Prezadas Editoras,
O artigo intitulado Factors Associated with Anemia and Vitamin A Deficiency in Brazilian Children Under 5 Years Old: Brazilian National Survey on Child Nutrition (ENANI-2019)11. Castro IRR, Normando P, Farias DR, Berti TL, Schincaglia RM, Andrade PG, et al. Factors associated with anemia and vitamin A deficiency in Brazilian children under 5 years old: Brazilian National Survey on Child Nutrition (ENANI-2019). Cad Saúde Pública 2023; 39:e00194922., publicado recentemente em CSP, revela dados que poderão ser utilizados na vigilância alimentar e nutricional para elaborar políticas públicas pertinentes à realidade nutricional das crianças brasileiras. O estudo avaliou 7.716 crianças entre 6 e 59 meses de idade, apresentando os fatores associados à anemia (concentração de hemoglobina < 11mg/dL) e à deficiência de vitamina A (nível de retinol sérico < 0,7μmol/L), por meio de análise hierárquica baseada no modelo teórico proposto pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Entre todos os resultados apresentados por Castro et al. 11. Castro IRR, Normando P, Farias DR, Berti TL, Schincaglia RM, Andrade PG, et al. Factors associated with anemia and vitamin A deficiency in Brazilian children under 5 years old: Brazilian National Survey on Child Nutrition (ENANI-2019). Cad Saúde Pública 2023; 39:e00194922., destacam-se as baixas prevalências de anemia e vitamina A e sua associação com os chamados determinantes imediatos, como a ausência de aleitamento materno no dia anterior à entrevista em crianças de 6-23 meses e o consumo de 1-2 grupos de alimentos ultraprocessados no dia anterior em crianças de 24-59 meses de idade.
Visando colaborar com a reflexão sobre o tema, ressaltamos os resultados da publicação de Sangalli et al. 22. Sangalli CN, Rauber F, Vitolo MR. Low prevalence of inadequate micronutrient intake in young children in the south of Brazil: a new perspective. Br J Nutr 2016; 116:890-6., no qual foram encontradas baixas prevalências de inadequação de consumo de micronutrientes em crianças menores de cinco anos de baixa condição socioeconômica. À época, esses resultados nos surpreenderam, pois, se a qualidade da alimentação era ruim, de onde estavam vindo os micronutrientes consumidos por essas crianças? Valmorbida et al. 33. Valmorbida JL, Vítolo MR. Fatores associados ao baixo consumo de frutas e verduras entre pré-escolares de baixo nível socioeconômico. J Pediatr (Rio J.) 2014; 90:464-71. haviam demonstrado, em publicação anterior, com a mesma amostra de crianças, que 58% e 87,4% não consumiram sequer uma porção de frutas e verduras, respectivamente. Na publicação de Sangalli et al. 22. Sangalli CN, Rauber F, Vitolo MR. Low prevalence of inadequate micronutrient intake in young children in the south of Brazil: a new perspective. Br J Nutr 2016; 116:890-6., a inclusão da informação nutricional contida no rótulo das embalagens no cálculo nutricional dos inquéritos recordatórios de 24 horas mostrou que os alimentos ultraprocessados forneciam a maior porcentagem de micronutrientes presentes nas dietas. Além da alta densidade de açúcar, gordura, sódio e aditivos, alimentos ultraprocessados são adicionados de micronutrientes para, entre outras finalidades, atrair compradores com as alegações de que são importantes fontes de ferro, vitamina C, vitamina A e zinco. A presença de ultraprocessados enriquecidos com micronutrientes (achocolatados, biscoitos, cereais para crianças, suco artificial, gelatinas) era predominante nos inquéritos alimentares das crianças (88,1%). O percentual de contribuição de micronutrientes fornecidos por esses alimentos foi de: 38,3% para ferro; 20,4% para vitamina A; 19,7% para cálcio; 17,2% para vitamina C; 14,6% para zinco; e 11,3% para folato. O resultado mais preocupante foi a ingestão de micronutrientes acima da upper level, que é o nível máximo de segurança de ingestão para prevenir toxicidade. Para a vitamina A, 4% das crianças ultrapassaram a upper level; para o zinco, 3,1%; para ácido fólico, 1,1%; e para o ferro, 0,2%.
Ainda que os métodos de análise de consumo alimentar de ultraprocessados tenham sido diferentes entre o estudo de Castro et al. 11. Castro IRR, Normando P, Farias DR, Berti TL, Schincaglia RM, Andrade PG, et al. Factors associated with anemia and vitamin A deficiency in Brazilian children under 5 years old: Brazilian National Survey on Child Nutrition (ENANI-2019). Cad Saúde Pública 2023; 39:e00194922. (consumo no dia anterior, sim/não) e o de Sangalli et al. 22. Sangalli CN, Rauber F, Vitolo MR. Low prevalence of inadequate micronutrient intake in young children in the south of Brazil: a new perspective. Br J Nutr 2016; 116:890-6. (inquérito recordatório de 24 horas), ambos os resultados corroboram outros estudos que sugerem que a ingestão excessiva de micronutrientes por crianças tem ocorrido devido à prática de suplementações medicamentosas ou dietéticas, fortificações ou enriquecimentos de alimentos. Dois estudos realizados nos Estados Unidos mostraram que os alimentos enriquecidos forma as principais fontes de micronutrientes em crianças e adolescentes 4,4. Fulgoni VL, Keast DR, Bailey RL, Dwyer J. Foods, fortificants, and supplements: where do Americans get their nutrients? J Nutr 2011; 141:1847-54. 55. Berner LA, Keast DR, Bailey RL, Dwyer JT. Fortified foods are major contributors to nutrient intakes in diets of US children and adolescents. J Acad Nutr Diet 2014; 114:1009-22.e8., evidenciando prevalências significativas de crianças com ingestão de sódio, vitamina A e zinco acima da upper level.
É importante traçar um paralelo entre a fortificação das farinhas de milho e trigo com ferro e ácido fólico, que é mandatário no Brasil, e a adição de micronutrientes nos alimentos ultraprocessados, realizada de forma voluntária e estratégica pela indústria alimentícia. A fortificação das farinhas não implica risco para consumo excessivo, uma vez que a quantidade de 4 a 9mg de ferro e 150 a 220mcg de ácido fólico por 100g de farinha não impacta significativamente no consumo diário total 66. Assunção MCF, Santos IS, Barros AJD, Gigante DP, Victora CG. Effect of iron fortification of flour on anemia in preschool children in Pelotas, Brazil. Rev Saúde Pública 2007; 41:539-48.. Além disso, estudos de análise temporal demonstram que preparações culinárias que utilizam essas farinhas estão sendo gradualmente substituídas por alimentos ultraprocessados 77. Martins APB, Levy RB, Claro RM, Moubarac JC, Monteiro CA. Participação crescente de produtos ultraprocessados na dieta brasileira (1987-2009). Rev Saúde Pública 2013;47:656-65.,88. Louzada MLC, Cruz GL, Silva KAAN, Grassi AGF, Andrade GC, Rauber F, et al. Consumo de alimentos ultraprocessados no Brasil: distribuição e evolução temporal 2008-2018. Rev Saúde Pública 2023; 57:12., que contribuem com mais da metade da ingestão energética diária de crianças americanas e europeias e com cerca de um terço das calorias ingeridas por crianças de países em desenvolvimento 99. Khandpur N, Neri DA, Monteiro C, Mazur A, Frelut ML, Boyland E, et al. Ultra-processed food consumption among the paediatric population: an overview and call to action from the European Childhood Obesity Group. Ann Nutr Metab 2020; 76:109-13.. Nesse cenário, entendemos que os alimentos ultraprocessados atuam como principais veículos dos micronutrientes sintéticos consumidos por crianças de diferentes faixas etárias.
Mesmo a situação de saúde no Brasil sendo de tripla carga de má nutrição infantil (coexistência de desnutrição, deficiências de micronutrientes e excesso de peso) e a fortificação de alimentos sendo uma das possíveis estratégias de prevenção de deficiência, a adição de micronutrientes motivada por apelo comercial pode favorecer desfechos negativos na saúde. Isso porque os micronutrientes mais comumente adicionados (p.ex.: ferro, vitamina A e zinco) são, muitas vezes, os mesmos fornecidos nas estratégias nacionais de fortificação da alimentação infantil. A coexistência de múltiplas intervenções para resolver deficiências de micronutrientes é preocupante 1010. Kurpad AV, Ghosh S, Thomas T, Bandyopadhyay S, Goswami R, Gupta A, et al. When the cure might become the malady: the layering of multiple interventions with mandatory micronutrient fortification of foods in India. Am J Clin Nutr 2021; 114:1261-6., principalmente pelo consumo excessivo de ferro, que pode causar diarreia (mediada pela diminuição de bifidobactérias e aumento de enterobactérias, o que favorece a proliferação de patógenos oportunistas, como Escherichia coli), e aumentar o risco de morbidade gastrointestinal 1111. Paganini D, Uyoga MA, Zimmermann MB. Iron fortification of foods for infants and children in low-income countries: effects on the gut microbiome, gut inflammation, and diarrhea. Nutrients 2016; 8:494.. O excesso de vitaminas de diferentes classes também parece exercer efeito no desenvolvimento de obesidade 1212. Zhou SS, Li D, Chen NN, Zhou Y. Vitamin paradox in obesity: deficiency or excess? World J Diabetes 2015; 6:1158-67..
Assim, é de extrema importância que futuros estudos considerem que: (1) a informação nutricional dos alimentos ultraprocessados precisa ser incluída na investigação dietética e no cálculo nutricional; (2) a presença de alimentos ultraprocessados pode ser mais prevalente em populações de baixa condição socioeconômica, uma vez que esses alimentos têm menor custo e são, portanto, mais acessíveis; e (3) as crianças com alta ingestão de alimentos ultraprocessados estão em risco de apresentar toxicidade por consumo excessivo de micronutrientes, considerando que esta só é observada por meio de micronutrientes sintéticos adicionados aos alimentos ou suplementos.
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1Castro IRR, Normando P, Farias DR, Berti TL, Schincaglia RM, Andrade PG, et al. Factors associated with anemia and vitamin A deficiency in Brazilian children under 5 years old: Brazilian National Survey on Child Nutrition (ENANI-2019). Cad Saúde Pública 2023; 39:e00194922.
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2Sangalli CN, Rauber F, Vitolo MR. Low prevalence of inadequate micronutrient intake in young children in the south of Brazil: a new perspective. Br J Nutr 2016; 116:890-6.
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3Valmorbida JL, Vítolo MR. Fatores associados ao baixo consumo de frutas e verduras entre pré-escolares de baixo nível socioeconômico. J Pediatr (Rio J.) 2014; 90:464-71.
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4Fulgoni VL, Keast DR, Bailey RL, Dwyer J. Foods, fortificants, and supplements: where do Americans get their nutrients? J Nutr 2011; 141:1847-54.
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5Berner LA, Keast DR, Bailey RL, Dwyer JT. Fortified foods are major contributors to nutrient intakes in diets of US children and adolescents. J Acad Nutr Diet 2014; 114:1009-22.e8.
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6Assunção MCF, Santos IS, Barros AJD, Gigante DP, Victora CG. Effect of iron fortification of flour on anemia in preschool children in Pelotas, Brazil. Rev Saúde Pública 2007; 41:539-48.
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7Martins APB, Levy RB, Claro RM, Moubarac JC, Monteiro CA. Participação crescente de produtos ultraprocessados na dieta brasileira (1987-2009). Rev Saúde Pública 2013;47:656-65.
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8Louzada MLC, Cruz GL, Silva KAAN, Grassi AGF, Andrade GC, Rauber F, et al. Consumo de alimentos ultraprocessados no Brasil: distribuição e evolução temporal 2008-2018. Rev Saúde Pública 2023; 57:12.
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9Khandpur N, Neri DA, Monteiro C, Mazur A, Frelut ML, Boyland E, et al. Ultra-processed food consumption among the paediatric population: an overview and call to action from the European Childhood Obesity Group. Ann Nutr Metab 2020; 76:109-13.
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10Kurpad AV, Ghosh S, Thomas T, Bandyopadhyay S, Goswami R, Gupta A, et al. When the cure might become the malady: the layering of multiple interventions with mandatory micronutrient fortification of foods in India. Am J Clin Nutr 2021; 114:1261-6.
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11Paganini D, Uyoga MA, Zimmermann MB. Iron fortification of foods for infants and children in low-income countries: effects on the gut microbiome, gut inflammation, and diarrhea. Nutrients 2016; 8:494.
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12Zhou SS, Li D, Chen NN, Zhou Y. Vitamin paradox in obesity: deficiency or excess? World J Diabetes 2015; 6:1158-67.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Jan 2024 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
14 Nov 2023 -
Aceito
24 Nov 2023