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Fatores determinantes para o abandono do tratamento da tuberculose: representações dos usuários de um hospital público

Determinant factors for tuberculosis treatment dropout: representations of patients at a public hospital

Resumos

Objetivou-se identificar e analisar os fatores determinantes que levaram os pacientes a abandonarem o tratamento para tuberculose. Estudo exploratório, descritivo e qualitativo, realizado com 15 pacientes internados em um hospital de João Pessoa (PB), Brasil. Utilizou-se uma entrevista semiestruturada e a análise de conteúdo de Bardin. Os motivos elencados foram etilismo, uso de drogas, reações adversas, problemas socioeconômicos, motivos religiosos, dificuldades de acesso ao tratamento, vínculo com os profissionais de saúde, e a sensação de cura antes do término do tratamento. A tuberculose ainda carece de atenção pelos gestores e o abandono do tratamento interfere no processo de cura.

Tuberculose; Terapêutica; Pacientes desistentes do tratamento


The aim was to identify and analyze the determinant factors that led Tuberculosis patients to treatment dropout. An exploratory, descriptive and qualitative research was conducted with 15 patients admitted to a hospital in João Pessoa (PB), Brazil, using a semi structured interview and content analysis based on Bardin. The reasons listed were alcoholism, drug use, adverse reactions, socioeconomic issues, religious reasons, difficulties in access to treatment, relationship with health professionals and the sensation of healing before the end of the treatment. Tuberculosis still needs administrators' attention and treatment dropout interferes with the healing process.

Tuberculosis; Therapeutics; Dropout patients


Introdução

A Tuberculose (TB) é considerada um problema global de saúde pública relacionado às condições de miséria, tais como desnutrição, superpopulação, moradia insalubre e cuidado inadequado da saúde. Trata-se de uma doença infecto-contagiosa causada pelo agente etiológico Mycobacterium tuberculosis, também conhecido como bacilo de Koch, cuja transmissão se faz por via aérea, de um indivíduo infectado para um sadio. O bacilo aloja-se principalmente nos pulmões, resultando na forma de tuberculose mais comum, a pulmonar, mas pode contaminar qualquer órgão do corpo humano (MENDES; FENSTERSEIFER, 2004MENDES, A. M; FENSTERSEIFER, L. M. Tuberculose: porque os pacientes abandonam o tratamento? Boletim de Pneumologia Sanitária, Rio de Janeiro, n.12, v.1, p. 27-38, 2004. Disponível em: <http://scielo.iec.pa.gov.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-460X2004000100005&lng=en>. Acesso em: 02 ago. 2011.
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; CAMPOS; PIANTA, 2001CAMPOS, R.; PIANTA, C. Tuberculose: histórico, epidemiologia e imunologia, de 1990 a 1999 e co-infecção TB/HIV, de 1998 a 1999. Boletim da Saúde, Porto Alegre, v. 15, n. 1, p. 61-71, 2001.).

A tuberculose é uma infecção tão antiga quanto a humanidade, tendo afetado provavelmente os primeiros hominídeos, que não disseminaram a doença pelo fato de viverem em pequenos grupos. Posteriormente, devido à Revolução do Neolítico, os agrupamentos humanos aumentaram, ampliando também as possibilidades de contágio (BERTOLLI FILHO, 2008BERTOLLI FILHO, C. História da saúde pública no Brasil. São Paulo: Ática, 2008.). Ainda nos dias de hoje, a TB se constitui em um sério e grave problema de saúde, sendo a segunda principal causa de morte por doenças infecciosas no mundo. Em 2010, a incidência de TB mundial foi de 8,8 milhões de casos estimados. No Brasil, no mesmo período, foram notificados 71 mil casos (WHO, 2011WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). Global tuberculosis control, surveillance, planning, financing: WHO report. Geneva: World Health Organization, 2011.).

Embora a taxa de incidência da tuberculose venha caindo no país nas últimas décadas, ainda morrem em função da doença, anualmente, cerca de 4.800 brasileiros, na maior parte das vezes devido à não conclusão do tratamento. No Brasil, em cada 100 usuários do sistema de saúde que iniciam o tratamento da TB, nove não o levam até o fim. O máximo tolerável, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), é quase a metade disso: cinco em cada 100. (BRASIL, 2012BRASIL, Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Principal desafio para combater a tuberculose é reduzir o número de pacientes que abandonam o tratamento. 2012. Disponível: <http://www.cns.org.br/links/menup/noticiadosetor/clipping/2012/03/clipping_0503.htm>. Acesso em: 20 abr. 2012.
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).

Uma das maiores dificuldades para o controle da doença apontada pela OMS é a resistência das cepas bacterianas causadoras da TB às drogas antituberculose (BRASIL, 2006BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Coordenação Geral de Doenças Endêmicas. Programa Nacional de Controle da Tuberculose. Plano Estratégico para o Controle da Tuberculose, Brasil 2007-2015. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2006. Disponível em: <http://new.paho.org/bra/index2.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=927&Itemid=614>. Acesso em: 12 out. 2011.
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). O estudo, realizado em 2012, revelou que o abandono do tratamento da TB tem relação com o ambiente social no qual o paciente se encontra inserido. Além disso, os autores apontam os fatores socioeconômicos e culturais, e o uso dos medicamentos e seus efeitos colaterais, como fatores que contribuem para o abandono (SOUZA; CRUZ, 2012SOUZA, A. B. F.; CRUZ, Z. V. Abandono do tratamento da tuberculose no município de Itapetinga-BA: um estudo da influência dos fatores ambientais. Enciclopédia biosfera. Centro Científico Conhecer, Goiânia, v.8, n.14, p. 1471-1486, 2012.).

Deve-se considerar também questões relacionadas aos serviços de saúde, como desorganização do trabalho em equipe, demora no atendimento, desumanização, falta de vínculo entre os usuários e os profissionais de saúde, ausência de busca ativa para diagnosticar novos casos e para os que abandonam o tratamento, entre outras (HINO ET AL., 2011HINO, P. et al. Perfil dos casos novos de tuberculose notificados em Ribeirão Preto (SP) no período de 2000 a 2006. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.16, 2011. Suplemento.).

Desde 2003, a política de saúde brasileira conduziu o processo de descentralização das ações de controle da TB, dos Centros de Saúde especializados, para as equipes da Estratégia de Saúde da Família (ESF), tendo em vista que este nível de atenção constitui o primeiro acesso do usuário ao Sistema Único de Saúde (SUS) e, por conseguinte, essas equipes se tornaram responsáveis pela identificação e tratamento dos atingidos pela doença (GOMES; SÁ, 2009GOMES, A. L. C.; SÁ, L. D. As concepções de vínculo e a relação com o controle da tuberculose. Revista da Escola de Enfermagem da USP, Ribeirão Preto, v.43, n.2, p.365-372, 2009.).

No entanto, os profissionais que atuam em tais serviços têm encontrado dificuldades no decorrer da produção do cuidado ao indivíduo portador de TB e isto têm contribuído para a ocorrência da interrupção do tratamento. Outros fatores que têm levado ao abandono do tratamento são a pouca valorização do contexto sociocultural dos pacientes para o desenvolvimento de projetos terapêuticos singularizados, a debilidade do vínculo com os citados profissionais e a pouca produção de acolhimento (SOUZA ET AL., 2010SOUZA, K. M. J. et al. A. Abandono do tratamento da tuberculose e relações de vínculo com a equipe de saúde da família. Revista da Escola de Enfermagem da USP, Ribeirão Preto, v.44, n.4, p.904-911, 2010.).

O problema da TB no Brasil reflete o estágio de desenvolvimento social do país, no qual o estado de pobreza, as condições sanitárias precárias, as falhas de organização do sistema de saúde e as deficiências de gestão limitam a ação da tecnologia e, por consequência, inibem a diminuição da incidência e da prevalência de doenças marcadas pelo contexto social (HINO ET AL., 2011HINO, P. et al. Perfil dos casos novos de tuberculose notificados em Ribeirão Preto (SP) no período de 2000 a 2006. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.16, 2011. Suplemento.).

Mediante o exposto, o objetivo deste estudo foi identificar e analisar os fatores determinantes que levaram os pacientes internados nas alas de tisiologia de um hospital de referência em doenças infectocontagiosas, no município de João Pessoa/Paraíba/Brasil, a abandonarem o tratamento para TB.

Metodologia

A presente pesquisa caracteriza-se como um estudo exploratório, descritivo e de abordagem qualitativa. Foi realizado com 15 pacientes internados na ala de tisiologia do Complexo Hospitalar (CH), referência para o tratamento da tuberculose, localizado no município de João Pessoa (PB), Brasil. O critério de escolha foi dado a partir da consulta aos prontuários médicos, dos quais foram selecionados os pacientes que abandonaram o tratamento medicamentoso da TB, fato que configurou tal seleção como uma amostra intencional e realizada por saturação de argumentos.

Para preservar o anonimato, os discursos foram identificados, ao longo do texto, com as letras E (Entrevistado) seguidas de algarismos arábicos que representam a ordem das entrevistas (E1 a E15).

Empregou-se como instrumento de coleta do material empírico entrevistas semi-estruturadas realizadas nas alas de tisiologia do CH pesquisado, com a utilização de um gravador de voz, no mês de janeiro de 2011. As entrevistas partiram da seguinte pergunta: Que motivo levou você ao abandono do tratamento da tuberculose?

Os resultados obtidos foram analisados através da técnica de análise de conteúdo de Bardin, que possibilitou a leitura exaustiva das falas dos entrevistados; assim, as mesmas foram dispostas e apresentadas em forma de narrativas e, posteriormente, analisadas e confrontadas frente à literatura existente referente ao tema (BARDIN, 2009BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2009.).

O estudo seguiu as determinações da resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, que dispõe sobre as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos, e foi avaliado pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Secretaria de Estado de Saúde da Paraíba (CEP/SES-PB), tendo sido aprovado no dia 21/12/2010 em sua 73ª reunião ordinária.

Resultados e discussão

A TB continua a matar milhares de pessoas no Brasil todos os anos. O estado da Paraíba ocupa a quinta posição em casos de morte por TB no Nordeste brasileiro (BRASIL, 2011bBRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva. Subsecretaria de Planejamento e Orçamento. Sistema Nacional de Vigilância a Saúde:relatório situacional - Paraíba. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2011b.). Um dos maiores problemas enfrentados para o controle da doença é a resistência às drogas antituberculose disponíveis, relacionada, principalmente, ao uso inadequado dos medicamentos ou ao abandono do tratamento.

Considerando o fato de que o tratamento é inteiramente garantido pelo SUS, fica o questionamento que implica em desvendar os motivos que levam os portadores de TB a abandonarem o tratamento medicamentoso. Para isso, faz-se necessária a utilização das falas dos sujeitos a fim de clarear os motivos de tal abandono.

Os motivos do abandono: as falas dos sujeitos

Ao se realizar a análise das falas dos sujeitos, tem-se o intuito de, através dos discursos, identificar e analisar os motivos que os pacientes apresentaram como justificativa para o abandono do tratamento. Trata-se de uma situação complexa, por envolver aspectos demográficos, sócio-econômicos, culturais, religiosos e biológicos, havendo a necessidade de confrontar o discurso com as impressões possíveis e com outros estudos referentes.

O primeiro fator a ser analisado como interferente negativo para a continuidade do tratamento está relacionado ao uso de álcool e de drogas, principalmente o crack, por considerável parcela dos pacientes entrevistados. Dentre os que afirmaram o consumo de tais substâncias antes e/ou durante o tratamento, obteve-se um total de 55%, evidenciando este fator como influente para a não continuidade do tratamento.

O consumo excessivo de bebida alcoólica e o uso indiscriminado de drogas são prejudiciais à saúde e ao bom funcionamento orgânico de qualquer indivíduo, principalmente quando este já se encontra acometido por alguma enfermidade.

A associação entre o tratamento medicamentoso da TB e o consumo de álcool aumenta a chance de intolerância à medicação, o que pode também ser considerado como uma das causas de abandono.

A análise de Andrade, Villa e Pillon (2005)ANDRADE, R. L. P.; VILLA, T. C. S.; PILLON, S. A influência do alcoolismo no prognóstico e tratamento da tuberculose. Saúde Mental, Álcool e Drogas, Ribeirão Preto, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em <http://www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-69762005000100008&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 29 abr. 2010.
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, aponta que:

Todas as drogas indicadas nos esquemas de tratamento da TB (rifampicina, isoniazida, pirazinamida, etambutol e estreptomicina) apresentam interações com outras drogas entre si, aumentando o risco de hepatoxicidade. O tratamento e a quimioprofilaxia da TB devem ser administrados com cautela em pacientes com histórias de uso de álcool, pois esse grupo é considerado de alto risco para desenvolver esse tipo de toxidade. Além disso, outros efeitos colaterais são comumente encontrados nesses pacientes como: manifestações neurológicas [...] manifestações psiquiátricas, caracterizadas por distúrbios do comportamento, alterações do padrão de sono, redução da memória e psicoses (ANDRADE; VILLA; PILLON, 2005, p. 06ANDRADE, R. L. P.; VILLA, T. C. S.; PILLON, S. A influência do alcoolismo no prognóstico e tratamento da tuberculose. Saúde Mental, Álcool e Drogas, Ribeirão Preto, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em <http://www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-69762005000100008&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 29 abr. 2010.
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).

Somadas às complicações em seu estado clínico, pacientes alcoólicos e dependentes químicos enfrentam ainda forte exclusão social e conflitos psicológicos e emocionais, situações que se agravam devido à falta de apoio familiar, questão esta considerada uma constante para grande parcela dessas pessoas.

Destacam-se algumas falas que reforçam os dados apresentados:

Quando o cara fuma crack é dois, três dias fumando direto, aí o cara depois passa o outro dia todo dormindo, quando o cara acorda o cara não sente fome e quando tomava o remédio sem comer dava muita dor de estômago(E. 5).

"Sim, algumas vezes eu ia tomar uma e não tomava os remédios, aí fui deixando de tomar" (E. 3).

"Esquecia de tomar o remédio, porque vivia muito tempo bêbado, fumando crack, passava a hora de tomar o remédio e depois não tomava mais, depois deixava de tomar de vez" (E. 6).

Corroborando com os discursos dos entrevistados, Morais (2010) revelou que existe uma íntima relação entre a pobreza e a questão da vulnerabilidade ao uso de crack, por seu menor custo e efeito quase instantâneo. Tal droga, que vem assolando com maior magnitude a juventude do nosso país ocasionando a destruição de muitas famílias, deve ser enfrentada não só pelo Estado, mas pela sociedade como um todo.

Portanto, considera-se que existe correlação entre a pobreza, a epidemia de crack e o adoecimento por TB, assim como o abandono do tratamento da doença. O baixo poder aquisitivo priva as pessoas de condições dignas de habitação e, consequentemente, as obriga a viver em áreas de precária infraestrutura urbana, aglomeradas em pequenos espaços, onde estão sujeitas à extrema vulnerabilidade, especialmente no que se refere ao uso de drogas, e à inexistência de políticas sociais que abranjam de forma mais ampla e eficaz as determinações multifacetadas da questão social, que se manifesta de forma dinâmica e complexa.

Ao serem convidados a justificarem os motivos do abandono do tratamento, foi identificada uma grande variedade de respostas. Porém, observa-se uma predominância das falas que envolvem a vulnerabilidade, o não suportar os efeitos colaterais do tratamento devido à falta de condições econômicas de se alimentarem corretamente, ou a situação da população carcerária que, em muitos casos, tem o acesso ao medicamento dificultado. Falas que ficam evidentes nos depoimentos a seguir: "O presídio fez o favor de não entregar minha medicação, a culpa foi do presídio" (E. 1). "Minhas condições financeiras são poucas, aí saía pra trabalhar com fome, minha barriga doía e quando eu tomava o remédio da tuberculose doía mais, aí deixei de tomar" (E. 2).

Sentia muita dor no estômago, porque tinha dia que eu não tinha um cuscuz pra comer, aí o povo lá da rua dava um prato de comida, mas eu dava aos meninos, porque eu tenho 3 filhos sabe? Aí eu não comia, deixava tudo pra eles, pra eles não ficar chorando com fome (E. 12).

As mais diversas e preocupantes expressões da questão social estão, principalmente, no cotidiano das grandes metrópoles, mais especificamente nas periferias, onde se encontra a maior parcela da população economicamente desfavorecida.

Além do baixo poder aquisitivo, essa população também sofre devido à ausência do Estado no que se refere às condições mais fundamentais para uma vida digna. Saneamento básico, educação e saúde pública de qualidade, segurança e oportunidades de inserção no mercado formal de trabalho, na grande maioria das vezes, estão fora do alcance dessa esfera populacional que, devido a essas condições de exclusão e de carência de moradia e alimentação, são acometidas por elevados índices de desnutrição infantil e de doenças parasitárias e infecciosas, inclusive a TB.

Torna-se importante ressaltar que boa parte da população privada de liberdade no país é oriunda dessas áreas extremamente pauperizadas e desfavorecidas, com maior ocorrência de TB, situação que se agrava quando são identificados outros fatores que estão fortemente presentes nessas áreas, como uso de drogas, maior prevalência de infecção por HIV, maior freqüência de tratamento anterior para TB e dificuldade de acesso aos serviços de saúde. Tais fatores contribuem para a elevada endemicidade da TB na população privada de liberdade, que vive confinada em celas superlotadas, com exposição frequente ao bacilo da TB e pouco acesso aos serviços de saúde dentro da prisão.

Conforme o Manual de Recomendações para o Controle da Tuberculose:

A tuberculose (TB) nas prisões constitui um importante problema de saúde [...] a frequência de formas resistentes e multirresistentes é também particularmente elevada nas prisões e está relacionada ao tratamento irregular e a detecção tardia de casos de resistência (BRASIL, 2010, p. 110BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de Recomendações para o Controle da Tuberculose no Brasil. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2010.).

Por isso, as preconizações do documento oficial citado vêm contemplar prioritariamente os indivíduos que se encontram em privação de liberdade custodiada no sistema penitenciário do país, pelo fato de que a saúde dessa população é um direito estabelecido por leis internacionais e nacionais, sendo de responsabilidade do Estado garantir a essas pessoas o acesso às ações e aos serviços de saúde, inclusive na detecção e no tratamento da TB, devido ao elevado risco de contraírem outra morbidade pela doença.

Entretanto, devido à escassez de recursos humanos e financeiros destinados aos serviços de saúde dentro das prisões, a insuficiência de informação sobre a TB e, principalmente, a restrita autonomia das pessoas privadas de liberdade, no que se refere à participação no tratamento e nas ações de prevenção, há uma série de empecilhos para firmar estratégias de controle da doença nos presídios (BRASIL, 2010BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de Recomendações para o Controle da Tuberculose no Brasil. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2010.).

Outro fator determinante para o abandono do tratamento, de acordo com o depoimento citado em seguida, está relacionado a motivos religiosos:

Eu comecei a tomar os remédios direitinho, a menina lá que me entregava disse que era seis meses pra eu ficar tomando todo dia, aí fui dizer ao pastor da minha igreja que eu tava com essa doença, ele disse pra eu orar muito e ter fé em Deus que ele ia me curar sem precisar tomar os remédios, aí eu fiquei boa não tossia mais, aí deixei, pensando que tava boa, mas não tava (...) depois de ano comecei a tossir de novo, até sangue tinha (...) vim pra cá e me internaram aqui (E. 13).

Estudos semelhantes em Unidades de Saúde da Família (USF) apontam que muitas pessoas, diante de situações complicadas e delicadas, acreditam que o poder divino trará soluções e promoverá a cura. A busca por instituições religiosas pode estar relacionada à falta de apoio emocional aos doentes pelo sistema de saúde, mesmo que seus gestores, pesquisadores e profissionais reconheçam a importância da fé na recuperação da saúde, como está sendo mostrada pela psiconeuroimunologia. O problema apresentado é a insuficiência de diálogo entre esses setores, pois quando o paciente admite ter apresentado melhora ou ter obtido a cura somente pela fé, revela que, para ele, a melhora ou a cura não se deu pelo acompanhamento e tratamento a partir dos serviços de saúde (ET AL., 2007SÁ, L. D. et al. Tratamento da tuberculose em unidades de saúde da família: histórias de abandono. Texto & Contexto Enfermagem,Florianópolis, v.16, n.4, p.712-718, 2007.).

Outro importante problema evidenciado no abandono do tratamento da TB está relacionado à regressão dos sintomas no início do tratamento, fazendo com que o paciente pense que já está curado e pare com a terapêutica, conforme sinalizado na fala do sétimo entrevistado: "Eu achava que já tava bom, aí parava"(E. 7).

Com a melhoria do estado geral do paciente devido à medicação utilizada, o risco de abandono do tratamento da tuberculose torna-se elevado no final do primeiro mês e início do segundo. Os indivíduos acreditam que estão livres da doença e que podem interromper o uso da medicação (ET AL., 2007SÁ, L. D. et al. Tratamento da tuberculose em unidades de saúde da família: histórias de abandono. Texto & Contexto Enfermagem,Florianópolis, v.16, n.4, p.712-718, 2007.).

Pode-se considerar, através dos relatos, que o abandono do tratamento da TB também está relacionado à organização dos serviços de saúde e ao trabalho desenvolvido por alguns profissionais de saúde que lidam com essa problemática. Os serviços de saúde precisam estar organizados de forma a facilitar tanto o diagnóstico da TB quanto o acesso ao tratamento, levando em consideração as necessidades dos usuários em obter informações sobre a doença e a importância do tratamento.

Cabe aos profissionais de saúde transmitir as informações necessárias, apresentando ao usuário os possíveis efeitos colaterais decorrentes da ingestão da medicação, mas sempre enfatizando a importância de seguir o tratamento adequadamente e pelo tempo necessário.

Tanto fornecer as informações depois de diagnosticada a doença, quanto garantir a medicação e acompanhar os usuários na evolução/cura da doença, são ações preconizadas pela Política Nacional de Controle da Tuberculose (PNCT) aos serviços da Atenção Básica (AB). Porém, os depoimentos dos participantes mostram a negligência dos profissionais no que diz respeito ao seu papel no combate à doença e no acompanhamento dos casos: "(...) eu ia pegar os comprimidos, mas depois eu não tive paciência de esperar o tratamento todo (E. 6). "Não tinha condições de ir buscar a medicação aqui, no PSF nunca tinha, e me sentia fraca pra vir buscar e não tinha ninguém pra pegar pra mim, nem dinheiro pra pegar um carro" (E. 15).

A intenção de focalizar o PNCT na AB, especialmente na ESF, foi de facilitar a busca dos sintomáticos respiratórios de uma determinada comunidade e diagnosticá-los e, a partir dessas ações, facilitar o acesso dos usuários ao tratamento medicamentoso e ao acompanhamento pelo serviço de saúde, sem que os usuários precisem se deslocar da comunidade em que residem para prosseguir o tratamento.

Porém, em muitos dos casos, depara-se com uma realidade totalmente distinta. et al. (2007)SÁ, L. D. et al. Tratamento da tuberculose em unidades de saúde da família: histórias de abandono. Texto & Contexto Enfermagem,Florianópolis, v.16, n.4, p.712-718, 2007. aponta que, algumas vezes, os profissionais do ESF negligenciam o acompanhamento dos casos e abandonam o usuário, devido à falta de fortalecimento do vínculo entre o paciente e o profissional, em especial o agente de saúde comunitário, pelo fato deste ser considerado a ponte entre a comunidade e a equipe profissional.

Quanto ao acompanhamento do paciente com TB pela AB, os pacientes que afirmaram terem tido acompanhamento da UBS ou USF após o diagnóstico de TB foram indagados sobre a realização da visita dessas unidades para averiguação dos motivos que os levaram a não continuarem o tratamento, com resposta afirmativa da maioria dos participantes.

Um dos mecanismos que deve ser utilizado pela AB no controle da TB é a busca ativa de pacientes diagnosticados e que não comparecem às unidades de saúde para buscar a medicação. Esta busca deve ser considerada pelos profissionais da AB como o principal mecanismo para diagnosticar o motivo que levou o usuário a abandonar o tratamento, permitindo a criação de estratégias de conscientização quanto à importância da continuidade da terapêutica pelo tempo necessário (BRASIL, 2011aBRASIL. Ministério da Saúde. Grupo Hospitalar Conceição. Tuberculose na Atenção Primária à Saúde. Porto Alegre: Hospital Nossa Senhora da Conceição, 2011a. Disponível em: <http://www2.ghc.com.br/gepnet/publicacoes/tuberculosenaatencao.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2012.
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).

Compelidos a relatarem o que diriam a outros pacientes com dificuldade em aderir ao tratamento, observa-se que, a partir do agravamento do próprio quadro clínico, eles percebem a importância de concluir o tratamento e das consequências negativas do abandono. Concepção presente nas falas a seguir: "É melhor você tratar porque essa doença tem cura, mas se o cara ficar largando o tratamento o cara pode até morrer (E. 2).

Mesmo eu não fazendo o tratamento direito, eu peço pra elas terminarem até o fim (E. 5). "Dou o conselho pra tomar a medicação, hoje em dia eu faço qualquer coisa pra que as pessoas entendam que tem que tomar o remédio" (E. 10).

Os depoimentos evidenciam que os pacientes entrevistados apresentam o reconhecimento da importância de aderir ao tratamento regular da TB pelo tempo necessário e sem interrompê-lo, pois só assim há possibilidade de cura, sem o risco de transmitir a doença para outras pessoas.

Questionados se iriam seguir o tratamento, doze entrevistados responderam afirmativamente. Apenas duas falas apresentaram dificuldades para prosseguir o tratamento, uma relacionando-se ao acesso ao medicamento e a outra, ao uso do crack: "Depende do hospital, se deixar eu passar os 6 meses do tratamento, ou então do presídio se me entregar os remédios lá dentro" (E. 1). "Vou tentar até eu ter outra recaída do crack, se eu voltar a fumar pedra de novo, eu paro (...) é mais forte que eu" (E. 5).

Mediante as dificuldades mencionadas por esses usuários no tocante a continuar o uso da medicação fora do internamento, podemos constatar a importância que é dada pela equipe profissional do CH às dificuldades encontradas tanto pelos pacientes internados sob custódia judiciária, quanto pelos constatados dependentes químicos. Observou-se a sensibilidade desses profissionais ao permitirem a internação desses pacientes pelo tempo necessário, até que fosse comprovada a cura da doença, mesmo quando não apresentassem quadro clínico para que continuassem em internação hospitalar, ou seja, mesmo quando estivessem em condições de prosseguirem com o tratamento fora do confinamento hospitalar.

A compreensão desses profissionais é de que, além das complicações individuais "acarretadas pela não adesão ao tratamento, esses indivíduos continuarão a propagar o bacilo da TB para outras pessoas e, além disso, analisam o risco desses pacientes se tornarem portadores" de Tuberculose Multidrogarresistente (TB-MDR), devido à interrupção do uso da medicação, dificultando a cura da doença e colaborando com a disseminação do bacilo resistente.

Ainda assim, analisa-se que, apesar da estratégia utilizada pela equipe responsável pelo tratamento dos pacientes desse hospital, a recidiva da doença é uma realidade constante, mesmo quando os mesmos recebem alta por cura. Ocorre que ao saírem da internação hospitalar, os indivíduos voltam a ser vulneráveis ao adoecimento por TB, pois, geralmente, irão se inserir no mesmo meio e nas mesmas condições que contribuíram para a internação e que também se apresentaram como fatores de risco para a não continuidade do tratamento.

A compreensão ampliada de saúde é imprescindível aos profissionais da área, pois a doença em si, em muitos casos, não se constitui como o único fator para a fragilidade dos pacientes. O profissional de saúde deve levar em consideração todos os aspectos psicossociais e emocionais que, possivelmente, estejam relacionados com o adoecimento e, através dos serviços de saúde, tentar inserir o paciente em outros serviços que possam garantir melhorias em suas condições de vida.

Quando questionados sobre como se sentiam convivendo com a tuberculose e quais eram as expectativas futuras para quando concluíssem o tratamento, foram identificados dois grupos de falas que expõem a situação de vulnerabilidade dos entrevistados. No primeiro grupo, observa-se um desejo de organizar a vida, voltar a trabalhar, conviver com a família, abandonar os vícios e etc. No outro grupo, há a presença de falas extremamente pessimistas com relação ao futuro pós-tratamento, como é possível observar nos depoimentos: "Doente, sem saúde, posso até ficar bom, mas acho que não vou ser o mesmo de antes, tô fraco, cansado. Vou continuar o tratamento e continuar a trabalhar pra manter minha vida" (E. 3).

Tô uma pilha, só ta faltando dois meses pra eu ter alta, mas eu não tô mais aguentando, eu sonho comigo fumando a pedra, às vezes queria fugir daqui, mas tenho que aguentar, porque eu pedi pra minha médica pra deixar eu ficar os 6 meses aqui pra fazer o tratamento todo, porque se eu sair eu volto a fumar e deixo de novo de tomar os remédios (E. 5).

Espero ficar bom e não fumar mais, não beber, não roubar as coisas lá em casa pra comprar pedra, porque já dei desgosto demais a mainha. Quero cuidar dos meus filhos, me casar e me tratar pra não passar essa doença pra ninguém (E. 9).

"Hoje tô melhor que quando eu entrei, parecia uma caveira (risos). Espero ficar boa, me livrar do crack e criar meus filhos que tão na casa de mãe"(E. 14).

Diante de tais depoimentos, identificou-se que além do desejo em obter-se a cura, há outros desejos que são intensamente mais significativos e que não dependem da eficácia da medição no combate à doença, tão pouco do compromisso dos profissionais com esses pacientes. São aspectos que ultrapassam sua resolutividade pelo âmbito hospitalar, são conflitos individuais, sociais, emocionais e familiares, e não cabe apenas ao hospital e ao sistema de saúde solucioná-los.

Portanto, enfatiza-se a necessidade de políticas e programas sociais que abranjam esses conflitos em sua totalidade, emergencialmente no tocante à epidemia de crack, que mostrou-se como um grande desafio no controle da TB e um obstáculo para que essas pessoas deem continuidade ao tratamento com o uso da medicação.

Considerações finais

Ao avaliar os fatores determinantes para o abandono do tratamento da tuberculose em pacientes internados na ala de tisiologia do CH, o estudo evidenciou a complexidade dessa problemática. Com base nas falas dos entrevistados, foram identificados os seguintes motivos para o abandono do tratamento da TB: o etilismo e a utilização de outras drogas, com destaque ao uso do crack; reações adversas à medicação; problemas sócio-econômicos; motivos religiosos; dificuldades de acesso ao tratamento, seja nas UBS ou nas instituições carcerárias; deficiência do vínculo com os profissionais de saúde envolvidos no tratamento; e a sensação da cura anterior ao término do período terapêutico.

Com relação aos portadores de TB, o estudo mostrou que as vulnerabilidades ligadas à pobreza e ao uso de drogas são elencadas como os fatores determinantes para o abandono do tratamento. Destacam-se também a crença religiosa e a melhora dos sintomas antes do término do tratamento daqueles que se expõem à internação no CH, quando só então, esses usuários entendem o tratamento como a única alternativa para sua cura.

Ao analisar os fatores determinantes, identificados neste estudo, que levam ao abandono do tratamento da TB, evidenciou-se que a maioria deles está relacionada à maneira como os serviços de saúde se organizam para desenvolver estratégias de controle da TB. Os motivos que se relacionam aos doentes de TB podem ser sanados com ações de educação permanente, busca ativa de casos e fortalecimento da estratégia Tratamento Diretamente Observado (DOTS).

Para tanto, faz-se necessária a existência de vínculo entre profissionais e usuários. Os profissionais precisam estar atentos aos doentes de TB que se ausentam do tratamento e entender o contexto sociocultural da vida desses usuários, para desenvolverem estratégias que garantam o sucesso terapêutico, evitando que tal abandono ocorra.

Independente de todas as deficiências identificadas nesse estudo, cabe elucidar que o controle da TB não depende só do sistema de saúde, pois o retorno do paciente ao seu meio habitual de risco pode levá-lo a um novo adoecimento, sendo, portanto, importantes outras ações de saúde pública e de melhoria das condições de vida da população por parte das autoridades competentes.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2014

Histórico

  • Recebido
    Fev 2014
  • Aceito
    Jul 2014
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