RESUMO
Este ensaio objetivou analisar como o Sistema Único de Saúde (SUS) tem lidado com o aumento da obesidade com indicação para cirurgia bariátrica no Brasil e apontar caminhos para a atenção à saúde integral dessa população. Fez-se um resgate do momento político-histórico de transformação epistemológica da obesidade e suas repercussões para indivíduos, sociedade, sistema de saúde e outros setores; expuseram-se alguns ataques sofridos pelo SUS, em especial os mais recentes, que afetam o já dificultoso acesso à cirurgia bariátrica; e refletiu-se sobre estratégias que buscam garantia da atenção à essa população e a sustentabilidade do sistema de saúde. Destacam-se os documentos produzidos pelo próprio Ministério da Saúde para a orientação do cuidado da obesidade, haja vista sua consonância com as evidências científicas mais atuais e sua utilização por outros países na construção de suas políticas. Ademais, reforça-se a importância do compartilhamento de responsabilidades entre todos os atores envolvidos; a regulamentação da publicidade voltada ao público que possui obesidade; o mandatório aumento de financiamento do SUS; e a utilização da avaliação em saúde de políticas, serviços e ações, para que se façam os ajustes necessários em tempo oportuno, garantindo uma melhor gestão do cuidado em saúde.
PALAVRAS-CHAVES
Obesidade; Cirurgia bariátrica; Atenção à saúde; Sistema Único de Saúde
ABSTRACT
This essay aims to analyze how the Unified Health System (SUS) has dealt with the increase in obesity with indication for bariatric surgery in Brazil, and to point out pathways to provide comprehensive health care for such population. There was a rescue of the political-historic moment of epistemological transformation of obesity and its repercussions for individuals, society, the health system, and other sectors; some attacks suffered by the SUS were exposed, especially the most recent ones, which affect the already difficult access to bariatric surgery; and it reflect on strategies that seek to guarantee care for that population and the sustainability of the health system. The documents produced by the Ministry of Health to guide obesity care stand out, given their consonance with the most current scientific evidence, and their use by other countries in the construction of their policies. Furthermore, it is reinforced the importance of sharing responsibilities among all the actors involved; the regulation of advertising aimed at the public with obesity; the mandatory increase in SUS funding; and the use of health evaluation of policies, services, and actions, so that the necessary adjustments are made in a timely manner and guarantee a better management of health care.
KEYWORDS
Obesity; Bariatric surgery; Delivery of health care; Unified Health System
Introdução
Nos últimos 50 anos, a prevalência de obesidade aumentou em todo o mundo, atingindo níveis de pandemia11 Blüher M. Obesity: global epidemiology and pathogenesis. Nature reviews. Endocrinology. 2019; 15(5):288-298.. Estima-se que, atualmente, quase um terço da população mundial possa ser classificada com sobrepeso ou obesidade. Se as tendências atuais permanecerem nesse valor, ele poderá chegar a 57,8% até 203022 Kelly T, Yang W, Chen CS, et al. Global burden of obesity in 2005 and projections to 2030. Int J Obes. 2008; 32(9):1431-7..
No Brasil, dados da última Pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico, em 2021, demonstraram que a prevalência do excesso de peso no País alcançou cerca de 80% da população, com 57,2% das pessoas apresentando sobrepeso (IMC ≥25); e 22,3%, obesidade (IMC ≥30)33 Brasil. Vigitel Brasil 2021: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico: estimativas sobre frequência e distribuição sociodemográfica de fatores de risco e proteção para doenças crônicas nas capitais dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal em 2021. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2021..
Autores concordam que o aumento da obesidade resulta de uma interação complexa entre mudanças no ambiente alimentar, atividade física, fatores socioeconômicos, ambientais e genéticos44 Silva MO, Branco AU. Obesity, Prejudice, Self, and Culture: A Longitudinal Case Study. Paidéia (Ribeirão Preto). 2019; (29):e2926.. Bluher11 Blüher M. Obesity: global epidemiology and pathogenesis. Nature reviews. Endocrinology. 2019; 15(5):288-298. destaca que ambientes obesogênicos influenciam nas escolhas de comportamento e estilo de vida.
Apesar de os dados epidemiológicos evidenciarem seu aumento generalizado, a face mais acentuada da obesidade se apresenta entre as famílias de baixa renda, seja pelas iniquidades relativas ao acesso aos serviços, seja pela possibilidade de exercerem hábitos considerados saudáveis. No Brasil, quanto às desigualdades no tocante à pobreza monetária, a proporção de pessoas pretas ou pardas com rendimento inferior às linhas de pobreza é maior que o dobro da proporção observada entre as brancas55 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. In: Estudos e pesquisas – Informação demográfica e sociedade. n. 41. Rio de Janeiro: IBGE; 2021. [acesso em 2023 jun 26]. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf.
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Segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO)66 Food and Agriculture Organization of the United Nations; International Fund for Agricultural Development; United Nations Children’s Fund; World Food Program; World Health Organization. The State of Food Security and Nutrition in the World 2020. Transforming food systems for affordable healthy diets. Roma: FAO; IFAD; UNCF; WFP; WHO; 2020., uma dieta saudável, rica em frutas e verduras, pode ser até cinco vezes mais cara que uma dieta que atenda apenas às necessidades básicas de energia. Ademais, Dantas e colaboradores77 Dantas MNP, Souza DLB, Souza AMG, et al. Fatores associados ao acesso precário aos serviços de saúde no Brasil. Rev. bras. epidemiol. 2021; (24):e210004. afirmam que pertencer a estratos socioeconômicos inferiores e possuir cor de pele preta ou parda são fatores associados à maior prevalência de acesso precário aos serviços de saúde na população brasileira.
Destaca-se, assim, que existe uma relação complexa entre raça, obesidade e nível socioeconômico, cuja especificidade se dá em função do contexto sócio-histórico. Para Oraka e colaboradores88 Oraka CS, Faustino DM, Oliveira E, et al. Raça e obesidade na população feminina negra: uma revisão de escopo. Saúde Soc. 2020; 29(3):e191003., as possíveis explicações para as disparidades raciais na obesidade residem em efeitos fisiológicos, psicológicos e culturais do estresse devido à discriminação racial.
Dessa forma, enquanto evento complexo, a obesidade requer uma abordagem sistêmica incluindo diversos setores da sociedade, como a comunidade científica, médica, a indústria de alimentos e farmacêutica, organizações sociais e, principalmente, o governo. O problema da obesidade não será revertido sem a liderança do governo, dados os diversos desafios políticos imbricados, como também não ocorrerá sem a pressão da sociedade por ações políticas11 Blüher M. Obesity: global epidemiology and pathogenesis. Nature reviews. Endocrinology. 2019; 15(5):288-298..
Entretanto, um ponto já assinalado por diversos autores é a persistência em considerarem a obesidade um problema individual, sem apreciar a questão social, conjectural e histórico-cultural. Culpabilizar o indivíduo é uma conhecida estratégia governamental utilizada para retirar a responsabilidade do Estado99 Rigo LC, Santolin CB. Combate à obesidade: uma análise da legislação brasileira. Movimento (Porto Alegre). 2012; 18(2):279-296.. A narrativa simplista de diversas políticas públicas de saúde, inclusive, segue o discurso de que a obesidade é promovida por irresponsabilidade individual e por falta de força de vontade, de consciência e de conhecimento das pessoas com obesidade sobre alimentação e atividade física, atribuindo, portanto, a responsabilidade da epidemia a essas pessoas1010 Salas XR, Forhan M, Caulfield T, et al. A critical analysis of obesity prevention policies and strategies. Can J Public Health. 2017; 108(5-6):e598-e608.. Essa narrativa da obesidade como um problema individual não é inteiramente baseada em evidências, visto que a relação de alimentação e atividade física com a obesidade é muito complexa99 Rigo LC, Santolin CB. Combate à obesidade: uma análise da legislação brasileira. Movimento (Porto Alegre). 2012; 18(2):279-296., 1010 Salas XR, Forhan M, Caulfield T, et al. A critical analysis of obesity prevention policies and strategies. Can J Public Health. 2017; 108(5-6):e598-e608..
Dias e colaboradores1111 Dias PC, Henriques P, Anjos LA, et al. Obesidade e políticas públicas: concepções e estratégias adotadas pelo governo brasileiro. Cad. Saúde Pública. 2017; 33(7):e00006016. afirmam que medidas individualizadas são importantes e podem, inclusive, subsidiar políticas públicas, mas chamam atenção para a forte influência que o complexo industrial da saúde tem no processo decisório do governo, bem como atentam que a medicalização da obesidade deve ser analisada à luz desse contexto de disputas de interesses.
Nesse sentido, Rigo e Santolini99 Rigo LC, Santolin CB. Combate à obesidade: uma análise da legislação brasileira. Movimento (Porto Alegre). 2012; 18(2):279-296. alertam que as pessoas em situação de obesidade se tornam alvo de uma disputa que engloba interesses econômicos de indústrias farmacêuticas, prestadores de serviços terapêuticos, políticos, entre outros.
Evidências já demonstraram que apenas intervenções no componente estilo de vida não são efetivas no manejo do peso em longo prazo1212 Polet J, Silva F, Santos T, et al. Effect of Lifestyle Intervention Programs on Weight-Loss and Maintenance in Obese Adults: A Systematic Review with Meta-Analysis and Trial Sequential Analysis. Current Developments in Nutrition. 2020; (4):1671.. Qualquer intervenção de componente único para prevenção ou tratamento da obesidade possivelmente produzirá efeitos menores e não duradouros no peso corporal, adiposidade e desfechos cardiometabólicos. O envolvimento de toda a sociedade e do governo aliado a ações regulatórias nos mercados são mandatórios para alcançar melhores resultados1313 Bahia L, Schaan CW, Sparrenberger K, et al. Overview of meta-analysis on prevention and treatment of childhood obesity. J Pediatr. 2019; (95):385-400..
Nesse cenário, a cirurgia bariátrica aparece como uma opção de tratamento para aqueles indivíduos que tentaram a perda de peso a partir de tratamentos conservadores (dieta, exercícios físicos e farmacoterapia) e falharam. No Brasil, a cirurgia bariátrica pode ser realizada pelo sistema público de saúde para pessoas com Índice de Massa Corporal (IMC) acima de 35 kg/m2 e outras comorbidades associadas; IMC acima de 40 kg/m2, que, mesmo sem a presença de comorbidades associadas, falharam no tratamento conservador; e IMC acima de 50 kg/m2 como primeira opção terapêutica devido ao elevado risco de morte1414 Brasil. Portaria de consolidação nº 3, de 28 de setembro de 2017. Dispõe sobre a Consolidação das normas sobre as redes do Sistema Único de Saúde. Anexo 1 do anexo IV diretrizes gerais para o tratamento cirúrgico da obesidade, Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2017..
São resultados atribuídos à cirurgia bariátrica: maior expectativa1515 Syn NL, Cummings DE, Wang LZ, et al. Association of metabolic-bariatric surgery with long-term survival in adults with and without diabetes: a one-stage meta-analysis of matched cohort and prospective controlled studies with 174 772 participants. Lancet. 2021; 97(10287):1830-1841., 1616 Cunha JB, Fialho MCP, Arruda SLM, et al. Bariatric surgery as a safe and effective intervention for the control of comorbidities in older adults. Geriatr Gerontol Aging. 2020; (14):207-212. e qualidade de vida1616 Cunha JB, Fialho MCP, Arruda SLM, et al. Bariatric surgery as a safe and effective intervention for the control of comorbidities in older adults. Geriatr Gerontol Aging. 2020; (14):207-212.; remissão ou redução das comorbidades associadas1616 Cunha JB, Fialho MCP, Arruda SLM, et al. Bariatric surgery as a safe and effective intervention for the control of comorbidities in older adults. Geriatr Gerontol Aging. 2020; (14):207-212., 1717 Castanha CR, Ferraz AAB, Castanha AR, et al. Avaliação da qualidade de vida, perda de peso e comorbidades de pacientes submetidos à cirurgia bariá-trica. Rev. Colégio Bras. Cirurg. 2018; 45(3):e1864.; melhora de sintomas psíquicos; elevação da autoestima, entre outros1818 Chaves LCL, Carvalho AH, Almeida HG, et al. Qualidade de vida de pacientes submetidos à cirurgia bariátrica, por meio da aplicação do questionário BAROS. Rev. para. Med. 2012; 26(3).. Além disso, a bariátrica possui, também, melhor custo-benefício aos sistemas de saúde quando comparada aos tratamentos conservadores (mudança de comportamento, terapia medicamentosa)1919 Imbus JR, Voils CI, Funk LM. Bariatric surgery barriers: a review using Andersen’s Model of Health Services Use. Surg Obes Relat Dis. 2018; 14(3):404-412.. Em suma, a cirurgia possui reconhecida eficácia, efetividade e resultados clínicos promissores.
Pesquisa realizada no Brasil e divulgada em 2017 revelou que, naquele ano, 4,5 milhões de brasileiros tinham indicação formal para realizar cirurgia bariátrica. Ainda, ponderou: considerando que cerca de 100 mil procedimentos são realizados por ano no País, seria necessário 45 anos para atender a essa demanda. Só que a situação ainda piora, visto que: 1) além desse montante, existem todas as outras pessoas que terão obesidade mórbida ao longo desse período (um crescimento estimado de 60% segundo dados do Ministério da Saúde)2020 Feldenheimer AC, Recine E, Rugani I. A obesidade é uma questão política. O Globo, Caderno Economia. Rio de Janeiro, 2017 nov 1. [acesso em 2017 nov 15]. Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/defesa-do-consumidor/a-obesidade-uma-questao-politica-22014639.
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; e 2) essa pesquisa foi divulgada em período anterior à pandemia do novo coronavírus, e pesquisas atuais revelam que a pandemia influenciou o comportamento dos brasileiros, colaborando para diminuição da prática de atividade física, aumento do tempo dedicado às telas, redução do consumo de alimentos saudáveis e aumento do de ultraprocessados, afetando o balanço energético, o que pode contribuir para o cenário de aumento da obesidade2121 Malta DC, Szwarcwald CL, Barros MBA, et al. A pandemia da COVID-19 e as mudanças no estilo de vida dos brasileiros adultos: um estudo transversal, 2020. Epidemiol. Serv. Saúde. 2020; 29(4):e2020407..
Ademais, observa-se uma dificuldade de acesso à cirurgia bariátrica pelo sistema público de saúde nacional, mas essa não é uma exclusividade do Brasil. Estudos em todo o mundo revelam dificuldades de acesso a essa cirurgia em vários países, e diversos fatores já foram relacionados. Verificou-se que a dificuldade de acesso está, entre outras coisas, intrinsecamente relacionada com a realidade contextual vivenciada pelo indivíduo, indo desde condições socioeconômicas e raça até atitudes gordofóbicas por profissionais de saúde e estigma vivenciado no cotidiano2222 Cohen RV, Luque A, Junqueira S, et al. What is the impact on the healthcare system if access to bariatric surgery is delayed? Surg Obes Relat Dis. 2017; 13(9):1619-1627.. A pandemia causada pelo Sars-CoV-2 também terminou por reduzir ainda mais o acesso à cirurgia bariátrica no Brasil, uma vez que se trata de uma cirurgia eletiva, e cirurgias dessa natureza foram descontinuadas por todo o território nacional no intuito de conter o avanço da doença2323 Duarte LS, Shirassu MM, Atobe JH, et al. Continuidade da atenção às doenças crônicas no estado de São Paulo durante a pandemia de Covid-19. Saúde debate. 2021; 45(esp2):68-81..
Considerando a problemática apresentada, o presente ensaio buscará compreender o momento político-histórico em que a obesidade foi colocada em evidência, adquiriu o status de epidemia e entrou na disputa de diferentes atores; problematizará os desdobramentos e as repercussões advindas dessa transformação no status epistemológico da obesidade para indivíduos, sociedade, sistema de saúde e demais setores; apresentará, de forma sucinta, o desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS) e a dificuldade de acesso à cirurgia bariátrica nesse sistema; e, por fim, abordará algumas reflexões acerca da temática, no sentido de traçar estratégias que possam ser percorridas na busca pela garantia da atenção à saúde dessa população e a sustentabilidade do sistema de saúde diante do contexto vivenciado na atualidade pelo País.
Medicalização da obesidade – de atributo à epidemia
O termo ‘medicalização’ é definido por Peter Conrad, citado por Poulain2424 Poulain JP. Sociologia da obesidade. São Paulo: Editora Senac São Paulo; 2013., como ‘um processo pelo qual os problemas não médicos são definidos e tratados como médicos, em termos de doença e de disfunção’. Trata-se de conferir uma natureza médica a representações que até então não eram compreendidas nesses termos2424 Poulain JP. Sociologia da obesidade. São Paulo: Editora Senac São Paulo; 2013.. A medicalização, então, é um processo no qual as questões social e moral desaparecem aos poucos e dão lugar a uma ordem racional, fundamentada pela ciência.
Foi a partir do processo de medicalização que a obesidade deixou de ser apenas uma característica, um atributo físico do indivíduo, e se transformou em fator de risco para o desenvolvimento de doenças, constatando-se que ela era fator de risco para doenças cardiovasculares. Depois do termo ‘fator de risco’, a obesidade adquiriu o status de ‘doença’, e então de ‘epidemia’. Rapidamente, a questão ‘obesidade’ saiu do âmbito hospitalar e médico e se tornou uma questão de saúde pública, coletiva e política. Colaboraram para isso um número crescente de teses alarmistas para as consequências da doença e o aumento nas estatísticas2424 Poulain JP. Sociologia da obesidade. São Paulo: Editora Senac São Paulo; 2013..
Nesse contexto, autores questionaram como e por que ocorreu essa transformação no status epistemológico da obesidade. Ora, é inegável o crescimento generalizado da obesidade no mundo, mas existiriam interesses, até então não revelados, por trás dessa transformação ‘abrupta’? E se houve interesses, quem seriam os interessados? Como se beneficiariam? Na tentativa de responder a essas questões, fez-se um regaste do período político-histórico em que tais modificações ocorreram99 Rigo LC, Santolin CB. Combate à obesidade: uma análise da legislação brasileira. Movimento (Porto Alegre). 2012; 18(2):279-296., 1111 Dias PC, Henriques P, Anjos LA, et al. Obesidade e políticas públicas: concepções e estratégias adotadas pelo governo brasileiro. Cad. Saúde Pública. 2017; 33(7):e00006016., 2424 Poulain JP. Sociologia da obesidade. São Paulo: Editora Senac São Paulo; 2013., 2525 Nestle M. Uma verdade indigesta: como a indústria alimentícia manipula a ciência do que comemos. São Paulo: Elefante; 2019..
Em 1990, a obesidade passou a ser considerada ‘doença’ e se integrou à Classificação Internacional de Doenças por pressão de um grupo de pesquisadores da International Obesity Task Force (IOTF). Dez anos mais tarde, no ano 2000, Peter Kopelmanem, em artigo publicado na revista ‘Nature’, definiu a obesidade ‘por um IMC igual ou superior a 30’. No mesmo ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS) uniformizou e estabeleceu o IMC como métrica para a avaliação universal da obesidade. Kopelman ainda tentou esclarecer que o índice deveria ser considerado como uma indicação aproximativa, pois não correspondia necessariamente à mesma massa gorda para todos os indivíduos, mas a padronização foi indicada2424 Poulain JP. Sociologia da obesidade. São Paulo: Editora Senac São Paulo; 2013..
Além disso, especialistas chamam a atenção para que a classificação universalmente difundida do IMC só é válida para caucasianos, porém numerosos estudos utilizam a classificação do IMC para interpretação de populações com outros tipos físicos. Outrossim, em âmbito mundial, o ser humano não tem o mesmo biotipo, há uma diversidade de tipos antropomorfológicos.
Ademais, foi observada uma grande difusão do IMC e suas classificações entre o público leigo. Um índice aproximativo transformou-se em um sistema classificatório de ‘ordem social’, a partir do qual se passou a ter corpulências ‘aceitáveis’, ‘desejáveis’ e ‘desviantes’ na sociedade. Isso contribui para a estigmatização da pessoa com obesidade e fornece argumentos ‘científicos’ para busca obsessiva de um corpo idealizado, magro. Corre-se o risco de levar indivíduos considerados com peso ‘normal’ a tomar decisões impróprias ou a ter preocupações infundadas, que podem resultar até em transtornos de comportamento alimentar2424 Poulain JP. Sociologia da obesidade. São Paulo: Editora Senac São Paulo; 2013..
Destaca-se que, até 1998, a classificação do peso normal nos Estados Unidos da América (EUA) englobava os valores de IMC entre 20 kg/m2 e 27,6 kg/m2 para os homens e de 20 a 27,3 kg/m2 para mulheres. Sob a influência do grupo de pesquisa da IOTF, a OMS propôs que o limite entre sobrepeso e peso normal fosse de 25 kg/m2, e não mais de 27 kg/m2. Ao recomendar que o limite reduzisse de 27 kg/m2 para 25 kg/m2 sem distinção de sexo, idade ou tipo antropomorfológico, cerca de 35 milhões de americanos ‘adquiriram’ sobrepeso da noite para o dia. Além do mais, com a padronização do IMC dos demais países, o número de pessoas com excesso de peso em todo o mundo ganhou uma notoriedade sem precedentes2424 Poulain JP. Sociologia da obesidade. São Paulo: Editora Senac São Paulo; 2013..
Essa ‘engorda’ de parte considerável da população, resultante da recategorização, tornou maior o público suscetível de se interessar por produtos e métodos de emagrecimento. Em concomitância, observou-se o desenvolvimento vultoso do mercado de produtos destinados ao emagrecimento, como: pílulas, produtos light, substitutos para refeições, entre outros2424 Poulain JP. Sociologia da obesidade. São Paulo: Editora Senac São Paulo; 2013.. O caráter multifatorial e complexo da obesidade permitiu o desenvolvimento de diferentes formas de tratamento. Cirurgia, farmácia, psiquiatria e psicologia são algumas das áreas a se interessar pelo seu tratamento.
Para Poulain2424 Poulain JP. Sociologia da obesidade. São Paulo: Editora Senac São Paulo; 2013.(183), “a construção dos níveis de IMC dificilmente é um exercício que pode deixar de ser parcialmente arbitrário”. O autor afirma que
[...] convém ampliar a perspectiva das lógicas de interesse e fugir da visão angelical que considera o meio de pesquisa como um universo onde reinaria somente o amor desinteressado pelo conhecimento2424 Poulain JP. Sociologia da obesidade. São Paulo: Editora Senac São Paulo; 2013.(192).
Marion Nestle2222 Cohen RV, Luque A, Junqueira S, et al. What is the impact on the healthcare system if access to bariatric surgery is delayed? Surg Obes Relat Dis. 2017; 13(9):1619-1627., em seu livro intitulado ‘Verdade indigesta’, faz o alerta para a ligação entre pesquisadores e indústrias farmacêutica, parafarmacêutica, de alimentos, entre outras2525 Nestle M. Uma verdade indigesta: como a indústria alimentícia manipula a ciência do que comemos. São Paulo: Elefante; 2019..
Para os autores, existe uma variedade de tipos de parcerias entre o setor privado e os atores da pesquisa: recrutamentos remunerados ou não de pesquisadores para compor conselhos de administração, conselhos científicos, comitês de especialistas; financiamento ou cofinanciamento de pesquisas; patrocínio para participação dos pesquisadores nas sociedades de saber; prêmios; bolsas de pesquisas; participação em congressos; estadias, entre outros. A questão e o jogo de interesses podem, ainda, estender-se a atores do setor político, da mídia e entre tantos outros atores/setores que possam ser submetidos a essa lógica de influências, criando linha tênue entre essas parcerias e os processos na ciência2424 Poulain JP. Sociologia da obesidade. São Paulo: Editora Senac São Paulo; 2013., 2525 Nestle M. Uma verdade indigesta: como a indústria alimentícia manipula a ciência do que comemos. São Paulo: Elefante; 2019..
Com a supervalorização da obesidade, tem-se uma intensa midiatização e dramatização da situação. A designação da obesidade como ‘epidemia’ participa de sua socialização e contribui para que se articule à questão da má alimentação e de estilo de vida. A obesidade é a primeira epidemia não infecciosa da história da humanidade2424 Poulain JP. Sociologia da obesidade. São Paulo: Editora Senac São Paulo; 2013.. Além das implicações elencadas, toda essa transformação epistemológica da obesidade acarretará importantes desdobramentos no campo científico-político-social.
Acredita-se que, apesar dessa padronização constituir um avanço importante para pesquisas em epidemiologia, visto que possibilita a realização de coletas de dados de forma simples e menos onerosa, o IMC não deve ser utilizado sem parâmetros em escala individual, pois não considera a verdadeira composição corporal do indivíduo. Ao utilizar o IMC em nível individual, corre-se o risco de não considerar adequadamente a massa óssea, os músculos e os líquidos que constituem o corpo humano. Assim, o IMC deveria ser usado apenas como instrumento a serviço da pesquisa epidemiológica ou do pré-diagnóstico na prática clínica2626 Gallagher D, Heymsfields B, Heo M, et al. Healthy percentage body fat ranges: anapproach for developing guidelines based on body mass index. Am J Clin Nutr. 2000; 72(3):694-701..
Repercussões e responsabilidades
Diante do cenário apresentado, com o aumento alarmante da obesidade e o destaque atingido, inicia-se a busca por culpados suscetíveis de serem condenados. Cada ator, identificado com parcela de responsabilidade na situação, defende-se atacando os demais envolvidos, mas a obesidade é tão complexa e multifatorial que se poderia designar todos ou quase todos os atores como ‘responsáveis’.
Na esfera individual, as pessoas em situação de obesidade se dividem entre a culpa por ‘comer mal’, ‘comer demasiado’ e o constrangimento ‘por existir milhões de indivíduos sem ter o que comer’. São acusados de dissipar recursos do sistema de saúde, responsabilizados por adotarem e/ou permitirem que seus filhos adotem modos de vida e alimentação nocivos à saúde2424 Poulain JP. Sociologia da obesidade. São Paulo: Editora Senac São Paulo; 2013., 2727 Sant’anna DB. Gordos, magros e obesos: uma história do peso no Brasil. São Paulo: Estação Liberdade; 2016..
Os setores agroalimentar e de fast-food são responsabilizados pelo consumo exagerado de alimentos ‘gordurosos’, considerados ruins para a saúde. Associações de consumidores e outras sociedades civis organizadas apontam para a ‘manipulação’ dos indivíduos por meio da publicidade, principalmente as crianças, consideradas mais frágeis e suscetíveis a tais práticas2121 Malta DC, Szwarcwald CL, Barros MBA, et al. A pandemia da COVID-19 e as mudanças no estilo de vida dos brasileiros adultos: um estudo transversal, 2020. Epidemiol. Serv. Saúde. 2020; 29(4):e2020407., 2222 Cohen RV, Luque A, Junqueira S, et al. What is the impact on the healthcare system if access to bariatric surgery is delayed? Surg Obes Relat Dis. 2017; 13(9):1619-1627.. As políticas comerciais, as estratégias publicitárias, de marketing e lobbying desses setores são apontadas como responsáveis pelo desenvolvimento da obesidade2828 Mialon M, Cediel G, Jaime PC, et al. “A consistent stakeholder management process can guarantee the ‘social license to operate’”: mapping the political strategies of the food industry in Brazil. Cad. Saúde Pública. 2022; 37(supl1):e00085220.. Além disso, o montante financeiro gasto com publicidade parece provar sua eficácia por si só2525 Nestle M. Uma verdade indigesta: como a indústria alimentícia manipula a ciência do que comemos. São Paulo: Elefante; 2019..
Pesquisadores e associações de consumidores consideram o marketing de alimentos a primeira causa do consumo alimentar excessivo, da desestruturação das refeições, constituindo-se uma motivação para a luta contra a obesidade. Reivindica-se regulamentação, com interdição da publicidade para certas categorias de produtos e para o público infantil2929 Loughnane C. The policy implications of ‘thinking problematically’: problematizing Big Food’s role in obesity policymaking. Health Prom. Inter. 2022; 37(1)..
Indústrias de ultraprocessados e de fast-foods argumentam que ‘ninguém obriga os consumidores a comprarem’2424 Poulain JP. Sociologia da obesidade. São Paulo: Editora Senac São Paulo; 2013., elas temem ser apontadas como as únicas responsáveis pela situação e sofrer processos vultosos como os que as empresas de tabacos sofreram de ex-fumantes no início da década 2000. Nesse sentido, conforme Beck citado por Poulain, já foi comprovado que a solvabilidade de um ator, ou seja, sua capacidade financeira (nesse caso, os das empresas versus o do indivíduo), é um determinante essencial para a designação como juridicamente responsável2424 Poulain JP. Sociologia da obesidade. São Paulo: Editora Senac São Paulo; 2013..
De encontro às acusações, quanto aos responsáveis pelo excesso de peso, vêm as denúncias dos que credibilizam a ideia de que é possível, fácil e sem consequências perder peso. Os setores farmacêutico e parafarmacêutico são apontados por realizarem a difusão desse tipo de mensagem ao público leigo, o que poderia incitar pessoas, sobretudo as que não têm motivo sanitário para perder peso, a se engajarem em tentativas de controle de peso por motivos unicamente estéticos, o que pode ter efeitos nefastos3030 Felix P. Novos medicamentos prometem reduzir em mais de 20% o peso dos obesos. Veja. Caderno Saúde. 2022 maio 6. [acesso em 2022 maio 12]. Disponível em: https://veja.abril.com.br/saude/novos-medicamentos-prometem-reduzir-em-mais-de-20-o-peso-dos-obesos/.
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Ao mesmo tempo que a gordura é considerada física e moralmente insana, a magreza torna-se atraente. A rejeição sistemática à gordura e o medo de engordar atingiram, nas sociedades atuais, uma intensidade incomum, transformando as pessoas em lipofóbicas3131 Christiansen ML. “Homo Caloricus”: La construcción epistemológica del estigma lipofóbico en los discursos mediáticos de salud pública. Salud Colect. 2018; 14(3):623-637.. Problemas de imagem corporal têm sido atribuídos à norma social da magreza e ao estigma voltado à pessoa em situação de obesidade. A alteração da imagem corporal em virtude do aumento de peso pode acarretar depreciação do autoconceito e da autoestima, ansiedade, depressão, sentimentos de inadequação social e diminuição do bem-estar, podendo resultar, ainda, na diminuição de relações interpessoais3232 Silva MP, Jorge Z, Domingues A, et al. Obesidade e qualidade de vida. Acta Med. Port. 2006; (19):247-250..
Os setores farmacêutico e parafarmacêutico são também acusados de intervir no mercado por meio da publicidade, e ainda de atuar sobre pesquisadores e políticos a partir de lobbying. Alguns políticos, igualmente, são acusados pela sociedade civil de relações escusas com indústrias e falta de rigor. Na esfera da ciência, pesquisadores são denunciados por se deixarem influenciar pelas indústrias e manipularem dados em seu favor, objetivando obter recursos, financiamentos e notoriedade2525 Nestle M. Uma verdade indigesta: como a indústria alimentícia manipula a ciência do que comemos. São Paulo: Elefante; 2019.. Já a mídia é acusada por exacerbar ou expressar o desejo de emagrecer, além do incentivo ao consumo de produtos ‘engordiet’3333 Araújo LS, Coutinho MPL, Araújo-Morais LC, et al. Preconceito frente à obesidade: representações sociais veiculadas pela mídia impressa. Arq. bras. psicol. 2018; 70(1):69-85..
Dessa forma, tem-se que todos os atores podem, segundo o ponto de vista adotado, ser designados como responsáveis. Essa é uma perspectiva a ser superada para que se construa uma partilha de responsabilizações e responsabilidades. Nesse sentido, Poulain2424 Poulain JP. Sociologia da obesidade. São Paulo: Editora Senac São Paulo; 2013. aposta no imperativo em se adotar práticas avaliativas. Segundo o autor, ações de prevenção, por exemplo, precisam ser apreciadas para que sejam (re)orientadas. Trata-se de demarcar o que não foi útil, produzir dados para capitalizar o conhecimento e promover as mudanças necessárias. Assim, fundamentam-se os determinantes da situação, e torna-se mais viável alcançar a responsabilização e o envolvimento das diferentes categorias de atores envolvidas.
Brasil: avanços, retrocessos, acesso à cirurgia bariátrica e desmonte do SUS
O Brasil é um país de dimensão continental, caracterizado por grandes desigualdades inter e intrarregionais, marcado por importantes iniquidades sociais e, ao mesmo tempo, autor de várias políticas e estratégias de saúde, reconhecidas e percorridas por outros governos internacionalmente.
Para exemplificar um pouco a disparidade existente entre as regiões, no que se refere à obesidade, estudo realizado sobre a prevalência da obesidade mórbida no País revelou que, entre os anos de 1974 e 2003, a condição apresentou um crescimento de 255%, passando de 0,18% para 0,64% respectivamente. A região Nordeste foi a que apresentou a evolução mais rápida, aumentando em 760% no período analisado3434 Oliveira IV. Cirurgia bariátrica no âmbito do Sistema Único de Saúde: tendências, custos e complicações. [dissertação]. Brasília, DF: Universidade de Brasília; 2007..
Já as diferenças intrarregionais podem ser evidenciadas em outro estudo realizado com moradores de favela da Região Metropolitana do Recife, em que foi observado o excesso de peso (conjunto do sobrepeso e obesidade) em 70,3% da população. Ainda, o percentual de obesidade grave (3,4%), equivalente a quase ao dobro da frequência de casos de baixo peso (1,9%), uma situação dissonante com os dados da população geral3535 Melo SPSC. Excesso de peso em adultos de uma área urbana de pobreza do Nordeste brasileiro. 2017. [dissertação]. Recife: Instituto Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz; 2017..
Vale ressaltar que nosso sistema de saúde, o SUS, instituído em 1988, passa, desde então, por progressos e percalços, e tem, desde 2007, trabalhado com portarias que favorecem uma abordagem mais integral da questão do sobrepeso e da obesidade. Citam-se: a reorganização dos serviços de saúde; a criação de Redes de Atenção à Saúde (RAS); e a organização de uma linha de cuidado. Critérios para acesso à alta complexidade e garantia do tratamento cirúrgico como direito garantido pelo SUS também fazem parte das ações do Ministério da Saúde1111 Dias PC, Henriques P, Anjos LA, et al. Obesidade e políticas públicas: concepções e estratégias adotadas pelo governo brasileiro. Cad. Saúde Pública. 2017; 33(7):e00006016. (quadro 1).
Linha do tempo das estratégias de alimentação, nutrição e promoção da saúde correlatas à obesidade nas políticas públicas do Brasil, 1999-2022
Destacam-se, no quadro 1, a atuação e a interlocução entre diferentes setores, como saúde, educação e agricultura na abordagem à obesidade, o que é extremamente recomendado por estudiosos e especialistas da área. Esse pioneirismo em políticas públicas é o que destaca mundialmente o País e o torna referência para diversas estratégias; entretanto, com a dimensão territorial do Brasil, o jogo de disputas e interesses termina muitas vezes por impactar negativamente na implementação de políticas.
Isso fica explícito ao constatar que, passadas mais de três décadas da implantação e da implementação do SUS, ainda se observam entraves no acesso da população brasileira à saúde, apesar de todo arcabouço institucional e aparato jurídico-legal existentes. Como consequência, percebem-se limitações para a concretização da integralidade e universalidade da atenção à saúde no País3636 Lima SAV, Silva MRF, Carvalho EMF, et al. Elementos que influenciam o acesso à atenção primária na perspectiva dos profissionais e dos usuários de uma rede de serviços de saúde do Recife. Physis. 2015; 25(2):635-56., e isso se torna ainda mais evidente quando colocado na perspectiva do acesso à cirurgia bariátrica.
Segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM), a história da intervenção no Brasil começou em 1970, e, desde então, a técnica já passou por várias transformações, conferindo maior segurança aos pacientes2727 Sant’anna DB. Gordos, magros e obesos: uma história do peso no Brasil. São Paulo: Estação Liberdade; 2016.. O procedimento está disponível no País desde 1999 como parte do sistema público de saúde para pacientes com IMC > 40 kg/m2 (ou > 35 kg/m2 com comorbidades)2222 Cohen RV, Luque A, Junqueira S, et al. What is the impact on the healthcare system if access to bariatric surgery is delayed? Surg Obes Relat Dis. 2017; 13(9):1619-1627.. No entanto, a incorporação da video-laparoscopia nos procedimentos da cirurgia realizadas pelo SUS ocorreu somente em 2017, quase 20 anos após sua consagração no País. Segundo Barros3737 Barros F. Qual o maior problema de saúde pública: a obesidade mórbida ou a cirurgia bariátrica no Sistema Único de Saúde (SUS)? (Parte II). Rev. Col. Bras. Cir. 2015; 42(3):136-137., a videolaparoscopia tem maior eficácia e menor taxa de complicação, seu maior custo inicial é compensado pelo menor tempo de internação, menos complicações e reinternações.
Desde 2008, o Brasil é o segundo país do mundo, depois dos EUA, a realizar o maior número de cirurgias bariátricas, entretanto, a realidade de acesso a essa cirurgia pela rede pública de saúde é desalentadora. Cerca de 75% dos indivíduos que necessitam do procedimento usam exclusivamente o SUS (não têm acesso à rede suplementar), e esse sistema oferta menos que 10% dos procedimentos realizados. Ou seja, têm-se três quartos dessa população ‘alocada’ em um sistema que realiza apenas um décimo dos procedimentos no País3737 Barros F. Qual o maior problema de saúde pública: a obesidade mórbida ou a cirurgia bariátrica no Sistema Único de Saúde (SUS)? (Parte II). Rev. Col. Bras. Cir. 2015; 42(3):136-137..
Segundo a SBCBM, o Brasil conta atualmente com 7.700 hospitais, em 5.568 municípios brasileiros. Desses, apenas 98 realizam a cirurgia bariátrica e metabólica, sendo que 4 estados não oferecem o procedimento. Atualmente, Amazonas, Rondônia, Roraima e Amapá não possuem serviços habilitados no SUS para bariátrica3838 Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica. Obesidade atinge mais de 6,7 milhões de pessoas no Brasil em 2022. Notícias. 2023 mar 3. [acesso em 2022 abr 20]. Disponível em: https://www.sbcbm.org.br/obesidade-atinge-mais-de-67-milhoes-de-pessoas-no-brasil-em-2022.
https://www.sbcbm.org.br/obesidade-ating...
. Para Coutinho3939 Coutinho R. Obesos lutam por cirurgia no SUS. Folha de Pernambuco, Caderno Cotidiano. Recife, 2017 ago 30. [acesso em 2017 set 1]. Disponível em: https://www.folhape.com.br/noticias/obesos-lutam-por-cirurgia-no-sus/39851/.
https://www.folhape.com.br/noticias/obes...
, as filas para realização do procedimento nos serviços públicos são tão grandes que alguns hospitais estão sem receber novos pacientes, demonstrando dificuldades no acesso dessas pessoas.
Cazzo, Ramos, Chaim4040 Cazzo E, Ramos AC, Chaim EA. Bariatric Surgery Offer in Brazil: a Macroeconomic Analysis of the Health system’s Inequalities. Obes Surg. 2019; (29):1874-1880. destacam que, apesar do aumento no número de procedimentos públicos observado nos últimos anos no País, ainda é insuficiente a atual oferta de cirurgia bariátrica prestada pela rede pública. Reforça-se a necessidade de serem delineadas políticas e iniciativas públicas em prol do manejo da obesidade coletiva no Brasil, e de melhor ajustamento da oferta de cirurgias bariátricas via SUS à população.
Já se discutiu neste texto que reduzir a carga de obesidade vai muito além do acesso à cirurgia, requer abordagens que combinem intervenções individuais com mudanças no ambiente e na sociedade. É igualmente indubitável que o tratamento da obesidade por meio da cirurgia bariátrica, cujo sistema de saúde preconiza a universalidade, a integralidade e a equidade como seus princípios, deve ser acessível a todos que dela possam se beneficiar.
Em artigo recente, Gadelha e colaboradores4141 Gadelha C, Temporão JG, Campos GWS, et al. Saúde precisa de mais dinheiro público. O Globo. 2022 jul 14. [acesso em 2022 fev 1]. Disponível em: https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2022/07/saude-precisa-de-mais-dinheiro-publico.ghtml?utm_medium=email&utm_source=sharpspring&sslid=MzcxNLM0tTC1NDc0-AQA&sseid=MzIxNTM0NTAwtAAA&jobid=c8d201c0-67db-4441-b007-9baf644a1de2.
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discutem a necessidade imperiosa de aumentar o financiamento do sistema de saúde público brasileiro. Os autores chegam, inclusive, a citar uma nova proposta para o financiamento do SUS, elaborada por um grupo de trabalho da Associação Brasileira de Saúde Coletiva em conjunto com a Associação Brasileira de Economia da Saúde.
Essa iniciativa foi elaborada no contexto recente de ataques ao SUS, entre esses, a Emenda Constitucional (EC) nº 95, também conhecida como a ‘emenda da morte’. Essa emenda impôs um teto de gastos e congelou os valores do piso federal repassado ao SUS por um período de 20 anos. Segundo os autores, a EC nº 95 não apenas retirou recursos, mas também minou o setor no seu potencial gerador de emprego e renda, e de alavanca do crescimento e desenvolvimento econômico4141 Gadelha C, Temporão JG, Campos GWS, et al. Saúde precisa de mais dinheiro público. O Globo. 2022 jul 14. [acesso em 2022 fev 1]. Disponível em: https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2022/07/saude-precisa-de-mais-dinheiro-publico.ghtml?utm_medium=email&utm_source=sharpspring&sslid=MzcxNLM0tTC1NDc0-AQA&sseid=MzIxNTM0NTAwtAAA&jobid=c8d201c0-67db-4441-b007-9baf644a1de2.
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Fala-se em ataques recentes ao SUS porque, segundo os próprios autores, ideólogos do neoliberalismo, vilanizam, sistematicamente, os gastos públicos em saúde, alegando crescimento exponencial dos gastos, ineficiência da gerência pública do sistema e apontando como solução a privatização do setor saúde no País4141 Gadelha C, Temporão JG, Campos GWS, et al. Saúde precisa de mais dinheiro público. O Globo. 2022 jul 14. [acesso em 2022 fev 1]. Disponível em: https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2022/07/saude-precisa-de-mais-dinheiro-publico.ghtml?utm_medium=email&utm_source=sharpspring&sslid=MzcxNLM0tTC1NDc0-AQA&sseid=MzIxNTM0NTAwtAAA&jobid=c8d201c0-67db-4441-b007-9baf644a1de2.
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Não obstante o congelamento dos gastos federais até 2036 com a EC nº 95, o Ministério da Saúde, a partir do programa Previne Brasil, em 2019, que trouxe mudanças significativas no modelo de financiamento da Atenção Primária à Saúde (APS) no SUS, confirma, a partir de sua Nota Técnica (NT) nº 3/2020, que não mais realizará o credenciamento de equipes dos Núcleos Ampliados de Saúde da Família e Atenção Básica (Nasf-AB), e o quantitativo de equipes Nasf-AB deixa de existir como requisito para repasse de recursos. Ou seja, fica a critério dos gestores locais a manutenção dos trabalhadores4242 Reis S, Meneses S. Novo financiamento da Atenção Básica: possíveis impactos sobre o Nasf-AB. Centro Brasileiro de Estudos de Saúde. 2020. [acesso em 2022 fev 5]. Disponível em: https://cebes.org.br/novo-financiamento-da-atencao-basica-impactos-sobre-o-nasf-ab/21242/.
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Criado em 2008 para consolidar a APS, o Nasf tem bem documentado na literatura o reconhecimento de sua importância na melhoria da qualidade da assistência prestada4343 Sanine PR, Silva LIF. Saúde mental e a qualidade organizacional dos serviços de atenção primária no Brasil. Cad. Saúde Pública. 2021; 37(7).. No entanto, a NT nº 3/2020 promoveu um largo passo em direção ao seu desmonte, haja vista a falta de garantias do gestor municipal em conseguir arcar com seus custos.
A descredibilização do SUS, estratégia há muito utilizada pelos grupos de saúde privados, tensiona um dos elos do jogo de poderes existente entre o setor privado, a sociedade civil e o governo. Nesse contexto, torna-se imprescindível a união de todos os atores que concordam que a garantia do direito à saúde e o bem-estar social, constantes na Constituição
Federal de 1988, devem não somente caber no orçamento da União como também nortear políticas públicas4141 Gadelha C, Temporão JG, Campos GWS, et al. Saúde precisa de mais dinheiro público. O Globo. 2022 jul 14. [acesso em 2022 fev 1]. Disponível em: https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2022/07/saude-precisa-de-mais-dinheiro-publico.ghtml?utm_medium=email&utm_source=sharpspring&sslid=MzcxNLM0tTC1NDc0-AQA&sseid=MzIxNTM0NTAwtAAA&jobid=c8d201c0-67db-4441-b007-9baf644a1de2.
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Foi nesse sentido que, em setembro de 2021, os Conselhos Regionais de Nutrição das dez regiões uniram-se em um manifesto em apoio ao ‘Guia Alimentar para população brasileira’. O Guia é um documento referencial para promoção da saúde e qualidade de vida e visa promover o acesso da população a informações e recomendações acerca da alimentação saudável, centrado na redução de doenças crônicas como a obesidade.
O material, baseado em pesquisas e evidências científicas, foi produzido em 2014 e é utilizado como parâmetro em diversos países. Além disso, o Guia é reconhecido mundialmente por nutricionistas e especialistas da área, no entanto, algumas indústrias de alimentos tentam desqualificá-lo, uma vez que, ao recomendar a redução do consumo de alimentos processados e ultraprocessados, ele se opõe aos interesses dessas indústrias, em sua maioria de agronegócio e de alimentos processados. Essas indústrias veem o documento como um entrave à expansão de seus negócios4444 Conselho Regional de Nutricionistas 1 Região. Respeitem o Guia Alimentar da população brasileira. CRN1. 2021 set 6. [acesso em 2022 jan 15]. Disponível em: https://novoportal.crn1.org.br/respeitem-o-guia-alimentar-da-populacao-brasileira.
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As estratégias (RAS, Nasf-AB, Guia Alimentar) e os acontecimentos (EC nº 95, NT nº 3/2020, descredibilização do SUS e desqualificação do ‘Guia Alimentar para a população brasileira’) aqui elencados são apenas alguns exemplos de avanços e retrocessos, respectivamente, que houve no País e que afetam sobremaneira a atenção a saúde de todas as pessoas, em especial, a das pessoas que convivem com a obesidade e que necessitam exclusivamente do sistema de saúde público.
Reflexões e estratégias
Apesar de o recurso à cirurgia poder reforçar o aspecto patológico e curativo da obesidade, não cabe polarizar o debate entre medidas individuais versus ambientais, mas, sim, compreender a complexidade do problema e dos desafios para seu manejo adequado. Expandir o entendimento da obesidade e apresentar ações ambientais deve ser mandatório diante da baixa resolutividade de intervenções focalizadas no atendimento individualizado e no corpo11 Blüher M. Obesity: global epidemiology and pathogenesis. Nature reviews. Endocrinology. 2019; 15(5):288-298., 1111 Dias PC, Henriques P, Anjos LA, et al. Obesidade e políticas públicas: concepções e estratégias adotadas pelo governo brasileiro. Cad. Saúde Pública. 2017; 33(7):e00006016..
Políticas de apoio aos setores saúde, transporte, agricultura, comercialização de alimentos, planejamento urbano e educação, por exemplo, são imprescindíveis para mudanças do comportamento individual11 Blüher M. Obesity: global epidemiology and pathogenesis. Nature reviews. Endocrinology. 2019; 15(5):288-298.. Pineda e colaboradoras4545 Pineda AMR, Amorim TM, Villarreal VH, et al. Reflexões sobre o sistema alimentar de três países da América Latina e seu impacto na saúde e nutrição. In: Oliveira e Silva D, Ell E, organizadores. Cadernos OBHA. Brasília, DF: Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares; Fundação Oswaldo Cruz; 2020. p. 6-13., nesse sentido, alertam para o aumento no nível de processamento dos alimentos, com a adição de conservantes, acidulantes e outras substâncias químicas capazes de prolongar o tempo de prateleira desses produtos, permitindo-os percorrer longas distâncias e tornarem-se mais acessíveis. Além disso, destacam que políticas de incentivo fiscal, flexibilização de leis ambientais e trabalhistas ao longo da cadeia de produção e distribuição desses produtos terminam por tornar seu preço final mais competitivo. Assim, além do comprometimento da saúde dos consumidores, em virtude da composição nutricional desfavorável desses novos produtos, tem-se a desvalorização da produção local e consciente, que compromete a subsistência e a fonte de renda de agricultores familiares.
Darolt4646 Darolt MR. Redes alimentares alternativas, circuitos curtos, agroecologia e produção orgânica no Brasil. In: Oliveira e Silva D, Ell E, organizadores. Cadernos OBHA. Brasília, DF: Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares; Fundação Oswaldo Cruz; 2020. p. 16-22. aponta o abastecimento alimentar por meio de Circuitos Curtos de Comercialização (CCC) como uma alternativa para solução desse problema. O CCC se caracteriza por uma cadeia curta, em que o produto chega ao consumidor com informações que lhes permita saber o local de produção, o produtor e o sistema de produção utilizado. Feiras orgânicas e agroecológicas direto do produtor são os CCC mais utilizados pelos brasileiros, e principal porta de entrada de agricultores familiares no mercado local. Para o autor, os circuitos curtos trazem oportunidades para estimular mudanças de hábitos alimentares, incentiva a educação para o consumo, organização e maior engajamento social dos consumidores. Destacam-se o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), programas de governo que, além de proporcionar acesso a alimentos saudáveis, minimamente processados e in natura pelas populações empobrecidas e periféricas, ainda permitem a inclusão de agricultores familiares no mercado institucional.
O aumento acentuado da obesidade grave pode, também, refletir uma falha dos sistemas de saúde em tratar a obesidade em seus estágios iniciais11 Blüher M. Obesity: global epidemiology and pathogenesis. Nature reviews. Endocrinology. 2019; 15(5):288-298.. Ao tratar dos temas obesidade mórbida e cirurgia bariátrica no sistema de saúde público brasileiro, Barros4747 Barros F. Qual o maior problema de saúde pública: a obesidade mórbida ou a cirurgia bariátrica no Sistema Único de Saúde? (Parte I). Rev. Col. Bras. Cir. 2015; 42(2):69. observou, por exemplo, que o paciente com obesidade mórbida é, muitas vezes, visto pela sociedade, pela mídia e até por profissionais de saúde não como alguém doente, mas como sedentário, guloso e sem disciplina; e alertou para o fato de que a desinformação, o preconceito e o estigma talvez sejam os primeiros aspectos a serem trabalhados.
Nessa perspectiva, Bluher11 Blüher M. Obesity: global epidemiology and pathogenesis. Nature reviews. Endocrinology. 2019; 15(5):288-298. afirma que atitudes negativas e estereotipadas em relação às pessoas com obesidade pelos profissionais de saúde acarretam menor qualidade da assistência e, consequentemente, menor adesão aos programas de tratamentos pelos pacientes. Pessoas com obesidade podem experimentar atendimento menos centrado no paciente e são mais propensas a evitar ou a adiar o atendimento se acharem que sofrerão estigma. Segundo Vogel4848 Vogel L. Fat shaming is making people sicker and heavier. Canad. Med. Assoc. J. 2019; (191):E649-E649., em cada cinco adultos com obesidade, mais de três sofrem estigma pelos profissionais de saúde. Existem evidências de que o estigma do peso, independentemente do IMC, está associado a ganho de peso, distúrbios alimentares, ansiedade e depressão.
Estudos realizados em documentos norteadores de políticas de saúde, e até mesmo nas próprias políticas, observaram uma tendência à culpabilização do indivíduo com obesidade, à patologização do corpo gordo e à gordofobia99 Rigo LC, Santolin CB. Combate à obesidade: uma análise da legislação brasileira. Movimento (Porto Alegre). 2012; 18(2):279-296., 4949 Paim MB, Kovaleski DF. Análise das diretrizes brasileiras de obesidade: patologização do corpo gordo, abordagem focada na perda de peso e gordofobia. Saúde soc. 2020; 29(1):e190227.. Percebe-se, então, a necessidade de analisar e discutir criticamente documentos que contenham recomendações de saúde, pois eles podem repercutir na prática dos serviços de saúde, na formação dos profissionais de saúde, terminando por disseminar a patologização da gordura e atitudes gordofóbicas.
Estratégias para reduzir o estigma da obesidade devem ser incentivadas, inclusive acerca da cirurgia bariátrica, que não deve ser considerada ‘último recurso’ ou a ‘saída mais fácil’. O credo de que a cirurgia bariátrica é uma ‘solução fácil e o último recurso para pacientes indisciplinados demais para perder peso de outras maneiras’ permeia muitas organizações de saúde e é um exemplo de estigma5050 Phelan SM. An update on research examining the implications of stigma for access to and utilization of bariatric surgery. Curr. opin. endocrinol. diabetes obes. 2018; (25):321-325..
Nesse sentido, a saúde pública pode ajudar a distinguir indivíduos com obesidade daqueles que vivem em corpos maiores. Fornecer informações equilibradas sobre peso e saúde, disseminar evidências de que nem todas as pessoas com peso corporal maior têm a doença crônica obesidade e envolver as pessoas com obesidade no desenvolvimento de políticas e estratégias podem ajudar a mudar crenças e atitudes negativas, promover o respeito à diversidade do tamanho corporal e provocar o apoio às pessoas com obesidade1010 Salas XR, Forhan M, Caulfield T, et al. A critical analysis of obesity prevention policies and strategies. Can J Public Health. 2017; 108(5-6):e598-e608..
Disseminar e trabalhar a Política Nacional de Humanização (PNH) nos serviços de saúde e entre trabalhadores, sensibilizando-os para o tema, informando-os acerca dos dados mais atuais, desestigmatizando a doença e alertando para as drásticas consequências ocasionadas pelo preconceito ao indivíduo com obesidade, pode ser uma potente ferramenta na mudança de práxis desses profissionais e melhora na qualidade da assistência desses indivíduos, com maior acolhimento e adesão às iniciativas de tratamento propostas.
Documentos voltados para o cuidado da obesidade, produzidos e disseminados pelo próprio Ministério da Saúde, trazem diversas diretrizes e estratégias que consoam com as perspectivas apresentadas neste artigo: APS como ordenadora da RAS, com garantia de comunicação adequada entre os níveis de atenção; implantação da linha de cuidado ao paciente com obesidade; qualificação da atenção no nível primário, inclusive com a participação das equipes Nasf-AB, e mudança da NT nº 03/2020; educação permanente dos trabalhadores de toda a RAS, com inclusão da PNH e o tema obesidade; orientações para promoção de uma alimentação mais saudável e um estilo de vida mais ativo; promoção de oficinas e atividades em grupos, que aumentam a sensação de pertencimento, aumentam o engajamento e a motivação; realização de Projetos Terapêuticos Singulares (PTS) e Projetos de Saúde no Território (PST); fortalecimento da participação social; utilização de equipamentos sociais; uso de práticas integrativas e complementares; engajamento com o Projeto Academia da saúde; e envolvimento de amigos e familiares do paciente5151 Brasil. Ministério da Saúde. Perspectivas e desafios no cuidado às pessoas com obesidade no SUS: resultados do Laboratório de Inovação no manejo da obesidade nas Redes de Atenção à Saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2014., 5252 Brasil. Ministério da Saúde. Manual de atenção às pessoas com sobrepeso e obesidade no âmbito da Atenção Primária à Saúde (APS) do Sistema Único de Saúde. [recurso eletrônico]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2022., 5353 Brasil. Ministério da Saúde; Universidade Federal de Minas Gerais. Instrutivo de abordagem coletiva para manejo da obesidade no SUS. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2021..
Para além desses atributos e estratégias, também se destaca a importância da interlocução e da atuação dos diferentes atores da sociedade envolvidos com a questão do aumento da obesidade; a regulamentação da publicidade de produtos relacionados com o desenvolvimento da obesidade e produtos voltados ao emagrecimento; a adoção de uma rotulagem de alimentos inteligível aos consumidores; o necessário aumento do financiamento público do SUS; e, por conseguinte, a alteração da EC nº 95 e a utilização da avaliação em saúde, seja para proporcionar o encaixe ideal entre insumos e processo de trabalho, seja para verificar os efeitos de alguma intervenção quanto ao controle ou redução de agravos, ou, ainda, para avaliar a interface entre o serviço e a população (cobertura, oportunidade, aceitabilidade, acessibilidade, utilização)5252 Brasil. Ministério da Saúde. Manual de atenção às pessoas com sobrepeso e obesidade no âmbito da Atenção Primária à Saúde (APS) do Sistema Único de Saúde. [recurso eletrônico]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2022., 5454 Santos EM, Cruz MM. Introdução. In: Santos EM, Cruz MM, organizadores. Avaliação em saúde: dos modelos teóricos à prática da avaliação de programas de controle de processos endêmicos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2014..
O desenvolvimento de políticas públicas de combate às desigualdades, que possibilitem, além do acesso a bens e serviços, o acesso físico e financeiro a alimentos saudáveis e a informações adequadas sobre o fenômeno alimentar, também deve ser considerado para a promoção da justiça social e a inclusão de populações mais vulnerabilizadas, na busca por uma atenção à saúde mais equitativa e integral.
Conclusões
O caminho percorrido pela conceitualização da obesidade ao longo do tempo e sua medicalização renderam-lhe destaque na mídia, no mundo médico, científico, na sociedade, e, em concomitância, estruturou uma série de conflitos entre as pessoas, a sociedade civil, cientistas, políticos, governos, indústrias alimentícias, farmacêuticas e parafarmacêuticas.
À medida que se buscava por responsáveis a quem se pudesse atribuir culpa pelos malefícios ocasionados pela obesidade, viu-se expandir o estigma voltado à população obesa; indústrias se acusarem na tentativa de se eximir de responsabilidades; e a necessidade premente de políticas públicas intersetoriais, assim como o envolvimento do setor privado e dos demais atores para contornar essa situação.
No Brasil, observaram-se, assim como no restante do mundo, o aumento de pessoas em situação de obesidade com indicação para cirurgia bariátrica e o sistema de saúde sob ataque, em desmonte. De onde se viu essa fragilidade, também é possível ver uma fortaleza, e a potencialidade para equacionar essa difícil situação. Apoiar-se na PNH, na APS como ordenadora da RAS, no trabalho qualificador das equipes Nasf-AB, na educação permanente de trabalhadores da saúde, no fortalecimento do controle social, nas atividades em grupo, na promoção de estilos de vida mais saudáveis, na interlocução com demais setores para além da saúde são apenas algumas das estratégias vislumbradas. Há ainda muito o que caminhar, mas já há muito também percorrido – e caminhos foram apresentados. Avante!
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Orcid (Open Researcher and Contributor ID).
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Suporte financeiro: a pesquisa contou com recursos financeiros do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e tecnológico (CNPq), concedidos por meio da Chamada CNPq/Instituto Aggeu Magalhaes nº 39/2018, processo nº 400768/2019-4
Referências
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1Blüher M. Obesity: global epidemiology and pathogenesis. Nature reviews. Endocrinology. 2019; 15(5):288-298.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Set 2023 -
Data do Fascículo
Jul-Sep 2023
Histórico
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Recebido
31 Jul 2022 -
Aceito
22 Maio 2023