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Triagem neonatal: realidade do estado do Ceará

Neonatal screening: reality of Ceará, Brazil

RESUMO

Este artigo objetivou analisar o perfil da cobertura do Programa de Triagem Neonatal no Estado do Ceará em 2007 por meio de um estudo transversal, quantitativo, realizado de julho a agosto de 2010 com base no Sistema de Informação de Nascidos Vivos, no número de testes de triagem neonatal informado pelo Laboratório Central de Saúde Pública e entrevista no Serviço de Referência de Triagem Neonatal. Os 184 municípios pesquisados apresentaram heterogeneidade na sua cobertura. Alguns deles atingiram coberturas superiores a 100,00%, enquanto 84,23% apresentaram percentual inferior ao recomendado pelo Ministério da Saúde para as doenças metabólicas fenilcetonúria e hipotireoidismo congênito.

PALAVRAS-CHAVE:
Triagem neonatal; Recém nascido; Doenças metabólicas

ABSTRACT

The article aimed to analyze the profile of the coverage of the National Neonatal Screening Program in the State of Ceará, Brazil, in 2007, by a cross-sectional, quantitative study, conducted between July and August of 2010, based on the Information System of Live Newborns, number of neonatal screening tests reported by the Central Public Health Laboratory and interview in the Reference Service of Neonatal Screening. The 184 municipalities researched are heterogeneous in their coverage. Some of them achieved coverage of over 100.00%, while 84.23% showed lower than recommended by the Ministry of Health for metabolic diseases phenylketonuria and congenital hypothyroidism.

KEYWORDS:
Neonatal screening; Infant, newborn; Metabolic diseases

Introdução

O Programa de Triagem Neonatal (PTN) foi instituído para todo o território nacional por força da Portaria n° 822, de junho de 2001. Apesar de atualmente já existirem testes para a detecção precoce de várias outras doenças, até o momento são realizadas pesquisas somente sobre hipotireoidismo congênito (HC), fenilcetonúria (PKU), anemia falciforme (AC) e fibrose cística (FC) em alguns estados (BRASIL, 2001BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n° 822/GM de 06 de junho de 2001. Disponível em: <http://dtr2001.saude.gov.br/sas/PORTARIAS/Port2001/GM/GM-822.htm>. Acesso em: 21 abr. 2011,
http://dtr2001.saude.gov.br/sas/PORTARIA...
).

Na década de 1970, iniciou-se a pesquisa do HC, mediante a dosagem do hormônio tirotrofina (thyroid, stimulating hormone — TSH), utilizando-se o mesmo material colhido para a pesquisa da PKU. Desde então, milhares de crianças são beneficiadas com a prevenção da deficiência mental, com a realização do Teste de Triagem Neonatal (ALMEIDA et al., 2003ALMEIDA, A.M. et al. Avaliação do Programa de Triagem Neonatal na Bahia no ano de 2003, Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, Recife, v. 6, n. 1, jan./mar. 2006, p. 85-91.).

A Portaria 822 determina as competências e atribuições relativas à instituição/gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), a ser efetivada cm três fases cm virtude dos diferentes níveis de organização das redes assistenciais nos estados, da variação do percentual de cobertura dos nascidos vivos, da atual triagem neonatal e da diversidade das características populacionais do país (BRASIL, 2001BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n° 822/GM de 06 de junho de 2001. Disponível em: <http://dtr2001.saude.gov.br/sas/PORTARIAS/Port2001/GM/GM-822.htm>. Acesso em: 21 abr. 2011,
http://dtr2001.saude.gov.br/sas/PORTARIA...
).

Para a habilitação em cada fase, o Estado ou Distrito Federal deve cumprir alguns critérios estabelecidos nesta portaria, no que diz respeito à rede de coleta, ao serviço de referência, ao acompanhamento e tratamento das doenças e ao compromisso de tentar atingir coberturas de 100% (BRASIL, 2005BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada. Manual de normas técnicas e rotinas operacionais do Programa Nacional de Triagem Neonatal. 2. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.).

Uma das exigências da portaria é a criação de um Serviço de Referência em Triagem Neonatal (SRTN), responsável pelo cumprimento de todo o processo, incluindo a coleta, confirmação diagnostica, acompanhamento e tratamento dos casos positivos detectados. Deve dispor, ainda, em sua estrutura, de uma equipe multiprofissional especializada no atendimento ao recém-nascido com doenças metabólicas (BRASIL, 2005BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada. Manual de normas técnicas e rotinas operacionais do Programa Nacional de Triagem Neonatal. 2. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.).

Este programa ocupa-se da detecção, confirmação diagnóstica, acompanhamento e tratamento dos casos suspeitos de quatro doenças, conforme as fases de implantação dessa portaria, com suas respectivas patologias. Na fase 1, realiza-se pesquisa para PKU e HC; na 2, para PKU, HC e para as hemoglobinopatias; na 3, além destas, para FC — apenas quatro Estados do Brasil (Paraná, Santa Catarina, Minas Gerais e Espírito Santo) encontram-se habilitados para esta fase (BRASIL, 2005BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada. Manual de normas técnicas e rotinas operacionais do Programa Nacional de Triagem Neonatal. 2. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.).

Segundo Botler et al. (2010, p. 496)BOTLER, J. et al. Triagem neonatal - o desafio de uma cobertura universal e efetiva. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n, 2, mar. 2010, p. 493-508,,

[...] as maiores coberturas se encontram nos estados credenciados para a fase III e o inverso se dá com aqueles credenciados para a fase I. A transição epidemiológica contribuiu para o êxito dos PTN. Regiões mais desenvolvidas têm coberturas e momento de coleta mais adequados. No Brasil, a iniciativa do governo ampliou o acesso ao teste, mas coletas tardias indicam a necessidade de ações educativas e de organizações profissionais na definição de diretrizes específicas.

Os critérios para a evolução das fases, de acordo com Carvalho et al. (2008, p. 89)CARVALHO, M.D.B. et al. Neonatal Screening Program coverage in Maringá (PR), 2001 to 2006. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 21, n. 1, jan./mar. 2008, p. 89-93., baseiam-se nas coberturas alcançadas de cada estado, tais como as superiores a 50 e 70%, que permitem triagem para hemoglobinopatias e fibrose cística, respectivamente.

Em 2007, o Ceará e mais 11 estados do Brasil ainda se encontravam na fase 1 do PTN. Somente em junho de 2010, o Ceará foi habilitado na fase 2, por meio da Portaria n° 1,855, de 12 de julho de 2010, publicada no Diário Oficial da União, passando, então, a executar a triagem para as hemoglobinopatias, incluindo a anemia falciforme.

O Teste de Triagem Neonatal é um conjunto de exames realizados para detectar alterações no metabolismo. Na verdade, eles fazem parte de um screening (peneiramento, busca) neonatal e são popularmente chamados de 'Teste do Pezinho', pois a coleta do material é feita no calcanhar da criança (HOROVITZ et al., 2005HOROVITZ, D.D.G. ; LLERENA JR, J.C.; MATOS, R.A. Atenção aos defeitos congênitos no Brasil: panorama atual. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v 21, n.4, p. 1055-1064, jul./ago. 2005.; ALVAREZ FUMERO, 2003FUMERO, R.A. Síndrome de fenilcetonuria materna. Revista Cubana de Obstetrícia y Ginecologia, Habana, v. 29, n. 3, 2003.).

A coleta neste local se dá pela inervação e por se tratar de sangue periférico. O exame pode ser realizado entre o 3° e 30° dia de vida, preferencialmente entre o 3º e o 7º. O procedimento correto durante a realização da coleta de sangue cm papel-filtro e o rápido encaminhamento da amostra ao Laboratório Centrai de Saúde Pública (LACEN) são condições essenciais para o sucesso do PTN. Quando este período não é respeitado, podem ocorrer falhas no diagnóstico (MARTON DA SILVA; LACERDA, 2003MARTON DA SILVA, M.B.G.; LACERDA, M.R. "Teste do pezinho": por que coletar na alta hospitalar? Revista Eletrônica de Enfermagem, Goiânia, v. 5, n. 2, 2003, p. 60-64.; MENDONÇA et al. 2009MENDONCA, A.C. et al. Muito além do "Teste do Pezinho". Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia, São Paulo, v. 31, n. 2, mar./abr. 2009, p. 88-93.).

A PKU é doença genética, configurada no fato de que a criança não tem a enzima que promove a quebra do aminoácido fenilalanina, existente em todas as formas de proteína da alimentação humana (carne, leite, ovos etc). Com isso, a fenilalanina se acumula no sangue e tecidos. Este excesso provoca lesões graves e irreversíveis no Sistema Nervoso Centrai (retardo mental) (LEÁO; AGUIAR, 2008LEAO, L.L.; AGUIAR, M.J.B. Triagem neonatal: o que os pediatras deveriam saber. Jornal de Pediatria, Porto Alegre, v. 84, n. 4, ago. 2008, p. S80 S90.).

O nível de fenilalanina no sangue é superior a 10 mg/dL ou 600 µmol/L. De acordo com os níveis de fenilalanina, classificam-se como fenilcetonúria leve os casos que se situam entre 10 (600 µmol/L) e 20 mg/dL (1.200 µmol/L), e como fenilcetonúria clássica os com níveis acima de 20 mg/dL (1.200 µmol/L). Valores entre 4 mg/dL (240 µmol/L) e 10 mg (600 µmol/L) são encontrados nas hiperfenilalaninemias transitória ou permanente, dependendo da evolução, e não necessitam tratamento dietético. É necessário, no entanto, ter atenção com o aumento de fenilalanina em indivíduos do sexo feminino, pois a hiperfenilalaninemia permanente, tanto quanto a fenilcetonúria, pode causar nos filhos o quadro reconhecido como fenilcetonúria materna, com complicações tipo microcefalia, retardo mental e cardiopatia congênita (LEÃO; AGUIAR, 2008LEAO, L.L.; AGUIAR, M.J.B. Triagem neonatal: o que os pediatras deveriam saber. Jornal de Pediatria, Porto Alegre, v. 84, n. 4, ago. 2008, p. S80 S90.).

Esta doença metabólica, apesar da baixa prevalência (média mundial em torno de 1:15.000 nascidos vivos), apresenta graves efeitos sobre o desenvolvimento do sistema nervoso quando não tratada adequadamente e no momento oportuno, O acúmulo de fenilalanina tem efeitos tóxicos sobre o sistema nervoso em formação, levando ao retardo mental, que pode ser evitado com uma dieta precoce específica com baixos teores deste aminoácido (BOTLER, 2010BOTLER, J. et al. Triagem neonatal - o desafio de uma cobertura universal e efetiva. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n, 2, mar. 2010, p. 493-508,).

Assim, a triagem neonatal do recém-nascido (RN), principalmente para fenilcetonúria, é uma necessidade, pois os sinais clínicos da doença não aparecem senão após o sexto mês de vida da criança, quando o dano cerebral já é irreversível em algum grau (LEÃO, AGUIAR, 2008LEAO, L.L.; AGUIAR, M.J.B. Triagem neonatal: o que os pediatras deveriam saber. Jornal de Pediatria, Porto Alegre, v. 84, n. 4, ago. 2008, p. S80 S90.).

A prevalência mundial para PKU é de 1:12.000 RNs. No Brasil, os dados estatísticos ainda são incompletos, visto que a triagem não ocorre uniformemente em todos os estados (BRASIL 2005BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada. Manual de normas técnicas e rotinas operacionais do Programa Nacional de Triagem Neonatal. 2. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.; MARTON DA SILVA; LACERDA, 2003MARTON DA SILVA, M.B.G.; LACERDA, M.R. "Teste do pezinho": por que coletar na alta hospitalar? Revista Eletrônica de Enfermagem, Goiânia, v. 5, n. 2, 2003, p. 60-64.).

Em pesquisa realizada por Brandalize e Czeresnia (2004, p. 303)BRANDALIZE, S.R.C.; CZERESNIA, D. Avaliação do programa de prevenção e promoção da saúde de fenilcetonúricos. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 38, n. 2, abr. 2004, p. 300-306. sobre o tratamento em crianças portadoras de fenilcetonúria residentes no estado do Paraná, em 2001, revelou sua eficiência (93,5% dos casos tratados precocemente). As crianças analisadas apresentaram desenvolvimento de acordo com os parâmetros de normalidade referenciados na literatura. O tratamento foi iniciado no primeiro mês em 71,9%, Deve-se considerar que, sem tratamento adequado, todas elas teriam inevitavelmente sequelas motoras e cognitivas graves.

O HC é um distúrbio causado pela produção deficiente de hormônios da tireóide, geralmente em decorrência de um defeito na formação da glândula ou de um problema bioquímico ocorrente na síntese, dos hormônios tireoidianos, fundamentais para o adequado desenvolvimento do sistema nervoso, A sua deficiência pode provocar lesão grave e irreversível, levando ao retardo mental. Se instituído precocemente, com administração de T4, o tratamento é eficaz, evitando as sequelas (FRANÇA; DOMINGOS, 2008FRANÇA, S.N.; DOMINGOS, M.T. Triagem neonatal do hipotireoidismo congênito: novas conquistas... novos desafios... Arquivos Brasileiros de Endocrinologia & Metabologia, São Paulo, v. 52, n. 4, jun. 2008, p. 579-580.; SILVA et al., 2006SILVA, W.S. et al. Avaliação da cobertura do programa de triagem neonatal de hemoglobinopatias em populações do Recôncavo Baiano, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 22, n. 12, dez. 2006, p. 2561-2566.; RAMALHO; VALIDO; AGUIAR-OLIVEIRA, 2000RAMALHO, R.J.R.; VALIDO, D.P.; AGUIAR-OLIVEIRA, M.H. Avaliação do programa de triagem para o hipotireoídismo congênito no estado de Sergipe. Arquivos Brasileiros de Endocrinologia & Metabologia, São Paulo, v.44, n. 2, abr. 2000, p. 157-161,.).

A maioria dos neonatos com HC é, geralmente, assintomática até o terceiro mês de vida, mesmo com o dano cerebral já ocorrendo progressivamente. Quando não tratados precocemente, são acometidos de retardo mental de graus variáveis, podendo ocorrer falência parcial ou total do desenvolvimento da glândula tireóide, essencial para o crescimento físico e neurológico normal (FRANCA; DOMINGOS, 2008).

A prevalência mundial para HC em 2003 foi de 1:2.500 nascidos-vivos. Dados do Centro de Triagem Neonatal de Porto Alegre (RS) de dezembro de 2000 apontam que a frequência encontrada para HC foi de 1:3.500 nascidos-vivos (SILVA et al., 2006SILVA, W.S. et al. Avaliação da cobertura do programa de triagem neonatal de hemoglobinopatias em populações do Recôncavo Baiano, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 22, n. 12, dez. 2006, p. 2561-2566.).

O Programa de Triagem Neonatal do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (SP) permitiu que o início do tratamento das crianças afetadas para hipotireoidismo congênito diminuísse de 70,7±40,7 dias de vida para 25,9±l4,2 dias, sendo realizado, em grande parte das vezes, dentro do tempo considerado ideai, ou seja, até a segunda semana de vida (MAGALHÁES et al., 2009).

Em 2001 e 2002, o PTN também realizou levantamento sobre a prevalência dessa patologia nos Estados brasileiros. Em 1,522 milhão de exames, a frequência encontrada foi de 1:3.694 em 2001 e de 1:3.808 em 2002 (SILVA et al., 2006SILVA, W.S. et al. Avaliação da cobertura do programa de triagem neonatal de hemoglobinopatias em populações do Recôncavo Baiano, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 22, n. 12, dez. 2006, p. 2561-2566.).

A população brasileira caracteriza-se por apresentar grande heterogeneidade genética, oriunda da contribuição que lhes deram os seus grupos raciais formadores e dos diferentes graus de miscigenação nas várias regiões do país. As hemoglobinopatias são as desordens hereditárias mais comuns nos seres humanos, sendo as mais frequentes as hemoglobinas S e C (HbS e HbC) (SOMMER et al., 2006SOMMER, CK. et al. Triagem neonatal para hemoglobinopatias: experiência de um ano na rede de saúde pública do Rio Grande do Sul, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 22, n. 8, ago. 2006, p. 1709-1714.).

Para Holsbach et al. (2008, p. 279)HOLSBACH, D.R. et al. Ocorrência de hemoglobina S no estado de Mato Grosso do Sul, Brasil. Jornal Brasileiro de Patologia e Medicina Laboratorial, Rio de Janeiro, v. 44, n. 4, ago. 2008, p. 277-282.,

[...] o termo 'doença falciforme' é usado para determinar um grupo de afecções genéticas caracterizadas pelo predomínio da HbS. Essas alterações incluem a anemia falciforme (HbSS) e as duplas heterozigoses, como HbSC. A heterozigose para HbS define uma situação clinicamente benigna em que o indivíduo apresenta as hemoglobinas A e S (HbAS).

A prevalência da HbS no Paraná é menor do que nas regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste do país. Origem étnica da população, óbitos fetais e casamentos preferenciais podem estar contribuindo para não haver maior número de homozigotos no estado (WATANABE et al., 2008WATANABE, A.M. et al. Prevalência da hemoglobina S no Estado do Paraná, Brasil, obtida pela triagem neonatal. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 5, mai. 2008, p. 993-1000.).

As doenças falciformes foram introduzidas no continente americano principalmente pelo comércio de escravos provenientes da África, a partir do século XVI. Dados históricos daquele estado mostram que houve grande afluxo de escravos provenientes do oeste e centro do continente, trazendo grande heterogeneidade étnica, cultural e social, além de diferenças genéticas entre os próprios indivíduos portadores da doença falciforme (RODRIGUES et al., 2010RODRIGUES, D.O.W. et al. Diagnóstico histórico da triagem neonatal para doença falciforme. Revista de APS. Juiz de Fora, v. 13, n. 1,jan./mar. 2010, p. 34-45.),

Estimativas sugerem que em todo o mundo nasçam 250 mil crianças por ano com anemia falciforme, a mais conhecida das alterações hematológicas hereditárias no homem e também a doença hereditária monogênica mais comum no Brasil. A frequência total estimada de portadores para as duas hemoglobinas na população do Recôncavo Baiano foi de 13,0% e nos recém-nascidos de 8,5% em 2001, 6,5% em 2002 e 11,6% em 2003 (SILVA et al., 2006SILVA, W.S. et al. Avaliação da cobertura do programa de triagem neonatal de hemoglobinopatias em populações do Recôncavo Baiano, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 22, n. 12, dez. 2006, p. 2561-2566.).

Conforme argumentam DINIZ et al. (2009, p. 188)DINIZ, D. et al. Prevalência do traço e da anemia falcíforme em recém-nascidos do Distrito Federal, Brasil, 2004 a 2006. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, n. 1, Jan. 2009, p. 188-194., a doença falciforme encontra-se dentre as doenças genéticas de maior importância epidemiológica no Brasil e no mundo. A morbidade associada à anemia falciforme exige acesso a cuidados médicos, assim como condições adequadas de moradia, alimentação e cuidados gerais de saúde. A letalidade pode atingir até 25% das crianças nos primeiros cinco anos de idade. Segundo estes autores, em 37.984 exames para hemoglobinopatias em 2006, no Distrito Federal, a cobertura foi de 83,4%.

A FC, ou mucoviscidose, é uma doença genética autossômica recessiva. Há mais de mil mutações descritas responsáveis pela transmissão da doença, cuja incidência varia de 1:2.000 a 1:10.000 entre povos de origem caucasóide, em que a doença se manifesta com mais frequência (SOUZA et al., 2002SOUZA, C.F.M.; SCHWARTZ, I.V.; GIUGLIANI, R. Triagem neonatal de distúrbios metabólicos. Ciência & Saúde Coletiva, Sâo Paulo, v. 7, n. 1, 2002, p. 129-137.),

No Brasil, estima-se que a incidência da doença seja de 1:10.000 nascidos vivos, embora haja variação na frequência das mutações em diferentes regiões geográficas, o que possivelmente refletiria também em diferente prevalência da doença (BRASIL, 2005BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada. Manual de normas técnicas e rotinas operacionais do Programa Nacional de Triagem Neonatal. 2. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.).

Nos EUA e países da Europa, seu diagnóstico é feito precocemente, antes do primeiro ano de vida, o que proporciona a essas crianças serem tratadas e monitoradas quanto a variáveis que influenciam diretamente no prognóstico da doença, como, por exemplo, o acompanhamento da curva pondero-estatural e a presença de colonização de vias aéreas superiores por patógenos, que têm relação íntima com pior prognóstico da doença. (SANTOS et al., 2005, p. 242SANTOS, G.P.C. et al. Programa de triagem neonatal para fibrose cística no estado do Paraná: avaliação após 30 meses de sua implantação. Jornal de Pediatria, Rio de Janeiro, v. 81, n. 3, mai./ jun. 2005, p. 240-244.).

Na triagem neonatal deve-se assegurar o cumprimento de todas as etapas envolvidas na coleta de sangue, no envio de amostras, na análise de resultados, na convocação de casos suspeitos, na confirmação do diagnóstico e no início do tratamento. Para que ocorra sem erros e no menor tempo possível, são necessárias sincronia e agilidade dos serviços de triagem neonatal. Além disso, demanda também boa parcela de envolvimento da sociedade, sendo de fundamental importância a avaliação periódica de sua qualidade.

Assim, este estudo objetivou analisar o perfil de cobertura do PTN no Ceará.

Metodologia

Este estudo é transversal, descritivo, com abordagem quantitativa e foi realizado entre os meses de julho e agosto de 2010. Utilizou-se como amostra o total de recém-nascidos, informado pelo Sistema de Informação de Nascidos Vivos (SINASC), nos municípios localizados no Ceará entre janeiro e dezembro de 2007.

A coleta de dados sucedeu-se em três etapas. Na primeira, os dados de nascimento por município foram obtidos por meio do acesso eletrônico aos relatórios do Tab Net (http://www.saude.ce.gov.br); na sequência, as informações referentes ao total de exames, bem como os casos positivos para fenilcetonúria e hipotireoidismo congênito foram coletadas no Banco de Dados do LACEN; e, por último, houve aplicação de entrevista semiestruturada, contendo perguntas abertas, respondida pelo profissional responsável pelo SRTN. As questões tinham relação com as dificuldades enfrentadas por este serviço, tais como: coleta de material, envio de amostras para o LACEN, início do tratamento tardio e adesão ao tratamento.

As variáveis referentes à primeira e segunda etapas foram: total de recém-nascidos no Ceará em 2007, por município; percentual de cobertura para o Teste do Pezinho, por município e microrregional de saúde; e frequência das doenças metabólicas fenilcetonúria e hipotireoidismo congênito,

Para o cálculo da cobertura, foi utilizada a fórmula: cobertura = n° de rastreados x 100/n° nascidos vivos (NV). As frequências de PKU e HC foram verificadas com base no número de casos confirmados de ambas as doenças pelo número de testes.

Os achados foram descritos por meio de frequências absoluta e relativa para as variáveis categóricas e dispostos em tabelas (Excel), bem como foram descritas as inconsistências relatadas pelo profissional do SRTN.

O projeto foi desenvolvido com recursos próprios dos autores, não havendo qualquer conflito de interesse, e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Infantil Dr, Albert Sabin, sob Parecer n° 049/08, com anuência das instituições envolvidas: LACEN e HIASS, com atenção às prescrições da Resolução n° 196/96 do Conselho Nacional de Saúde -Ministério da Saúde do Brasil (CNS-MS), a qual regula as pesquisas in anima móbil.

Resultados e discussão

Os 184 municípios do Ceará dispõem, em sua estrutura organizacional, de postos de coleta para o Teste do Pezinho, e obedecem a um fluxo de envio do material para o LACEN.

O estado encontra-se dividido em 21 microrregióes e 3 macrorregiões de saúde, São espaços territoriais formados por conjuntos de municípios integrados e interdependentes que buscam soluções para os seus problemas.

Esses locais foram definidos mediante: proximidade da malha viária, deslocamento da população aos serviços de saúde, capacidade máxima dos serviços de saúde e disposição política para pactuação. Os critérios contribuíram para o alcance ou não da cobertura por município.

Por existirem controvérsias em relação ao limite geográfico entre os municípios do estado, discrepâncias foram observadas entre o total de recém-nascidos informados pelo SINASC, por município, e o número de Testes do Pezinho realizados, também por município, prejudicando, assim, a análise proposta e dificultando a indicação de sugestões, que poderiam nortear intervenções no sentido de melhoria da cobertura.

O SINASC informou que em 2007 nasceram 132,460 crianças, Do total, 106.716 (80,56%) realizaram o Teste do Pezinho, segundo informações do LACEN.

Conforme a Tabela 1, na distribuição por intervalos do percentual de cobertura pelos municípios do Ceará em 2007 observou-se que 84,23% (n=155) dos municípios apresentaram percentuais de cobertura inferiores à sugerida pelo Ministério da Saúde, que é de 100%, enquanto 15,76% (n=29) atingiram coberturas superiores a 100%. Oscilações foram percebidas, e justificadas, talvez pela indefinição de limites territoriais.

Tabela 1
Distribuição do percentual de cobertura por intervalo, dos municípios do Estado do Ceará em relação à realização do Teste do Pezinho em 2007

Todas as Coordenadorias Regionais de Saúde (CRES), mais conhecidas como microrregionais, enfrentam os mesmos problemas relativos à situação limítrofe entre os municípios. Conforme a Tabela 2, elas, representadas pelos municípios de Aracati (7a CRES) e Limoeiro do Norte (10a CRES), foram as únicas que atingiram percentual de cobertura igual e/ou superior a 100%.

Tabela 2
Desempenho das Coordenadorias Regionais de Saúde do Estado do Ceará em relação à cobertura do Teste do Pezinho em 2007

Ainda referente à Tabela 2, os piores desempenhos deram-se nas microrregionais 1a, representada por Fortaleza, e 14a, correspondente a Tauá, com cobertura entre 70 e 75%.

É possível que esse indicador esteja subestimado, já que a rede hospitalar privada também oferece o Teste do Pezinho à sua clientela, acreditando-se que existam inconsistências na articulação e repasse dessas informações para a esfera municipal.

A frequência encontrada neste estudo para as doenças metabólicas foi de 1:12.260 RN para fenilcetonúria e de 1:2.169 RN para hipotireoidismo congênito (Tabela 3).

Tabela 3
Distribuição das frequências das doenças metabólicas no Estado do Ceará em 2007 versus as frequências oficiais

Os resultados, quando comparados às estatísticas oficiais, apresentam pouca diferença, tanto para PKU quanto para HC, já que as frequências referidas no Manual de Normas Técnicas do PTN são de 1:12.000 RN e 1:2.500 RN para PKU e HC, respectivamente (BRASIL, 2005BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada. Manual de normas técnicas e rotinas operacionais do Programa Nacional de Triagem Neonatal. 2. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.).

Outros estudos realizados pelo PTN revelam frequência de 1:16.691 e 1:24.310 para PKU, em 2001 e 2002, respectivamente (RAMOS et al., 2003RAMOS, A.J.S. et al. Avaliação do programa de rastreamento de doenças congênitas em Campina Grande PB, Brasil. Arquivos Brasileiros de Endocrinologia & Metabologia, São Paulo, v. 47, n. 3, jun. 2003, p.280-284.). Em 2001, a Sociedade Brasileira de Triagem Neonatal informou frequência de 1:15.500 para PKU,

Quanto ao HC, estudos apontam frequência de 1:3.694 cm 2001 e 1:3.808 cm 2002, O Centro de Triagem Neonatal de Porto Alegre encontrou frequência de 1:3.500 RN em 2000 (RAMOS et al., 2003RAMOS, A.J.S. et al. Avaliação do programa de rastreamento de doenças congênitas em Campina Grande PB, Brasil. Arquivos Brasileiros de Endocrinologia & Metabologia, São Paulo, v. 47, n. 3, jun. 2003, p.280-284.).

As principais dificuldades enfrentadas e relatadas na entrevista pelo SRTN do estado do Ceará foram: coleta do material com período superior a 30 dias de vida; procedimentos não obedecendo ao Manual de Técnicas; tratamentos com início tardio e falta de adesão ao tratamento.

Para que haja prevenção efetiva, a alta hospitalar precoce (antes de o bebe completar 48 horas de vida) deve ser evitada. Recomenda-se que a coleta seja realizada antes da alta, e que o bebê tenha mamado e metabolizado o suficiente para não apresentar resultado de exame falso/normal para PKU, A qualidade das amostras para o Teste do Pezinho é um fator essencial para a eficácia e a eficiência do PTN (MARTON, LACERDA, 2003; BACKES et al., 2005BACKES, C.E. et al. Triagem neonatal como um problema de saúde pública. Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia, São José do Rio Preto, v. 27, n. 1, 2005, p. 43-47.).

Conclusão

A disponibilidade de informação, apoiada em indicadores válidos e confiáveis, é condição essencial para a análise da situação encontrada, assim como para a tomada de decisões baseadas em evidências e a programação de ações que levem a se alcançar a meta estabelecida.

O Ceará atingiu cobertura de 80,56%, inferior à sugerida pelo PTN, que é de 100%, tendo os seus 184 municípios apresentando heterogeneidade em suas coberturas. O alcance dessa cobertura justificou a habilitação do estado na fase II do PTN, em 2010.

No Brasil, a taxa de cobertura é bastante variável. Santa Catarina, por exemplo, apresentou índice de 91,4% em 1997, enquanto há estados com coberturas muito baixas, como Paraíba (apenas 32,2% dos nascidos vivos, com rastreamento em 2001 e 2002), e outros com coberturas intermediárias (71,5%), como é o caso de Sergipe (MAGALHÁES et al., 2009).

No Paraná, a cobertura populacional do Teste do Pezinho vem aumentando progressivamente, variando de 86,6% em 1996 para 99,1% em 2001, enquanto a cobertura nacional de rastreamento é de aproximadamente 50% dos recém-nascidos (BRANDALIZE; CZERESNIA, 2004BRANDALIZE, S.R.C.; CZERESNIA, D. Avaliação do programa de prevenção e promoção da saúde de fenilcetonúricos. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 38, n. 2, abr. 2004, p. 300-306.).

Em Santa Catarina, em estudo realizado por Watanabe et al. (2008)WATANABE, A.M. et al. Prevalência da hemoglobina S no Estado do Paraná, Brasil, obtida pela triagem neonatal. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 5, mai. 2008, p. 993-1000., a cobertura do PTN foi de 91,4% em 1997, também não atingindo o objetivo de 100%.

Já no município de Maringá (PR), em pesquisa realizada entre 2001 e 2006, a cobertura passou de 78,6 para 87,8%; em 2002 de 82 para 94,2%; em 2003 de 74,2 para 93,8%; cm 2004 de 70 para 94,2%; cm 2005 de 65,7 a 88,5%; e em 2006 de 71,4 para 98,4% (CARVALHO et al., 2008CARVALHO, M.D.B. et al. Neonatal Screening Program coverage in Maringá (PR), 2001 to 2006. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 21, n. 1, jan./mar. 2008, p. 89-93.).

Considerando a América Latina, a cobertura da triagem neonatal também é heterogênea. Em países como Cuba, Costa Rica, Uruguai e Chile, que apresentam um Programa de Triagem Neonatal mais desenvolvido, ela se aproxima a 100%, Outros países estão em fase de implantação do Programa de Triagem Neonatal e apresentam coberturas desde entre 4 e 6% (Nicarágua e Peru) até 60 a 80% (México e Argentina), Paralelamente, há países, como El Salvador, Haiti e Honduras, onde o ele virtualmente não existe (MAGALHÁES et al., 2009MAGALHÃES, P.K.R. et al. Programa de Triagem Neonatal do Hospital das Clinicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, fev. 2009, p. 445-454.).

Este estudo teve o intuito de contribuir com as políticas públicas voltadas para a criança no Ceará com ênfase na prevenção das doenças metabólicas, como também proporcionar reflexões aos profissionais de saúde e gestores a respeito das distorções que comprometem o êxito do programa.

Com isso, torna-se necessário e urgente incrementar um monitoramento eficaz para avaliar o desempenho deste Programa no âmbito do estado e dos municípios e os resultados alcançados, mediante indicadores de cobertura da triagem neonatal.

Recomenda-se a preparação de um banco de dados específico para o PTN, como também o cruzamento do banco de dados (linkage), tornando as informações mais fidedignas.

  • Suporte financeiro: Inexistente

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2012

Histórico

  • Recebido
    Jun 2011
  • Aceito
    Maio 2012
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