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Topografias de subjetividades juvenis

RESENHAS

Topografias de subjetividades juvenis

Glória Diógenes

José Machado Pais. Sexualidade e afectos juvenis. Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2012. 245 páginas.

É raro um livro, resultante de uma pesquisa aprofundada, nos situar nos fluxos das cenas bué (gíria juvenil portuguesa: legal, agradável), no epicentro das experiências de vida de juventudes. São escritos que escapam das armadilhas metodológicas tradicionalmente voltadas para obtenção e análise de dados. Trata-se de "representações sociais circulantes, com estatuto claramente opinativo" (p. 17). Isso significa dizer que percorremos palavras como se fossem vias de acontecimentos, "pensamentos soltos" como eloquentes signos afetivos.

Mais raro ainda, mesmo em se tratando de um estudo qualitativo, perceber que a sexualidade aparece aqui entrelaçada às tramas afetivas juvenis –

ainda que seja ressaltado pelo autor que "afectos e sexualidades vestem-se de malhas sociais diferenciadas" (p. 18). O esforço de "decifração de repertórios culturais" opera um afastamento de um empirismo indutivista (por acumulação de dados) e de um teoricismo dedutivista (p. 21). Esse intento resultou numa atitude metodológica de múltiplas entradas e saídas; entrevistas individuais foram antecedidas por grupos de discussão e seguidas pela redação de composições por parte dos jovens relacionadas com os mais diversos temas: primeiro beijo, estar apaixonado(a), vida amorosa, futuro, solidão, entre muitos outros.

É desse modo que o leitor vai navegando numa linguagem fluida, acessível, fazendo surgir uma "topografia de subjetividades juvenis" (p. 19). Provavelmente, diante dos abismos de entendimento que têm alimentado distâncias entre a juventude e as escolas, a juventude e o universo das famílias, esse livro configura-se como uma preciosa cartografia.

O maior mérito de Sexualidade e afectos juvenis, a meu ver, é não apenas o de ultrapassar alguns clichês que povoam zonas de conforto, mas também ressignificá-los por dentro dos fluxos de sentidos que habitam as práticas discursivas juvenis. O primeiro dos clichês provém de uma usual afirmação acerca da distância atual entre pais e filhos. O autor percebe, por meio dos vários relatos, as modulações contemporâneas que permeiam esse campo complexo de relações: "Não que os filhos não sejam amados, é que eles não são devidamente acompanhados" (p. 29). Como diz Chico Buarque em Fado tropical, o que parece existir é uma "distância entre intenção e gesto".

A velocidade, a mutabilidade, a descartabilidade, a necessidade de múltiplas conectividades que cadenciam o mundo moderno – ou pós-moderno –

deixam emergir outro pacto afetivo. "O compromisso ocupa cada vez menos o horizonte da vida amorosa" (p. 37). A fluidez das relações entre jovens, como destaca o autor, atua "como voos de borboleta". "A sexualidade tende a transformar-se no domínio de coleção de experiências". Isso porque as sensações que a sexualidade propicia alcançam outros dispositivos corporais e outras mídias de enunciação.

Como diz João, um dos jovens participantes da pesquisa, "agora nós estamos muito mais ligados às novas tecnologias. Mesmo nos afectos e sentimentos usamos as tecnologias para exprimir sentimentos e afectos, coisa que nossos pais não faziam" (p. 42). A sexualidade é intensificada, é alardeada, comunicada, pactuada, tanto que tende à sua própria castração, ou a empurrá-la para um mundo de permissividade onde tudo vale (p. 51). Ainda há gaguez, isto é, uma ausência das palavras quando se deseja discutir a sexualidade, espaço que o autor denomina "região dos silêncios cúmplices" (p. 48). Por isso, como ressalta Machado Pais, "é muito mais fácil ensinar-se a colocar um preservativo, do que entender o complexo mundo dos afectos juvenis" (p. 49) – sendo, em muitas situações, os termos sexualidade e afectos utilizados como sinônimos, o que empobrece os dois campos de experiência.

Assim, é pertinente a indagação – "faz ou não sentido que as escolas possam realizar encontros que estimulem os jovens a reflectir aquilo que em sempre reflectem?" (p. 57). Lembrando que os jovens entrevistados são filhos da geração dos anos de 1960, tendo crescido em famílias monoparentais e recompostas (p. 71), alguns pais, principalmente mães, "não desejam que seus filhos sejam tão reprimidos quanto eles próprios o foram no seu tempo de juventude" (p. 116). Repressão tornou-se uma palavra quase banida desse repertório, sendo muitas vezes recodificada como respeito.

Isso significa que se, por um lado, existe uma aura de liberdade e de promoção de valores de autonomia no campo das práticas juvenis, ainda coexiste, por outro lado, o silêncio e a padronização de juízos do senso comum sobre namoro, casamento, amor e sexualidade: casamento é sinônimo de prisão, educação sexual nas escolas pode vir a estimular a homossexualidade, aborto é controverso, traição em nenhuma situação. "A sexualidade deixou de ser um tabu, mas não deixou de provocar um nervoso miudinho e risos incontidos que reflectem alguma inibição quando se fala sobre o tema" (p. 135). Tudo isso envolvido numa instigante malha de contradição, tendo em vista que os jovens aderem a "um amor confluente, baseado em trocas emocionais e afectivas, numa relação de abertura à intimidade" (p. 72).

De fato, os tempos mudaram, tendo em vista a recusa do provérbio "casamento e mortalha no céu se talha" (p. 87), e ao mesmo tempo não mudaram. Nesse terreno ambivalente, pantanoso, de uma geração que viveu sob o signo do "faça amor, não faça guerra" e que tenta educar dentro dessa mescla, é muitas vezes impossível alinhavar liberdade e obediên­cia, autonomia e respeito à ordem paterna/materna. É por isso que ainda se controlam as jovens nas saídas noturnas e liberam-se os jovens mancebos.

Um dos grandes méritos desta pesquisa é lidar justamente com zonas de exercício de um nomadismo e de reinvenções de si. Como destaca o autor, existe no mundo juvenil uma espécie de "fundamentalismo tecnológico" que ameaça excluir os desconectados desta "post-utopia" a que chamamos de rede. Os jovens desenvolvem uma "sensibilidade­ tecnossocial associada a novas maneiras de ser e sentir a cultura no tempo e no espaço" (p. 102). Aqui se cria uma zona própria, pontilhada por recorrentes conflitos familiares.

Outra linha de fuga é o quarto. Isso significa dizer que "no quarto, em frente do computador, os jovens incorporam 'outros territórios significativos' que galgam as fronteiras do seu canto residencial" (p. 105). Dentro de um "tempo intemporal" e de um "espaço de fluxos", como diz Castells (2009), os jovens criam territórios movediços de experiências, sem sair do lugar. São eles, o quarto e o computador, espaços centrais da construção da autonomia e ampliação das "escrituras de si", seguindo aqui a terminologia de Paula Sibilia (2002). A televisão também habita a casa em vários cômodos e desestabiliza os fluxos de comunicação. Ela, assim como o computador, enuncia valores, práticas e imagens de forte conteúdo erótico que atravessam o conjunto de experiências juvenis. Isso sem esquecer, como destaca Machado Pais com uma boa dose de ironia, "dos esfomeados telemóveis".

Interessante a pontuação do pesquisador no que diz respeito às diferenciações entre autonomia e independência juvenil. Muitas vezes essas brechas da autonomia "sobrevivem apenas à custa de sopros financeiros dos pais". Num universo onde cada vez mais se esgarçam as oportunidades relativas ao primeiro emprego, em que o próprio ideário da sociedade moderna do trabalho sofre efeitos de crises mundiais, o hiato da condição juvenil entre autonomia e liberdade ganha fronteiras mais nítidas. Sendo assim, a pesquisa evidencia valores e práticas em mutação. Nessa profusão de imagens, da intensificação de usos de tecnologias, o "corpo tornou-se um importante passaporte de acesso a um mundo de trocas afectivas". O corpo compõe e possibilita a produção de um múltiplo campo de imagens de si, um "instrumento de gestão da identidade" (p. 121). A "proliferação de estilos juvenis", como afirma Suely Rolnik (1994), de identidades prêt-à-porter traduzem o corpo como território de dobras de construções subjetivas.

Esses corpos em deslocamento, o vácuo de compartilhamento de vivências no campo da sexualidade, esse quase deserto de terrenos seguros, mobilizam os jovens para tipos de "vinculações pessoais, de sustentos emotivos que lhes permitam manter uma confiança na vida" (p. 149), ou seja, um círculo de afetos. Por isso, ressalta Machado, "o indivíduo não é um simples construtor de sua biografia, desenhada a seu bel-prazer. É também uma construção que reflecte os relacionamentos que ele próprio ajuda a construir" (p. 150). Eu diria que os afetos são pedrinhas que lançamos nas águas com suas elipses concêntricas mais ou menos largas, mais ou menos nítidas. Por isso mesmo a sensibilidade caminha para uma significativa percepção, e nesses casos a noção de rede social é mais apropriada do que a de comunidade, noção que implica uma estabilidade e um sentimento de pertença, em contraste com a rede social, mais associada à contingência e à fluidez. Os afetos juvenis constituem-se nas experimentações, como uma ampliada cidade povoada de esquinas, de vias, desenhadas entre recantos de ficar, recantos de passar. Desse modo, "a identidade é compósita, produto de múltiplas socializações e reconfigurações" (p. 151). No geral, de acordo com Kevin, um jovem escutado na pesquisa, "a relação com meus pais é bué de fixe, por que eles gostam bué de mim" (p. 162).

No capítulo sobre as "alcunhas de reconhecimento", o autor identifica aquilo que muitas vezes também me ocorreu nas minhas trajetórias de "pesquisadora em movimento". Em 1993, coordenei, em Fortaleza, um levantamento censitário acerca da quantidade de meninos e meninas em situação de rua. Deparamo-nos com as mais diversificadas alcunhas, designadas por eles mesmos de apelidos. Eram ratos da madrugada, peixinho, tufão, raposa e tantos outros. Percebemos – e essa percepção tem se intensificado na nossa atual pesquisa sobre atuações juvenis no ciberespaço – que, no geral, faz parte da condição juvenil vivenciar outros batismos simbólicos. Como preciosamente assinala Machado, a alcunha é "um lugar de epifania da verdade no seu entrelaçamento com o nome" (p. 187), são portadoras de um prazer de enunciação (p. 188). Desse modo, as alcunhas mimetizam o espaço social e o individual, porque um apelido, diferentemente do nome de batismo, não se outorga, se conquista, ou, como se diz coloquialmente, se faz por onde. Obviamente, assim como tão bem elucidou Goffman em Estigma, "as alcunhas físicas podem explorar tropismos semânticos onde a totalidade da aparência é substituída pela parte". De todo modo, prosseguindo essa via de discussão, "a alcunha só faz sentido dada a sua existência relacional", como uma elucidativa "mirada compartilhada" (Goffman, 1975, pp. 195, 203 e 204).

No final, Machado explicita, para a satisfação do leitor, o que já havia deixado pulsar em cada linha de seu livro: "os sentimentos não se deixam conhecer como objeto sociológico diretamente acessível" (p. 205). As composições escritas no "recato de seus aposentos" possibilitaram que esses sentimentos escorressem como magmas de palavras entornadas no papel. Por isso foi possível para ele decodificar os meandros que definem as tensões entre medo e angústia. "O medo ocorre no seio da comunidade, nas suas formas de vida e de comunicação. A angústia, em contrapartida, aparece entre os que se afastam de uma comunidade de pertença, de rotinas compartilhadas" (p. 217). O medo requer segurança, a angústia cadencia os passos dos rebeldes, dos transgressores, dos que se perdem ou descartam valores compartilhados dentro da comunidade e da família.

As conclusões, eu diria, devem ser lidas. Creio que os leitores irão perceber que "o mundo dos afectos e das sexualidades juvenis é mais complexo do que à primeira vista se poderia supor" (p. 230). O jogo do desejo, enlaçando a um só tempo sexualidades e afetos, oferece transfigurações bem mais emaranhadas do que a vã filosofia dos manuais sobre educação sexual para adolescentes. Como assinala a perturbadora indagação lançada pelo autor: "que garantias existem que adultos que vivem a sua própria sexualidade de modo problemático estejam em condições de ensinar a jovens"? (p. 238).

Quem sabe, aqui, nessa sólida e intensa tapeçaria afetiva e em tantos outros passos que temos efetuado na construção de autonomias juvenis, todos nós estejamos cadenciados por um tempo da delicadeza, tal qual enuncia os versos da canção Todo o sentimento do já evocado Chico Buarque:

Pretendo descobrir

No último momento

Um tempo que refaz o que desfez

Que recolhe todo o sentimento

E bota no corpo uma outra vez

[...].

BIBLIOGRAFIA

Glória Diógenes é professora doutora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará, criadora do Laboratório das Juventudes – UFC, e pós-doutoranda no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, E-mail: <gloriadiogenes@gmail.com>.

  • CASTELLS, Manuel. (2009), A sociedade em rede. São Paulo, Paz e Terra.
  • GOFFMAN, Erving. (1975), Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriora Rio de Janeiro, Zahar.
  • ROLNIK, Suely. (1994), "Toxicômanos de identidade: subjetividade em tempo de globalização". Disponível em <http://caosmose.net/suelyrolnik/pdf/viciados_em_identidade.pdf>
  • SIBILIA, Paula. (2012), O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais Rio de Janeiro, Relume Dumará

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Mar 2013
  • Data do Fascículo
    Fev 2013
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