Caras Editoras,
A carta de autoria de Renato Ferreira-da-Silva 11. Ferreira-da-Silva R. Reações adversas a medicamentos em pacientes com COVID-19. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00228121., da Unidade de Farmacovigilância do Porto, Infarmed (Portugal), remetida aos Cadernos de Saúde Pública, traz uma oportuna reflexão sobre o artigo Reações Adversas a Medicamentos em Pacientes com COVID-19 no Brasil: Análise das Notificações Espontâneas do Sistema de Farmacovigilância Brasileiro22. Melo JRR, Duarte EC, Moraes MV, Fleck K, Silva ASN, Arrais PSD. Reações adversas a medicamentos em pacientes com COVID-19 no Brasil: análise das notificações espontâneas do sistema de farmacovigilância brasileiro. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00245820..
Esse estudo ressaltou o risco de eventos adversos dos medicamentos utilizados fora das indicações terapêuticas aprovadas pelas agências reguladoras (utilização off-label) contra a COVID-19, particularmente a cloroquina e hidroxicloroquina. O autor ressalta a concordância de nossos resultados, baseado no sistema de farmacovigilância do Brasil, com resultados de outro estudo com dados do sistema português de farmacovigilância 33. Ivos R, Ribeiro-Vaz I, Polónia J, Silva A. PDG17 Adverse drug reactions associated to hydroxychloroquine and remdesivir in COVID-19 patients: analysis of reported ADR to the Portuguese Pharmacovigilance System. Value Health 2021; 24 Suppl 1:S90.. Outros trabalhos publicados recentemente também confirmaram os nossos achados 44. Manivannan E, Karthikeyan C, Moorthy NSHN, Chaturvedi SC. The rise and fall of chloroquine/hydroxychloroquine as compassionate therapy of COVID-19. Front Pharmacol 2021; 12:584940.,55. Axfors C, Schmitt AM, Janiaud P, van't Hooft J, Abd-Elsalam S, Abdo EF, et al. Mortality outcomes with hydroxychloroquine and chloroquine in COVID-19 from an international collaborative meta-analysis of randomized trials. Nat Commun 2021; 12:3001.,66. Tanni SE, Bacha HA, Naime A, Bernardo WM. Uso de hidroxicloroquina para prevenir a infecção por SARS-CoV-2 e tratar COVID-19 leve: revisão sistemática e meta-análise. J Bras Pneumol 2021; 47:e20210236..
Incentivos maciços, inclusive por parte de autoridades - agentes públicos, profissionais de saúde e operadoras de saúde -, promovendo o uso de medicamentos ineficazes para prevenção ou tratamento da COVID-19, particularmente a hidroxicloroquina, em população com prática corrente da automedicação, pode ter contribuído sobremaneira para esse cenário de altas frequências de reações adversas a medicamentos (RAM) 77. Melo JRR, Duarte EC, Moraes MV, Fleck K, Arrais PSD. Automedicação e uso indiscriminado de medicamentos durante a pandemia da COVID-19. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00053221.,88. Souza M. Prevent Senior e Hapvida seguem receitando kit-covid após comprarem 5 milhões de caixas de cloroquina e ivermectina. Reporter Brasil 2021; 16 set. https://reporterbrasil.org.br/2021/09/prevent-senior-e-hapvida-seguem-receitando-kit-covid-apos-comprarem-5-milhoes-de-caixas-de-cloroquina-e-ivermectina/.
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. De fato, o Brasil é uma das nações com altas taxas de desinformação a respeito do tratamento da COVID-19. Análise do Projeto VERO indica que o país foi o que mais utilizou informações falsas sobre as drogas cloroquina e ivermectina, e que as ondas de desinformação sobre a pandemia duraram muito mais do que nos outros países, atribuindo a isso, o uso político da pandemia 99. Modesto JG, Zacarias DO, Galli LM, Neiva BA. COVID-19 e atitudes frente ao isolamento social: o papel das posições políticas, moralidade e fakes news. Estud Psicol 2020; 25:124-32.,1010. Machado CCV, Santos JGB, Santos N, Bandeira L. Scientific self isolation: international trends in misinformation and the departure from the scientific debate. https://laut.org.br/wp-content/uploads/2020/11/Political-Self-Isolation-vF.pdf (acessado em Nov/2020).
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Para além dessas evidências, a carta de Ferreira-da-Silva abre um importante debate sobre o notificador de eventos adversos e indica que, no sistema de farmacovigilância português, há uma preponderância do profissional médico como notificador. Esse tema, pouco explorado no Brasil, nos motivou a contribuir com essa discussão com base nos dados nacionais. Para tanto, com esse objetivo, realizamos breve análise do banco de notificações de RAM do sistema brasileiro de farmacovigilância (Notivisa - Sistema de Notificações em Vigilância Sanitária), no período de 2009 a 2018.
Nesse período identificamos 82.566 notificações de RAM no sistema Notivisa e, em 89,6% (n = 74.012) delas, foi possível identificar a classe profissional do notificador. Assim como no nosso estudo sobre RAM em pacientes com COVID-19, no total das notificações analisadas, os farmacêuticos (75,6%) foram os principais notificadores de RAM no Brasil, seguidos dos profissionais da enfermagem (14,8%), da medicina (7,9%) e da odontologia (0,34%). Estudo de revisão sistemática realizado nos Estados Unidos identificou, também, os farmacêuticos como os principais notificantes de RAM 1111. Phansalkar S, Hoffman JM, Nebeker JR, Hurdle JF. Pharmacists versus nonpharmacists in adverse drug event detection: a meta-analysis and systematic review. Am J Health Syst Pharm 2007; 64:842-9.. Com respeito ao local de trabalho do notificante, no Brasil, a maioria (85%) dos profissionais que notificam RAM trabalham em hospitais. Estudos futuros devem abordar essa temática, mas é possível supor que o sistema de farmacovigilância do Brasil aparentemente seja mais sensível à RAM de medicamentos utilizados em ambiente hospitalar do que de medicamentos ambulatoriais.
Em 2020 publicamos um estudo sobre conhecimentos, atitudes e práticas (CAP) de farmacovigilância com os profissionais de saúde do Brasil que responderam voluntariamente a um questionário online1111. Phansalkar S, Hoffman JM, Nebeker JR, Hurdle JF. Pharmacists versus nonpharmacists in adverse drug event detection: a meta-analysis and systematic review. Am J Health Syst Pharm 2007; 64:842-9.. Nesse estudo, foi identificado que os farmacêuticos e os enfermeiros são as duas categorias de profissionais de saúde que mais participavam do sistema de notificação de farmacovigilância no Brasil. Eles também foram os que tiveram melhor desempenho em CAP de farmacovigilância, superando médicos e dentistas 1212. Melo JRR, Duarte EC, Ferreira KA, Gonçalves YS, Moraes MV, Arrais PSD. Under-reporting of adverse drug reactions among healthcare professionals in Brazil: an estimate based on National Pharmacovigilance Survey. J Young Pharm 2020; 12:360-5..
Ainda com os dados desse questionário online, exploramos uma questão específica que se tratava da subnotificação de RAM e quais eram os fatores que levavam à subnotificação e os que poderiam favorecer o relato desses eventos. Uma parcela importante dos profissionais de saúde do Brasil, que respondeu ao questionário, se considerava subnotificantes (67,5%). O principal motivo alegado para não notificar RAM foi a falta de acesso aos dados vitais para a notificação (33,8%), e mais da metade (52,7%) afirmou que, se o sistema de notificação de RAM fosse mais simples, iria aumentar a sua participação no sistema de farmacovigilância nacional 1111. Phansalkar S, Hoffman JM, Nebeker JR, Hurdle JF. Pharmacists versus nonpharmacists in adverse drug event detection: a meta-analysis and systematic review. Am J Health Syst Pharm 2007; 64:842-9.. De fato, estudo realizado no Canadá discute que os sistemas de notificação existentes naquele país também não são adequados para capturar a natureza complexa de RAM ou não estão adaptados para o fluxo de trabalho dos profissionais, tornando complexo e demorado o ato de notificar esses eventos 1313. Hohl CM, Small SS, Peddie D, Badke K, Bailey C, Balka E. Why clinicians don't report adverse drug events: qualitative study. JMIR Public Health Surveill 2018; 4:e21..
Em nossa análise foi possível ainda identificar diferenças quanto aos tipos de RAM notificados por cada categoria profissional. Os profissionais de enfermagem foram os que apresentaram os maiores percentuais de notificação de erros de medicamentos e inefetividade terapêutica. Os farmacêuticos e médicos foram os que apresentaram maiores percentuais de notificações de intoxicações; e os dentistas, praticamente, concentraram as suas notificações em RAM. No entanto, os profissionais da medicina e os da odontologia notificaram mais as RAM graves, enquanto os da farmácia e de enfermagem, as RAM não graves.
O local de manifestação - sistema órgão classe (system organ class - SOC; https://www.meddra.org/About%20MedDRA%20/%20Evolution%20/%2027th-system-organ-class) - dos RAM também variou segundo a classe profissional do notificante: para os farmacêuticos e os médicos foram os distúrbios da pele (29,8% e 29,6%, respectivamente) e distúrbios gastrointestinais (12,5% e 11,8%, respectivamente) os mais frequentemente notificados; para os enfermeiros os distúrbios da pele (30,5%) e distúrbios respiratórios (13%), para os odontólogos os distúrbios hematológicos (33,6%) e da pele (29%). Estudo semelhante desenvolvido com os dados de farmacovigilância da França também identificou diferenças entre as notificações dos profissionais de saúde 1414. Nicol C, Moulis F, Bondon-Guitton E, Durrieu G, Montastruc JL, Bagheri H. Does spontaneous adverse drug reactions' reporting differ between different reporters? A study in Toulouse Pharmacovigilance Centre. Therapie 2019; 74:521-5.. Os autores consideraram que um dos motivos dessas diferenças poderia estar associado a diferentes acessos às informações clínicas dos pacientes. Essa questão ainda deve ser mais bem explorada em estudos futuros no contexto brasileiro.
Em conclusão, esses achados podem alertar gestores da área da farmacovigilância para a importância de aprimorar ou desenvolver sistemas de notificação de RAM mais amigáveis ao modo de trabalho dos profissionais de saúde; ter como alvo profissionais de saúde que mais subnotificam e os seus motivos alegados para essa subnotificação; adotar estratégias voltadas para os profissionais que atuam em ambientes ambulatoriais, especialmente nas unidades de saúde na atenção básica e nas farmácias e drogarias, estimulando a prática da notificação de suspeitas de RAM e queixas técnicas ao Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS). Finalmente, reiteramos que a discussão levantada por Ferreira-da-Silva foi muito oportuna, nos motivando a descrever aspectos pouco explorados do sistema de farmacovigilância brasileira. Esperamos que essas reflexões possam estimular estudos futuros e orientar a tomada de decisão de gestores públicos quanto ao planejamento de suas ações em vista ao fortalecimento da farmacovigilância de RAM no Brasil.
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1Ferreira-da-Silva R. Reações adversas a medicamentos em pacientes com COVID-19. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00228121.
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2Melo JRR, Duarte EC, Moraes MV, Fleck K, Silva ASN, Arrais PSD. Reações adversas a medicamentos em pacientes com COVID-19 no Brasil: análise das notificações espontâneas do sistema de farmacovigilância brasileiro. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00245820.
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3Ivos R, Ribeiro-Vaz I, Polónia J, Silva A. PDG17 Adverse drug reactions associated to hydroxychloroquine and remdesivir in COVID-19 patients: analysis of reported ADR to the Portuguese Pharmacovigilance System. Value Health 2021; 24 Suppl 1:S90.
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4Manivannan E, Karthikeyan C, Moorthy NSHN, Chaturvedi SC. The rise and fall of chloroquine/hydroxychloroquine as compassionate therapy of COVID-19. Front Pharmacol 2021; 12:584940.
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5Axfors C, Schmitt AM, Janiaud P, van't Hooft J, Abd-Elsalam S, Abdo EF, et al. Mortality outcomes with hydroxychloroquine and chloroquine in COVID-19 from an international collaborative meta-analysis of randomized trials. Nat Commun 2021; 12:3001.
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6Tanni SE, Bacha HA, Naime A, Bernardo WM. Uso de hidroxicloroquina para prevenir a infecção por SARS-CoV-2 e tratar COVID-19 leve: revisão sistemática e meta-análise. J Bras Pneumol 2021; 47:e20210236.
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7Melo JRR, Duarte EC, Moraes MV, Fleck K, Arrais PSD. Automedicação e uso indiscriminado de medicamentos durante a pandemia da COVID-19. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00053221.
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8Souza M. Prevent Senior e Hapvida seguem receitando kit-covid após comprarem 5 milhões de caixas de cloroquina e ivermectina. Reporter Brasil 2021; 16 set. https://reporterbrasil.org.br/2021/09/prevent-senior-e-hapvida-seguem-receitando-kit-covid-apos-comprarem-5-milhoes-de-caixas-de-cloroquina-e-ivermectina/
» https://reporterbrasil.org.br/2021/09/prevent-senior-e-hapvida-seguem-receitando-kit-covid-apos-comprarem-5-milhoes-de-caixas-de-cloroquina-e-ivermectina/ -
9Modesto JG, Zacarias DO, Galli LM, Neiva BA. COVID-19 e atitudes frente ao isolamento social: o papel das posições políticas, moralidade e fakes news. Estud Psicol 2020; 25:124-32.
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10Machado CCV, Santos JGB, Santos N, Bandeira L. Scientific self isolation: international trends in misinformation and the departure from the scientific debate. https://laut.org.br/wp-content/uploads/2020/11/Political-Self-Isolation-vF.pdf (acessado em Nov/2020).
» https://laut.org.br/wp-content/uploads/2020/11/Political-Self-Isolation-vF.pdf -
11Phansalkar S, Hoffman JM, Nebeker JR, Hurdle JF. Pharmacists versus nonpharmacists in adverse drug event detection: a meta-analysis and systematic review. Am J Health Syst Pharm 2007; 64:842-9.
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12Melo JRR, Duarte EC, Ferreira KA, Gonçalves YS, Moraes MV, Arrais PSD. Under-reporting of adverse drug reactions among healthcare professionals in Brazil: an estimate based on National Pharmacovigilance Survey. J Young Pharm 2020; 12:360-5.
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13Hohl CM, Small SS, Peddie D, Badke K, Bailey C, Balka E. Why clinicians don't report adverse drug events: qualitative study. JMIR Public Health Surveill 2018; 4:e21.
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14Nicol C, Moulis F, Bondon-Guitton E, Durrieu G, Montastruc JL, Bagheri H. Does spontaneous adverse drug reactions' reporting differ between different reporters? A study in Toulouse Pharmacovigilance Centre. Therapie 2019; 74:521-5.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Nov 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
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Recebido
01 Out 2021 -
Aceito
08 Out 2021