Resumos
Parte dos estudos que teriam marcado a construção, por Sílvia Lane, de uma psicologia social voltada à nossa realidade, o texto relata viagem realizada no início dos anos 1980 por seis capitais da América Latina. A viagem revelou-se rica oportunidade para conhecer de perto projetos voltados em especial a populações submetidas a diversos tipos de opressão e exploração, alguns dos quais são descritos em detalhes. O texto foi organizado de modo a mostrar ao leitor algumas condições antecedentes (experiência anterior de Lane na área de psicologia comunitária e experiência conjunta de trabalho das viajantes), o projeto (as escolhas possíveis então relativamente a uma viagem de estudos), a viagem (procedimentos e resultados das interações estabelecidas, com informações que permitiriam recuperar projetos visitados) e, finalmente, algumas implicações desta oportunidade de aprender com colegas e projetos numa realidade tão próxima à nossa.
Pesquisa militante; Projetos de intervenção; Psicologia Comunitária
From of the studies that marked Sílvia Lane's construction of a Social Psychology focused on our reality, the paper reports her journey to six Latin American capitals undertaken in the beginning of the 1980's. The journey revealed to be rich in opportunity to closely know projects focused especially on populations submitted to various types of opression and exploitation, some of which are described in detail. The text was organized in a way to show the reader some antecedent conditions (The previous experience of the travelers and that of Lane's in community psychology), the project (the possible choices related to field research), the journey (procedures and results of the interactions that were established, with information that permitted to recover projects that were visited) and, finally, some implications of trying to learn with colleagues and projects in a reality so close to ours.
Militant Research; Intervention Projects; Community Psychology
II Artigos
A viagem histórica pela América Latina
The historical journey through Latin America
Maria do Carmo Guedes
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil
RESUMO
Parte dos estudos que teriam marcado a construção, por Sílvia Lane, de uma psicologia social voltada à nossa realidade, o texto relata viagem realizada no início dos anos 1980 por seis capitais da América Latina. A viagem revelou-se rica oportunidade para conhecer de perto projetos voltados em especial a populações submetidas a diversos tipos de opressão e exploração, alguns dos quais são descritos em detalhes. O texto foi organizado de modo a mostrar ao leitor algumas condições antecedentes (experiência anterior de Lane na área de psicologia comunitária e experiência conjunta de trabalho das viajantes), o projeto (as escolhas possíveis então relativamente a uma viagem de estudos), a viagem (procedimentos e resultados das interações estabelecidas, com informações que permitiriam recuperar projetos visitados) e, finalmente, algumas implicações desta oportunidade de aprender com colegas e projetos numa realidade tão próxima à nossa.
Palavras-chave: Pesquisa militante; Projetos de intervenção; Psicologia Comunitária.
ABSTRACT
From of the studies that marked Sílvia Lane's construction of a Social Psychology focused on our reality, the paper reports her journey to six Latin American capitals undertaken in the beginning of the 1980's. The journey revealed to be rich in opportunity to closely know projects focused especially on populations submitted to various types of opression and exploitation, some of which are described in detail. The text was organized in a way to show the reader some antecedent conditions (The previous experience of the travelers and that of Lane's in community psychology), the project (the possible choices related to field research), the journey (procedures and results of the interactions that were established, with information that permitted to recover projects that were visited) and, finally, some implications of trying to learn with colleagues and projects in a reality so close to ours.
Keywords: Militant Research; Intervention Projects; Community Psychology.
Antecedentes
"Em Psicologia Social II1 1 1966-67, 3º ano do Curso de Psicologia, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Bento procuramos trabalhar em conjunto com a disciplina de Pesquisa . . ." lembra Sílvia Lane em seu Memorial (p. 6), escrito em 1981 para concurso ao posto de Professora Titular na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Com base nesta primeira experiência de ensino conjunto, foi fácil assumir juntas, em 1968, o projeto revolucionário que o curso de Psicologia da Faculdade de Ciências e Letras (FFCL) de São Bento viveu, atendendo a exigência dos alunos por mais prática e maior integração teoria/pesquisa/aplicação de conhecimento2 2 Entre outras exigências, colocadas pelo Movimento Estudantil que, no início de 1968, culminou na PUC-SP com a tomada do prédio pelo Diretório Central dos Estudantes (DCE). (Na ocasião, o prédio à rua Monte Alegre era o único e abrigava as três Faculdades que compunham a PUC: a de São Bento, a Paulista de Direito e a de Economia Coração de Jesus). Devolvido o prédio, o Departamento de Psicologia acolheu o projeto de curso que uma Comissão Paritária propôs, delegando à Comissão o acompanhamento e avaliação dos estudantes. Além do exigido, o projeto ainda acabava com duas das maiores compartimentalizações da Universidade: os professores em disciplinas e os estudantes em séries. .
Destas duas experiências resultou um jeito de trabalhar3 3 " . . . foi uma experiência que mudou todos nós. Mudei minha forma de ensinar drasticamente" , diz Sílvia em entrevista ao Projeto Debate, do CRP/São Paulo, em 2000. que nos acompanhou quando Sílvia, em 1977, assumiu a coordenação do Curso de pós-graduação em Psicologia Social. Convidada por ela a dirigir o Laboratório de Psicologia Social, desenvolvemos juntas diversos projetos (Guedes, 2004).
Mas um acontecimento em especial marcou de vez nosso plano de ensino, pesquisa e intervenção social: a invasão da PUC-SP pela polícia em 1977. Sabíamos, desde 1964, que ser Universidade não protegia esta instituição da intervenção da Ditadura. Prova disso tinha sido a tomada da Universidade de Brasília (UnB) pela polícia imediatamente após o golpe militar em abril desse ano. Já nas instituições estaduais, dependia-se para isso da conivência ou pusilanimidade de direções acadêmicas. Mas a PUC-SP, sendo particular e, principalmente, sob tutela de Dom Paulo Evaristo Arns, parecia protegida. Tanto que, desde 1981, tínhamos no quadro docente da pós-graduação importantes professores expulsos da Universidade de São Paulo (USP).
Ficava agora muito claro: enquanto durasse o governo militar4 4 A canção previa para o Brasil: Ai esta terra ainda vai cumprir seu ideal / ainda vai tornar-se um imenso Portugal. (referência à ditadura salazarista que durou 41 anos). Fado tropical, de Chico Buarque e Ruy Guerra. , nenhuma instituição servia para dar conta dos projetos de intervenção que se precisava para o plano de uma psicologia voltada à realidade brasileira. Sílvia, que já trabalhara com estudantes da graduação no que se convencionara chamar psicologia na comunidade5 5 Em entrevistas e palestras, Sílvia Lane se referiu muitas vezes à psicologia comunitária brasileira e latinoamericana como a subversão possível durante nossas ditaduras. São da CIP de 1976 os primeiros relatos na área. , uma espécie de subárea da psicologia social, ia agora mais longe: em 1978, em conjunto com Pe. Abib Andery (1981), trabalha num projeto em Osasco, que visava "desenvolver uma prática clínica com base na Psicologia Social" (Lane, 1981, p. 11). Prática para os alunos, certamente pesquisa para Sílvia. É ela que lembra sempre: "O Vigotski dizia: uma nova psicologia só se constrói fazendo pesquisa" (Lane, 2000).
Mas são os estudantes de pós-graduação, com suas pesquisas de mestrado e doutorado6 6 Doutora Aniela Ginsberg, ao deixar o Curso de Mestrado, iniciara um Doutorado para atender mestres dos três cursos: Social, Educacional e Clínica. , que vão propiciar o questionamento necessário e os dados de realidade para que Sílvia continue seu caminhar. Os primeiros trabalhos começam a aparecer, com material significativo para os estudos então conduzidos (processo grupal, consciência, identidade, ideologia, representação, interações sociais nos mais diversos ambientes...), e para os quais muito contribuíam as discussões no Laboratório, com pesquisadores das diversas áreas das ciências humanas sobre temas teórico-metodológicos. Ainda um evento marcou Sílvia neste final dos anos 1970: a realização em Lima, em 1979, do Congresso Interamericano de Psicologia, num clima tenso, de um lado pelo boicote, por estudantes e professores, a evento no qual predominava o idioma inglês, de outro pelo encontro de pesquisadores (que se tornarão grandes parceiros), em mesa por ela programada, sobre pesquisa em Psicologia Social na América Latina (Lane, 1981).
A inquietação de Sílvia nos contagiava. Nossa certeza de que o que nos interessava estava fora da Universidade nos tornara ainda mais alertas para o que ocorria fora dela. No Laboratório, e respondendo por disciplina voltada a estudos de método, a mim competia ajudar os estudantes para que seus problemas de pesquisa tivessem a ver diretamente com a realidade na qual trabalhavam. Era preciso ajudá-los a encontrar formas de tornar seus problemas de intervenção em problemas de pesquisa. Admitindo, no entanto, que estratégias metodológicas não garantem por si solução para os problemas, iniciamos, os professores, um período intenso de estudos, nos quais teoria e método se integravam. Relemos então autores como Vigostski, Politzer, Marx (autores que conhecêramos na Filosofia com Cruz Costa); conheci Leontiev e Luria, que Sílvia Lane trouxera para uma disciplina intitulada Leitura Crítica, que chegamos a ministrar juntas; fizemos um grande levantamento e lemos muito sobre as diversas posições relativamente a saídas para a chamada "crise da psicologia social" ; conhecemos as então chamadas "alternativas" metodológicas ou de procedimento propostas nas ciências sociais principalmente a observação participante, a pesquisa participativa e a história oral como método. Tudo isso se devia à compreensão de que era importante não deixar prevalecer a motivação política sobre a investigação, por exemplo, sobre a coleta sistemática de dados empíricos; ou sobre o uso de dados apenas para ilustrar teses já aceitas.
O Projeto
Num primeiro momento, conversamos sobre um curso "Psicologia Social en America Latina" , que o Latin American and Caribbean Center da Florida International University estava organizando. Chegamos também a pensar em visitar, pelo Brasil, experiências de trabalho junto a grupos nas mais diferentes comunidades. Sabíamos de vários, que poderiam constituir fonte de muito aprender. A primeira idéia parecia interessante, mas não muito nós gostaríamos mesmo de ver o que ocorria, não apenas ouvir e falar sobre. O segundo parecia impossível não encontramos nas agências financiadoras de então nenhuma brecha que permitisse isso7 7 Cabe lembrar também que nossa rotina incluia, à época, outras atividades. Além do ensino: Sílvia coordenava o Programa de Psicologia Social, fazia parte da Comissão que elaborava proposta de estatutos para criação da Abrapso e era Vice-Presidente da Apropuc (Associação dos Professores da PUC-SP). De minha parte, respondi, entre 1977 e 1981 pela direção da Faculdade de Psicologia da PUC-SP e, desde julho de 1977, participava da Comissão Paritária Nacional que promovia no país a discussão do Currículo Mínimo da Psicologia. . Mas, viajar pelo exterior parecia viável: para o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), tendo convite de Universidades estrangeiras, era possível ter aprovação para um programa de visitas (ou estágios) de estudo/pesquisa.
Nenhuma dúvida: seria então uma viagem pela América Latina Sílvia procurando parceiros para seus estudos em Psicologia Social, eu respondendo pela procura de procedimentos de pesquisa-intervenção. Enquanto Sílvia escrevia para colegas encontrados já em congressos da Sociedade Interamericana de Psicologia (desde 1973, quando o Congresso Interamericano aconteceu no Brasil), o projeto foi montado. E, se tínhamos que usar as férias para sair, em setembro/outubro de 79 já o enviávamos ao CNPq. Os países cujos convites haviam chegado em tempo foram então elencados no Projeto: Venezuela, Colômbia, México, Nicarágua, Equador, Peru.
A Viagem
Aprovado o projeto, tivemos que correr com os preparativos. Tanto, que erramos de saída: não nos demos conta de que era preciso autorização para entrar na Venezuela (por isso voltamos do aeroporto com "mala e cuia" , só pudemos sair 24 horas depois) e chegamos em Caracas no início de um feriado prolongado (não havia na cidade nenhum dos professores contatados). Esta última experiência acabou marcando um jeito adicional de aproveitar a viagem: em cada capital que visitamos, incluíamos sempre um andar pela cidade que nos permitia estar em contato com acontecimentos populares. Foi assim que tivemos chance de ver, num domingo, os usuários do Parque mais popular de Caracas; o discurso de Fidel Castro no pátio da Universidade no Dia da Juventude em Havana; e um criativo projeto de livraria popular (Caballo rojo) na praça da cidade de Lima da qual saiam os ônibus para os bairros.
Mas as visitas oficiais começavam sempre com uma reunião na Universidade de onde nos viera o convite. Contávamos rapidamente a que vínhamos e ouvíamos os projetos dos professores, a partir dos quais visitas iam sendo combinadas, para que pudéssemos conhecer de perto aqueles projetos voltados à população em comunidade, o que quer que isso pudesse significar para cada professor. Por exemplo, em Caracas, um conjunto de mulheres freqüentando um curso de "conscientização" , na Maternidade do maior hospital público. Este foi, de fato, o primeiro que visitamos e o fizemos juntas. Daí em diante, muitas vezes tínhamos que nos dividir, tantas eram sempre as possibilidades.
Detalho em especial alguns projetos, para que entendam o título que dei a este texto. E começo com este, de Eliza Jimenez, professora na Universidade Central da Venezuela. Eliza, aproveitando os feriados, no momento estava fora do país, mas deixara a equipe de sobreaviso. Assim, foi fácil encontrar as seis estudantes que nos receberam: três de psicologia, uma de enfermagem, uma de serviço social, uma da educação. De um relato muito bom, soubemos tratar-se de um curso para grávidas que vinham ao ambulatório para a primeira consulta desde a constatação da gravidez; eram então convidadas a participar de 15 encontros, num curso que as tornaria conscientes de seu papel como mulheres/mães na sociedade venezuelana. A maioria aceitava, quem sabe (disseram as meninas) apenas na expectativa do leite em pó a ganhar depois do nascimento do bebê (embora nenhuma perdesse isso se não viesse). Um curso no qual se podia ver: o respeito às participantes (por exemplo, textos em linguagem simples e muita imagem, atendendo à sua pouca escolaridade, mas completos, isto é, com referências bibliográficas acessíveis "para o caso de um dia quererem saber mais" ); a atenção à diversidade (de atividades e de materiais) necessária para mantê-las atentas e interessadas; o cuidado na especificidade e atualização de informações médicas, sociais, psicológicas. O espaço de trabalho mostrava já como nada era tranqüilo: duas salas no porão, pouco apoio dos médicos (reclamavam que as mulheres que faziam o curso ficavam questio-nadoras, arrogantes). Tivemos oportunidade de ver todo o material e conhecer detalhes do procedimento e resultados, relatados de modo que se via bem: era pesquisa no melhor sentido da palavra, produzindo conhecimento da melhor qualidade. Ao perguntar como tinham sido preparadas para o trabalho, tivemos duas surpresas: de um lado, avaliação de seus cursos universitários muito parecida com a dos nossos estudantes: mais teoria que prática, distanciamento da realidade nos estágios parecia que tudo era aprendido só no trabalho; de outro, a existência de um curso o da estudante de educação , onde tudo era diferente: "não temos aulas, não temos biblioteca, não temos professores; nós temos projetos e usamos, onde estiverem, as informações necessárias para conduzi-los" .
Claro, a visita seguinte foi a este "curso" diferente. Um curso universitário, sim, mas "experimental" . Na Universidad Simon Rodriguez, criada em 1974 por alguns professores que haviam participado dos movimentos de 68, um projeto que atenderia a uma série de reivindicações de professores e estudantes. Mas que, aos poucos, foi abandonando o projeto original ("por difícil de conduzir" ). O fato é que ainda hoje se chama Universidad Nacional Experimental Simon Rodriguez8 8 http://www.unesr.edu.ve/. Entretanto, não encontramos Caricuao entre os endereços atuais da Universidade. . Uma unidade entretanto resistira a esse retorno: a Educação. Seus professores ocuparam por quase dois anos um dos prédios da Universidade, em Caricuao, um município vizinho a Caracas. Depois de longa negociação, conseguiram da Universidade autorização para seu "ensayo" , desde que participassem do mesmo vestibular e aceitassem professores indicados pela Reitoria e pelo Ministério da Educação nas bancas que atribuiriam, aos estudantes, os títulos de graduação em Educação. O CEPAP Centro de Experimentación para el Aprendizado Permanente lembrou um pouco nossa experiência de 68 na PUC-SP. Mas com uma diferença muito importante: os projetos eram "de verdade" . Não eram projetos dos professores, eram encomendas de clientes os mais variados a direção de uma escola de ensino fundamental queria selecionar professores; uma Rádio do interior solicitava um programa sobre sexualidade, para ir ao ar diariamente; entre muitos outros9 9 Os chamados " ensayos institucionales" estão bem descritos nos Papeles de Trabajo material que relata origens, justificativa, estrutura, normas do CEPAP (s.d.) e funçáo investigativa dos ensayos, além de seus critérios de autoavaliação e política de pessoal. Papeles de Trabajo especialmente números 1 a 3. . Um "Documento de Associación con CEPAP" era assinado com o "cliente" como condição para começar um projeto. Para distribuir os estudantes pelos projetos, havia uma espécie de concurso, para o qual o estudante tinha que apresentar um projeto individual de estudo. Por exemplo: a estudante que fazia parte da equipe de Eliza Jimenez na Maternidade queria estudar sexualidade. Por isso, pediu para entrar no projeto da Rádio. Procurou em Caracas algum lugar onde poderia começar a estudar (entre outros, achou o projeto de Eliza, que tinha a vantagem de ser professora universitária e, por isso, abria a possibilidade para freqüentar uma biblioteca, no caso, a melhor nesse assunto). Aceita para o projeto, descobriu que fariam parte do seu grupo: outra colega que queria estudar sexualidade (e cujo projeto individual era bem diferente do seu), dois interessados em rádio-educativa, um interessado em educação popular e uma que queria estudar educação de mulheres. O grupo recebeu ainda mais um membro: um "facilitador" . Alguém que deveria ajudar o grupo a compatibilizar seus projetos de estudo individuais de modo a atender ao combinado com o cliente. No caso, o pedido para, em seis meses, entregar um certo número de textos sobre sexualidade, para leitura em um ou dois minutos em horário de grande audiência feminina. Ao facilitador (um dos professores da instituição) competia... sair do grupo o mais cedo possível. Quanto mais depressa fosse dispensado pelo grupo, melhor sua avaliação. O acompanhamento dos trabalhos era feito principalmente para assegurar prazos, a avaliação da qualidade cabia ao cliente. Ao final de três ou quatro anos um estudante podia pedir para ser avaliado em, por exemplo, Educação Popular ou Educação Especial. Para isso, entregava todo o material que comprovava o trabalho pessoal desenvolvido nos diversos projetos de que participara (uns seis ou sete). E indicava quanto tempo gostaria de ter para se defender (não era comum, mas houve caso de estudante que pediu dois dias...) frente a uma banca de avaliação que incluía, além de um professor do CEPAP, dois professores de outras Unidades indicados pela Reitoria, e um professor indicado pela área de Ensino Superior do Ministério da Educação.
Atendidas por dois dos coordenadores do CEPAP - Lucio Segovia (um periodista que depois trouxemos para um evento para o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira/Ministério da Educação (INEP/MEC) sobre Pesquisa participativa10 10 Seminário Nacional de Pesquisa Participativa, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), em Brasília, em 1984. Ver Em Aberto. Brasília. v. 3, n. 20, 1984. e Marcos Schoerer, saímos de lá com material para entender melhor o CEPAP, os Papeles de Trabajo, e alguns dados sobre ensaios novos que estavam sendo tentados: por exemplo, aceitando na composição dos grupos estudantes de ensino médio e, dependendo do assunto, pessoas quase sem escolarização, como um grupo popular de música do próprio bairro, que queria conhecer mais sobre a história da música da Venezuela. De minha parte, saí também com vontade de conhecer melhor os mentores destes professores. Achei um livro de Simon Rodriguez (1771-1854), um educador venezuelano para quem "a América Latina é sui-generis, sui-generis, pois, devem ser todas as suas instituições" . E para quem toda atividade educacional deve ser um " ensayo" . Descobri ainda que ele foi tutor de Simon Bolivar, "a quem muito influenciou e de quem foi amigo até morrer" . Quanto a Andrés Bello, outro dos mentores dos Coordenadores do CEPAP, soube depois que era poeta, filólogo, educador e jurista, considerado um dos principais humanistas da América do Sul e, também ele, tutor de Simon Bolívar.
Na Colômbia, já sabíamos, havia Fals Borda, não seria preciso procurar muito. Mesmo assim, tínhamos nossa reunião agendada com o Departamento de Psicologia da Universidade Nacional. Pelo taxista, logo que chegamos, descobrimos que essa era a melhor Universidade, mas que quase não formava [ profissionais] porque os alunos viviam fazendo greve. Sua filha estudava lá, mas ele achava que não deveria, se queria se formar logo... Outra surpresa: a cidade de Bogotá tinha mais Cursos de Psicologia que a de São Paulo, incluindo três em Universidades Católicas, uma Javeriana, uma de Sto Tomás, uma "simplesmente" católica e uma que diziam ser "comunista" (a Universidad Inca). Não encontramos Fals Borda, ausente do país no momento, mas conhecemos muito de seus projetos por professores que fomos encontrando. Enquanto Sílvia se reunia com professores de Psicologia Social, trabalhei com professores de disciplinas metodológicas, entre eles Henry Granada, da Universidad de Los Andes (e que recentemente encontrei na USP, em evento do Laboratório de Psicologia Social e Intervenção) e Eduardo Corrêa, da Universidad Inca (que trouxemos ao Brasil para o evento do INEP referido na nota 10 deste texto). Ainda dois pontos importantes em Bogotá: todos os projetos visitados tinham Paulo Freire como uma das referências principais; e foi lá que encontramos os trabalhos de Zuñiga, autor que nos mostrou mais claramente a importância do compromisso com um projeto de transformação social para que a pesquisa participativa fosse realmente um método novo.
De Bogotá fomos à Cidade do México. Para encontrar inicialmente Carmen Terán, que estivera com Sílvia na Mesa redonda do CIP de 1979 e que providenciou contatos importantes para projetos incríveis, entre eles os de Iztapalapa, uma das unidades da Universidad Nacional Autonoma do México (UNAM). Impressionante para nós era a viagem diária para a Universidade, cujo campus principal ficava bem longe do elegante bairro de nosso hotel: passava-se por um bairro muito, mas muito pobre, lócus de muitos dos projetos que serviam de estágio para estudantes da UNAM. Para mim, atração especial foi o conjunto de publicações didáticas da Editora da Universidade - onde encontrei muito material sobre projetos nas áreas de ciências sociais voltados para a comunidade e que trouxemos para nossos estudantes.
Do México deveríamos ir para a Nicarágua, único país da América Central que visitaríamos. Tendo evitado incluir em nosso projeto países que estavam, como o nosso, sob ditadura (por exemplo o Chile), tínhamos entretanto incluído de propósito a Nicarágua, que vivia desde 1979 sua vitória sobre o governo Somoza, cuja família viera dirigindo o país por 40 anos com apoio dos Estados Unidos. Além disso, tínhamos recebido em tempo o convite oficial de uma Universidade de lá, tal como exigido pelo CNPq. No entanto, exatamente naqueles dias, o país (re)vivia um momento muito difícil. Os jornais mexicanos falavam do recrudescimento da guerra civil travada entre o Exército Sandinista e os Contras (grupo armado pelos Estados Unidos, que acabou gerando um grande escândalo no governo Reagan). No momento, dizia-se, o governo sandinista se apressava em armar a população, para que pudesse se defender. Pareceu-nos então que o momento não era para intercâmbio científico: mesmo assim, tentamos mas não conseguimos contato telefônico com a Universidade. Decidimos então... ir a Cuba. Por nossa conta, se fosse o caso de o CNPq não autorizar nossa ida, quando fizéssemos nosso Relatório de viagem11 11 Apenas como curiosidade: nossa viagem a Cuba foi aprovada pelo CNPq. .
Na verdade, pretendíamos mesmo ir a Havana, só não tínhamos posto Cuba em nosso roteiro porque nosso governo militar (claro!) não tinha relações com esse país12 12 Outra curiosidade: ao entrar e sair de Cuba, agentes alfandegários se apressaram em nos avisar que, se quiséssemos, poderiam não carimbar nossos passaportes... (mas claro que quisemos). . Mas saíramos do Brasil com uma carta de apresentação do jornalista Fernando de Moraes para o Embaixador Cubano no México e da Venezuela com um nome para procurar na Universidade de La Habana: Fernando Gonzalez Rey. Fomos muito bem recebidas pelo Embaixador, que nos conseguiu lugares num vôo da companhia aérea cubana, nosso primeiro contato como visitantes independentes à época, apenas grupos esportivos ou delegações científicas costumavam chegar a Havana. Esta "independência" nos custou três dias até sermos recebidas pela Universidade. Claro, três dias muito bem aproveitados em visitas pela cidade, mas sem acesso a nada que não fosse público. Serviu no entanto para aprender sobre, e aproveitar, o dia-a-dia da cidade. Por exemplo, uma incrível variedade de filmes do leste europeu nos cinemas; muita atividade "em família" pais e filhos em cinema, em teatro, em restaurantes, em museus, tudo a preços muito baixos. Na Universidade fomos muito bem recebidas (embora o período fosse de férias) e o professor Gonzalez-Rey veio a ser depois um amigo e grande colaborador de nosso Programa. Muito de nossa primeira conversa foi sobre formação de psicólogos e foi experiência marcante descobrir a possibilidade de um planejamento de curso que incluía não só decisões sobre como formar mas também, tendo em vista necessidades do país, quantos formar em cada especialidade. Dada nossa experiência na direção da Faculdade, tomou muito de nossa conversa, depois, a diferença entre nossos países: imaginávamos o que ocorreria se no Brasil diminuíssemos as vagas para psicologia clínica em favor da psicologia da educação! Outra marca da visita a Cuba foi a oportunidade de encontrar traduções de livros do leste europeu e a preços incrivelmente baixos, outro exemplo de como o país investia em cultura. A propósito, foi emocionante encontrar, na Praça da Revolução, em La Habana, uma estátua em que o herói é um pensador, um revolucionário sim, mas cuja arma era a pena: José Marti (1853-1895).
Criar é a palavra-chave desta geração: o vinho, da banana: e se sai azedo, é nosso vinho. Entende-se que as formas de governo de um país devem estar de acordo com os seus elementos naturais, que as idéias absolutas, para não caírem por um erro de forma, devem tomar formas relativas; que a liberdade, para ser viável, deve ser plena e sincera: que se a república não abre os braços para todos e avança com todos, morre. (Marti, 1891).
O Equador seria mesmo uma surpresa, pois tínhamos lá apenas um contato distante, um professor que trabalhava em orientação educacional13 13 Contato feito pela Professora Maria Regina Malufe - do Programa de Psicologia da Educação da PUC-SP e que chegou a participar conosco do plano da viagem. Entretanto, infelizmente isso acabou não sendo possível. . Na chegada a Quito, a primeira delas: o caminho do aeroporto para o hotel estava bloqueado; muitos pneus queimavam ainda na rua. "São os meninos que estão protestando; desta vez por causa do aumento do custo de vida." Descobrimos, então, pelo taxista, que os alunos do maior colégio masculino da cidade eram sempre os iniciadores das grandes manifestações por condições de vida, de trabalho, de educação, de tudo. Não eram os trabalhadores, não eram os professores, não eram os alunos da universidade; eram os alunos de um colégio masculino. E que o colégio era, sim, só masculino, mas havia também um grande colégio só feminino. "Olha a ordem para o progresso [ lembrou Sílvia] , como o Cruz Costa dizia: o Equador é o país que melhor assimilou o positivismo." Mas, e essa separação sobrevivia ainda? E como se explicaria esse movimento dos secundaristas? Para nossa sorte, o professor que nos recebeu era Orientador nesse Colégio e nos convidou para um evento que dirigia lá, exatamente na semana em que chegamos. Uma espécie de "Semana de formação de líderes" . Uns 50 estudantes das classes mais adiantadas, representando suas classes e indicados por seus professores, formavam uma turma especial que receberia, no dia em que pudemos participar como observadoras, um grupo de convidados que incluía quatro ex-alunos do Colégio, eminentes homens políticos de expressão nacional: um ex-presidente, um senador governista, um deputado da oposição, um jornalista político. Assistimos a um impressionante debate, no qual os estudantes se mostraram bem preparados - para perguntar mas também para rebater. Este foi outro dos projetos que visitamos juntas, uma experiência marcante, cuja análise tomou muito de nossas conversas à noite, no hotel, quando trocávamos impressões do que cada uma vira ao longo do dia.
Lima foi um excelente fecho para nossa viagem. Além dos encontros com os Departamentos de Psicologia da Universidad Nacional Mayor de San Marcos e da Universidad Catolica del Peru, e os projetos que daí pudemos conhecer, tivemos oportunidade de visitar o Centro de Estudos Superiores del Sector Social (Cesial), com um Programa de Mestria en Administración muito marcado pela presença da psicologia social de Gladys Montecino, chilena exilada radicada em Lima, com quem Sílvia mantinha já correspondência, e o Consejo Latinoamericano y del Caribe para Autogestión (CLA), que à época reunia 14 países e para o qual "el desarrollo de la autogestiõn no se limita a la empresa sino que abarca todos los sectores de la sociedad donde existam formas de opresión y explotación." Enquanto Sílvia se reunia com professores, fui conhecer um projeto desafiante: uma empresa de serviço a segunda empresa de ônibus, em porte, da cidade de Lima, formada pelo conjunto de antigas pequenas empresas falidas; era uma típica empresa autogerida, conforme lei à época. Entre o que pude aprender dessa visita em especial entrevistando o correspondente a um chefe de Recursos Humanos, foi muito significativo, desde o fato de ser o seu um dos dois ou três únicos cargos da empresa que, por definição, não podiam ser atribuídos a um funcionário. Antes mesmo de sair de Lima, na suposição de que poderia ser importante para nossos estudantes, chegamos a assinar acordos para intercambiar com o CLA pessoal na área de autogestão. Infelizmente nenhum deles pôde aproveitar a oportunidade. Mas trouxemos de lá muito material e durante bom tempo mantivemos estreita correspondência - visando aprofundar o que, em carta, nos dizia o Diretor do CLA: "contrastar los aportes academicos con los avances en la practica de creación del movimiento autogestionario a nivel regional" (Barrios Napuri, 1983). Mas ainda outro projeto para a chamada classe trabalhadora nos esperava e o encontramos por acaso. Numa pequena livraria chamada Caballo Rojo, numa praça muito movimentada de Lima (início de pontos de ônibus para bairros distantes da cidade), encontramos livros, livretos, folhetos sobre os mais diversos assuntos, de diferentes procedências (inclusive universidades) mas, todos, voltados especialmente à formação (continuada, diríamos hoje) do trabalhador, mesmo aqueles com muito pouca escolaridade. Infelizmente, não havia mais tempo para procurar os responsáveis pelo projeto, por isso apenas escolhemos algum material de cada tipo e procedência, ao tempo em que observávamos os compradores, conferindo ainda quão adequado a uma população trabalhadora era o material e até seu custo.
Implicações
Não é fácil dizer das implicações deste aprender. No Relatório ao CNPq, contávamos que o aproveitamento da viagem incluía o partilhar das descobertas com colegas, e o fizemos levando relatos a eventos (para começar, no nosso próprio Programa, em seguida à Abrapso). E com nossos estudantes, claro, para quem coletamos muito material bibliográfico e de cujas pesquisas nos lembrávamos todo o tempo: um certo procedimento, um jeito de focar o problema, uma nova forma de aproximação à comunidade, um particular delineamento para organização e análise de dados...
Para se ter idéia do tanto que aprendemos, cabe dizer que decidimos fazer relatórios separados para o CNPq. Foi um momento importante para avaliarmos a experiência e organizarmos o material trazido. Mas a principal preocupação nesse momento era pensar a programação de nossas disciplinas, as atividades do Laboratório de Psicologia Social, nosso trabalho como orientadoras - de modo a melhor repartir com os estudantes o que pudemos aprender com a viagem. Referências bibliográficas em teses e dissertações que se seguiram podem talvez dizer de um possível aproveitamento do material. Quanto ao mais, caberia verificar se, de fato, mudamos e em quê. Como diz Sílvia Lane (apud Sawaia, 2002) " [ tudo] nos inspirou na reformulação da práxis da Psicologia Social e na nossa compreensão da metodologia de pesquisa" (p. 44) na área
Notas
Recebido: 03/07/2007
1ª revisão: 30/07/2007
Aceite final: 14/09/2007
Maria do Carmo Guedes é graduada em Filosofia e especialista em Psicologia Social e Experimental pela Universidade de São Paulo (USP), doutora em Ciências Humanas - Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora titular da PUC-SP. Endereço para correspondência: Rua João Ramalho, 301, Perdizes, São Paulo, SP, 05008-001. mcguedes@pucsp.br
- Andery, A. A. (1981). Psicologia na comunidade no Brasil. In Associação Brasileira de Psicologia Social. Anais do I Encontro de Psicologia na Comunidade São Paulo, SP: Abrapso.
- Barrios Napuri, C. (1983). Correspondência, informando, entre outros, a III Conferencia Internacional sobre autogestión y participación en America Latina y el Caribe, a se realizar no México em junho de 1984.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
26 Out 2007 -
Data do Fascículo
2007
Histórico
-
Aceito
14 Set 2007 -
Revisado
30 Jul 2007 -
Recebido
03 Jul 2007