse ritmo e a seus requisitos e limites não está dirigindo nada,está fazendo teoria. Mas quem só faz trabalho de direção política e se deixa levar por isso pode acabar permanentemente preso nas inércias de uma composição política na qual os atores maiores prescrevem aquilo de que se fala e como se fala. Digo isso com honestidade intelectual. Militando no Podemos, na posição que ocupo na primeira linha, reformulei muitas coisas sobre os processos políticos ou de ruptura popular que conheci na América Latina. No papel tudo dá certo, parece que as hipóteses se confirmam passo a passo. Mas há uma parcela de contingência, de caos e de sorte. Digamos que, infelizmente, nem sei se infelizmente, há uma parte política que tem a ver com o ânimo, com a força e o otimismo ou pessimismo que você tem no dia em que precisa tomar uma decisão. Talvez não seja muito científico, mas acho que é real.

Pois bem.A principal autocrítica que faço em relação à hipótese populista que desenvolvemos, e que é a genealogia intelectual do Podemos,é que ela não atentou o suficiente para a diferença entre o sistema presidencialista e o sistema parlamentarista. E isso é tudo, ou quase tudo. Porque na realidade você nunca vai ter um cenário eleitoral em que tenha de competir na base do tudo ou nada.Nunca é assim.Então, trabalhamos para construir eleições às quais se chegue com a dinâmica mais plebiscitária possível. Mas essa é uma construção puramente, não sei, retórica, ao passo que a própria distribuição institucional de posições e o modo como essas posições produzem governo, e produzem decisões políticas, nos põem num cenário diferente. E aí se deve reconhecer que o parlamentarismo é efetivo no trabalho de diversificar as possíveis forças em luta e obrigá-las a acordos.Prendê-las num jogo de acordos e equilíbrios, no qual é muito difícil que sejam destruídas depois de entrarem, mas também é muito difícil que sejam capazes de polarizar e obter a rejeição de todo um projeto de lei. O parlamentarismo é bom nisso, quando funciona bem. E em nosso caso é um sistema político bem armado, bem articulado. É relativamente fácil entrar e muito difícil subverter os equilíbrios existentes,que em nosso caso são equilíbrios marcados pela primazia da minoria oligárquica.

Se tivesse de usar uma metáfora espacial, diria que o sistema não é uma muralha à qual as ondas chegam e, se a onda for suficientemente alta, passa por cima da muralha; trata-se de um sistema complexo de diques e comportas em que a água é diversificada,represada em alguns lugares,rejeitada em outros,integrada e cooptada em outros.Estamos num sistema político complexo que funciona bem. Com um sistema midiático complexo que funciona bem. E com uma intelectualidade não muito sofisticada, mas que faz bem seu trabalho..

Isso nos obriga a enfrentar um cenário no qual, diante de um discurso muito dicotomizador, muito polarizador, na prática você precisa tomar decisões. E na prática foi preciso decidir nas eleições das autonomias. Você vota em quem na “investidura”? Claro, se elas forem progressistas, não… na cidade de Madri ou Barcelona não, mas e se não forem progressistas? Em Castilla-La Mancha? Não sei. Em Valência? Em Astúrias? Você vota em quem? E não pode fugir, não há fuga retórica para isso.Seu voto apoia um ou outro.E seu não voto também apoia um ou outro, conforma um ou outro governo, mantém os que estão ou possibilita a alternância. Isso obriga à complexidade. Isso obriga a se mover numa tensão política muito forte.2 2 Nas eleições das comunidades autônomas e municipais de 24 de maio de 2014, em comunidades como Astúrias, Castilla-La Mancha, Valência e Extremadura, o Podemos fez pactos que facilitaram os governos do psoe. Em nível municipal, o Podemos não participou das eleições com sua própria marca,mas integrou plataformas municipalistas nas quais também se realizaram pactos que, em alguns casos, possibilitaram integrar ou encabeçar governos.

Meu objetivo tático é desalojar o Partido Popular de todas as instituições que ele governa,mas meu objetivo estratégico,ou tático de médio prazo,é superar o PSOE.Como fazer as duas coisas? Como apoiar alguém para conseguir o PP, sem ao mesmo tempo reabilitar o velho sistema de vasos comunicantes entre os dois partidos do regime? É muito complicado, mas a institucionalidade funciona assim. Creio que fomos mais ou menos capazes de explicar,não sei com quanto êxito,a manobra com a qual apoiávamos governos de centro-esquerda do regime, para desalojar o PP, em troca de compromissos concretos de regeneraçãodemocráticaedemedidasdechoquecontraacriseeparao resgate dos setores sociais mais empobrecidos ou em defesa dos serviços públicos, mas sempre sem ser a parte subalterna desses governos. Então,você tenta conciliar uma decisão tática autônoma com uma política nacional de contestação do conjunto da casta que,apesar de suas diferenças internas,se comportou de maneira conjunta,entregando o país à minoria privilegiada.E sua contestação passa pela superação do jogo dos velhos equilíbrios entre as duas grandes máquinas do PP e do PSOE. Mas, como o PP governava em todo lugar, por uma questão de higiene democrática e de regeneração era mais fácil dizermos: “É preciso tirar o PP das instituições”. Tentando insistir no fato de que ele precisa ser tirado não por ser de direita e o outro ser de centro esquerda. Precisa ser tirado porque representa o modelo paroxístico de corrupção,de esbanjamento,de patrimonialização das instituições e de políticas que aumentam a desigualdade. É preciso tirá-lo, e tirar o outro também e, no momento, deixar tudo muito claro. É preciso possibilitar sua eleição e deixar claro que, se não se comprometerem com políticas que façam uma mudança de 180 graus, vão ter de nos enfrentar. Até que ponto você é capaz de transmitir isso?

Porque nada comunica tanto como ter o poder político e institucional. Então você diz isso, mas, no dia seguinte, aquele que você ajudou a subir é governo na região dele, e já começam a funcionar a máquina, a televisão regional, as escolas, todas as declarações públicas, as declarações já como governo, a relação com a imprensa. E você teve um momento de muita influência política quando decidiu a eleição,e,depois, na realidade é como se desse um passinho para trás.Portanto,há uma coisa institucional, que é fundamental e que vamos ver nas eleições gerais. As eleições gerais não sei como vão ser, como vão ser as ordens, mas haverá um mapa no qual será preciso fazer acordos… ou não fazer, mas será preciso entrar na discussão dos acordos. Não dá para dizer: “Todos vocês são o velho e nós somos a candidatura do novo”. Porque na prática tem de decidir quem forma governo. No início não prestamos muita atenção a isso.Também não sei quanto poderíamos ter modificado se tivéssemos dado importância à diferença entre o sistema parlamentarista e o presidencialista.Porque foi a forma de construção que nos permitiu virar o jogo modestamente na Espanha.

Como é que, nas discussões sobre táticas, vocês pensam essa mudança na lógica do amigo-inimigo?

Eu diria que jogamos muito com as duas tonalidades do discurso: uma que enfatiza o confronto alto-baixo e outra que enfatiza a construção de um amplo acordo transversal de país, que obviamente não inclui todos, mas inclui uma maioria muito heterogênea e hoje ainda não configurada politicamente, que sempre exige mesclas e equilíbrios. São dois componentes complementares na contra-hegemonia e no projeto de novo bloco popular que lidere um novo ciclo histórico na Espanha.

Há algo que ocorre em todas as formações políticas, mas acho que no Podemos ocorre drasticamente: há muita diferença entre a militância, a direção e seus eleitores. Num conselho cidadão, faz muito tempo, eu dizia que a militância está à esquerda da direção, que por sua vez está à esquerda de seus eleitores. Acho que é das coisas mais claras que podem ser ditas sobre os equilíbrios no Podemos. Porque o tipo de militância e os tipos de anseio e vontade da militância não se parecem muito com o tipo de eleitor que recebemos, ou aqueles para os quais acenamos ou aqueles que nos olham com simpatia.Isso significa que sempre é preciso criar equilíbrios. Há lideranças que enfatizam mais os momentos de ruptura e lideranças que enfatizam mais os momentos de sedução de quem está no campo contrário.Digamos que, no equilíbrio entre as duas coisas - equilíbrio que num estudo mais refinado poderia ser investigado por territórios, por momentos políticos -, o que você diz num comício não é o mesmo que você diz na tevê.O que você diz num programa de tevê não é o mesmo que você diz numa entrevista. E o que diz numa entrevista não é o mesmo que numa reunião. Não por ter discursos diferentes, mas por afinar…

Essa oscilação que me parece constitutiva das construções nacional-populares que, digamos, têm esse componente um tanto de desforra popular e ao mesmo tempo de abertura do campo no qual parece caberem praticamente todos.E nessa capacidade de jogar,ou de mover-se nesse pêndulo, parece haver uma parte de nossa capacidade de continuar deslocando o adversário e de sermos capazes de construir uma força inesperada que sobreviva à divisão normal e à inércia normal pelas quais as posições políticas se repartem entre os atores políticos tradicionais, que catalisam identificações e constroem estabilidade em torno de si.

Gostaria de lhe perguntar sobre sua concepção de hegemonia em relação ao nacional-popular e em relação aos limites relativos a essa lógica de que você falava, do parlamentarismo, e também em relação ao cenário europeu, o que pode nos levar a pensar o limite da transformação em escala nacional. A pergunta, nessas condições, é: que mudança se pode esperar com o Podemos?

Outro dia eu discutia com um companheiro, meio na brincadeira, que dizia:“Se para ganhar do adversário você tem de se parecer tanto com ele… quando ganha, quanto ganhou dele?”. Isso não só é um jogo de palavras, é também expressão de uma verdade perturbadora e apaixonante da política.Quem ganhou,afinal? É possível que você tenha arrebatado alguns instrumentos de poder e construído um poder político de cunho diferente, mas à custa de ter ficado mais parecido com ele. Mas se a gente for derrotado, foi por alguém que precisou se parecer com a gente.

É preciso reconhecer que,embora tenhamos uma crise de hegemonia atualmente na Espanha, estamos vindo de trinta anos de construção de estabilidade.E isso não se evapora com cinco anos de erosão da distribuição de renda ou dos direitos sociais. Isso diminui ou mina a confiança das pessoas nos representantes políticos e às vezes nas elites econômicas,mas não corrói totalmente essa construção de terreno pela qual desafiamos nossos adversários, em parte, em seu terreno.

Outro dia um jornalista me perguntou, depois de desligado o gravador:“Vocês não têm medo da desilusão com as expectativas criadas? Digamos que estão levantando uma onda de entusiasmo popular que depois lhes custe muito cumprir”.Pode ser um dos maiores erros,mas de novo fui muito honesto e disse que,em geral,para os setores subalternos, avanços muito pequenos custaram verdadeiras explosões de entusiasmo. Quer dizer, imagine uma máquina que tem de produzir muita energia,e é um dínamo que funciona mal,em que muita energia se traduz em muito pouco movimento. Ou seja, você tem de produzir imensas ondas de entusiasmo popular para que as pessoas considerem que vale a pena,que agora,sim,se pode,é possível transformar as coisas,e a gente simples pode sair ganhando.E,na melhor das hipóteses, você avança até a metade do terreno.

Estamos vendo isso nos municípios que mudaram de governo.As principais cidades da Espanha - Madri, Barcelona e Zaragoza - já estão sendo administradas por governos de mudança.Foram 25 anos de governo do PP em Madri, no município… e você entra numa prefeitura quase pedindo licença… sei disso porque há companheiros e companheiras em posições muito destacadas na prefeitura de Madri… Não digo que os companheiros careçam de coragem ou audácia, isso eles têm de sobra, mas é que você entra num lugar onde, durante um quarto de século,foi o adversário que construiu aquilo que significava ser de Madri, o que era a prefeitura, quem eram os funcionários, os burocratas, as inércias, as normas… Então você entra, modificando, alterando,bom,o pouco que consegue… e dando passinhos,tendo em mente que “não pode pôr todos contra você de uma vez”.

Lembro, numa conversa, algo que me pareceu especialmente lúcido de Álvaro García Linera, que me disse: “Não se pode enfrentar o conjunto do bloco dominante todo de uma vez”.Se a sua atuação,por inabilidade, acabar por restabelecer uma unidade que os dominantes já não tinham, porque ela se cindiu ou porque alguns estavam dispostos a estabelecer pactos e outros não,se o que você fizer for restabelecer e constituir essa unidade com sua intransigência ou com sua vontade de avançar depressa demais… o que você faz é restabelecer o bloco dos que ontem mandavam, o bloco inteiro você não ganha, e isso num Estado frágil.Imagine num Estado sólido e diversificado como este,e isso estamos vendo nas prefeituras.

Quanto se pode avançar então? Bom,acho que há uma relação com o Estado e há outra com a hegemonia. A relação com o Estado é que você pode avançar na medida em que tenha sido capaz de construir acordos e um equilíbrio de forças que lhe permitam ir tomando posições,lentamente muitas vezes.E aí,não sei,me parece que não fomos capazes de superar a concepção de Poulantzas. Em relação à hegemonia, quanto você avança, se precisa permanentemente integrar boa parte do adversário? Eu diria que tudo depende de quanto você cuida da retaguarda depois. Porque, quando o integra, o problema é ele não ser integrado tal e qual era, mas modificado. Porque, se o trouxer tal e qual era e não deixar nada fora, você poderá se ver no mesmo problema. Ou seja, a batalha que você travava no parlamento agora é travada nos congressos internos do partido,porque cabe tudo lá dentro,e isso, sim, é outro problema. Eu diria que, em nosso caso, esse problema está muito distante. Em nosso caso o problema não é caber tudo no Podemos, mas o fato de o adversário ter conseguido polarizar muito, muito e depressa demais, com o Podemos, de tal maneira que um terço gosta de nós e boa parte da população nos vê com preocupação ou medo.Não se deve esquecer que esses componentes de que falávamos, da cidadania e da classe média, determinam que para muita gente a possibilidade de mudança política na Espanha seja motivo de medo. Se alguma importância houve em conquistar as principais prefeituras da Espanha, é que já não falamos só com a retórica, falamos com as políticas públicas. Isso significa que, hoje, milhões de cidadãos que têm em sua prefeitura um governo de mudança podem ver que não há apocalipse. Isso não é propaganda, é fundamental. Não é um lugar de onde os presidentes vão sair de helicóptero de Moncloa. O “Que se vayan todos3 3 Frase cantada por manifestantes nas ruas de Buenos Aires e outras cidades argentinas durante a crise de dezembro de 2001. aqui parece que não vai destituir ninguém. O país não está desfeito, não está quebrado, e creio que não vai quebrar como na Grécia.Não vamos chegar a essa situação.E o que significa isso? Que a maioria das pessoas tem muito que perder e muito que conservar.Um jornalista me contou que um deputado do Partido Popular lhe disse… não sei se hoje diria o mesmo, mas me parecia certeiro: nas eleições se decidirá se os espanhóis têm mais medo do Podemos ou mais rejeição ao PP. Eu não diria melhor.

Vocês decidiram não entrar diretamente na disputa das municipais, mas acabaram entrando por outro lado, compondo as plataformas municipalistas e governos, tanto em Barcelona como em Madri e outras. Isso traz outra discussão, que é a da gestão, que sem dúvida vai voltar nas eleições presidenciais. É um pouco aquele mesmo problema de propor o confronto com a casta, com o regime, mas depois se ver no mesmo escritório, mostrando que você pode solucionar problemas não necessariamente buscando uma ruptura radical. Isso tem a ver com aquela moderação que se vê quando tentam ocupar o espaço eleitoral do PSOE, deixando de lado propostas como a renda básica e a abertura de um processo constituinte. É um problema também vivenciado na América do Sul, onde, mesmo no presidencialismo e com maioria absoluta, muitas coisas não podem ser mudadas, e as agendas do adversário passam para dentro do seu projeto. Como administrar então o discurso de ruptura e a imagem de gestão, de bom administrador?

Não dá. É uma contradição insuperável. O que acontece é que isso obriga a pensar não se a discussão é discurso de mais ruptura ou de menos ruptura, mas qual é a morfologia da fronteira simbólica que você vai traçar para propor as identidades políticas e construir uma nova vontade coletiva. E a fronteira não pode ser uma fronteira com cunho muito excludente,só popular e muito antagonista.Acredito que essa é uma fronteira que,em nosso contexto e nas condições culturais dadas, criaria um isolamento maior para nós do que para o adversário. Creio que a fronteira tem a ver com uma espécie de regeneração democrática por meio da qual alguns cidadãos exigem a volta do estado de direito e do Estado de bem-estar social. Perceba que não estou dizendo isso com muito entusiasmo.Mas acho que não fazer essa análise seria cair numa armadilha. Seria muito mais fácil, não? Principalmente no exterior, sair falando do Podemos algo mais ou menos como “Estamos fazendo o que nossos avós não conseguiram fazer em 1936”, e não sei que mais… Não, ganharam de nós numa guerra civil em 1939. Ganharam de nós durante quarenta anos de ditadura, ganharam de nós na transição e construíram um regime de trinta anos em que ganharam de nós e destruíram até nossa memória. E as derrotas não são à toa, porque, quando te derrotam, ainda por cima te dizem que não há vencedores nem vencidos. Esse é o terreno do confronto, e, por mais que estejamos vindo,biográfica ou ideologicamente,de outras referências, me parece que esse é o terreno do confronto.E isso significa que o tipo de ruptura que se pode fazer é um tipo que rompe menos, que dicotomiza menos, ou diante de menos coisas. Não dicotomiza diante do conjunto do bloco dominante, mas o obriga a modificar-se e o obriga a abrir-se. Portanto, abre possibilidades políticas inéditas, nas quais queremos avançar.

Você perguntava sobre a relação entre o discurso polarizador ou de ruptura e a gestão.Eu diria que se está num momento do confronto diferente. Algumas coisas foram ganhas, e o adversário teve de ceder, mas o adversário também ganha algumas coisas.Você já não é um monstro apavorante. Já está lá dentro e precisa ser reconhecido como um ator legítimo. Você fica um pouco mais forte, constrói, respira, está num território um pouco mais coberto, tem recursos, pessoal, possibilidade de as coisas serem feitas de outra forma.

Mas também é verdade que perde a característica de outsider,deixa de ser uma multidão de indignados que vem para atacar ou transformar. Passa a ser uma figura mais ordeira. Por isso, nos Estados modernos, a guerra é de posições. Você ataca um pouquinho, sai correndo, ataca um pouquinho. Mas, a partir do momento em que ataca um pouquinho, entra um pouco em algumas redes institucionais, em outras não entra nada, em outras muito, e, estando ali, você é um pouco mais respeitável e um pouco menos insolente, outsider e subversivo. Precisa continuar lutando para ter sempre a iniciativa, colocar a bola sempre no campo do adversário e levar o adversário para lugares onde não esteja à vontade.

Mas fazemos isso num âmbito como o institucional do qual eles sabem mais.Têm mais quadros,têm mais saberes,e as inércias atuam a favor deles.Em geral,o tipo de tarefa que nos forjou como militantes não tem nada a ver com o tipo de tarefa que temos agora. E é preciso aprender enquanto se está tentando construir o viveiro que vá produzindo os quadros para a leva seguinte. Porque, se todos os quadros se desgastarem nas primeiras posições conquistadas - e vimos isso nos processos latino-americanos -,muitas tarefas ficarão sem realização, ficarão desguarnecidas, entre estas a própria possibilidade de reprodução do instrumento político.O instrumento precisa continuar sendo vigoroso, e por isso algumas pessoas têm de ficar para fazer esse trabalho.Você não pode pôr todos os seus quadros,ou só os melhores quadros, nas posições institucionais conquistadas.

Mas,claro,vá dizer isso aos companheiros que ganharam a eleição, se estiverem em condições de governar a prefeitura de Cádiz, ou de Compostela, ou de Zaragoza, com um entusiasmo e uma responsabilidade imensa, e eles vão dizer: “Minha tarefa é só essa”, e não vai ser fácil arrancá-los da voragem institucional e dizer:“Tudo bem,pensem em governar Zaragoza,mas pensem nisso de olho na vitória nacional”. “Continuem pensando na dinâmica mais geral, numa dinâmica mais de longo prazo”, e eles dirão: “Tá, tá, é isso que me parece bem claro, quando volto para casa à noite. Mas acontece que agora preciso solucionar 35 mil problemas que estão me sufocando”.

Gostaria de lhe fazer uma pergunta sobre o conceito de plurinacionalidade,4 4 Na Constituição promulgada em 2009, declara-se que o caráter do Estado boliviano é plurinacional, conceito proposto pelas organizações campesinas e indígenas. que na Bolívia está passando por uma transformação. De uma origem que remete a autonomias, autodeterminação indígena, até a modelos civilizatórios alternativos que dariam forma a um novo tipo de Estado, chegou-se a uma concepção em que o plurinacional se dá no mesmo Estado de antes, mas agora um Estado em que há indígenas e um Estado social, com inclusão social. O plurinacional, no processo pós-constituinte boliviano, passa a apoiar-se mais no social do que nas autonomias ou múltiplas nacionalidades. Quero fazer a pergunta com cuidado, porque vocês avançaram mais que ninguém também no direito de decidir, ao propor fazer um referendo como o da Escócia. Está claro que não seria a posição do PSOE e do PP. Mas se diz “direito de decidir subordinado a outro tipo de processo”, ou “primeiro o social”. Pensando na Bolívia, o social não estaria subordinado. Não se pode dizer ao indianismo ou ao movimento indígena aimará: “A questão da autonomia de vocês vai ser resolvida depois que for resolvida a questão social”, e imagino que um basco da esquerda abertzale vai sentir o mesmo… Então, como pensar o plurinacional?

O exemplo boliviano é sugestivo, apesar de ser preciso estar sempre dando saltos para não comparar duas coisas extraordinariamente diferentes. À parte as diferenças históricas, territoriais, geopolíticas, todas estas óbvias, há uma diferença na forma de construção da identidade que me parece ser a chave. Há uma boa parte do soberanismo, digamos,das nações sem Estado na Espanha que se constrói com base na ideia de que não há nação espanhola. De que a Espanha seria uma narrativa construída por um Estado a serviço das classes dominantes para oprimir os povos. Que povos? E aí aparecem os povos com identificação de povos: Catalunha ou os Países Catalães, Euskal Herria, Galícia… e os restantes são mais ou menos como vazios no mapa, que é como “Procurem vocês uma identidade subalterna”.Isso é meio caricatural, mas acho que há algo assim e que é uma análise errônea. Existe a identidade catalã, portanto uma vontade nacional na Catalunha, que acredito ser majoritária, e é inquestionável. Mas existe uma identidade nacional espanhola. E como. Só que ela é há muito tempo hegemonizada pelos setores oligárquicos dominantes, que se sentiram muito à vontade porque o que estava fora dessa identidade era o catalanismo ou a questão do terrorismo misturada ao nacionalismo no País Basco,que foi o melhor adversário contra o qual construir uma identidade espanhola de cunho centralista, autoritário, conservador.

Na Bolívia, a construção plurinacional não põe em discussão a própria Bolívia.Não estou dizendo que seja ilegítimo. É perfeitamente legítimo pôr em discussão a Bolívia,a Espanha… estou apenas tentando descrever. Na Bolívia, apenas alguns setores minoritários o fazem, como o katarismo aimará, você sabe mais que eu. De modo que se produzem identidades que podem se sobrepor… Uma pessoa pode ser as duas coisas ao mesmo tempo,não está muito claro.Alguém é da nação quíchua e,ao mesmo tempo,é boliviano.E ocorreu uma espécie de amálgama dos dois pertencimentos nacionais, já que um deles, o de caráter indígena, não parece reivindicar uma nação independente, mas cotas de autonomia no que se refere à terra, à administração da justiça ou às línguas. É uma diferença fundamental.

No caso espanhol, por um lado há um plano no qual levantamos a questão da identificação de cunho nacional popular, porque consideramos que, pela primeira vez, há condições de acusar nossos governantes de antipatriotas. Isso tem a ver com o cenário europeu, em que a subordinação quase colonial à governança da Troika na Europa possibilita representá-los como alheios ou hostis ao interesse nacional das maiorias nacionais. E identificar os interesses do país com o das maiorias empobrecidas.Repare que antes se formulava a situação do popular e se dizia “é mais cidadão que popular”, por isso, sempre que dizemos processos de unidade “popular e cidadã”, o apêndice ou acréscimo “cidadã” não é colocado por gosto, mas por acreditarmos que, se as duas coisas não forem descritas, não está certo. De modo que seria uma construção nacional popular em que o segundo termo é cidadão e o primeiro não é nacional, é plurinacional. Por quê? Porque esse é um dado de partida, como democratas, mas também para pensar onde são produzidos os maiores acúmulos de forças contra o regime político dominante e contra o status quo.E na Espanha,durante muito tempo, até nosso surgimento, eles são produzidos naqueles lugares onde há identidades nacionais disponíveis para projetos, digamos, transformadores, e onde estas não existem não há nada.

Se você analisar o que aconteceu com a desmobilização dos setores contestadores desde a Transição, vai ver basicamente que houve o refluxo ou mesmo o desaparecimento em toda a Espanha, e que eles só resistem em certo tecido associativo, em certa cultura antagonista e em certa transmissão da memória das lutas anteriores em que há narrativas nacionais disponíveis, em que a contestação encontra uma moldura nacional.Onde não há isso,vai tudo para o brejo.Os pais militantes dos anos 1970 não contam nada,não há livros,canções,mitos locais, filmes para transmitir aos filhos, se é que os filhos são militantes… O fato de os territórios com sociedades civis mais articuladas e identidades populares mais fortes serem aqueles nos quais há uma construção nacional - alternativa - em marcha,em contraste com a destruição de vínculos comunitários no restante, é um dado que passou por demais despercebido por quem milita pela transformação social.De modo que a plurinacionalidade tem de ser um dado de partida.

Há pelo menos três tarefas em termos de política pública. Há uma tarefa com o modelo linguístico, ou com os diferentes modelos linguísticos, que reconheça e proteja as línguas próprias. Há uma tarefa com o modelo de financiamento interterritorial, que claramente precisa ser abordado. E há uma tarefa com o modelo de gestão de poderes, e na Espanha teria sentido, digamos, um modelo relativamente confederativo com a maioria dos territórios.Que os mesmos poderes não estivessem nos mesmos lugares, mas que chegassem a um pacto, se estabelecessem e, portanto, não fossem um tema permanente de agenda a cada três semanas.

Ao entrarmos em cena, provocamos um deslocamento. Por quê? A direita espanhola estava muito à vontade incendiando a discussão na Catalunha. Sabiam que na Catalunha minguava sua possibilidade de ganhar votos, mas em contrapartida criavam um anticatalanismo que podia ganhar hegemonia e maioria em Madri e em Valência. A direita espanhola vinha sendo uma fábrica de independentistas. Então os independentistas adoravam aquilo, por ser uma fábrica de insultos que produzia independentistas. E de repente surgimos nós, dizendo: “Claro que deve haver direito de decidir, mas não em primeiro lugar”. E aí vem a questão do social de que você falava. Não é subordiná-lo, mas é dizer: ouçam, com o drama social que temos, no mínimo, a clivagem nacional que vocês querem desenhar, que é legítima, não é nossa prioridade, mas é legítima… nós queremos acrescentar a ela outra clivagem,que é fundamental,que é a que mais preocupa.Que é a clivagem pela qual nossa sociedade se tornou mais desigual do que nos últimos quarenta anos. E avançou mais em desigualdade do que qualquer outro país da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico], desde o começo da gestão da crise.Claro,colocar isso na primeira linha,não como arma contra o direito de decidir.

Vamos aplicá-lo também ao modelo da saúde pública ou à política de salários. E aí, entrando nesse tema, pôde começar uma discussão em que as elites catalãs e as elites espanholas se sentiam muito à vontade, cada uma entrincheirada em um lugar e gerando identificação ao seu redor por oposição ao outro. E de repente chegamos nós e traçamos a coisa em termos simbólicos, dizendo: “Sim, sim, você, Artur Mas, com a bandeira catalã e Rajoy com a espanhola, e os dois com contas-correntes na Suíça”. Alguém pode dizer que isso é simplificação, mas se correlaciona de forma drástica e muito profunda com um senso comum de época, repercute entre as pessoas, associa as elites e as cerca.“Sim,estão brigando pela questão da Catalunha e da Espanha, mas no fundo fazem negócios com os mesmos setores.” Há uma reminiscência classista,digamos,que é partir a discussão nacional,atravessando-a pela desigualdade social e pela questão, não sei, de classe. Digo “de classe” com muitas aspas,porque não é uma identificação de classe, mas uma identificação popular ampla.

Sobre a questão nacional, há críticas vindas de visões opostas: o soberanismo, de um lado, e o âmbito europeu, do outro. O questionamento é de tipo: “Se construírem a plurinacionalidade e um novo Estado fortalecendo a identidade da Espanha, ou recriando-a, ou ganhando-a da direita, poderia ser um cenário onde talvez a ajuda espanhola de que a Grécia precisa não venha”. Mal comparando, é como o velho problema do socialismo em um único país. Como o Podemos se enquadra numa nova Europa?

Claro,mas ao mesmo tempo há uma conclusão prática política,de que sempre se começa em um país. E, sempre que se começa por algum país, se está sozinho. Acho que os companheiros da Grécia estavam muito conscientes de que o problema é europeu.Mas do que dispõem para travar essa batalha europeia? De um governo nacional. Além disso,de um governo nacional muito mais fraco do que seria um governo nacional espanhol. Um governo nacional hiperendividado, que depende das mesmas instituições que o chantageiam, que pesa muito pouco economicamente na União Europeia. Então estão conscientes de que a escala de resolução desse equilíbrio de forças, ou, digamos, porque o horizonte é muito modesto,da possibilidade de um new deal, que não obrigue a conciliar ou a contradizer democracia com proteção social ou com direitos sociais,apenas ser pensável em escala europeia. Claro, essa é uma constatação teórica, mas depois as tarefas políticas são sempre de Estado para Estado, que no momento é o ponto mais alto a que os subalternos podem chegar, se ganham as eleições.

O que se conquista no máximo é poder nacional-estatal, esse poder está cercado de limites, e avança-se o que é possível. Então, a experiência latino-americana mostrou muito esses limites, mas também de uma forma diferente… digamos, não foi uma espécie de cosmopolitismo latino-americano o que construiu integração regional. Foram pactos de governo para governo. Havia uma identidade latino-americana? Na Bolívia muito pouca; na Venezuela mais, na Argentina não sei quanto latino-americanismo existe… O que significa isso? Que basicamente o processo de construção de integração latino-americana foi um processo de acordos paulatinos entre governos e entre Estados,mas impulsionado por governos que queriam caminhar juntos.

O máximo a que se chegou na construção da esfera política europeia para além dos Estados ou foi o terceiro setor e o espaço das ongs e das consultorias e fundações financiadas por Bruxelas ou pelo Parlamento Europeu e pela governança europeia,ou foi o espaço de resistência dos movimentos sociais, quando, no ciclo antiglobalização, fazíamosprotestoscontraasváriasreuniõesdecúpula,protestosmais ou menos disruptivos em Gênova,em Praga,em Barcelona… mas isso não merece nem sequer chamar-se - digo com todo o respeito, venho dessa história política -,mas não merece chamar-se processo de construção europeu, nem esfera, nem nada. É preciso ir caminhando para isso, mas enquanto se caminha para isso a luta é, com todas as limitações,construir governos em escala nacional-estatal,que avancem o máximo que possam e acelerem forças.

E qual é o problema agora? O problema é que a Grécia está dando os primeiros passos,e a social-democracia europeia,que poderia estar em seus últimos estertores - não estertores eleitorais, porque pode ser que continue indo bem durante algum tempo, mas como alternativa política,como projeto que encarne algo diferente do que fazem os conservadores -, a social-democracia é tímida. E ela tinha o ensejo, possivelmente uma de suas últimas oportunidades,de apresentar um projeto europeu diferente. Ou seja, ela não é capaz de explicar a seus eleitores,ou aos alemães ou aos franceses,que eles não estão pagando privilégios aos gregos, mas estão pagando resgates que passam pela Grécia e voltam para os bancos alemães… e isso não está sendo explicado.Bom,se há alguém que está explicando, é Marine Le Pen-e com sucesso, o que deveria estar levando muitos a refletir.

Diante disso, houve várias esquerdas na Europa que se horrorizaram moralmente e reagiram com uma espécie de “Que horror,Marine Le Pen, que terrível, deve-se rejeitar tudo que venha dela”. Em nossa opinião, no Podemos é o contrário. É preciso combatê-la e é preciso eliminar qualquer coisa que nos aproxime da ameaça fascista que nos fez pagar um preço tão alto na Europa. Mas a melhor forma de fazer isso é não deixar para eles certo argumento comunitarista ou de defesa da comunidade nacional como a última comunidade na qual os trabalhadores se lembram de ter tido direitos, porque senão pode ser que se crie uma dicotomia entre algumas elites europeias liberais e cosmopolitas, que hoje estão em Paris e amanhã em Bruxelas, encantadas com a Europa como espaço da ilustração e do livre movimento das pessoas, e trabalhadores que nunca saíram de seu país e lembram que desde que entraram na União Europeia há corrosão de direitos, e portanto protagonizam um recuo nacional.O pior que os setores progressistas podem fazer é dar-lhes de bandeja esse sentimento e a ideia de uma comunidade nacional que proteja sua gente. Dar de bandeja aos setores reacionários. Creio que muitos deles estão fazendo isso e, digamos, estão recriando um europeísmo para elites cosmopolitas, e isso seria um desastre absoluto. Para os setores progressistas, para a social-democracia e para a própria ideia de Europa. É preciso recuperar a ideia de “pátria” e disputá-la tanto com os liberais, que querem dissolver a soberania popular, quanto com os reacionários, que não ousam com os de cima e querem construí-la com base “no ódio do penúltimo contra o último”, tão próprio do fascismo.

Quando vocês surgem, entusiasmam a população e modificam o tabuleiro político. Mas foi se estabelecendo um modelo de vínculo frágil com o eleitor. Não uma participação de tipo 15-M, mas justamente outro dispositivo. Como é a discussão da forma partido ou movimento, enfim, e das formas de representação? Gostaria de lhe perguntar também sobre essa que é a grande expectativa de todo mundo a propósito do que vai acontecer na Espanha nas próximas eleições presidenciais.

Vistalegre, modelo organizacional e roteiro político aprovados por mais de 112 mil pessoas no outono de 2014, nossa assembleia constituinte como força política. Faz um ano estávamos debatendo isso a portas fechadas, numa casinha, parece que faz quinhentos anos, com muitas discussões.Nelas decidimos caminhar para um processo, muito difícil, no qual a prioridade do momento é construir… eu disse isso numa entrevista e desde então foi muito repetido: uma máquina de guerra eleitoral. Algumas vezes, com um pequeno exemplo, eu dizia: uma lanchinha, que corre muito. Para chegar mais rápido, é mais frágil, mas corre muito, em vez de um barco, que é mais lento, mas faz o caminho com mais certeza, mais devagar, incluindo mais. Eu substituiria essa metáfora pela de um carro blindado,que corre muito,mas onde nem sempre entra muito oxigênio,que nem sempre é muito permeável a comentários, críticas, discussões, e que fixou um objetivo: chegar às eleições gerais como um plebiscito. E desde então correu muitíssimo, enfrentou situações muito difíceis.

Muitos de nós,porta-vozes e dirigentes do Podemos,enfrentamos um ano que foi o mais difícil de nossas vidas. Isso não é uma coisa meramente individual ou subjetiva. É um dado político. Isso diminui ou condiciona a capacidade de tomar decisões. Ao mesmo tempo, faz um ano que temos precisado tomar decisões muito aceleradas, às vezes em ritmos que eram marcados por outros. A campanha eleitoral andaluza, as eleições convocadas “contra nós”. A decisão de não concorrer nas municipais com o nome próprio do Podemos teve um custo organizativo tremendo. É um acerto estratégico não participar de eleições em 8 mil municípios da Espanha. Hoje estaríamos precisando apagar não sei quantos incêndios ou com dificuldades políticas em muitos lugares, porque isso nos teria forçado a um processo de amadurecimento político a que não teria havido tempo para chegar. Mas tem custos,porque as pessoas militam pelo mais próximo,e isso significa dizer a alguém que militou muito, com muito entusiasmo e muita vontade: na sua cidade ou no seu povoado você não vai poder ver uma candidatura do Podemos. Isso mina a base militante e deixa alguns companheiros zangados.

Sempre houve discussão sobre qual é o demos interno do Podemos. Se o demos é o conjunto dos setores organizados militantes ou se o demos é o conjunto dos simpatizantes que estão dispostos a participar dos processos internos votando em casa. Os dois têm dois grandes problemas. O conjunto de militantes, como sempre, entrou numa lógica de ultra-ativismo, que expulsou quem não tem seis horas por semana,ou quem não aprecia discutir durante muitas horas ou não é bom nisso. Assim, ficaram setores muito concretos, sociologicamente muito concretos, ideologicamente muito concretos, e minha opinião é que eles implicam o risco de levar o Podemos para uma direção satisfatória internamente,mas que o faça deixar de continuar seduzindo ou atraindo a maioria que até agora confiava no PSOE e no PP.

Mas o outro demos tem outro problema. É um demos inorgânico. É um demos menos articulado, que nem sempre está lá. Fizemos a marcha de 31 de janeiro, a Marcha da Mudança, e o resultado foi espetacular, mas foi uma epopeia anônima; quando tivemos a ideia e convocamos, não sabíamos a repercussão que teria uma manifestação tão atípica, que não chamava para protestar, mas para celebrar e manifestar vontade de poder. Esse outro demos é um conglomerado, relativamente amorfo, de gente que não conhecemos… e que não tem canais diretos pelos quais articular opinião, vontades… Decidimos optar por este segundo, fundamentalmente.

Decidimos primeiro qual era o objetivo político: as eleições gerais. O que é preciso fazer para isso? Adotar um discurso de que a esquerda nunca gostou. De fato, é algo que nos marcou muito termos nascido nas eleições europeias, com um tipo de discurso e prática que toda a esquerda, os movimentos e os setores ativistas condenavam, de tal maneira que entre nós se instalou a ideia de que tínhamos de continuar fazendo coisas iconoclastas. De que o próprio mundo do qual vínhamos não gostava. Não é a única, mas o paradigma foi quando pusemos a cara de Pablo na cédula. E para todo mundo da esquerda tratava-se de um erro descomunal. Que, no entanto, mostrou ser um enorme acerto.E isso nos dá razão para dizer:“Estão vendo? É preciso fazer o contrário do que a esquerda diz”.Mas para isso é preciso adotar mecanismos de tomada de decisões que impeçam que essas inércias da esquerda nos devolvam ao lugar marginal do qual viemos: fazer política só para os convictos,com os gostos estéticos dos convictos.E nos blindamos contra isso.

Mas sempre que alguém se blinda contra algo, descuida do outro lado.E de que lado descuidamos? Da inserção territorial e da conexão com o trabalho organizativo e com as bases,que foram submetidas ou às quais vínhamos pedindo muita generosidade nesse ano acelerado. Muita militância, muito compromisso e muito trabalho, frequentementesemtempoparaexplicarbemtodasasdecisões,ouparaqueelas amadureçam no debate. Não tivemos tempo, também porque estamos submetidos a tamanho assédio da mídia.Veja essa decisão sobre o regulamento das listas, tomada no início de julho no conselho cidadão estatal: no dia seguinte estava na imprensa. Antes de podermos fazer uma circular explicando e mandá-la a nossos órgãos,à militância, chegou à imprensa. Parece uma bobagem, mas gerou mal-estar! Fomos nos transformando num partido marcadamente centralizado, e, por isso, ficou difícil manter perto a intelectualidade ou o pessoal da cultura.Gente que não fosse do Podemos,mas que nos desse respaldo, que acompanhasse…

O NÚCLEO IRRADIADOR E OS SETORES LATERAIS5 5 Em junho de 2015, um tuíte de Errejón tornou-se notícia nos grandes meios de comunicação depois que a hashtag #TuiteacomoErrejón virou assunto do momento, com comentários sobre o caráter hermético de sua linguagem intelectual. O texto era: “A hegemonia se move na tensão entre o núcleo irradiador e a sedução dos setores aliados laterais. Afirmação - abertura”.

Isso ninguém entendeu! Sim, era uma reflexão de caráter mais teórico, sobre a hegemonia, na linha do que estivemos conversando antes. Mas serve para ilustrar, talvez, também a seguinte questão: onde estão esses setores intelectuais que nos ajudem a contar nossa história, a pensar em termos próprios e a generalizar nossas razões? E alguém me dizia: não podem estar aqui porque ninguém lhes explica as coisas. Para estarem, a gente precisa organizar debates mais lentos, explicar por que fazemos isto ou aquilo, modificar, ouvir… E não estamos dando conta,nem em energia nem em horas.Isso não é uma desculpa.Em geral acho que é um modelo adequado e adaptado às tarefas que determinamos neste ano, embora com custos, como toda decisão organizativa.

Agora, minha impressão é que se trata de um modelo que caduca nas eleições gerais.Acho que,a partir das eleições gerais,o tipo de tarefa que terá de ser cumprida pelo Podemos ou pelo instrumento político, tenha ele que nome tiver, fará com que o modelo de organização seja outro.De máquina de guerra eleitoral para esse ciclo curto e acelerado, a movimento popular para um ciclo mais prolongado.

  • 1
    Entrevista realizada na sede do Podemos, em Madri, em 9 de julho de 2015.
  • 2
    Nas eleições das comunidades autônomas e municipais de 24 de maio de 2014, em comunidades como Astúrias, Castilla-La Mancha, Valência e Extremadura, o Podemos fez pactos que facilitaram os governos do psoe. Em nível municipal, o Podemos não participou das eleições com sua própria marca,mas integrou plataformas municipalistas nas quais também se realizaram pactos que, em alguns casos, possibilitaram integrar ou encabeçar governos.
  • 3
    Frase cantada por manifestantes nas ruas de Buenos Aires e outras cidades argentinas durante a crise de dezembro de 2001.
  • 4
    Na Constituição promulgada em 2009, declara-se que o caráter do Estado boliviano é plurinacional, conceito proposto pelas organizações campesinas e indígenas.
  • 5
    Em junho de 2015, um tuíte de Errejón tornou-se notícia nos grandes meios de comunicação depois que a hashtag #TuiteacomoErrejón virou assunto do momento, com comentários sobre o caráter hermético de sua linguagem intelectual. O texto era: “A hegemonia se move na tensão entre o núcleo irradiador e a sedução dos setores aliados laterais. Afirmação - abertura”.
  • 7
    Tradução de Ivone Benedetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov 2015

Histórico

  • Recebido
    13 Ago 2015
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