NECROLÓGIO
Salvador de Toledo Piza Júnior (28/XII/1898 -22/I/88)
Luiz Gonzaga E. Lordello
Escola Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz", USP, Piracicaba
Na madrugada do dia 22 de janeiro de 1988, deixou este mundo o Prof. Dr. Salvador de Toledo Piza Júnior, um respeitável velhinho de 89 anos, que todas as manhãs era visto saindo de sua casa, e, levado por um motorista, dirigia-se para a sua outra casa, a Escola Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz". Após o almoço, a cena se repetia e por vezes o venerando cientista era encontrado na cidade, frequentemente em direção à redação do Jornal de Piracicaba, a fim de entregar mais um artigo destinado à imprensa leiga. A cidade se cobriu de luto e, à tardinha do mesmo dia, o seu corpo foi entregue à Necrópole da Saudade, onde já repousavam os restos de sua querida filha, falecida há muitos anos. Assim, a morte pos um ponto final a uma vida de estudos, pesquisas, e sobretudo de amor imenso â Ciência, ao Ensino, á Pátria. S. de Toledo Piza Jr., é hoje apenas uma grande saudade.
Tendo convivido com ele, sob o mesmo teto, na nossa mui amada Escola Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz", por mais de 40 anos, primeiramente como seu Assistente e depois como colega, eis que tive a grande honra de sucedê-lo no Departamento de Zoologia, estive presente a todas as suas principais atividades. Presenciei os seus longos períodos ao microscópio, desvendando modalidades desconhecidas de determinação do sexo em insetos através de cromossômios; ou acumulando provas da inexistência de quiasmas e da dicentricidade em cromossômios de escorpiões; ou outros aspectos ainda não estudados da citologja de invertebrados. Os trabalhos resultantes tiveram repercussão internacional, tendo sido considerados pelos maiores especialistas, como M. J. D. White, H. A. Guénin etc.
O Prof. Dr. Antônio B. de Ulhôa Cintra, então Reitor da U.SP., afirmou certa ocasião em Piracicaba, em visita à ESALQ, que existem cientistas de três altitudes. O melhor deles não é o que acumula o maior número de dados ou que registra quantidade muito grande de fatos novos. E não é o que conduz maior número de experimentos. O melhor cientista, disse o Magnífico Reitor, é aquele que, jogando com os dados obtidos por todos os demais, elabora as generalizações, as teorias, os sistemas, construindo a essência, a filosofia da Ciência. Estes realmente estão no mais alto nível e aqui se colocou o Prof. Piza durante a sua longa vida científica, como o demonstram inúmeros de seus trabalhos, principalmente as várias campanhas que houve por bem desenvolver.
A mais significativa destas campanhas referiu-se â inexistência nos cromossômios das células sexuais de partículas responsáveis pela transmissão dos caracteres hereditários, isto é, de gens corpusculares. A empolgante campanha iniciou-se em 1931, perdurou por mais de 30 anos e constou de diversas contribuições, das quais talvez a mais expressiva apareceu em 1951 e se intitulou "A agonia do gen".
Na década de 60, Piza rebelou-se contra o conceito da vivência do vírus. Realmente, partículas destituídas de água, que não se nutrem, não respiram e não se multiplicam não podem ser dotadas de atributos vitais. Mais uma jornada vitoriosa, que se desenrolou por cerca de 10 anos. "Quem sustentar que o vírus vive, venha de lá com as provas. . . mas deixe em paz o conceito de vida, que esse não podemos mudar", escreveu ele em um de seus inúmeros trabalhos sobre o assunto.
Bem cedo o Prof. Piza ingressou no mundo dos artrópodos, tendo trabalhado com insetos, aranhas, opiliões, escorpiões etc. Nos últimos anos, vinha trabalhando com insetos ortopteróides, incluindo ortópteros, fásmidas, mantidas, e baratas, especialmente os dois primeiros grupos. Descreveu mais de 300 espécies, muitas representando gêneros novos e, neste setor, seguia as pegadas dos antigos autores, descrevendo-as em latim. Aliás, Piza gostava muito da língua latina. A ESALQ guarda talvez a maior coleção de ortopteróides brasileiros, organizada por ele ao longo de muitos anos.
Piza deve ser considerado um pioneiro no estudo e divulgação de todos os tópicos pertinentes à evolução dos animais, com início em uma época em que isso se constituía em verdadeiro sacrilégio. Deixou-se influenciar por vários vultos evolucionistas da Europa, especialmente Ernest Haeckel e, no Brasil, pelo Prof. Dr. Carlos Teixeira Mendes que, como ele, alistou-se entre as figuras exponenciais da Escola Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz".
Toda a atividade científica do Prof. Piza se desenvolveu sob as luzes evolucionistas. Ao analisar certos fatos, obtinha dados referentes à evolução, dados estes que por vezes passavam despercebidos por outros autores. Escreveu certa vez, por exemplo, que "dois cientistas de grande renome surpreenderam no Jardim das Plantas, de Paris, um jovem chimpanzé sentado ao lado do cadáver de sua mãe e que se apresentava tomado de grande tristeza. De permeio a convulsivos soluços, procurava reanimar com as mãos o corpo frio de sua mãe. E chorava, mas não derramava lágrimas. Chorava em seco como se costuma dizer. Como se vê, macaco também chora. Sabe-se que há pessoas que por mais que se emocionem são incapazes de chorar. Podem comover-se até aos limites do desespero, mas não conseguem verter uma só lágrima. Tal como os chimpanzés, igualmente choram em seco. Homem e macaco, sendo parentes, não é para estranhar que o que se passa como regra em um manifeste-se como exceção no outro".
A bibliografia do Dr. Piza encerra mais de 1.200 títulos, incluindo livros, trabalhos em revistas nacionais e estrangeiras em vários idiomas e artigos em jornais, especialmente O Diário e O Jornal de Piracicaba. Inúmeros trabalhos aparecidos na imprensa leiga, na realidade deveriam figurar em outra parte, pelo seu profundo conteúdo filosófico, linguístico, teológico etc. Estão neste caso artigos como "Um episódio pouco conhecido da História da Evolução", "Deus não é o autor da Bíblia", "Deus Natureza", "Como pronunciar os nomes dos grupos superiores da Classe Mastigophora do filo Protozoa" etc.
Inúmeros trabalhos constituíram contribuição à grafia e sobretudo à prosódia corretas de termos biológicos. Napoleão Mendes de Almeida, em suas Questões Vernáculas de O Estado de São Paulo, confirmou grande parte das conclusões do venerando catedrático da USP e não confirmou todas por não ter tratado das mesmas.
Durante a sua vida, Piza recebeu quantidade enorme de homenagens e láureas. Tendo estudado na Alemanha no início de sua carreira, retornou ao Brasil com o título de Doutor H. C. conferido pela Universidade de Berlim. Da sua viagem ao Oriente, resultou o livro "Aspectos íntimos do Japão", premiado pela Academia Brasileira de Letras. Entre as láureas, figuram inúmeras placas de prata conferidas por grupos de alunos e associações de profissionais e de colegas, título de cidadão piracicabano, título de Paul Harris Fellow do Rotary International, Medalha Prudente de Moraes do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba, Medalha "Luiz de Queiroz" concedida pela ESALQ etc., etc.
Nos últimos anos, com a vista grandemente arruinada, queixava-se de não poder encontrar certos livros em sua imensa biblioteca. Com o auxílio de forte lente, porém, continuava estudando e escrevendo e assim foi até poucos dias antes de falecer. A sua Biblioteca, ele a doou em vida à sua querida Escola Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz", para onde deverá ser removida e preservada com o maior carinho. Encerra literatura valiosíssima sobre insetos ortopteróides, evolução, aracnídeos etc, etc. O mesmo será feito, segundo o seu próprio desejo, com a grande coleção de troféus. "Estes pertencem à Escola, e não à minha pessoa", disse muitas vezes.
Recentemente, um grupo de docentes e discentes da ESALQ decidiu mandar confeccionar uma camisa-distintivo, trazendo ao peito a figura da aranha Metadiaea literata Piza, 1934, pelo fato de exibir sobre o dorso do abdome a letra A, bem desenhada e vistosa, muito parecida com o A encarnado, símbolo desportivo dos estudantes de engenharia agronômica da USP.
Em 1926, juntamente com os Profs. Drs. Octavio Domingues e Nicolau Athanassof, fundou a Revista de Agricultura. Logo em seguida, juntaram-se a eles os Profs. Drs. Carlos Teixeira Mendes e Philippe Westin Cabral de Vasconcellos, atualmente todos falecidos. Em 1987, a Revista de Agricultura publicou o seu 629 volume, com três fascículos, totalizando 320 páginas. O último fascículo, aparecido em dezembro de 1987, ainda conteve um trabalho do Prof. Piza, intitulado "Reencontro com Metadiaea".
A Revista em apreço presentemente possui circulação internacional, sendo os trabalhos nela publicados referidos em todos os periódicos que editam abstracts dos assuntos ali tratados. Nascida numa época em que nem o Instituto Agronômico, nem o Instituto Biológico, nem a ESALQ possuíam periódicos próprios, a Revista de Agricultura contribuiu grandemente, como o faz até o presente, na divulgação dos trabalhos dos pesquisadores das Ciências Agropecuárias.
Salvador de Toledo Piza Jr. nasceu em Capivari, SP, aos 28 dias de dezembro de 1898. Faleceu em Piracicaba, SP, aos 22 dias de janeiro de 1988. Deixa viúva a Sra. Helena Mendes de Toledo Piza, o filho Marcos Salvador de Toledo Piza e dois netos.
Durante a sua longa vivência na Escola Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz", todos nós que com ele trabalhávamos, aprendemos a amá-lo e a respeitá-lo profundamente, como homem íntegro, voltado à Ciência e, sobretudo, pelo seu imenso amor à querida Casa à qual serviu até ser colhido pela morte.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
11 Ago 2009 -
Data do Fascículo
1988