Resumos
A dengue pode estar associada a variáveis de nível individual, como escolaridade, aumentando o risco de adoecimento. O objetivo deste trabalho é analisar as disparidades da mortalidade por dengue entre os menos e mais escolarizados no Brasil entre os anos de 2010 e 2018. Este é um estudo do tipo ecológico retrospectivo das diferenças na taxa de mortalidade por dengue entre menos e mais escolarizados no Brasil, através das taxas de mortalidade por dengue geral, por idade, sexo e Unidade Federativa (UF). Um procedimento de bootstrap e imputação múltipla para a variável escolaridade foram implementados de modo a considerar a estrutura multinível em cada UF dos dados ao longo dos anos. Para cada banco agregado gerado, foi ajustado um modelo de Poisson multinível. A melhoria na escolaridade da população brasileira não refletiu na diminuição da mortalidade por dengue. Houve um aumento na taxa de mortalidade por dengue no Brasil e um crescimento da diferença de taxas de mortalidade entre menos e mais escolarizados. Independentemente do processo de imputação, os resultados mostraram maiores taxas de mortalidade por dengue entre os menos escolarizados. A baixa escolaridade afetou de forma mais pronunciada os mais jovens.
Palavras-chave:
Dengue; Escolaridade; Mortalidade
Dengue may be associated with individual level variables, such as schooling, increasing the risk of illness. The objective of this study is to analyze the disparities in dengue mortality among the least and the most educated in Brazil, from 2010 to 2018. This is a retrospective ecological study of the differences in the mortality rate due to dengue between the less and the more educated people in Brazil, according to the mortality rates due to general dengue, by age, sex, and Federative Unit (UF). A bootstrap and multiple imputation procedure for the variable schooling was implemented to consider the multilevel structure of the data from each UF over the years. For each aggregate bank generated, a multilevel Poisson model was adjusted. The improvement in the education level of the Brazilian population did not reflect on the decrease in mortality from dengue. There was an increase in the mortality rate from dengue in Brazil and an increase in the difference in mortality rates between less and more educated. Regardless of the imputation process, the results showed higher mortality rates from dengue among the less educated. Low schooling affected younger people more pronouncedly.
Keywords:
Dengue; Educational Status; Mortality
El dengue puede estar asociado a variables de nivel individual como la educación, aumentando el riesgo de enfermarse. El objetivo de este trabajo es analizar las disparidades de la mortalidad por dengue entre las personas con menor y mayor nivel educativo en Brasil entre los años 2010 y 2018. Estudio del tipo ecológico retrospectivo de las diferencias en la tasa de mortalidad por dengue entre las personas con menor y mayor nivel educativo en Brasil, a través de las tasas de mortalidad por dengue general, por edad, género y Unidad Federativa (UF). Se implementó un procedimiento de bootstrap y de imputación múltiple para la variable de educación para considerar la estructura multinivel en cada UF de los datos a lo largo de los años. Para cada banco agregado generado, se ajustó un modelo de Poisson multinivel. La mejora en la educación de la población brasileña no se reflejó en la disminución de la mortalidad por dengue. Hubo un aumento en la tasa de mortalidad por dengue en Brasil y un crecimiento de la diferencia en las tasas de mortalidad entre las personas con menor y mayor nivel educativo. Independientemente del proceso de imputación, los resultados mostraron mayores tasas de mortalidad por dengue entre los menos educados. El bajo nivel de educación afectó de forma más pronunciada a los más jóvenes.
Palabras-clave:
Dengue; Escolaridad; Mortalidad
Introdução
A dengue é a doença viral transmitida por mosquitos mais importante do mundo e metade da população está exposta ao risco de desenvolvê-la 11. World Health Organization. Dengue and severe dengue. https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/dengue-and-severe-dengue (acessado em 02/Mai/2021).
https://www.who.int/news-room/fact-sheet...
,22. World Health Organization. Dengue haemorrhagic fever: diagnosis, treatment, prevention, and control. 2a Ed. Genebra: World Health Organization; 1997.. A infecção pode levar a um amplo espectro de sintomas, desde quadros assintomáticos a cenários graves, com necessidade de atendimento médico e hospitalização 33. Huy NT, Van Giang T, Thuy DHD, Kikuchi M, Hien TT, Zamora J, et al. Factors associated with dengue shock syndrome: a systematic review and meta-analysis. PLoS Negl Trop Dis 2013; 7:e2412.,44. Special Programme for Research and Training in Tropical Diseases, World Health Organization. Dengue: guidelines for diagnosis, treatment, prevention, and control. Genebra: World Health Organization; 2009.. A assistência de saúde prestada e a precocidade com que se inicia o tratamento estão relacionadas ao risco de morte 55. Pan American Health Organization. Dengue. https://www.paho.org/pt/topicos/dengue (acessado em 02/Mai/2021).
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. No mundo, estima-se uma taxa de mortalidade de 2,5 por 1 milhão de pessoas por ano e houve tendência de queda de 28% entre 2010 e 2016 11. World Health Organization. Dengue and severe dengue. https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/dengue-and-severe-dengue (acessado em 02/Mai/2021).
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. Porém, no Brasil, houve aumento de 500% na taxa de mortalidade entre 2000 (0,4 por 1 milhão de pessoas) e 2015 (2,4 por 1 milhão de pessoas) 66. Araújo VEM, Bezerra JMT, Amâncio FF, Passos VMA, Carneiro M. Aumento da carga de dengue no Brasil e unidades federadas, 2000 e 2015: análise do Global Burden of Disease Study 2015. Rev Bras Epidemiol 2017; 20 Suppl 1:205-16..
O adoecimento e a morte por dengue não atingem a população de forma homogênea. Estudos apontam maiores índices de morbimortalidade da doença em populações residentes de regiões com piores condições socioeconômicas 77. Almeida AS, Medronho RA, Valencia LIO. Análise espacial da dengue e o contexto socioeconômico no município do Rio de Janeiro, RJ. Rev Saúde Pública 2009; 43:666-73.,88. Paixão ES, Costa MCN, Rodrigues LC, Rasella D, Cardim LL, Brasileiro AC, et al. Trends and factors associated with dengue mortality and fatality in Brazil. Rev Soc Bras Med Trop 2015; 48:399-405.,99. Tapia-Conyer R, Betancourt-Cravioto M, Méndez-Galván J. Dengue: an escalating public health problem in Latin America. Paediatr Int Child Health 2012; 32 Suppl 1:14-7.,1010. Gómez-Dantés H, Willoquet JR. Dengue in the Americas: challenges for prevention and control. Cad Saúde Pública 2009; 25 Suppl 1:S19-31.. A possível relação causal de variáveis dos níveis individual e comunitário, como baixa escolaridade, habitação precária, inefetividade política de controle do vetor e condições precárias de saneamento, combinadas com as condições ambientais e climáticas, favorecem a cadeia de transmissão, aumentando o risco de adoecimento das populações mais vulneráveis 1111. Fullerton LM, Dickin SK, Schuster-Wallace CJ. Mapping global vulnerability to dengue using the water associated disease index. https://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/Mapping%20Global%20Vulnerability%20to%20Dengue%20using%20WADI%20-%20full%20paper.pdf (acessado em 14/Jun/2021).
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,1212. Mattos Almeida MC, Caiaffa WT, Assunção RM, Proietti FA. Spatial vulnerability to dengue in a Brazilian urban area during a 7-year surveillance. J Urban Health 2007; 84:334-45.,1313. Farinelli EC, Baquero OS, Stephan C, Chiaravalloti-Neto F. Low socioeconomic condition and the risk of dengue fever: a direct relationship. Acta Trop 2018; 180:47-57..
A educação, de forma geral, promove diversos benefícios para as condições de saúde e longevidade da população 1414. Muller A. Education, income inequality, and mortality: a multiple regression analysis. BMJ 2002; 324:23-5.,1515. Brown DC, Hayward MD, Montez JK, Hummer RA, Chiu CT, Hidajat MM. The significance of education for mortality compression in the United States. Demography 2012; 49:819-40.. No Brasil, diversos estudos apontam para uma relação indireta entre mortalidade geral e nível de escolaridade - quanto maior o nível de escolaridade, menor a probabilidade de morte na idade adulta por qualquer motivo 1616. Silva LMV, Paim JS, Costa MCN. Desigualdades na mortalidade, espaço e estratos sociais. Rev Saúde Pública 1999; 33:187-97.,1717. Santos SM, Noronha CP. Padrões espaciais de mortalidade e diferenciais sócio-econômicos na cidade do Rio de Janeiro. Cad Saúde Pública 2001; 17:1099-110.,1818. Silva LE, Freire FHMA, Pereira RHM. Diferenciais de mortalidade por escolaridade da população adulta brasileira, em 2010. Cad Saúde Pública 2016; 32:e00019815..
Apesar de as evidências apontarem para uma possível relação causal entre baixa escolaridade e incidência de dengue, há uma carência de estudos sobre a associação entre escolaridade e mortalidade por dengue no Brasil e em nível nacional. Isso se deve, provavelmente, aos desafios metodológicos relativos à falta de preenchimento da variável escolaridade no banco de dados sobre mortalidade. Dessa forma, o objetivo deste trabalho é analisar os diferenciais de mortalidade por dengue segundo o nível de escolaridade no Brasil entre 2010 e 2018.
Métodos
Tipo e área de estudo
Este é um estudo ecológico retrospectivo que busca compreender as diferenças na mortalidade por dengue entre menos e mais escolarizados no Brasil, de 2010 a 2018 (último ano com informação de mortalidade disponível no momento da pesquisa), mediante as taxas de mortalidade geral por dengue, por idade, sexo e Unidades Federativas (UF). A pesquisa abrange o Brasil, maior país da América do Sul e sexto mais populoso do mundo. Sua população é predominantemente urbana, com maior concentração nas regiões Nordeste e Sudeste. O país é dividido em cinco macrorregiões e 27 UF.
Numerador
Para calcular a taxa de mortalidade, os dados sobre óbitos foram coletados no Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde. As informações das mortes por dengue foram selecionadas considerando a causa básica da Declaração de Óbito (DO), segundo as terminologias da Classificação Internacional de Doenças, 10ª revisão (CID-10), A90 (dengue clássico) e A91 (febre hemorrágica devida ao vírus do dengue), entre 2010 e 2018, para todas as UF do Brasil.
Denominador
Os dados das populações estratificadas por sexo, idade, escolaridade e UF para cada ano do período de 2010 a 2018 foram inicialmente calculados utilizando-se as informações dos microdados do Censo Demográfico de 2010 1919. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico. https://censo2010.ibge.gov.br/ (acessado em 02/Mai/2021).
https://censo2010.ibge.gov.br/...
e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) para 2012-2018 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 2020. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9127-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios.html (acessado em 02/Mai/2021).
https://www.ibge.gov.br/estatisticas/soc...
. Devido a oscilações de natureza aleatória nas estimativas das populações, modelos lineares foram utilizados para o ajuste das populações ao longo dos anos em cada um dos estratos compostos por UF, sexo, idade e escolaridade. Os valores preditos dos modelos foram assumidos como os verdadeiros tamanhos das populações em cada estrato. Devido ao intervalo de tempo relativamente curto deste estudo, essas estimativas mostraram-se bastante plausíveis.
Modelo estatístico
O não preenchimento geral da variável escolaridade no período de estudo nas DO no Brasil foi de 22,1%. Um procedimento de imputação para essa e demais variáveis foi implementado de modo a considerar a estrutura multinível dos dados, ou seja, óbitos por dengue observados em cada UF ao longo dos anos. Inicialmente, toma-se um conjunto de amostras bootstrap do grupo de dados original (incluindo valores ausentes), considerando a estrutura multinível. Bootstrap é um método de reamostragem de dados com reposição que permite estimar a variabilidade e, por conseguinte, intervalos de 95% de confiança (IC95%) de estatísticas complexas, com base na distribuição empírica das reamostras 2121. Efron B, Tibshirani RJ. An introduction to the Bootstrap. Boston: Springer; 1993.. Posteriormente, os valores faltantes em cada amostra bootstrap foram preenchidos por meio de imputação múltipla 2222. Schomaker M, Heumann C. Bootstrap inference when using multiple imputation: Bootstrap inference when using multiple imputation. Stat Med 2018; 37:2252-66., procedimento que envolve a substituição de cada valor ausente por uma série de valores plausíveis, gerando, assim, vários conjuntos de dados completos. Analisados separadamente, esses conjuntos produziram estimativas, as quais foram então combinadas em uma estimativa final, incorporando tanto a variabilidade dos dados quanto a incerteza acerca dos valores ausentes 2323. Little RJA, Rubin DB. Statistical analysis with missing data. 3a Ed. Hoboken: John Wiley & Sons; 2014. (Wiley Series in Probability and Statistics).. A imputação foi realizada por um processo de equações encadeadas (MICE, do inglês multivariate imputation by chained equations), técnica que atua sob a suposição de que, dadas as variáveis usadas no procedimento de imputação, os dados faltantes estão ausentes aleatoriamente (MAR, do inglês missing at random), o que significa que a probabilidade de um valor estar faltando depende apenas dos valores observados, e não dos não observados.
Diferentes métodos podem ser utilizados no processo de imputação múltipla. Neste estudo, os valores foram imputados pelo método de correspondência preditiva (PMM, do inglês predictive mean matching), que tem como princípio identificar um valor adequado entre os dados completos, mediante critérios de similaridade com a informação faltante 2424. Schenker N, Taylor JMG. Partially parametric techniques for multiple imputation. Comput Stat Data Anal 1996; 22:425-46.. Para esse propósito, considerando apenas observações com dados completos, foram estimados os parâmetros de um modelo de regressão no qual a variável dependente é aquela com informação faltante. Em seguida, realizou-se seleção aleatória da distribuição preditiva posterior, obtendo-se, assim, novo conjunto de parâmetros a serem utilizados na predição tanto dos valores observados quanto dos faltantes. Para cada caso com valor faltante, selecionam-se k valores observados, cujos valores preditos correspondam àqueles com maior proximidade aos estimados para os dados faltantes. Por fim, o valor a ser imputado é aquele selecionado aleatoriamente entre esses k valores observados. Schenker & Taylor 2424. Schenker N, Taylor JMG. Partially parametric techniques for multiple imputation. Comput Stat Data Anal 1996; 22:425-46. não encontraram diferenças significativas em imputações realizadas com valores de k entre 3 e 10, sendo k = 5, o default adotado pelos softwares que disponibilizam esse procedimento e, portanto, o valor assumido nessa análise. Importante ressaltar que essa etapa deve ser realizada no processo de geração de cada base de dados completa pela imputação múltipla.
Especificamente, as seguintes etapas foram seguidas:
(1) Por meio da técnica bootstrap, 2 mil amostras foram selecionadas do banco de mortalidade do SIM com observações completas e faltantes, levando-se em consideração a estrutura multinível desses dados;
(2) Para cada amostra bootstrap, foram gerados cinco bancos de dados completos por meio da imputação múltipla, utilizando as variáveis ano, idade, sexo, raça e UF. O número de imputações igual a cinco é o mais frequentemente utilizado, pois se mostra suficiente para conclusões válidas sem o inconveniente de aumentar em demasia a variância 2525. Kenward MG, Carpenter J. Multiple imputation: current perspectives. Stat Methods Med Res 2007; 16:199-218.. Ao final, obtiveram-se 10 mil amostras imputadas do banco de mortalidade por dengue;
(3) Cada banco foi agregado por sexo, idade (15-24 anos, 25-39 anos, 40-49 anos, 50-59 anos, 60- 69 anos, 70-79 anos e ≥ 80 anos), ano, UF e escolaridade (< 8 anos de estudo e ≥ 8 anos de estudo) e compatibilizado com os dados das respectivas populações sob risco estimadas. O ponto de corte da escolaridade (8 anos) foi escolhido por ser a única forma de compatibilizar os bancos de mortalidade e o banco de populações;
(4) Para cada banco agregado, ajustado por um modelo Poisson multinível, os estados federados foram considerados como unidades de segundo nível; e as medidas tomadas dentro dos estados ao longo dos anos como unidades de primeiro nível. Desse modo, considerou-se que as taxas de mortalidade observadas em uma mesma UF são possivelmente correlacionadas. A partir desses modelos, foram estimados taxas, razões de taxas e respectivos IC95% obtidos a partir dos percentis 2,5% e 97,5% da distribuição empírica dessas quantidades.
Para tornar computacionalmente viável a estimativa de todos os parâmetros do modelo em tempo hábil, foi utilizado um modelo Bayesiano, com parâmetros obtidos por aproximação aninhada integrada de Laplace (INLA, do inglês Integrated Nested Laplace Approximations) 2626. Rue H, Martino S, Chopin N. Approximate Bayesian inference for latent Gaussian models by using integrated nested Laplace approximations. J R Stat Soc Series B Stat Methodol 2009; 71:319-92..
As estimativas das taxas e razões de taxas, considerando ou não a imputação, foram comparadas. Estimaram-se, ainda, as razões de taxas das possíveis interações das variáveis escolaridade e outras. Todos esses resultados são apresentados graficamente na forma de efeitos marginais, ou seja, os efeitos das interações mantendo-se as outras variáveis no “valor médio”.
Todas as análises utilizaram o software R 4.0.4 (http://www.r-project.org), com os pacotes microdatasus, MICE, INLA e ggplot2.
Declaração de ética
O estudo utilizou dados de vigilância em saúde, coletados rotineiramente por meio das DO que alimentam o SIM do Ministério da Saúde. Todas as informações foram analisadas de forma anônima e estão disponíveis de forma aberta para qualquer interessado.
Resultados
Na população brasileira, a proporção estimada de pessoas com até 8 anos de escolaridade apresentou um declínio no período estudado, passando de 44,2% (n = 64,7 milhões), em 2010, para 34,9%, em 2018 (n = 58,5 milhões).
O número de óbitos por dengue no Brasil entre 2010 e 2018 foi de 4.166 casos, com predominância de indivíduos do sexo masculino (53,3%) e com mais de 80 anos (17%). As taxas de mortalidade foram mais elevadas no Estado de Goiás (6,7 por 1 milhão de habitantes) e Mato Grosso do Sul (5,8 por 1 milhão de habitantes) e menos elevadas em Santa Catarina (sem óbitos) e no Rio Grande do Sul. Na série de anos, o ano de 2015 foi o que apresentou o maior número de óbitos por dengue (21,3%), enquanto 2018 exibiu o menor registro de mortes por dengue (2,5%).
As razões de taxas (RT) entre indivíduos com menor e maior nível de escolaridade no Brasil foram de 2,9 e 3,0 por 1 milhão de habitantes no banco, sem e com imputação, respectivamente. Esses resultados sugerem, em geral, que foi atribuído tempo de escolaridade menor que 8 anos a pessoas com escolaridade não preenchida. Após a imputação dos dados, as RT entre menos e mais escolarizados nas UF deixaram de ser estatisticamente significativas, considerando-se o nível de 5% de significância, com exceção de São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal (Tabela 1). Ressalta-se que os IC95% nas UF, com pequeno número de óbitos, foram amplos, apontando para baixa precisão para as estimativas das RT.
As UF com maiores taxas de mortalidade entre os menos escolarizados foram Goiás (15,7 por 1 milhão de habitantes), Mato Grosso (10,1 por 1 milhão de habitantes) e Mato Grosso do Sul (8,9 por 1 milhão de habitantes), ambos localizados na Região Centro-oeste do Brasil.
Para os estados com maior número de óbitos, as RT preditas entre os menos e os mais escolarizados foram semelhantes, comparando-se os dados sem imputação com os dados imputados. Considerando o modelo sem imputação, em alguns estados houve maior discrepância entre a taxa geral de mortalidade e a razão de mortalidade entre os menos e os mais escolarizados, como no Paraná, onde a taxa geral foi baixa (1,1 por 1 milhão de habitantes) e a razão foi maior, e no Mato Grosso do Sul, onde a taxa geral foi alta (5,8 por 1 milhão de habitantes) e a RT foi de 2,1. A maior RT entre menos e mais escolarizados aconteceu no Distrito Federal; e a menor, no Amazonas, levando em consideração o modelo imputado e resultados com significância estatística (Tabela 1).
Analisando os ajustes pelos modelos de Poisson multinível, as estimativas pontuais das RT foram próximas, considerando os dados não imputados e os imputados (Tabela 2). Os intervalos de confiança das RT com base nos dados imputados foram maiores devido ao aumento da incerteza gerado pela inclusão dos valores imputados. Considerando apenas os resultados obtidos para os dados imputados, observamos que as taxas de mortalidade por dengue foram maiores nos anos de 2010 e 2013 e atingiram um pico em 2015, a partir do qual passaram a decrescer. A taxa de mortalidade em homens foi 40% maior que em mulheres. A chance de morrer por dengue aumentou gradativamente com a idade - pessoas com mais de 80 anos apresentaram 14 vezes mais chances de morrer do que jovens de 15-25 anos. Os menos escolarizados tiveram mortalidade 70% maior em comparação aos mais escolarizados.
Considerando o modelo de interação do ano com a escolaridade, controlado pelas demais variáveis, as RT entre os menos e os mais escolarizados aumentaram de 2012 a 2016. No modelo de interação da escolaridade com a idade, controlado pelas outras variáveis, o efeito da escolaridade foi maior entre os mais jovens e decaiu com o avançar da idade. No modelo de interação entre sexo e escolaridade, controlado pelas demais variáveis, a RT entre os menos e os mais escolarizados foi maior entre os homens (Figura 1).
Razões de taxas dos modelos imputados com interação da escolaridade por ano, idade e sexo. Brasil, 2010-2018.
Discussão
Embora a escolaridade geral da população brasileira nos últimos anos tenha aumentado 2727. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Brasil em síntese. https://brasilemsintese.ibge.gov.br/educacao.html (acessado em 02/Mai/2021).
https://brasilemsintese.ibge.gov.br/educ...
, observou-se aumento nos diferenciais das taxas de mortalidade por dengue entre os menos e os mais escolarizados no Brasil. As mortes por dengue foram mais frequentes entre homens e suas chances aumentaram com a idade. Entre os mais jovens, identificou-se um diferencial da mortalidade por nível educacional mais pronunciado. São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal foram as UF que apresentaram maiores RT entre os menos e os mais escolarizados.
O método de imputação escolhido pouco afetou os coeficientes estimados, mas aumentou a variância das RT. Por essa razão, a maior parte das RT entre os menos e os mais escolarizados deixaram de ser estatisticamente significativas após a imputação dos dados. Apesar disso, o método usado se mostrou vantajoso, pois levou em conta a estrutura hierárquica/multinível dos dados e a incerteza a respeito do não preenchimento da escolaridade. Independentemente do processo de imputação, os resultados mostraram maiores taxas de mortalidade por dengue entre os menos escolarizados, na maioria das UF.
Nas últimas décadas, o nível de escolaridade aumentou principalmente nas regiões mais pobres do país, como Norte e Nordeste 2020. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9127-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios.html (acessado em 02/Mai/2021).
https://www.ibge.gov.br/estatisticas/soc...
,2828. Castro JA. Evolução e desigualdade na educação brasileira. Educ Soc 2009; 30:673-97.. Esse aumento, contudo, não resultou em redução nos diferenciais de mortalidade por dengue entre os menos e os mais escolarizados. Vários fatores podem ter contribuído para isso. Primeiro, aqueles que mantêm menor nível de escolaridade são os de menor renda, residentes em áreas mais propensas à proliferação do mosquito e, consequentemente, à maior incidência. Nesse contexto, ainda que a letalidade fosse independente de qualquer determinante social, a mortalidade seria maior entre os menos escolarizados. Do ponto de vista individual, um nível maior de educação influenciaria os indivíduos em termos de conhecimento, atitudes e práticas em relação à dengue, de modo que pessoas com maior nível de escolaridade teriam maior capacidade de decisão sobre medidas preventivas, como descarte adequado de recipientes que possam acumular água parada e limpeza regular de áreas propensas à reprodução do mosquito transmissor 2929. McLoyd VC. Socioeconomic disadvantage and child development. Am Psychol 1998; 53:185-204.. Outro possível fator que se deve levar em consideração diz respeito a repetidas infecções causadas por vírus de sorotipos diferentes, que estão associados à apresentação de dengue hemorrágica e de síndrome de choque da dengue 3030. Bhatt P, Sabeena SP, Varma M, Arunkumar G. Current understanding of the pathogenesis of dengue virus infection. Curr Microbiol 2021; 78:17-32.. Além disso, indivíduos com menor nível de escolaridade tendem a apresentar maior número de condições preexistentes, como diabetes, hipertensão e distúrbios cardiovasculares, aumentando a letalidade da doença 3131. Carabali M, Hernandez LM, Arauz MJ, Villar LA, Ridde V. Why are people with dengue dying? A scoping review of determinants for dengue mortality. BMC Infect Dis 2015; 15:301.,3232. Werneck GL, Macias AE, Mascarenas C, Coudeville L, Morley D, Recamier V, et al. Comorbidities increase in-hospital mortality in dengue patients in Brazil. Mem Inst Oswaldo Cruz 2018; 113:e180082..
O acesso e a utilização dos serviços de saúde também são pontos norteadores do entendimento da mortalidade por dengue e da escolaridade. Há fortes evidências de que o acesso e a utilização desses serviços são bastante desiguais entre os diferentes grupos sociais 3333. Mendoza-Sassi R, Béria JU, Barros AJD. Outpatient health service utilization and associated factors: a population-based study. Rev Saúde Pública 2003; 37:372-8.,3434. Lima-Costa MF, Barreto S, Giatti L. A situação socioeconômica afeta igualmente a saúde de idosos e adultos mais jovens no Brasil? Um estudo utilizando dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios PNAD/98. Ciênc Saúde Colet 2002; 7:813-24.,3535. Pinheiro RS, Viacava F, Travassos C, Brito AS. Gênero, morbidade, acesso e utilização de serviços de saúde no Brasil. Ciênc Saúde Colet 2002; 7:687-707.. Estudos mostram também que pessoas mais escolarizadas tendem a conseguir mais acesso não somente aos serviços de saúde, mas também aos que apresentam maior qualidade 3636. Travassos C, Oliveira EXG, Viacava F. Desigualdades geográficas e sociais no acesso aos serviços de saúde no Brasil: 1998 e 2003. Ciênc Saúde Colet 2006; 11:975-86.,3737. Pavão ALB, Coeli CM, Lopes CS, Faerstein E, Werneck GL, Chor D. Uso de serviços de saúde segundo posição socioeconômica em trabalhadores de uma universidade pública. Rev Saúde Pública 2012; 46:98-103..
As taxas de mortalidade por dengue foram menores em dois estados da Região Sul, a mais fria do país, fator que dificulta o crescimento e a propagação do vetor da dengue 3838. Costa FS, Silva JJ, Souza CM, Mendes J. Dinâmica populacional de Aedes aegypti (L) em área urbana de alta incidência de dengue. Rev Soc Bras Med Trop 2008; 41:309-12.. No entanto, essa diminuta quantidade de casos nessas UF pode também ser reflexo de subnotificação 3939. Guimarães MH, Vasconcelos PFC, Nunes MRT, Rodrigues SG, Tanajura D, Tavares-Neto J, et al. Inquérito soroepidemiológico de dengue em dois municípios do estado do Acre, fronteira Brasil-Bolívia. Rev Ciênc Méd Biol 2006; 5:13-20.,4040. Leandro CS, Barros FB, Cândido EL, Azevedo FR. Redução da incidência de dengue no Brasil em 2020: controle ou subnotificação de casos por COVID-19? Res Soc Dev 2020; 9:e76891110442.. O Distrito Federal, UF com o maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil 4141. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento; Fundação João Pinheiro; Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, organizadores. Desenvolvimento humano nas macrorregiões brasileiras. Brasília: Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento; 2016., chamou a atenção com uma taxa de mortalidade mediana em comparação com os demais estados, mas com a mais alta RT (embora a precisão tenha sido baixa), ou seja, uma elevada mortalidade dos menos escolarizados, o que pode indicar significativa desigualdade no acesso aos serviços de saúde. No entanto, as diferenças por estado não guardaram relação aparente com o índice de Gini aferido em 2010 4242. Departamento de Informática do SUS. Índice de Gini da renda domiciliar per capita - Brasil. http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/ibge/censo/cnv/giniuf.def (acessado em 02/Mai/2021).
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/ibge/ce...
, embora esse indicador não aborde o setor saúde e o acesso a ele.
A maioria dos estudos aponta o sexo feminino como predominante em número de casos e mortes por dengue 4343. Guimarães LM, Cunha GM. Diferenças por sexo e idade no preenchimento da escolaridade em fichas de vigilância em capitais brasileiras com maior incidência de dengue, 2008-2017. Cad Saúde Pública 2020; 36:e00187219.. Outras pesquisas afirmam que há maior predomínio de mulheres no número de casos, mas que a maioria das mortes por dengue ocorre com homens 4444. Anders KL, Nguyet NM, Chau NVV, Hung NT, Thuy TT, Lien LB, et al. Epidemiological factors associated with dengue shock syndrome and mortality in hospitalized dengue patients in Ho Chi Minh City, Vietnam. Am J Trop Med Hyg 2011; 84:127-34.. Os resultados encontrados neste estudo indicam o predomínio da mortalidade no sexo masculino, mesmo com a escolaridade sendo considerada na análise. Pesquisas apontam que mulheres são mais propensas a buscar serviços de saúde 4545. Barata RB. Como e por que as desigualdades sociais fazem mal à saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009. (Coleção Temas em Saúde)..
O aumento do efeito da escolaridade na interação com o ano entre os anos de 2012 e 2016 pode resultar do aumento no número de casos nesse período, principalmente em 2015 e 2016, quando houve a introdução de outras arboviroses transmitidas pelo mesmo vetor no cenário nacional, que em aspectos clínicos, se assemelham com a dengue e acometem de forma semelhante os mesmos grupos sociais, Zika e chikungunya 4646. Lang P. Zika, chikungunya e dengue: entenda as diferenças. Agência Fiocruz de Notícias 2015; 17 nov. https://agencia.fiocruz.br/zika-chikungunya-e-dengue-entenda-diferen%C3%A7as.
https://agencia.fiocruz.br/zika-chikungu...
,4747. Nunes ML, Carlini CR, Marinowic D, Kalil Neto F, Fiori HH, Scotta MC, et al. Microcephaly and Zika virus: a clinical and epidemiological analysis of the current outbreak in Brazil. J Pediatr (Rio J.) 2016; 92:230-40.. O aumento da incidência foi mais pronunciado nas populações mais vulneráveis, ocasionando um aumento nos diferenciais de mortalidade entre os menos e os mais escolarizados. Outro ponto a ser considerado diz respeito à precocidade do entendimento desses eventos à época, uma vez que esses agravos podem ter sido registrados no SIM erroneamente como dengue 4343. Guimarães LM, Cunha GM. Diferenças por sexo e idade no preenchimento da escolaridade em fichas de vigilância em capitais brasileiras com maior incidência de dengue, 2008-2017. Cad Saúde Pública 2020; 36:e00187219..
A taxa de mortalidade por dengue apresentou uma relação direta com a idade, em consonância com achados de outros estudos 66. Araújo VEM, Bezerra JMT, Amâncio FF, Passos VMA, Carneiro M. Aumento da carga de dengue no Brasil e unidades federadas, 2000 e 2015: análise do Global Burden of Disease Study 2015. Rev Bras Epidemiol 2017; 20 Suppl 1:205-16.,4848. Liew SM, Khoo EM, Ho BK, Lee YK, Omar M, Ayadurai V, et al. Dengue in Malaysia: factors associated with dengue mortality from a national registry. PLoS One 2016; 11:e0157631.. Porém, os diferenciais de mortalidade diminuíram à medida que a idade avançava, não sendo estatisticamente significativos entre idosos. Isso pode ter decorrido do fato de os idosos apresentarem maior risco de múltiplas morbidades e, assim, ao interagirem com a dengue, estão mais suscetíveis à ocorrência de óbito, ou seja, o efeito protetor da escolaridade nesse segmento populacional é reduzido 4949. Beard JR, Officer A, Carvalho IA, Sadana R, Pot AM, Michel JP, et al. The World Report on Ageing and Health: a policy framework for healthy ageing. Lancet 2016; 387:2145-54..
As principais limitações deste estudo devem-se ao fato de estarmos trabalhando com dados obtidos de forma secundária. Possíveis óbitos por dengue podem não ter sido notificados no sistema devido à falta de vigilância oportuna em saúde ou à falta de acesso, variando de local para local do país. Além disso, a incompatibilidade das informações dos bancos de dados do sistema de mortalidade e dos bancos populacionais limitou o uso de maior número de categorias para descrever a escolaridade. Possivelmente, o impacto da educação seria maior se pudéssemos considerar os que têm curso superior, pois no Brasil há forte relação entre curso superior e melhores condições de vida 1818. Silva LE, Freire FHMA, Pereira RHM. Diferenciais de mortalidade por escolaridade da população adulta brasileira, em 2010. Cad Saúde Pública 2016; 32:e00019815..
Os pontos fortes do estudo foram a utilização de base populacional, apesar das limitações descritas anteriormente, a especificação correta do modelo estatístico usado, levando-se em conta a correlação intrínseca dos dados, e a possível aplicabilidade da mesma metodologia para outras doenças, desde que não sejam restritas a populações específicas.
Agradecimentos
Agradecemos ao Ministério da Saúde pela disponibilização dos dados e à Fundação Oswaldo Cruz pela oportunidade de aprendizado.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Set 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
16 Nov 2022 -
Revisado
30 Maio 2023 -
Aceito
06 Jun 2023