RESUMO
Este ensaio aborda como e em que níveis a Assistência Farmacêutica é atravessada pela dinâmica da governança global da saúde, e como se relaciona com aspectos geopolíticos e socioeconômicos. Tenta-se ir além do acesso a medicamentos e produtos para saúde, abordando também o uso racional de medicamentos, seu impacto na resistência aos antimicrobianos e na saúde dos povos. Além disso, discute como a Assistência Farmacêutica pode ser vista nesse contexto.
PALAVRAS-CHAVE
Assistência Farmacêutica; Saúde global; Covid-19
ABSTRACT
This essay addresses how and at what levels Pharmaceutical Services is affected by the dynamics of global health governance, and how it correlates with geopolitical and socioeconomic aspects. It attempts to go beyond access to medicines and health products, as well as to address the rational use of medicines, the impact in antimicrobial resistance and in people’s health. Furthermore, it debates how Pharmaceutical Services can be seen in this context.
KEYWORDS
Pharmaceutical Services; Global health; COVID-19
Introdução
A governança global da saúde pode atuar por diferentes tipos de instrumentos de regulação. A hard law, com instrumentos juridicamente vinculantes, restringe as práticas de países e corporações transnacionais por meio de tratados, convenções, sanções, entre outros. Um dos exemplos de hard law na área da saúde, em nível global, é a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco da Organização Mundial da Saúde (OMS), que conta com 182 países e uma série de compromissos vinculantes11 World Health Organization. Framework Convention on Tobacco Control. Geneva: WHO; 2021. [acesso em 2021 jan 1]. Disponível em: https://www.who.int/fctc/cop/about/en/.
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. A soft law é mais flexível, não possui caráter de obrigatoriedade e concretiza-se por meio de resoluções, diretrizes orientadoras, políticas intergovernamentais, entre outras coisas. A lista de medicamentos essenciais da OMS² é um exemplo de soft law.
Além disso, a governança global da saúde também se dá de outras maneiras, fortemente influenciada pelos poderes econômicos e políticos de atores não estatais, que, muitas vezes, ignoram o sistema multilateral e colocam fóruns como a OMS à margem do processo. Entre esses atores, incluem-se as grandes corporações biofarmacêuticas transnacionais, que conseguem influenciar, direta ou indiretamente, a definição de prioridades globais de pesquisa, a configuração de padrões e o estabelecimento de regras para suas atividades no mercado global. Como exemplos, têm-se as regras sobre o comércio de produtos e Propriedade Intelectual (PI) – em particular, no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) e da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi) –, as certificações ISO e a padronização de nomenclaturas. Adicionalmente, cada vez mais, as parcerias público-privadas, as grandes instituições filantrópicas e os doadores das Organização das Nações Unidas (ONU) estão direcionando políticas globais por meio do financiamento a organizações, governos, projetos e estudos que ganham influência política estratégica na área da saúde33 Gleckman H. Where we are now with the global governance of TNCS. Series of Three Visual Presentations – Part 1. [acesso em 2021 jan 1]. Disponível em: https://www.tni.org/files/article-downloads/13_msismvisualpresentations-overningtncsbymultilate-ralism_stateofplay.pdf.
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, 44 Gleckman H. Where we are now with the emergence of multistakeholderism. Series of Three Visual Presentations – Part 2.2020. [acesso em 2021 jan 1]. Disponível em: https://www.tni.org/files/article-downloads/23_msismvisualpresentations-_what_is_msism.pdf.
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.
O foco da análise deste ensaio recai sobre as assimetrias entre corporações biofarmacêuticas transnacionais, governos e sociedade civil. A primeira seção trata de documentos recentes relacionados com formulação de políticas, princípios normativos de direção e documentos de orientação da OMS com interface em ações da Assistência Farmacêutica (AF). Em seguida, é feito um recorte sobre as iniciativas de múltiplos atores vinculadas ao cenário de pandemia de Covid-19, como Covid-19 Technology Access Pool (C-TAP), Access to Covid-19 Tools (ACT) Accelerator, Covid-19 Vaccines Global Access (Covax Facility) e a proposta protocolada por Índia e África do Sul na OMC com o objetivo da isenção temporária de algumas obrigações do Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de PI Relacionados com o Comércio (Acordo TRIPS), em relação a prevenção, contenção ou tratamento da Covid-19 (TRIPS Waiver).
Posteriormente, são debatidos os limites e as possibilidades das iniciativas à luz de barreiras e facilitadores da governança global, analisando a predominância dessas iniciativas dentro dos casos e contextos analisados. O texto apoia-se em informações e dados institucionais e na literatura científica. Considera-se a hipótese de que mudanças na dinâmica da governança global da saúde relativas à captura corporativa aprofundam a assimetria da oferta de AF e na situação de saúde das pessoas.
Aspectos da Assistência Farmacêutica na governança global da saúde
A AF atravessa aspectos relacionados com cuidado integrado, garantia do acesso e uso racional de medicamentos. Um importante desafio para as políticas de AF é a iniquidade no acesso aos medicamentos, especialmente devido aos altos preços e à falta de pesquisa de opções terapêuticas para determinadas doenças. Esse desafio aumentou desde o advento do Acordo TRIPS, assinado em 1994 no âmbito da OMC, garantindo, entre outras,
a proteção patentária a produtos farmacêuticos pelo período mínimo de 20 anos. Sob a justificativa de contribuir para a promoção da inovação tecnológica, a transferência e a difusão de tecnologia, a implementação do Acordo TRIPS acarretou o aumento dos custos e a dependência da compra de insumos de laboratórios transnacionais detentores de patentes, criando barreiras para o acesso e favorecendo a comercialização de produtos falsificados e abaixo do padrão como consequência da inacessibilidade55 Moraes RV. A atuação internacional do Ministério da Saúde no tema de acesso a medicamentos. In: Brasil. Ministério da Saúde. Assessoria de Assuntos Internacionais de Saúde. Saúde e Política Externa: os 20 anos da Assessoria de Assuntos Internacionais de Saúde (1998-2018). Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2018..
No entanto, a primeira Resolução da OMS focada especificamente em ‘Direitos de Propriedade Intelectual, Inovação e Saúde Pública’ só foi adotada em 200366 World Health Assembly. Resolution WHA 56.27. Intellectual property rights, innovation and public health Resolution. Geneva: WHA; 2003., muitos anos após o Acordo TRIPS. A partir desse ponto, a OMS converteu-se em mais um fórum de discussão e análise da temática do impacto de PI sobre a saúde pública, sob um prisma diferente do praticado no âmbito da OMC até então55 Moraes RV. A atuação internacional do Ministério da Saúde no tema de acesso a medicamentos. In: Brasil. Ministério da Saúde. Assessoria de Assuntos Internacionais de Saúde. Saúde e Política Externa: os 20 anos da Assessoria de Assuntos Internacionais de Saúde (1998-2018). Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2018.. Nesse sentido, em 2006, foi adotada a Resolução ‘Saúde pública, inovação, pesquisa essencial em saúde e direitos de propriedade intelectual: em direção a uma estratégia global e plano de ação’77 World Health Assembly. Resolution WHA59.24.Public health, innovation, essential health research and intellectual property rights: towards a global strategy and plan of action. Geneva: WHA; 2006.; e, em 2008, a Resolução88 World Health Assembly. Resolution WHA61.21. Global strategy and plan of action on public health, innovation and intellectual property. Geneva: WHA; 2008. que culminou na Estratégia Global e Plano de Ação sobre Saúde Pública, Inovação e Propriedade Intelectual (EGPA)99 World Health Organization. Global Strategy and Plan of Action on Public Health, Innovation and Intellectual Property. Geneva: WHO; 2011., com o objetivo de promover a inovação em saúde e o acesso a medicamentos. Entretanto, a EGPA ainda não foi implementada integralmente, especialmente devido à oposição veemente de países de alta renda, o que poderia ser interpretado como uma forma de proteger os interesses da indústria biofarmacêutica.
Convocado pelo Secretário-Geral da ONU em 2015, um Painel de Alto Nível sobre Acesso a Medicamentos foi lançado e esclareceu a discussão sobre a exigência de informações claras sobre quanto custa inovar e trazer determinada tecnologia de saúde para o mercado1010 United Nations. Report of The United Nations Secretary-General’s High-Level Panel on Access to Medicines. [acesso em 2021 jan 1]. Disponível em: http://www.unsgaccessmeds.org/reports-documents.
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. Essa análise também pode ter influenciado instrumentos da OMS que são estratégicos para o acesso a medicamentos e outras tecnologias, como os documentos apresentados no quadro 1.
Posteriormente, a 41ª sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas aprovou a Resolução sobre acesso a medicamentos e vacinas no contexto do direito do mais alto padrão possível de saúde física e mental, da qual o Brasil foi um dos países proponentes1111 United Nations. General Assembly. Forty-first session Human Rights Council. Resolution A/HRC/41/L.13. 8 July 2019a. Access to medicines and vaccines in the context of the right of everyone to the enjoyment of the highest attainable standard of physical and mental health. 2019a. [acesso em 2021 jan 1]. Disponível em: https://www.healthpolicy-watch.org/wp-content/uploads/2019/07/HRC-Resolution-L.13-Access-to--Medicines-and-Vaccines-English.pdf.
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. Nessa mesma seara, os signatários da declaração política adotada durante a reunião de Alto Nível sobre cobertura universal de saúde, no âmbito da Assembleia Geral da ONU, comprometem-se a envidar esforços para promover uma gama de mecanismos de incentivo que separam o custo do investimento em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) do preço e volume de vendas, facilitando o acesso equitativo e acessível a novas ferramentas e outros resultados a serem obtidos por meio de P&D. No entanto, no parágrafo seguinte, apoia apenas o papel desempenhado pelo setor privado em P&D de medicamentos inovadores, deixando de lado o importante papel das universidades e demais instituições públicas em P&D1212 United Nations. Follow-up to the political declaration of the high-level meeting of the General Assembly on antimicrobial resistance. Report A/73/869. 2019b. [acesso em 2021 jan 1]. Disponível em: https://un-docs.org/en/A/73/869.
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.
O tema de acesso às tecnologias de saúde voltou à pauta na 148ª reunião do Conselho Executivo da OMS, instância de discussão e negociação preparatória para a Assembleia Mundial da Saúde de 2021. Relatório apresentado no tema de determinantes sociais da saúde afirma que
os avanços na tecnologia, o aumento da urbanização e os riscos das mudanças climáticas consolidam as desigualdades existentes e aumentam ainda mais as lacunas nos resultados de saúde1313 World Health Organization. Executive Board. Report EB 148/24. Social determinants of health. Geneva: WHO; 2021. [acesso em 2021 jan 1]. Disponível em: https://apps.who.int/gb/ebwha/pdf_files/EB148/B148_24-en.pdf.
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Além disso, o relatório reafirma a distribuição desigual dos ganhos na situação de saúde no último século, dentro e entre os países. Entretanto, o documento não aborda a necessidade de viabilizar uma economia dos cuidados de saúde e bem-estar e de redistribuir poder e recursos, atualmente concentrados em acordos comerciais injustos, privatizações, racismo ambiental oriundo do capitalismo extrativista e outras formas de exploração e espoliação da vida.
Temas relacionados com a AF – tais como cuidado integrado, resistência antimicrobiana, garantia do acesso, uso racional de medicamentos e segurança do paciente na medicação – têm sido recorrentes nos fóruns de governança global da saúde, recebendo especial atenção no contexto do enfrentamento da pandemia de Covid-19, já que as barreiras e as iniquidades no acesso às tecnologias em saúde têm sido evidenciadas, apontando-se que interesses privados têm sufocado interesses de saúde pública nas tomadas de decisões.
Iniciativas vinculadas à Covid-19
Em maio de 2020, foi lançado pela OMS, em parceria com diversos Estados-Membros, o C-TAP, destinado a incentivar a comunidade global a compartilhar voluntariamente conhecimentos, dados e PI, com vistas a acelerar o desenvolvimento de produtos necessários ao combate da pandemia. Infelizmente, os Estados-Membros parecem relutar em exigir a partilha de conhecimento e PI como condição para empresas receberem financiamento público mobilizado para apoiar pesquisas relevantes. Em janeiro de 2021, as organizações People’s Vaccine Alliance e Health Action International (HAI) enviaram uma carta aberta ao Diretor-Geral da OMS expressando preocupação em relação ao progresso do C-TAP, bem como fizeram recomendações referentes à publicação de relatórios periódicos de monitoramento, transparência de dados e informações sobre os acordos de transferência de tecnologia1414 Oxfam International. The People´s Vaccine. Health Action International. Letter to Dr. Tedros Adhanom Ghebreyesus. 2021. [acesso em 2021 jan 1]. Disponível em: https://www.keionline.org/wp-content/uploads/HE-Dr-Tedros-Letter-from-Peoples-Vac-cine-Alliance-and-Health-Action-International.pdf.
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Por outro lado, a iniciativa Covax Facility, que se restringe ao financiamento de grandes empresas farmacêuticas em troca do fornecimento de doses limitadas de vacina contra a Covid-19 para países previamente identificados, tem recebido maior adesão de países, organizações e empresas. No entanto, a iniciativa não prevê acordos para a transferência de tecnologia, mantendo-se a lacuna de conhecimento de desenvolvimento tecnológico, bem como não dispõe sobre o compartilhamento de PI nem sobre transparência nos acordos com outros países.
Considerando que disputas de patentes emergentes podem afetar a fabricação e o fornecimento de produtos médicos, e em atenção à necessidade de resposta rápida e verdadeiramente global no enfrentamento da Covid-19, em outubro de 2020, a Índia e a África do Sul fizeram uma submissão conjunta ao Conselho do Acordo TRIPS da OMC, a qual ficou conhecida como ‘TRIPS Waiver’1515 World Trade Organization. IP/C/W/669. Waiver from certain provisions of the TRIPS Agreement for the prevention, containment and treatment of Co-vid-19. 2020 out 20. [acesso em 2021 jan 1]. Disponível em: https://docs.wto.org/dol2fe/Pages/SS/direc-tdoc.aspx?filename=q:/IP/C/W669.pdf&Open=True.
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. A proposta buscou obter a isenção temporária da implementação, aplicação e cumprimento de disposições do Acordo TRIPS relacionadas com direitos autorais, desenho industrial, patentes e proteção de informações não divulgadas, a fim de garantir prevenção, contenção e tratamento da Covid-19. É mister apontar que, na apresentação da proposta, enquanto a maioria dos países de baixa e média renda (incluindo a China) apoiou ou se absteve, alguns países de renda alta e média-alta (inclusive o Brasil) opuseram-se. Em declaração sobre a proposta do ‘TRIPS Waiver’, a União Europeia (UE) afirmou que “não há indicação de que as questões de direitos de PI são uma barreira genuína às tecnologias relacionadas à Covid-19”1616 Knowledge Ecology International. WTO TRIPS Council (October 2020): European Union dismisses concerns that IPRs are a barrier to Covid-19 medicines and technologies. 2020 out 20. [acesso em 2021 jan 1]. Disponível em: https://www.keionline.org/34275.
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.
Por outro lado, o representante da África do Sul afirmou em reunião formal do Conselho do TRIPS de fevereiro de 2021 que:
Independentemente da quantidade de dinheiro que qualquer país doador possa lançar no problema, o modelo de doação e conveniência filantrópica não pode resolver a desconexão fundamental entre o modelo de monopólio que ele subscreve e o problema com a filantropia é que ela não pode comprar igualdade1717 World Trade Organization. TRIPS Council regular meetings. [acesso em 2021 fev 20]. Disponível em: https://www.wto.org/english/tratop_e/trips_e/intel6_e.htm.
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Se a isenção fosse concedida, seriam eliminadas importantes barreiras que existem hoje para um melhor acesso aos produtos essenciais relacionados com a Covid-19, possibilitando a diversificação da produção por meio de transferência de tecnologia, o estímulo à inovação e a diminuição dos preços dos produtos. É preciso salientar que países que usaram as flexibilidades TRIPS, como licença compulsória, estão sob intensa intimidação e persuasão pelos países de alta renda no comércio e na diplomacia internacional1818 World Trade Organization. IP/C/W/672. Waiver from certain provisions of the TRIPS Agreement for the prevention, containment and treatment of Covid-19. 2021. [acesso em 2021 jan 1]. Disponível em: https://docs.wto.org/dol2fe/Pages/SS/directdoc.aspx?filename=q:/IP/C/W672.pdf&Open=True.
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, 1919 South Centre. Alcance de la licencia obligatoria y el uso gubernamental de medicamentos patentados en el contexto de la pandemia de Covid-19. 2020. [acesso em 2021 jan 1]. Disponível em: https://www.sou-thcentre.int/wp-content/uploads/2020/04/Covid-19--CL-Table-ES.pdf.
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. O argumento de que os direitos de PI são necessários para financiar a inovação não é consistente e perde ainda mais força quando se verificam a dependência do financiamento de doadores e os acordos de compra antecipada na P&D para Covid-19.
Países como os Estados Unidos da América (EUA) e membros da UE conseguiram criar condições financeiras para o desenvolvimento rápido das vacinas, não com o objetivo de bem--estar coletivo ou até mesmo individual, mas com a prioridade de recolocar suas economias de volta em funcionamento, reproduzindo a coisificação da vida e colocando a doença no centro das atenções.
O encontro anual do Fórum Econômico Mundial (WEF, na sigla em inglês), realizado em junho de 2020, intitulado ‘Great Reset’, apontou a Covid-19 como oportunidade que criou condições para um novo acordo ‘verde’ e uma ‘reinicialização’ do sistema. Para esse Fórum, termos como sustentabilidade, quarta revolução industrial, mudança climática, biotecnologia e inteligência artificial são considerados catalisadores da capitalização da vida e fatores de recuperação de mais uma crise cíclica do capital2020 World Economic Forum. The Great Reset. [acesso em 2021 jan 30]. Disponível em: https://www.wefo-rum.org/great-reset/.
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. Esses termos são de interesse público, no entanto, não são delineados para alcançar mudanças estruturais necessárias para transformar a saúde de todos. Não é de espantar que grandes corporações biofarmacêuticas, grandes filantrópicas da saúde e até a ONU são parceiras do WEF.
Com a pandemia, fica ainda mais evidente a necessidade de produção suficiente de equipamentos e insumos, abastecimento e preços acessíveis em todas as regiões. Estatísticas do comércio mostram que apenas uma pequena fração da produção mundial adicional de suprimentos relacionados com a Covid-19 alcançou os países de baixa renda2121 United Nations. United Nations Conference on Trade and Development. Global trade: a frail recovery in the second half of 2020. [acesso em 2021 jan 1]. Disponível em: https://unctad.org/system/files/official--document/ditcinf2020d4_en.pdf.
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. O Diretor-Geral da OMS, durante o 148º encontro do Comitê Executivo, alertou o mundo de que, no “limite do fracasso moral catastrófico, o preço desse fracasso será pago com vidas e meios de subsistência nos países mais pobres do mundo”2222 World Health Organization. WHO Director-General’s opening remarks at 148th session of the Executive Board. 2021. [acesso em 2021 jan 1]. Disponível em: https://www.who.int/director-general/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-148th--session-of-the-executive-board.
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(1).
Para Sunyoto et al.2323 Sunyoto T, Vieira M, Moon S, et al. Research Synthesis: Biosecurity Research and Development (R&D). KNOWLEDGE PORTAL on innovation and access to medicines. 2020. [acesso em 2021 jan 1]. Disponível em: https://www.knowledgeportalia.org/biose-curityrd.
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(27), “a pandemia de Covid-19 provavelmente terá impactos profundos nas abordagens nacionais e globais de P&D em biossegurança”, tais como a estratégia nacional dos EUA de resposta à Covid-19 por meio da operação ‘Warp Speed’ e as prioridades elencadas pelo ‘NIH-Wide Strategic Plan for Covid-19 Research’2424 Leineweber FV, Bermudez JAZ. A influência da resposta dos EUA à Covid-19 no contexto da Saúde Global. Ciênc. Saúde Colet. No prelo 2021. [acesso em 2021 jan 1]. Disponível em: http://www.cienciae-saudecoletiva.com.br/artigos/a-influencia-da-res-posta-dos-eua-a-covid19-no-contexto-da-saude--global/17832?id=17832.
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. Tal situação pode ser também influenciada pelos efeitos políticos do uso de narrativas de guerra contra a Covid-19 por países e pela OMS, o que reforça o discurso de “países culpados”, ou seja, “fontes externas de culpa” ou “inimigos”2525 Wright India. Are We at War? The Politics of Securitizing the Coronavirus. 2021 jan 10. [acesso em 2021 jun 1]. Disponível em: https://www.e-ir.info/pdf/89284.
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(3). Para Wright2525 Wright India. Are We at War? The Politics of Securitizing the Coronavirus. 2021 jan 10. [acesso em 2021 jun 1]. Disponível em: https://www.e-ir.info/pdf/89284.
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(4), as políticas de securitização da Covid-19 “aumentam as tensões e inseguranças dentro e entre os estados, aumentando as desigualdades e dificultando uma resposta global coordenada”. A autora também aponta que
designar o vírus como uma questão de segurança é um movimento político que enquadra os debates globais sobre saúde de maneiras que não ajudam com o objetivo final da cooperação internacional em saúde2525 Wright India. Are We at War? The Politics of Securitizing the Coronavirus. 2021 jan 10. [acesso em 2021 jun 1]. Disponível em: https://www.e-ir.info/pdf/89284.
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Salienta-se a necessidade de reconhecer que a Covid-19 aprofunda vulnerabilidades individuais, comunitárias e estruturais do nosso tempo, e revela efeitos da relação saúde-ambiente, além das precariedades dos sistemas de saúde.
Essas iniciativas de governança global da saúde estão servindo a todos os países?
A diplomacia em saúde global pode ser entendida como um conjunto de práticas pelas quais vários atores tentam coordenar e orquestrar soluções de políticas globais com o argumento da saúde global2626 Ruckert A, Labonté R, Lencucha R, et al. Global health diplomacy: A critical review of the literature. Soc Sci Med. 2016 [acesso em 2021 jun 1]; (155):61-72. Disponível em: 10.1016/j.socscimed.2016.03.004.
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, por meio de negociações de estratégias e alianças, gestão de doadores e partes interessadas, atuando nas relações entre países2727 Martins P, Aguiar ASW, Mesquita CAM, et al. Diplomacia da saúde global: proposta de modelo concei-tual. Saude soc. 2017; 26(1):229-239.. Por outro lado, para Basile2828 Basile G. Clacso. La salud internacional Sur Sur: ha-cia un giro decolonial y epistemológico. [acesso em 2021 jun 1]. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/gt/20190320033726/II_DOSSIERS_DE_SALUD_INT_SUR_SUR_GT2019.pdf.
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(16), essa saúde global é entendida como “caminho entre globalização, hegemonia neoliberal e mercantilização global da vida”. Assim, é preciso analisar em sua totalidade como a diplomacia em saúde global afeta o panorama das políticas e do mercado biofarmacêutico global e suas implicações na saúde dos povos do nível local ao global.
Estratégias de acesso a medicamentos e outros produtos para saúde precisam estar alinhadas com a busca pela redução das profundas assimetrias na produção e acesso a essas tecnologias entre os povos de países centrais e periféricos2929 OXFAM International. Small group of rich nations have bought up more than half the future supply of leading Covid-19 vaccine contenders. 2020. [acesso em 2021 jun 1]. Disponível em: https://www.oxfam.org/en/press-releases/small-group-rich-nations-ha-ve-bought-more-half-future-supply-leading-covid-19.
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, 3030 Callaway E. The unequal scramble for coronavirus vaccines - by the numbers. Nature. 2020 [acesso em 2021 jun 1]; (584):506-507. Disponível em: https://doi.org/10.1038/d41586-020-02450-x.
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. No entanto, nestes tempos de pandemia, sobressaiu o protecionismo nacional na aquisição de vacinas, máscaras, respiradores, testes reagentes e força de trabalho, em detrimento da diplomacia da assistência integral e da saúde global, com um cotidiano de emergência que pode colocar ainda mais no fim da fila outras questões de saúde relevantes3131 Sanahuja JA. Covid-19: riesgo, pandemia y crisis de gobernanza global. Anuário CEIPAZ, 2019-2020. Madrid: Ceipaz; 2020..
Para Almeida3232 Almeida C. Saúde, política externa e cooperação sul--sul em saúde: elementos para a reflexão sobre o caso do Brasil. In: Fundação Oswaldo Cruz. A saúde no Brasil em 2030 - prospecção estratégica do sistema de saúde brasileiro: desenvolvimento, Estado e políticas de saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; Ipea; Ministério da Saúde; Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República; 2013. vol. 1. p. 233-327.(273),
A premissa central que orienta o sistema da OMC é que o bem-estar humano aumentará com o crescimento econômico baseado na liberalização do comércio num contexto de regras não discriminatórias e transparentes.
Nesse contexto, a autora argumenta que não há vinculação entre os benefícios do comércio global e sólidas políticas sociais nem na aplicação de princípios e métodos da saúde pública na formulação e implementação das políticas comerciais. Tecnologias biofarmacêuticas, além de estarem sob direitos de PI de diversas patentes no mesmo produto, também podem estar sob direitos de certificados de proteção suplementar, segredos comerciais, e inúmeras estratégias de evergreening como maneira de postergar a patente, entre outros mecanismos.
As tomadas de decisões comerciais impactam diretamente na saúde e acontecem no âmbito da OMC, no qual a OMS tem papel e influência superficial, e os países de renda baixa e média têm pouca voz e influência nas decisões. O sistema de PI tem reproduzido escassez artificial e privação, em que preço e capacidade de produção são manipulados como fontes de riqueza para uns e privação de muitos, reforçando a desigualdade estrutural. Para Thambisetty3333 Thambisetty S. Vaccines and patents: how self-interest and artificial scarcity weaken human solidarity. London School of Economics and Political Science. 2021. [acesso em 2021 jun 1]. Disponível em: https://www.printfriendly.com/p/g/LKnS8y.
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(2), as patentes:
Dependem de um comportamento de interesse próprio para impulsionar a inovação e, ao fazer isso, enfraquecem o altruísmo, a colaboração e qualquer noção de trabalho intelectual para promover o bem comum.
Licenças compulsórias, apesar da importância da utilização, têm se mostrado insuficientes para minimizar essas assimetrias, pois, entre outras fragilidades, os termos e as condições que limitam a competição e a ausência de obrigação legal de ampla transparência dificultam a P&D e compõem escopo geográfico restritivo. Outro exemplo de sobreposição do direito à saúde por direitos comerciais está na crescente financeirização do setor biofarmacêutico, fusões e aquisições de startups que, com o tempo, vão ganhando valor de mercado, o que influencia a falta de detalhamento dos custos de P&D do produto. Essa falta de transparência dá às empresas biofarmacêuticas vantagem nas negociações de preços e competitividade, especialmente aquelas com tecnologias de monopólio3434 Bermudez J. Os medicamentos e tecnologias farmacêuticas como uma questão estratégica para a viabilidade do Sistema Único de Saúde. Physis. 2018 [acesso em 2021 jun 1]; 28(1):e280102. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/s0103-73312018280102.
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.
Conforme relatado por Sarpatwari et al.3535 Sarpatwari A, Avorn J, Kesselheim AS. State Initiatives to Control Medication Costs - Can Transparency Legislation Help? N Engl J Med. 2016; 374(24):2301-2304. Disponível em: doi:10.1056/NEJMp1605100.
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(2303),
O conhecimento mais amplo do custo do desenvolvimento de medicamentos pode levar ao estabelecimento de melhores incentivos para impulsionar a inovação para áreas de alta importância para a saúde pública.
Nesse contexto, a transparência é um valor central para o acesso a medicamentos, como uma questão de direitos humanos3636 Harvard. FXB Center for Health and Human Rights. Access to medicines and human rights. In: Health and Human Rights Resource Guide. Chapter 10. [acesso em 2021 jun 1]. Disponível em: https://www.hhrguide.org/2017/06/09/access-to-medicines-and-human-rights/.
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, 3737 Perehudoff K, T Hoen E. Human Rights and Intellectual Property for Universal Access to New Essential Medicines. In: Equitable Access to High-Cost Pharmaceuticals. [s.l.]: Elsevier; 2018. p. 67-87. e deve estar alinhada com os princípios da ciência aberta, tais como Open data, Open access, Open methods, Open peer review, Open source e Open resources3838 Gallagher RV, Falster DS, Maitner BS. et al. Open Science principles for accelerating trait-based science across the Tree of Life. Nat Ecol Evol. 2020 [acesso em 2022 abr 25]; (4):294-303. Disponível em: https://doi.org/10.1038/s41559-020-1109-6.
https://doi.org/10.1038/s41559-020-1109-...
.
Tal cenário de opacidade implica barreiras para a P&D e para a produção pública nos países periféricos. Para Ido3939 Ido VHP. Transparência no setor farmacêutico: uma nova dimensão do debate internacional sobre acesso a medicamentos?. Trab. educ. saúde. 2019 [acesso em 2022 abr 25]; 17(3):e0022656. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00226.
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(3),
Mesmo que a transparência do setor farmacêutico aumente, e que governos deem passos para tal [...]. Nesse sentido, também é necessário que esta agenda permita refletir, de modo mais amplo, sobre a persistência do conflito de interesses no âmbito da saúde, em especial no lobby indevido de determinados atores privados na determinação de políticas públicas e negociações internacionais.
Ademais, a transparência deve garantir também o detalhamento das contribuições dos investidores e seus riscos4040 Torreele E. Business-as-Usual will not Deliver the Covid-19 Vaccines We Need. Development (Rome). 2020 [acesso em 2022 abr 25]; 63(2-4):191-199. Disponível em: https://doi:10.1057/s41301-020-00261-1.
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.
Nos países centrais, há concentração biotecnológica e de PI, enquanto nos países periféricos, reproduzem-se a dependência e a vulnerabilidade tecnológica, aprofundadas pelo prejuízo na compra internacional devido à desvalorização de outras moedas em relação ao dólar e ao euro. Nesse sentido, medidas de restrições ou liberalização temporária do comércio de produtos para saúde que ocorreram durante a pandemia podem ter reflexos diferentes em países do norte e do sul4141 Ismail F. WTO reform and the crisis of multilateralism: A Developing Country Perspective. Geneva: South Centre; 2020. [acesso em 2022 abr 25]. Disponível em: https://www.southcentre.int/wp-content/uploads/2020/09/Bk_2020_WTO-reform-and-the--crisis-of-multilateralism_EN.pdf.
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. Para Velásquez4242 Velásquez G. Rethinking R&D for Pharmaceutical Products After the Novel Coronavirus COVID-19 Shock. Geneva: South Centre. (Policy Brief. nº 75) 2020. [acesso em 2022 abr 25]. Disponível em: https://www.southcentre.int/wp-content/uploads/2020/04/PB-75-Rethinking-RD-after-COVID-19-Shock-REV.pdf.
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(3):
Um tratado ou convenção global vinculante, negociado na OMS, poderia permitir o financiamento sustentável da pesquisa e do desenvolvimento de medicamentos úteis e seguros a preços acessíveis à população e aos sistemas públicos de seguridade social. A adoção de tal convenção no âmbito da OMS, com base no artigo 19 de sua constituição, também poderia possibilitar uma revisão da forma como a OMS atua em um sentido mais amplo.
Para isso acontecer, é preciso exigir envolvimento político e técnico por parte dos Estados-Membros e da sociedade civil para a consideração adequada de estratégias re-gulatórias ou fiscais que subsidiem limites e metas graduais a serem acordadas com entidades do setor privado, como ocorreu, por exemplo, na Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco. Ademais, questões como evidências do mundo real, preços de medicamentos, novas terapias curativas, modelos de pagamento alternativos baseados em valor, transparência de preços, tecnologias digitais, medicina de precisão, envelhecimento da população e universalidade de saúde precisam ser discutidas de maneira crítica, em especial, quanto ao vínculo com a lógica de financeirização e à necessidade de serem orientadas pela perspectiva de saúde pública.
As iniciativas apontadas na seção anterior possuem limitadores em que ainda privilegiam a cosmovisão da saúde hegemônica do sistema mundo contemporâneo. Entre os limitadores, estão: a) fuga de talento humano do sul para o norte global; b) regime de direitos de PI em prol do lucro corporativo, e não do acesso global; c) políticas comerciais que sancionam a redução da proteção tarifária e taxas de exportação em países periféricos; d) desvinculação às determinações sociais da saúde local; e) sistemas de saúde fragmentados e mercantilizados4343 Global Health Watch. O que é o WHO Watch?. 2021. [acesso em 2022 abr 25]. Disponível em: https://www.ghwatch.org/who-watch/about.
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.
A OMS tem empenhado ações tímidas sobre os componentes do uso racional de medicamentos. Enquanto isso, a padronização de nomenclatura para medicamentos biológicos e biossimilares tem avançado e é tema de grande interesse de negócios, pois impacta na concorrência entre esses produtos4444 World Health Organization. WHO Expert Committee on Biological Standardization. 2021. [acesso em 2022 abr 25]. Disponível em: https://www.who.int/biologicals/expert_committee/en/.
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. Essa situação é agravada com a atuação de corporações e países influentes na manutenção de assimetrias estruturais no sistema internacional, tais como na supremacia de poder econômico na influência em arenas multilaterais, tanto no âmbito das decisões finais quanto na construção das regras e orientações, bem como no esvaziamento de iniciativas que não são do respectivo interesse. As iniciativas de cooperação internacional em andamento e seus stakeholders não têm minimizado essas assimetrias.
Importância de reconstruir os fóruns multilaterais
Multilateralismo é definido como arranjos que envolvem mais de dois Estados, enquanto instituições multilaterais são entendidas como arranjos multilaterais com um conjunto de regras4545 Keohane R. Multilateralism: an agenda for research. Inter. J. 1990; 45(4):731-764.. Já Ruggie4646 Ruggie J. Multilateralism: the anatomy of an institution. Inter Org. 1992; 48(3):561-598. vai além, apontando que esses arranjos entre três ou mais Estados são coordenados por certos princípios e condutas gerais, em uma abordagem mais qualitativa.
Ademais, Ruggie4646 Ruggie J. Multilateralism: the anatomy of an institution. Inter Org. 1992; 48(3):561-598.(571) considera que, diferentemente do multilateralismo, “o imperialismo é outra forma de coordenar as relações entre três ou mais Estados, no entanto, negando a soberania dos Estados sujeitos”. Essa internacionalização dos Estados está articulada ao chamado ‘império informal americano’, no qual este coordena as demais potências do norte global de forma integrada e até mesmo a China, sem grandes contestações a essa engrenagem4747 Garcia A, Bugiato CM. Repensando o estado e imperialismo nas relações internacionais: as contribuições teóricas de Leo Panitch. Rev Est. Intern. 2019; (10):3-18., mesmo com a atual competição entre EUA e China. Esse contexto pode ser elucidado pelas críticas que a OMC tem recebido por supostamente não incorporar e abordar as preocupações e apontamentos de países em desenvolvimento quanto ao TRIPS Waiver, colocando esses países à margem da tomada de decisão4848 Geneva Health Files. Is the ‘Walker Process’ at the WTO undermining the TRIPS Waiver? Newsletter Edition. 2021 [acesso em 2022 abr 25]; (108). Disponível em: https://genevahealthfiles.substack.com/p/is-the-walker-process-at-the-wto?justPublished=true.
https://genevahealthfiles.substack.com/p...
, 4949 Global civil society protest against. WTO pushing ‘Walker text’, sidelining TRIPS waiver. [acesso em 2022 abr 25]. Disponível em: https://www.thehindubusinessline.com/news/national/global-civil-so-ciety-protest-against-wto-pushing-walker-text-side-lining-trips-waiver/article37596283.ece.
https://www.thehindubusinessline.com/new...
.
Para Lima e Albuquerque5050 Lima MRS, Albuquerque M. Reordenamento global, crise do multilateralismo e implicações para o Brasil. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Relações Internacionais; Policy Note; 2020. p. 4-12. [acesso em 2022 abr 25]. Disponível em: https://www.cebri.org/br/doc/6/reordenamento-global-crise-do-multilate-ralismo-e-implicacoes-para-o-brasil.
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, os organismos internacionais prometem garantir coordenação entre desiguais, por meio de mecanismos, tais como reciprocidade, transparência, pluralidade de opiniões e identidades, e legitimidade. No entanto, verifica-se a incapacidade transformadora desses mecanismos, o que se reflete em crise de legitimidade do multilate-ralismo e suas instituições. As autoras sugerem “aumentar a diversidade cultural e a representação nacional”5050 Lima MRS, Albuquerque M. Reordenamento global, crise do multilateralismo e implicações para o Brasil. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Relações Internacionais; Policy Note; 2020. p. 4-12. [acesso em 2022 abr 25]. Disponível em: https://www.cebri.org/br/doc/6/reordenamento-global-crise-do-multilate-ralismo-e-implicacoes-para-o-brasil.
https://www.cebri.org/br/doc/6/reordenam...
(10) como estratégia anti status quo da assimetria de poder nas arenas multilaterais, mas há limites nessa estratégia.
Por outro lado, o chamado ‘multistakeholderism’ é definido por Raymond e DeNardis5151 Raymond M, DeNardis L. Multistakeholderism: anatomy of an inchoate global institution. Inter. Theory. 2015 [acesso em 2022 abr 25]; 7(3):572. Disponível em: https://doi.org/10.1017/S1752971915000081.
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(573) como o engajamento entre duas ou mais categorias de atores, tais como Estado, organizações intergovernamentais, empresas e sociedade civil, envolvidas em questões que envolvam valores e interesse público importante e por “relações poliárquicas de autoridade constituídas por regras procedimentais” e que despendem algum esforço para influenciar a gestão de questões públicas.
No âmbito da saúde, apesar da permeabilidade danosa da OMS, ainda é importante insistir em uma governança baseada em princípios de cooperação e solidariedade e no papel constitucional da OMS como autoridade líder e coordenadora de saúde global, definindo regras de saúde pública e soluções concretas em nível global e com corresponsabilização em nível local, não só nas emergências. Para isso, faz-se necessário: participação social e governança participativa com transparência e sem conflito de interesse ou captura corporativa; incorporação de atores que têm ficado à margem das negociações, tais como especialistas e instituições não governamentais dos países periféricos5252 Geneva Global Health Hub. The politics of a WHO pandemic treaty in a disenchanted world. Conference version of the G2H2. 2021. [acesso em 2022 abr 25]. Disponível em: https://g2h2.org/wp-content/uplo-ads/2021/11/G2H2-Politics-of-a-WHO-Pandemic--Treaty-Conference-version.pdf.
https://g2h2.org/wp-content/uplo-ads/202...
; e apoio à OMS, disputando-a nos interesses coletivos comuns e cooperações realmente exequíveis.
Além disso, é preciso que seus Estados-Membros atuem para além da mentalidade colonial, da retórica moral, negociações frágeis, autopromoção e da permeabilidade às corporações5353 Almeida C, Campos RP. Multilateralismo, ordem mundial e Covid-19: questões atuais e desafios futuros para a OMS. Saúde debate. 2021; 44(esp4):13-39., apesar da conjuntura tão desafiadora. A OMS não pode ser apenas uma figura simbólica e de elaboração de documentos técnicos e resoluções frágeis. Ao mesmo tempo, uma nova arquitetura global da saúde5454 World Health Organization. Global Leaders unite in urgent call for international pandemic treaty. 2021. [acesso em 2022 abr 25]. Disponível em: https://www.who.int/news/item/30-03-2021-global-leaders-unite-in-urgent-call-for-international-pandemic-treaty.
https://www.who.int/news/item/30-03-2021...
ou arranjos vinculativos5555 Friedman EA. “Towards a Framework Convention on Global Health: A Transformative Agenda for Health Justice”. Yale J. Health Pol. Law, Ethics. 2013. [acesso em 2022 abr 25]; 3(1). Disponível em: https://digitalcommons.law.yale.edu/yjhple/vol13/iss1/1/.
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por si sós não são suficientes para mudar a estrutura de poder, ainda favorável aos interesses corporativos e restrita ao modelo biomédico5656 Schrecker T. Globalization and Health: Political Grand Challenges. Rev. Inter. Pol. Economy. 2019; 26-47. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/09692290.2019.1607768.
https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1...
.
A Declaração da Sociedade Civil em 2017, apresentada durante a eleição do novo DiretorGeral da OMS, entre outras questões, clamou por uma OMS com
Voz de liderança para a Saúde para Todos entre os atores internacionais e multilaterais, assumindo uma posição corajosa em prol da saúde pública em relação às ações potencialmente prejudiciais realizadas por outras entidades, como no campo do Acesso a Medicamentos Essenciais e Direitos de PI5757 Geneva Global Health Hub. The WHO we want and the leadership WHO needs. A message from civil society. 2017. [acesso em 2022 abr 25]. Disponível em: http://g2h2.org/posts/nextdg/.
http://g2h2.org/posts/nextdg/... (1).
Essa declaração mantém-se atual, pois, em meio à vulnerabilidade financeira de dependência de doadores com seus interesses individuais, bem como o possível fracasso na coordenação de algumas iniciativas de pesquisa colaborativa para o enfrentamento da Covid-19, é urgente recuperar progressivamente o caráter multilateral e normativo da OMS, adiante da missão de promover, preservar e regular a saúde pública global, apesar das frágeis obrigações legais e vinculantes5858 Velásquez G. World Health Organization Reforms in the Time of Covid-19. Geneva: South Centre; 2020. [acesso em 2022 abr 25]. Disponível em: https://www.southcentre.int/wp-content/uploads/2020/11/RP-121.pdf.
https://www.southcentre.int/wp-content/u...
, 5959 Gostin LO, Moon S, Meier BM. Reimagining Global Health Governance in the Age of COVID-19. Ame. J. Pub. Health. 2020 [acesso em 2022 abr 25]; 110(11):1615-1619. Disponível em: https://doi.org/10.2105/AJPH.2020.305933.
https://doi.org/10.2105/AJPH.2020.305933...
.
Nay et Al.6060 Nay O, Kieny MP, Mármora L, et al. The WHO we want. Lancet. 2020 [acesso em 2022 abr 25]; 395(10240):1818-1820. Disponível em: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31298-8.
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31...
(1819) apontam que
a OMS não recuperará sua autoridade total se os Estados Membros não renunciarem a algumas de suas prerrogativas nacionais em benefício da saúde pública global.
Se em uma pandemia todos são afetados, mesmo que desigualmente, os espaços de governança deveriam abordar o acesso a tecnologias da saúde como direito comum e de solidariedade. As doações de países de alta renda e outros atores não deveriam sobrepor a isonomia de poder de negociação nem inviabilizar a efetivação de resoluções e planos. A Declaração da sociedade civil apoiando a OMS afirma que:
É chegada a hora de todos os Estados-Membros da OMS reconhecerem e apoiarem o imenso valor da organização em enfrentar de forma abrangente os desafios de saúde que temos pela frente devido às mudanças climáticas e outras ameaças, em vez de usar seus próprios erros como desculpa para enfraquecer ainda mais a liderança da organização e o seu papel na proteção da saúde global6161 Geneva Global Health Hub. Time to rally behind the World Health Organization. A civil soc. Stat. 2020. [acesso em 2022 abr 25]. Disponível em: http://g2h2.org/posts/time-to-rally/.
http://g2h2.org/posts/time-to-rally/... (1).
O envolvimento com entidades do setor privado na implementação de ações da OMS evidencia conflitos de interesses, especialmente devido à falta de financiamento independente da OMS. Consequentemente, a organização está insuficientemente protegida de influências indevidas de lobbies do setor industrial. No multistakeholderismo, apesar da previsão de participação de múltiplos atores – incluindo organizações internacionais, setor privado, fundações filantrópicas, parcerias público-privadas globais e sociedade civil –, não há definição padronizada dos stakeholders nem accountability, governança ou mandatos representativos. Assim, o multistakeholderismo permite que corporações transnacionais ampliem seus interesses e imagem, por meio do envolvimento de atores que abordam questões éticas e sociais, mas com interesses privados de fundo.
A governança de múltiplos atores desconsidera padrões de prevenção de conflitos de interesse, transparência das finanças ou transações financeiras dos membros e proteções democráticas fundamentais. Por outro lado, há interesse próprio corporativo, muitas vezes com tomadas de decisão direcionadas ao lucro e contrárias ao interesse público. Relatório do Transnational Institute6262 Transnational Institute. Multistakeholderism: a critical look. Workshop report. 2019 mar. [acesso em 2022 abr 25]. Disponível em: https://www.tni.org/en/publication/multistakeholderism-a-critical-look.
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exemplifica alguns efeitos colaterais do multistakeholderismo, como no caso do GAVI Alliance, o qual não aborda o fortalecimento dos sistemas de saúde públicos e universais como eixo estratégico para a imunização.
Quanto ao ‘multistakeholderismo’, é preciso combater toda forma de partes interessadas com fins lucrativos que enfraquecem a tomada de decisão de Estados-Membros, que apresentam conflitos de interesses, que sejam prejudiciais ao equilíbrio de poder, antidemocráticas e que deixem os países e as populações à mercê de interesses privados. Para Dowbor6363 Dowbor L. Contra o ultracapitalismo, as velhas armas não servem. Outras Palavras. 2020. [acesso em 2022 abr 25]. Disponível em: https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/dowbor-contra-o-ultra-capitalismo-as-velhas-armas-nao-servem/.
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(1):
Nesta era em que a concentração planetária da riqueza social em poucas mãos está se tornando insustentável, entender o mecanismo de geração e de apropriação dessa riqueza é fundamental.
O anteriormente referido ‘Great Reset’, organizado pelo Fórum Econômico Mundial, o qual inclui aspectos ambientais e de acesso a vacinas, é uma amostra de como o ‘multistakeholderismo’ está tentando deixar o multilateralismo obsoleto na abordagem de complexas questões globais. Organizações da sociedade civil organizada têm chamado o ‘Great Reset’ de ‘Great Take Over’, ou seja, a grande captura da governança global6464 Transnational Institute. Time for a Democratic Reset – Global Crises Need Global Governance in the Public Interest Open Letter to the Global International Community. 2021. [acesso em 2022 abr 25]. Disponível em: https://www.cognitoforms.com/Multistakehol-derismActionGroup/TimeForADemocraticResetGlobalCrisesNeedGlobalGovernanceInThePublicInterest.
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. Além disso, a parceria do Fórum Econômico Mundial com a ONU tem conduzido a uma governança multistakeholder que drena dinheiro público e aproveita a legitimidade da ONU para iniciativas de empresas transnacionais6565 Birn AE, Nervi L. “(Re-)Making a People’s WHO”, Ame. J. Pub Health. 2020 [acesso em 2022 abr 25]; 110(9):1352-1353. Disponível em: https://doi.org/10.2105/AJPH.2020.305806.
https://doi.org/10.2105/AJPH.2020.305806...
. Nesse sentido, pode-se mencionar como exemplo a iniciativa Covax Facility, que trouxe diversas decisões para fora da OMS. Outras articulações multilaterais alternativas, como o Paris Peace Forum6666 Paris Peace Forum. The 2020 Program. 2020. [acesso em 2022 abr 25]. Disponível em: https://parispe-aceforum.org/program-2020/.
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, no qual arrecadaram-se fundos e alinharam-se estratégias, e a European Health Union6767 European Health Union. Protecting the health of Europeans and collectively responding to cross-border health crises. 2020. [acesso em 2022 abr 25]. Disponível em: https://ec.europa.eu/info/strategy/priorities-2019-2024/promoting-our-european-way-life/european-health-union_en.
https://ec.europa.eu/info/strategy/prior...
, ocorreram fora da estrutura de governança multilateral, incluíram vozes corporativas dominantes e provavelmente terão ramificações duradouras no futuro da governança global da saúde.
A ONU tem feito diversas parcerias multistakeholders, como o Plano de Ação Global para Vidas Saudáveis e Bem-estar para Todos6868 World Health Organization. Stronger Collaboration, Better Health: Global Action Plan for Healthy Lives and Well-being for All. Geneva: WHO; 2019.. Além disso, foi assinado um Acordo de Parceria Estratégica para a implementação da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, o que institucionalizou a captura corporativa da ONU, fornecendo acesso preferencial à formulação de iniciativas às empresas transnacionais6969 World Economic Forum. World Economic Forum and UN Sign Strategic Partnership Framework. 2019. [acesso em 2022 abr 25]. Disponível em: https://www.weforum.org/press/2019/06/world-economic-forum--and-un-sign-strategic-partnership-framework/.
https://www.weforum.org/press/2019/06/wo...
. Entre essas transnacionais, está a ‘big pharma’, que atua na privatização dos investimentos públicos e na manutenção do monopólio do mercado, e não para o acesso equitativo e universal. Situação que não se diferenciou com o recebimento de grandes somas de dinheiro público para P&D de insumos para saúde relacionados com a Covid-19.
Gleckman7070 Gleckman H. Multistakeholder Governance and Democracy. A Global Challenge. Londres: Routledge; 2018.(xv) questiona se
As atuais responsabilidades e obrigações exclusivas dos Estados-nação mudarão quando atores não-estatais poderosos tiverem um papel formal ou semiformal de tomada de decisão nas relações internacionais.
Acrescentam-se a isso a preocupação sobre como essas mudanças influenciam a participação da sociedade civil e do público em geral e como isso afeta diretamente nossas vidas diárias. A ascensão política (e aumento da riqueza) da elite transnacional, inclusive por meio de supostas estratégias de ‘benevolência’7171 Gleckman H. COVAX: A global multistakeholder group that poses political and health risks to developing countries and multilateralism. [acesso em 2022 abr 25]. Disponível em: https://longreads.tni.org/co-vax.
https://longreads.tni.org/co-vax...
, e uma perda de confiança nos governos podem contribuir para a falta de perspectiva da saúde como um direito e um bem comum e acessível a todos.
Relatórios de 2017 a 2020 elaborados pela Conferência da ONU sobre Comércio e Desenvolvimento recomendam a indução de crescimento inclusivo na era da digitalização, o fim da austeridade e das brechas fiscais e o contrabalanço ao poder corporativo7272 United Nations. United Nations Conference on Trade and Development. Trade and Development Report. 2021. [acesso em 2022 abr 25]. Disponível em: https://unctad.org/topic/macroeconomics/trade--development-report.
https://unctad.org/topic/macroeconomics/...
. No entanto, essas recomendações podem ser retóricas, sem realmente cortar o circuito que alimenta a dependência e sem ter a dignidade humana e a natureza como pilares em iniciativas que reconheçam as contradições da ‘inclusão’ e do ‘desenvolvimentismo’, atravessados pela nova geografia de dominação subsidiada pelas mudanças tecnológicas disruptivas e iniquidade crescente.
O multilateralismo precisa ser reconstruído por meio de estratégias que tornem as relações de poder menos desiguais, e as iniciativas, menos fragmentadas. Relações desiguais de poder político condicionam as políticas públicas – e como nós (sobre)vivemos, adoecemos e morremos – e privilegiam uma visão neoliberal de saúde. Para isso, o financiamento e a alocação dos recursos precisam ser assegurados, os temas precisam ser abordados de maneira integrada e articulada com as necessidades humanas, naturais e intergeracionais, viabilizando a participação das pessoas e populações subalternizadas nas formulações das questões globais estratégicas para a agenda global e na tomada de decisões.
Considerações finais
O discurso econômico das corporações farmacêuticas tem perpetuado a situação de escassez e exploração colonial, mesmo que disfarçadas de empresas capitalistas ‘pela vida’. Para promover efetivamente a AF para todos os povos, é mister o reconhecimento de produtos biofarmacêuticos como bens públicos e fundados em uma abordagem de saúde pública abrangente, participativa e inclusiva que integre direitos, dimensões sociais, tributação progressiva para reduzir a desigualdade e cancelamento de débitos dos países mais pobres. Ademais, verifica-se a importância de remodelar o ecossistema de P&D e de PI, com maior independência técnico-científica, financeira e política, maior autoridade e transparência da OMS; e que as diversas formas de conhecimento e inovação tenham a equidade e a universalidade como objetivos.
Subsidiar uma AF integrada, eficiente e orientada para a ampliação e o uso racional de medicamentos requer intervenções e reformas estruturais em todos os estágios da cadeia de valor, incluindo pesquisa, PI, produção, preço, regulamentação, sistemas e serviços de saúde, aquisição, análise da situação de saúde e abordagem das determinações sociais da saúde. É preciso considerar que países de renda baixa e média-baixa não conseguem participar de acordos de pré-compra; têm escassez de financiamento, injustiça tributária e fiscal, déficit no poder de compra (especialmente com demanda de baixa quantidade) para negociar preços dos produtos farmacêuticos e implantar serviços que promovam seu uso racional e apropriado. Em geral, possuem sistemas regulatórios frágeis e podem não ter a infraestrutura técnica necessária para a utilização adequada e segura dos produtos farmacêuticos.
A questão é se seremos capazes e estar dispostos a enfrentar a indústria farmacêutica, os sistemas privados e de seguros de saúde e as categorias profissionais que estão atravessadas pela subalternização em suas várias camadas e estratos. Sugerem-se maiores análises críticas e transdisciplinares com foco nas intersecções entre políticas relacionadas com produtos farmacêuticos, saúde pública e restrições econômicas que determinem as chances de saúde e bem viver em todos os lugares.
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Suporte financeiro: não houve
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Orcid (Open Researcher and Contributor ID).
Referências
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2World Health Organization. WHO model list of essential medicines - 22nd list, 2021. Geneva: WHO; 2021. [acesso em 2021 jan 1]. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/WHO-MHP-HPS--EML-2021.02
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3Gleckman H. Where we are now with the global governance of TNCS. Series of Three Visual Presentations – Part 1. [acesso em 2021 jan 1]. Disponível em: https://www.tni.org/files/article-downloads/13_msismvisualpresentations-overningtncsbymultilate-ralism_stateofplay.pdf
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4Gleckman H. Where we are now with the emergence of multistakeholderism. Series of Three Visual Presentations – Part 2.2020. [acesso em 2021 jan 1]. Disponível em: https://www.tni.org/files/article-downloads/23_msismvisualpresentations-_what_is_msism.pdf
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5Moraes RV. A atuação internacional do Ministério da Saúde no tema de acesso a medicamentos. In: Brasil. Ministério da Saúde. Assessoria de Assuntos Internacionais de Saúde. Saúde e Política Externa: os 20 anos da Assessoria de Assuntos Internacionais de Saúde (1998-2018). Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2018.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Jun 2022 -
Data do Fascículo
Apr-Jun 2022
Histórico
-
Recebido
13 Ago 2021 -
Aceito
23 Dez 2021