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Artroplastia total de joelho por via subvasto em paciente com luxação crônica pós-traumática de patela Trabalho desenvolvido na Universidade de São Paulo, Faculdade de Medicina, Instituto de Ortopedia e Traumatologia, São Paulo, SP, Brasil.

RESUMO

A luxação crônica da patela é uma patologia rara e o trauma sua principal causa adquirida. Quando negligenciada, leva ao geno valgo progressivo, à torção externa da tíbia e à subsequente artrose debilitante. Não existe consenso na literatura com relação ao tratamento desses pacientes, porém a artroplastia total de joelho (ATJ) tem se mostrado um procedimento eficaz em casos de gonartrose sintomática dolorosa. Poucos relatos mostraram que a via subvasto associada à liberação lateral é uma opção válida para ATJ, já que permite a correção de deformidades em valgo e da boa excursão patelar, sem interrupção do suprimento sanguíneo. Relatamos um caso de uma paciente com geno valgo e luxação crônica pós-traumática de patela submetida a ATJ associada ao realinhamento do mecanismo extensor, com resultados satisfatórios persistentes após seguimento de dois anos.

Palavras-chave:
Osteoartrose; Joelho; Artroplastia; Luxação de patela

ABSTRACT

Chronic lateral dislocation of the patella is a rare condition and acquired causes are usually secondary to knee trauma. The neglected chronic dislocation leads to progressive genu valgum and external tibial torsion deformities with subsequent gonarthrosis, which becomes painful and debilitating. There is no consensus regarding treatment of these patients, but total knee arthroplasty (TKA) is a useful therapy in cases of painful symptomatic gonarthrosis. Few reports have shown that subvastus approach and lateral release may be a valid option for TKA, since it allows the correction of valgus deformity and patellar tracking without interrupting vascular blood supply of patella. This article reports a case of TKA and extensor mechanism realignment without patellar resurfacing in a patient with genu valgum and chronic post-traumatic patellar dislocation with satisfactory results after two years of follow-up.

Keywords:
Osteoarthritis; Knee; Arthroplasty; Patellar dislocation

Introdução

A luxação lateral crônica da patela é uma condição rara que geralmente tem origem congênita ou adquirida.11. In Y, Kong CG, Sur YJ, Choi SS. TKA using the subvastus approach and lateral retinacular release in patients with permanent post- traumatic patellar dislocation: a report of two cases. Knee Surg Sports Traumatol Arthrosc. 2009;17(3):254-9. As causas adquiridas são geralmente secundárias a traumas repetitivos na região do joelho em pacientes com predisposição à luxação da patela. Fraturas da diáfise femoral ou tibial com consolidação viciosa em valgo ou rotação externa exacerbam o vetor valgizante e aumentam a predisposição à luxação.22. Bullek DD, Scuderi GR, Insall JN. Management of the chronic irreducible patellar dislocation in total knee arthroplasty. J Arthroplasty. 1996;11(3):339-45.

A luxação crônica da patela negligenciada leva a geno valgo progressivo e a torção externa da tíbia, com subsequente gonartrose, que se torna dolorosa e debilitante. Os achados físicos típicos incluem alinhamento valgo patológico do membro inferior, luxação lateral da patela e extensão ativa do joelho enfraquecido.33. Dao Q, Chen DB, Scott RD. Proximal patellar quadricepsplasty realignment during total knee arthroplasty for irreducible congenital dislocation of the patella. J Bone Joint Surg Am. 2010;92(14):2457-61.

Não há consenso sobre o tratamento desses pacientes, mas a artroplastia total do joelho (ATJ) é uma terapia útil em casos de gonartrose sintomática dolorosa.44. Yamanaka H, Kawamoto T, Tamai H, Suzuki M, Kobayashi T, Eguchi Y, et al. Total knee arthroplasty in a patient with bilateral congenital dislocation of the patella treated with a different method in each knee. Case Rep Orthop. 2015;2015:890315. A reconstrução cirúrgica pode ser tecnicamente difícil, demanda atenção para realinhar o mecanismo extensor, restaurar o balanço de partes moles e promover uma boa excursão patelar, bem como a correção das deformidades ósseas presentes em casos graves de joelho valgo.22. Bullek DD, Scuderi GR, Insall JN. Management of the chronic irreducible patellar dislocation in total knee arthroplasty. J Arthroplasty. 1996;11(3):339-45.and55. Matsushita T, Kuroda R, Kubo S, Mizuno K, Matsumoto T, Kurosaka M. Total knee arthroplasty combined with medial patellofemoral ligament reconstruction for osteoarthritic knee with preoperative valgus deformity and chronic patellar dislocation. J Arthroplasty. 2011;26(3):505, e17-e20. Outra preocupação é o potencial de osteonecrose da patela devido à interrupção do fornecimento de sangue durante a aproximação parapatelar medial e extensa liberação lateral do mecanismo extensor.11. In Y, Kong CG, Sur YJ, Choi SS. TKA using the subvastus approach and lateral retinacular release in patients with permanent post- traumatic patellar dislocation: a report of two cases. Knee Surg Sports Traumatol Arthrosc. 2009;17(3):254-9.,33. Dao Q, Chen DB, Scott RD. Proximal patellar quadricepsplasty realignment during total knee arthroplasty for irreducible congenital dislocation of the patella. J Bone Joint Surg Am. 2010;92(14):2457-61.and66. Noorpuri BS, Maqsood M. Osteonecrosis of the patella and prosthetic extrusion after total knee arthroplasty. J Arthroplasty. 2002;17(5):662-3.

Apenas um estudo demonstrou que a via subvasto associada à liberação lateral pode ser uma opção válida para ATJ em pacientes com luxação crônica pós-traumática de patela, já que permite a correção de deformidades em valgo e boa excursão patelar, sem interrupção do suprimento sanguíneo vascular da patela.11. In Y, Kong CG, Sur YJ, Choi SS. TKA using the subvastus approach and lateral retinacular release in patients with permanent post- traumatic patellar dislocation: a report of two cases. Knee Surg Sports Traumatol Arthrosc. 2009;17(3):254-9.

Relatamos um caso de ATJ associada ao realinhamento do mecanismo extensor sem componente protético patelar em uma paciente com geno valgo e luxação crônica pós-traumática de patela.

Relato de caso

Uma mulher de 59 anos, com dor grave no joelho esquerdo por dez anos, foi encaminhada ao nosso serviço. A dor se agravara gradativamente ao longo dos últimos três anos, devido a luxação traumática da patela. A paciente deambulava e subia escadas com dificuldades, mas podia andar com apoio total no membro. Não apresentava dados relevantes ou doença congênita em seu histórico. O tratamento conservador com analgésicos, anti-inflamatórios e fisioterapia para fortalecimento muscular não foi eficaz.

No exame físico, observou-se leve hipotrofia dos quadríceps do joelho esquerdo, deformidade em valgo parcialmente redutível, amplitude de movimento passivo de 0° a 100° com crepitação dolorosa do compartimento lateral e déficit de extensão de 10°. A patela estava luxada lateralmente, não foi possível a redução em extensão completa (fig. 1). Durante os movimentos de flexão e extensão, observou-se mínima mobilidade patelar. Não se palpava derrame articular e não foram constatados sinais de instabilidade ou deficiência ligamentar.

Figura 1
Fotografia pré-operatória clínica que mostra a patela completamente luxada.

A radiografia anteroposterior em ortostatismo do joelho comprovou deformidade em valgo e osteoartrite em todos os compartimentos, com perda quase total do espaço articular lateral; a radiografia em perfil revelou que a patela não estava na parte anterior do joelho; e a radiografia axial demonstrou que a patela estava completamente luxada, em contato direto com a borda externa do côndilo femoral lateral (fig. 2).

Figura 2
Radiografias pré-operatórias anteroposterior, em perfil e axial do joelho esquerdo.

Técnica cirúrgica

A paciente foi submetida a ATJ a esquerda (Medial Pivot, Wright Medical Technology, Inc.). Uma incisão longitudinal na linha média foi feita sobre a patela por via subvasto para proteger a circulação patelar. A patela estava localizada no recesso lateral do joelho e o côndilo femoral lateral estava hipoplástico.

O fêmur distal foi cortado perpendicularmente ao eixo mecânico (5° valgo) e a tíbia foi cortada perpendicular ao seu eixo longo. A rotação do componente femoral foi definida com base nas linhas condilar posterior, biepicondilar e de Whiteside. O componente tibial também foi posicionado em ligeira rotação externa em relação à tuberosidade anterior da tíbia. A inserção de componente patelar não foi feita devido à espessura da patela (9 mm).

Uma extensa liberação lateral foi feita. Começou proximalmente no vasto lateral, estendeu-se distalmente até a tuberosidade tibial e obteve uma excursão patelar centrada na tróclea (fig. 3). O trato iliotibial também foi alongado com o uso da técnica pie-crusting. Não foi necessário fazer o realinhamento distal por transferência do tubérculo tibial. O tempo cirúrgico total foi de 95 minutos.

Figura 3
Fotografia intraoperatória que mostra a patela posicionada centralmente na tróclea femoral.

A descarga de peso foi autorizada no primeiro dia de pós-operatório. O programa de reabilitação incluiu exercícios de fortalecimento do quadríceps e aumento gradual da amplitude de movimento do joelho da extensão total até 120° de flexão sem flexo.

Aos dois anos de seguimento pós-operatório, a paciente encontra-se satisfeita com a cirurgia e sem dor durante movimentação ativa do joelho e atividades com descarga de peso (fig. 4). O KSS (Knee Society Score) 77. Insall JN, Dorr LD, Scott RD, Scott WN. Rationale of the Knee Society clinical rating system. Clin Orthop Relat Res. 1989;(248):13-4. da paciente evoluiu de 49 no pré-operatório para 93 no pós-operatório.

Figura 4
Radiografias da última consulta de acompanhamento: incidências anteroposterior e perfil do joelho esquerdo.

Cintilografia óssea com metileno difosfato marcado com tecnécio 99m foi feita para avaliar a viabilidade da patela; o exame mostrou hipercaptação na patela esquerda com vascularização preservada após dois anos de pós-operatório (fig. 5).

Figura 5
Cintilografia óssea com tecnécio-99 m que indica a viabilidade patelar. Captações anterior, medial e lateral do joelho esquerdo.

Discussão

Uma considerável incapacidade funcional está associada à luxação crônica pós-traumática de patela. Não há consenso sobre o tratamento de pacientes negligenciados e há poucos relatos na literatura, mas a ATJ é um tratamento útil em pacientes que desenvolveram gonartrose sintomática e dolorosa.44. Yamanaka H, Kawamoto T, Tamai H, Suzuki M, Kobayashi T, Eguchi Y, et al. Total knee arthroplasty in a patient with bilateral congenital dislocation of the patella treated with a different method in each knee. Case Rep Orthop. 2015;2015:890315. Para se fazer uma ATJ nesse grupo de pacientes, grandes problemas devem ser abordados: deslocamento do mecanismo extensor e deformidade em valgo.22. Bullek DD, Scuderi GR, Insall JN. Management of the chronic irreducible patellar dislocation in total knee arthroplasty. J Arthroplasty. 1996;11(3):339-45.

Muitas técnicas de realinhamento proximal (quadricepsplastia em V-Y, Z-plastia, técnica de Vulpius) e distal têm sido descritas; geralmente, elas requerem o reposicionamento da patela e o realinhamento do mecanismo extensor.33. Dao Q, Chen DB, Scott RD. Proximal patellar quadricepsplasty realignment during total knee arthroplasty for irreducible congenital dislocation of the patella. J Bone Joint Surg Am. 2010;92(14):2457-61.,44. Yamanaka H, Kawamoto T, Tamai H, Suzuki M, Kobayashi T, Eguchi Y, et al. Total knee arthroplasty in a patient with bilateral congenital dislocation of the patella treated with a different method in each knee. Case Rep Orthop. 2015;2015:890315.and55. Matsushita T, Kuroda R, Kubo S, Mizuno K, Matsumoto T, Kurosaka M. Total knee arthroplasty combined with medial patellofemoral ligament reconstruction for osteoarthritic knee with preoperative valgus deformity and chronic patellar dislocation. J Arthroplasty. 2011;26(3):505, e17-e20. Alguns autores88. Pradhan RL, Watanabe W, Itoi E, Yamada S, Shimada Y, Sato K. Total knee arthroplasty in bilateral congenital dislocation of the patella - A case report. Acta Orthop Scand. 2001;72(4):422-4. descreveram ATJ sem a tentativa de realinhar o mecanismo extensor como uma opção cirúrgica, mas os efeitos de se negligenciar a estabilidade patelar sobre a durabilidade dos componentes e os resultados funcionais em seguimento de longo prazo são desconhecidos. No presente caso, a liberação lateral isolada foi feita a partir das fibras musculares do vasto lateral até a tuberosidade tibial, com um tracking patelar satisfatório.

Outra preocupação é o risco de osteonecrose da patela devido à extensa liberação do mecanismo extensor33. Dao Q, Chen DB, Scott RD. Proximal patellar quadricepsplasty realignment during total knee arthroplasty for irreducible congenital dislocation of the patella. J Bone Joint Surg Am. 2010;92(14):2457-61.and66. Noorpuri BS, Maqsood M. Osteonecrosis of the patella and prosthetic extrusion after total knee arthroplasty. J Arthroplasty. 2002;17(5):662-3. com transecção das artérias geniculares laterais (superior e inferior) ou devido ao acesso parapatelar medial, que separa o vasto medial da patela e resulta na perda do suprimento vascular pelas artérias geniculares mediais (superiores e inferiores) ou pela artéria genicular descendente.11. In Y, Kong CG, Sur YJ, Choi SS. TKA using the subvastus approach and lateral retinacular release in patients with permanent post- traumatic patellar dislocation: a report of two cases. Knee Surg Sports Traumatol Arthrosc. 2009;17(3):254-9. No presente caso, adotou-se a via subvasto, que permite a preservação da artéria genicular descendente, semelhantemente ao previamente descrito por No et al., 11. In Y, Kong CG, Sur YJ, Choi SS. TKA using the subvastus approach and lateral retinacular release in patients with permanent post- traumatic patellar dislocation: a report of two cases. Knee Surg Sports Traumatol Arthrosc. 2009;17(3):254-9. associado à liberação lateral controlada; atingiu-se assim excursão patelar adequada. Uma opção que também pode melhorar o tracking é a colocação do componente patelar; entretanto, no presente caso a patela foi deixada intacta devido à sua pequena espessura.

Embora o presente caso tenha dois anos de seguimento, esse prazo pode não ser suficiente para avaliar todas as possíveis complicações patelofemorais. Noorpuri e Maqsood66. Noorpuri BS, Maqsood M. Osteonecrosis of the patella and prosthetic extrusion after total knee arthroplasty. J Arthroplasty. 2002;17(5):662-3. encontraram necrose patelar sete anos após ATJ e Helito et al. 99. Helito CP, Gobbi RG, Tirico LEP, Pecora JR, Camanho GL. Loosening of the patellar component and extra-articular and transcutaneous migration after TKA. Orthopedics. 2014;37(2):e211-3. relataram migração patelar nove anos após ATJ; portanto, os cirurgiões devem fazer o controle radiográfico periódico de seus pacientes.

References

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  • Trabalho desenvolvido na Universidade de São Paulo, Faculdade de Medicina, Instituto de Ortopedia e Traumatologia, São Paulo, SP, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Oct 2016

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2015
  • Aceito
    06 Nov 2015
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