Acessibilidade / Reportar erro

O sujeito e seu cuidado: a questão da adesão à medicação

The subject and his care: the issue of medication adherence

Resumo

O mapeamento dos comportamentos frente ao uso de medicamentos informa as condições pelas quais um tratamento farmacológico é implementado. A localização da adesão à medicação como um problema clínico, evoca, no entanto, lugares bem demarcados quanto aos procedimentos para sua explicação e resolução. Nesse sentido, este trabalho busca problematizar os elementos fundantes do estudo da adesão à medicação, considerando que tal prática é hegemonicamente assimilada apenas por parâmetros científicos e biológicos, sem a inclusão de uma abordagem direcionada às especificidades históricas e culturais dos pacientes. Transferem-se, assim, a primazia da delimitação e a explicação da realidade ao próprio analista. Porém, o trabalho de campo demonstrou uma diversidade de posturas e agenciamentos quanto ao uso dos medicamentos, capaz de indicar que a geografia do cuidado não se orienta apenas a partir de um percurso linear, mas se apoia em espaços ambulantes e itinerantes, instalando-se em um campo paradoxal que mescla reprodução e criação.

Palavras-chave:
Adesão à medicação; Atenção Farmacêutica; Tratamento medicamentoso; Conduta.

Abstract

The mapping of behaviors towards the use of medicines informs the conditions under which a pharmacological treatment is implemented. However, the location of medication adherence as a clinical problem evokes well-demarcated place as to the procedures for its explanation and resolution. In this sense, this work aims to problematize the founding elements of the study of medication adherence, considering that such practice is hegemonically assimilated only by scientific and biological parameters, without the inclusion of an approach directed to the patients' historical and cultural specificities. In this way, the primacy of delimitation and explanation of reality is transferred to the analyst. However, the field work showed a diversity of attitudes and management of medicines, capable of indicating that the geography of care is not oriented only from a linear path, but is supported by wandering and itinerant spaces, installing in a paradoxical field that mixes reproduction and creation.

Keywords:
Medication adherence Pharmaceutical care; Patient compliance; Medication therapy management.

Delimitação do problema

Desde os primeiros delineamentos sobre a prática da farmácia clínica ambulatorial, a questão da administração dos medicamentos e o estudo de métodos que garantam o seguimento adequado do tratamento farmacológico constituem grandes desafios ao acompanhamento clínico (GURWICH; SWANSON, 1975GURWICH, E. L.; SWANSON, L. N. Clinical pharmacy practice in an outpatient clinic. J Am Pharm Assoc, v. 15, n. 7, p. 392-399, 1975.; BLACKWELL, 1973BLACKWELL, B. Patient Compliance. New England Journal of Medicine, v. 289, n. 5, p. 249-252, 1973.). A partir da década de 70, especialmente com o First International Congress on Patient Couseling (1976), o interesse na investigação sobre o tema da adesão à medicação e suas influências comportamentais alcançou notoriedade, com o adensamento de estudos delineados para esse fim (BLACKWELL, 1976BLACKWELL, B. Treatment Adherence. British Journal of Psychiatry, v. 129, n. 6, p. 513-531, 1976.). Desde esses primeiros estudos, a questão da adesão à medicação mantém uma mesma lógica interna: um problema clínico, relativo à não implementação completa do tratamento farmacológico prescrito.

A localização da adesão à medicação como um problema clínico evoca lugares bem demarcados quanto aos procedimentos para sua explicação e resolução. Nesse formato, cabe a um profissional de saúde (normalmente médico ou farmacêutico) implementar o processo diagnóstico, baseado no raciocínio clínico para investigação da situação. Seguindo as estratégias desse raciocínio, o método científico hipotético-dedutivo e suas perspectivas analíticas (probabilística, causal e determinística) constituem o procedimento fundamental para a tomada de decisão (KASSIRER, 1989KASSIRER, J. P. Diagnostic reasoning. Ann Intern Med, v. 110, p. 893-900, 1989. ).

Desse modo, seguindo esse processo cognitivo para solução de problemas clínicos, a maior parte dos desenhos metodológicos para estudo da adesão à medicação é conduzida. São eles: inquéritos, entrevistas estruturadas ou semiestruturadas, aplicação de testes (validados ou não), contagem de comprimidos, detecção plasmática e abordagens psicológicas. Também, a identificação dos fatores que influenciam a adesão varia substancialmente, podendo ser: relativos ao paciente, ao conjunto familiar, ao sistema de cuidado, à doença, ao desenho terapêutico, fatores cognitivos, econômicos ou sociodemográficos, entre muitos outros.

Trata-se de uma temática intrigante e de repercussões amplas, não apenas sobre o campo clínico, mas, também em outros setores, como os segmentos produtivos e econômico. E, sendo um processo centrado no paciente (é o indivíduo que adere ou não), é bastante revelador que as principais estratégias adotadas para superação dos problemas de adesão concedam tamanho destaque justamente a agentes como médicos, farmacêuticos e aos próprios medicamentos em si. Não à toa, a cada ano, a adesão às prescrições médicas está cada vez mais “fraca”, e a inteligibilidade sobre essa situação ainda mais nebulosa (CUTLER; EVERETT, 2010CUTLER, D. M.; EVERETT, W. Thinking outside the pillbox-medication adherence as a priority for health care reform. N Engl J Med, v. 362, n. 17, p. 1553-1555, 2010.).

Em uma rápida pesquisa bibliográfica, procurou-se apreender algumas das interpretações dirigidas à questão da adesão à medicação em diferentes contextos empíricos. Foi possível perceber que, após a década de 1980, os estudos sobre adesão se desdobraram destacadamente sobre um tipo específico de particularização. Se, antes, a adesão era uma questão clínica aberta, a partir desse período, a confluência de interesses é estudá-la em especificidade a determinadas patologias, com pouca ênfase no estudo dos processos de tomada de decisão por parte dos pacientes. Esse tipo de desenho opera uma tarefa complexa de separação, uma vez que, clinicamente, o quadro de multimorbidades é considerável em nosso país (NUNES et al., 2018NUNES, B. P. et al. Multimorbidity: The Brazilian Longitudinal Study of Aging (ELSI-Brazil). Revista de Saúde Pública, v. 52, 2018.). Ademais, separar cientificamente, como conjuntos distintos, elementos que identificam fatos, discurso e poder, compõe uma tripartição que, segundo Latour (2012LATOUR, B. Reagregando o social. Bauru, SP: EDUSC; Salvador: EDUFBA, 2012. ), busca apenas proteger e autorizar o analista, como legítima autoridade na interpretação da realidade, restabelecendo seu espaço e sua cota de poder.

Observou-se, também, que a maior parte dos estudos não inclui nenhum tipo de conceito ou conteúdo teórico à adesão à medicação e, menos ainda, dedicam-se a problematizar seu estatuto. Parece ser mais relevante a descrição da doença e sua terapêutica, restando à adesão a posição de categoria métrica. Esse tipo de posição científica reflete bem o modelo mecanicista da Medicina Ocidental Contemporânea (ou Biomedicina), na qual o poder de intervenção sobre as doenças é hierarquizado e de comando único. Portanto, sobre a adesão a qualquer terapêutica, cabe apenas avaliar o grau de seguimento das determinações impostas.

Um overview de revisões sistemáticas conduzido por Anderson e colaboradores (2020ANDERSON, L. J. et al. A systematic overview of systematic reviews evaluating medication adherence interventions. American Journal of Health-System Pharmacy, v. 77, n. 2, p. 138-147, 2020.), resumiu as evidências da literatura existente, sintetizando as intervenções e seu impacto sobre a adesão à medicação. O tipo de procedimento mais comumente aplicado e com melhores resultados foi a mudança no regime farmacoterapêutico, com simplificação das doses. Outra intervenção promissora foi a aplicação de ações educativas junto aos pacientes. No entanto, ao analisar a acurácia dos resultados selecionados, os autores identificaram que as conclusões obtidas foram de baixa ou muito baixa qualidade. Nesse sentido, os autores não conseguiram eleger um procedimento comprovadamente eficaz. Em uma outra revisão sistemática conduzida por Nieuwlaat et al. (2014NIEUWLAAT, R. et al. Interventions for enhancing medication adherence. Cochrane Database Syst Rev., v. 20, 2014. ), também para avaliar os efeitos das intervenções destinadas a melhorar a adesão do paciente aos medicamentos prescritos, os autores concluíram que os métodos atuais para melhorar a adesão à medicação são, em sua maioria, complexos e não muito eficazes, de modo que os benefícios pretendidos não puderam ser evidenciados.

Assim, o panorama dos estudos sobre adesão à medicação mostra-se incapaz de definir um padrão-ouro para as intervenções, ao tempo que não questiona os limites de suas próprias escolhas epistemológicas. O debate da literatura concentra-se notadamente sobre questões metodológicas instrumentais. Há maior preocupação quanto à eleição de critérios de elegibilidade, questionários utilizados, restrições ou falhas metodológicas, poder de acurácia, limites no resgate da memória, além de outros aspectos que possam colocar em suspeição as escolhas empreendidas. Em um caso exemplar desse tipo de trabalho (e não citado por questões éticas), a adesão foi medida pelo número de doses ingeridas, que podiam ser contadas a partir de um dispositivo que continha os medicamentos. Os pacientes que retornaram às consultas sem esses dispositivos foram excluídos da análise. Ou seja, os sujeitos da pesquisa eram os medicamentos, e não o próprio paciente.

Analisando esse cenário a partir das perspectivas de Deleuze e Guattari (1997DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs. Vol. 5. São Paulo: Ed. 34; 1997.), podemos inferir que o grande problema das investigações sobre a adesão à medicação é, primeiramente, o fato de serem clínicas; e, em segundo lugar, por tomarem a situação como um conjunto de receitas essencialmente limitadas, ao tempo que não incluem outros tipos de projeções capazes de substituir seu modelo analítico. Segundo esses autores, a adesão à medicação não seria um problema ou obstáculo, mas um movimento. Uma máquina de guerra que age sobre um espaço liso, desterritorializando e territorializando o cuidado a partir de sua originalidade e excentricidade.

A adesão, nessa abordagem, deve ser tomada a partir do fundamento da diferença enquanto uma instância criativa. Uma ordem múltipla de sentidos e orientações que indicam diferentes modos de pensar e executar o cuidado. E, como pode ser observado na literatura, há um adensamento de novas perspectivas terapêuticas, fundadas em um tipo de emancipação do cuidado, em que os próprios pacientes se sentem aptos a dirigir seu próprio cuidado. Abordagens como a Gestão Autônoma da Medicação (GAM) alteram as rotas e hierarquias da assistência e as relações de poder envolvidas nas decisões sobre o uso dos medicamentos, estimulando o resgate da autonomia e a apropriação do tratamento por parte dos pacientes (CAMPOS et al., 2012CAMPOS, R. T. O. et al. Adaptação multicêntrica do guia para a gestão autônoma da medicação. Interface - Comunicação, Saúde, Educação. Botucatu, v. 16, p. 967-980, 2012.).

Estamos, portanto, nos confrontando com um processo em curso, de reestruturação dos domínios do cuidado terapêutico. Resgatando o pressuposto de Thomas Kuhn (1978KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1978.), de que a ciência normal apenas rompe seus paradigmas hegemônicos em circunstâncias especiais, advindas de uma situação de profunda crise na explicação e compreensão da realidade, já é possível observar que a legitimidade da autoridade profissional sobre o cuidado tem sido objeto de controvérsias, em consultórios e ambulatórios, como podemos verificar nos exemplos etnográficos de Calvo-Gonzalez (2011), Bonet e Tavares (2006BONET, O.; TAVARES, F. Redes em redes: dimensões intersticiais no sistema de cuidados à saúde. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A. (Org.). Gestão em redes. Práticas de avaliação, formação e participação na saúde. Rio de Janeiro: Cepesc; 2006. p. 385-400.) e Oliveira (1998OLIVEIRA, F. J. A. Concepções de doença: o que os serviços de saúde têm a ver com isto? In: DUARTE, L. F. D.; LEA, O. F. (Org.). Doença, sofrimento, perturbação: perspectivas etnográficas. Rio de Janeiro: FIOCRUZ , 1998. p. 81-94.).

A atividade clínica vem sendo atravessada e atormentada por linhas de ação fora de seu domínio de controle. Como afirmam Bonet e Tavares (2006BONET, O.; TAVARES, F. Redes em redes: dimensões intersticiais no sistema de cuidados à saúde. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A. (Org.). Gestão em redes. Práticas de avaliação, formação e participação na saúde. Rio de Janeiro: Cepesc; 2006. p. 385-400.), no indivíduo-situado, as tensões que eram suprimidas e acomodadas pelo processo autoritativo se reconfiguram, redefinindo o espaço do cuidado, assim como a posição dos atores envolvidos. Essa transformação, que é contínua e interdependente, desafia os atos profissionais e a hegemonia do ordenamento profissional que buscam resistir a esses atos insurgentes, esforçando-se em excluí-los do plano assistencial. Para a Biomedicina, romper com seu caráter universal e generalizante, compartilhando a autoridade de seu discurso, é desconstruir seu sistema lógico e ético, abrindo-se a modelos deformadores, em cenários individualizados que se opõem à estabilidade de seus ordenamentos gerais e universais.

Portanto, o ideal deleuziano de fazer do devir um modelo pode ser considerado o clinâmen à Biomedicina - uma passagem para o outro lado. Do espaço estriado para o espaço liso; do modelo teoremático ao modelo problemático e turbilhonar, no qual as coisas-fluxo se distribuem, em vez de serem distribuídas em um espaço fechado. Buscando superar o engessamento da ordem das razões, considerar a adesão como problema afetivo é torná-la inseparável de suas metamorfoses, gerações e criações.

Deste modo, o presente trabalho tem como objetivo central interrogar o estatuto dos agenciamentos humanos e não humanos na prática clínica, especialmente no tocante à adesão à medicação. Considera que tal prática é hegemonicamente assimilada apenas por parâmetros científicos e biológicos, que concebem o cuidado em saúde como produto de um conjunto normativo e universal. A ausência de uma abordagem direcionada às especificidades históricas e culturais dos pacientes transfere ao analista a primazia da delimitação e explicação da realidade. Assim, o argumento deste trabalho é que a busca dos elementos fundantes ao estudo da adesão à medicação deve partir do próprio paciente, e não fora ou além de sua história, ou ainda cotejando explicações universais. Qualquer ruptura ou descontinuidade na terapêutica deve ser encarada em sua própria coerência, restabelecendo as linhas de pensamento e ação que até então foram suprimidas pela tradição biomédica. Por isso, a adesão à medicação deve ser pensada enquanto um fenômeno complexo, que não se configura a partir de uma coleção de elementos arbitrários. Ao contrário, esse conjunto inteiro deve ser analisado, no contexto dos esforços que buscam alcançar coerência e conciliação sobre as atitudes empreendidas.

Aspectos metodológicos

A fim de compreender os movimentos implicados no fenômeno da adesão à medicação, mapeando seus rastros e conexões, buscamos empreender um trabalho etnográfico em conjunto com atores que participavam de um serviço de atenção farmacêutica.

Esse serviço farmacêutico integra o conjunto de atividades assistenciais de uma policlínica de saúde centrada na atenção secundária, em um município de grande porte. Para a seleção, os participantes foram convidados pela pesquisadora no momento de seu cadastramento junto ao serviço de atenção farmacêutica. Aqueles que aceitaram participar da pesquisa tiveram uma entrevista agendada, que foi realizada nas próprias residências dos pacientes, antes da primeira consulta farmacêutica. Com essa estratégia, pretendeu-se obter informações privilegiadas previamente a qualquer tipo de intervenção farmacêutica.

A escolha desse cenário de pesquisa pautou-se por dois critérios: a) a seleção de pacientes em uso regular de medicamentos (uma vez que esse era um dos critérios para inclusão no referido serviço farmacêutico); e b) a manutenção de encontros clínicos regulares e sistemáticos.

Em consonância com os pressupostos e objetivos da pesquisa, o delineamento amostral não incluiu nenhum tipo de desenho intencional que buscasse privilegiar qualquer tipo de características clínicas além do uso contínuo de medicamentos. O recorte na hipertensão arterial ocorreu de maneira não premeditada, mas apenas resultante das características do enfoque escolhido pelo serviço de atenção farmacêutica à época.

Para o dimensionamento amostral, optou-se pela técnica de saturação dos resultados, cujo limite foi alcançado pela verificação de que a inclusão de novas informações se tornou repetitiva e sem contribuição adicional significativa (FONTANELLA; RICAS; TURATO, 2008FONTANELLA, B. J. B.; RICAS, J.; TURATO, E. R. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Cadernos de Saúde Pública, v. 24, p. 17-27, 2008.). Desse modo, o universo da pesquisa refere-se ao acompanhamento da trajetória e experiência farmacoterapêutica de 15 pacientes, durante 12 meses.

As consultas aconteceram em uma sala improvisada pela farmacêutica para a realização das atividades de atenção farmacêutica. A farmacêutica dispunha de insumos básicos para o atendimento, como prontuário médico, aparelhos para aferição da pressão arterial e de dados antropométricos. O retorno dos pacientes era mensal e agendado de modo a coincidir com a data de retirada dos medicamentos no serviço de farmácia da unidade.

A coleta de dados do presente estudo compreendeu as experiências apreendidas nas consultas farmacêuticas e uma entrevista domiciliar. O momento da entrevista seguiu um roteiro padronizado (cujas questões também nortearam a observação participante) que preconizou duas temáticas principais: 1) como os pacientes definem a adesão e o uso dos medicamentos para tratamento de suas doenças; e 2) como o tratamento farmacológico era conduzido e implementado por eles.

Seguindo a proposta de observação participante de William Foote-Whyte (2005WHYTE, W. F. Sociedade de esquina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 390 p.), as consultas farmacêuticas se posicionaram como uma lente capaz de, a partir da situação presente, remontar o passado e o momento do uso dos medicamentos. E por compartilhar da mesma profissão da farmacêutica (e por já ter desenvolvido trabalhos também na área de atenção farmacêutica), optou-se por provocar o mínimo de questionamentos sobre os momentos das consultas, a fim de não produzir ruídos sobre a real intenção naquele espaço, que não era de avaliar o processo clínico em si. Portanto, assim como o autor, a pesquisadora delimitou sua posição naquele cenário, de modo que os dados surgissem a partir da própria situação em curso.

Para a interpretação dos dados obtidos, foi escolhida a análise de discurso como estratégia analítica (GILL, 2002GILL, R. Análise de discurso. In: BAUER, M. W.; GASKELL, G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 2002.). O percurso dessa etapa incluiu a transcrição detalhada dos momentos das entrevistas e das anotações no diário de campo, seguida da exploração do material organizado, aplicando-se o espírito da leitura cética. Nesse tipo de procedimento, o pesquisador direciona o olhar para a construção, organização e funções do discurso, em vez de buscar por algo subjacente a ele. Esse momento exigiu um interesse, não na busca de essências ou sínteses dos relatos, mas nos detalhes das passagens e relações empreendidas, assim como nas confluências entre aquilo que foi dito e sua interseção com a realidade observada. Em seguida, foi realizado o procedimento de codificação, conduzido a partir das categorias suscitadas pelo próprio contexto interpretativo. Todo material empírico foi analisado utilizando-se o software Atlas ti®, que contribuiu para a composição e análise dos dados.

Este trabalho, além de ser desenvolvido sob os mais elevados princípios éticos, foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia (CAAE: 01288818.3.0000.8035).

Resultados

O local de residência do grupo de pacientes analisados situa-se na área político-administrativa de um dos 12 distritos sanitários que organizam o sistema de saúde municipal. Além de concentrar um grande contingente populacional, esse território apresenta características que inferem um cenário de vulnerabilidade social (AYRES et al., 1999AYRES, J. C. R. M. et al. O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: CZERESNIA, D.; FREITAS, C. M. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2009. p. 117-139.), com alta densidade demográfica, condições sanitárias e de moradia precárias e indicadores de mortalidade elevados, com destaque para as taxas de mortalidade bruta, por causas externas e prematura (30-69 anos) pelos principais grupos de doenças crônicas não transmissíveis (doenças do aparelho circulatório, neoplasias malignas, diabetes mellitus e doenças respiratórias crônicas). Quanto às características sociodemográficas, observou-se predominância de mulheres, autoidentificadas como pretas ou pardas, idade entre 60-79 anos e residindo acompanhadas de outras pessoas. Com baixo nível de escolaridade, a maior parte possui apenas o ensino fundamental completo (5/15) ou incompleto (6/15). O estudo da evolução do acompanhamento farmacoterapêutico, realizado pela farmacêutica, indicou que a porcentagem de pacientes aderentes ao regime farmacológico prescrito era de 60% (9/15) na primeira consulta farmacêutica, alcançando a sua totalidade (100%; 15/15) na décima segunda consulta. Um maior detalhamento do perfil desse grupo e sua evolução clínica estão descritos na tabela 1.

Tabela 1
Perfil dos pacientes acompanhados e resultados dos testes de avaliação da adesão à medicação

A experiência do acompanhamento das consultas farmacêuticas e dos trânsitos contínuos e descontínuos no uso dos medicamentos evidenciou conexões e conflitos que desconstroem um tipo de simplificação que distingue dois grupos de pacientes não aderentes: os involuntários e os voluntários1 1 Segundo o documento “Síntese de evidências para políticas de saúde: adesão ao tratamento medicamentoso por pacientes portadores de doenças crônicas”, são dois os tipos de pacientes não aderentes à medicação: os involuntários, que operam por falhas de conhecimento ou interpretação das instruções da equipe de saúde, com esquecimentos de horários e desorganização na administração dos medicamentos; e os voluntários, que são aqueles que optam por não tomar parcialmente ou totalmente os medicamentos por múltiplos motivos (BRASIL, 2016). .

Ao longo do cuidado domiciliar e ambulatorial, doença e tratamento vão adquirindo novos relevos, em um complexo campo de experiências cuja centralidade está em disputa: o sujeito ou o medicamento? Entre as inúmeras anotações no diário de campo, ficou explícito que, apesar de o foco do serviço de atenção farmacêutica não ser exclusivamente direcionado à questão da adesão à medicação, essa temática era constantemente abordada pela farmacêutica, uma vez que impactava diretamente o seu desfecho clínico principal, que era alcançar níveis pressóricos satisfatórios.

Para tanto, além das medidas de aferição da pressão arterial, o Teste Morisky-Green (1986MORISKY, D. E.; GREEN, L. W.; LEVINE, D. M. Concurrent and predictive validity of a self-reported measure of medication adherence. Med Care, V. 24, n.1, p. 67-74, 1986.) era mensalmente aplicado para estudo do comportamento frente à implementação da prescrição médica. E a despeito da variedade de posturas evidenciadas na entrevista realizada pela pesquisadora, durante as consultas farmacêuticas a temática da adesão à medicação não alcançava profundidade. A simplicidade do questionário2 2 As perguntas que compõem o Teste Morisky e Green são: 1) Você alguma vez esquece de tomar o seu remédio; 2) Você às vezes é descuidado quanto ao horário de tomar o seu remédio; 3) Quando você se sente bem, alguma vez, deixa de tomar seu remédio; 4) Quando você se sente mal com o remédio, às vezes, deixa de tomá-lo? e a ausência de uma investigação complementar por parte da farmacêutica (que parecia se contentar com o modelo oferecido pelo teste) deram a tônica das intervenções aplicadas para a reelaboração dos comportamentos frente à prescrição médica.

Assim, eram as próprias questões do teste que norteavam a interpretação profissional sobre o comportamento frente ao regime farmacoterapêutico e articulavam a produção do cuidado. De maneira geral, apenas quando alguma das perguntas recebia uma resposta positiva é que intervenções eram aplicadas. Limitado a ações educativas e de aconselhamento, o objetivo era alcançar uma postura de seguimento estrito à prescrição médica, tendo como principal estímulo a melhoria nos níveis pressóricos. É digno de nota relatar que, com relação aos quatro questionamentos que compunham o teste, esses não eram realizados de forma ordenada, mas distribuídos ao longo da consulta, a fim de que, nas palavras da farmacêutica, “o paciente não percebesse que estava sendo avaliado e pudesse dar respostas falsas”.

Não foi identificado algum tipo de inclinação para explorar as conexões empreendidas entre os pacientes e a experiência com os medicamentos. Partia-se do pressuposto de que seguir as instruções da prescrição médica era ponto pacífico, e não uma matéria portadora de singularidades. Frente aos desvios sobre o regime farmacoterapêutico, só havia uma saída: retomar o “plano” terapêutico. Assim, o estudo da adesão à medicação fundava-se em uma única métrica, traçada a partir da prescrição médica.

Não obstante, durante as entrevistas com a pesquisadora, foi possível perceber que desse “plano”, diferentes desenhos e estratégias se depreendiam. O traçado instituído fora dos contornos impostos pela prescrição médica não necessariamente se opunha ao desenho profissional, mas apenas abarcava outros elementos e contingências que implicavam diferentes modos de organização e implementação do regime farmacoterapêutico, como mostram as citações a seguir.

A experiência de reações negativas e indesejadas demonstrou impacto direto no manejo dos medicamentos:

(Tomar os medicamentos) é bem difícil, não é fácil não. Tem dia que o meu estômago, eu tomo muitos, então o meu estômago parece que não já não está aceitando, sabe? Mas é uma forma pra sobreviver, né? E você vê, faz quanto tempo que eu tenho tomado esses remédios, quantos anos. Um dia que eu passo sem tomar o propranolol, mas me deu uma coisa tão ruim, que eu precisei entrar no Pronto Socorro, aí o médico me perguntou “Dona Neusa (nome fictício), a senhora tomou o propanolol?”, falei “Tomei”, mas era mentira, eu não tinha tomado. Aí ele me deu lá. Eu fiquei uns 15, 20 minutos né? Bom, daí eu vim embora pra casa. Meu netinho gritava “Não quero que você morre, vó”. É uma coisa difícil viu? (Paciente 5)

Bom, eu se eu ficar sem tomar os meus remédios eu morro, né? Eu acho que eu tô sobrevivendo por causa do remédio, né. Se eu passar um dia sem tomar eu sinto mal, meu coração dispara, me dá falta de ar. Eu acho que é uma forma de sobrevivência. (Paciente 15)

Já a expressão de resultados positivos estimulava a conduta de seguimento da prescrição:

Óia, eu não acho muito bom, não (risos), mas a gente tem que tomar, né? Porque senão é ruim pra gente mesmo né, piora as coisas, que nem o meu problema é pressão, e não é tão alta entendeu? Nunca subiu mais que 16. Mas, eu acho que pra manter tem que tem que tomar ele (o remédio) direitinho. (Paciente 12)

Eu acho que ele (o medicamento) tá controlando a minha pressão, né? Eu me sinto bem, não tenho mais dor nenhuma. Eu, assim, eu sinto mais tranquila, né? Se eu não tivesse tomando, eu já ia ficar com aquilo na cabeça que a pressão ia subir, né. É acho que, tomando, eu vou sentir que ela tá mais controlada. (Paciente 9)

Considerando que as terapêuticas emergem (ou deveriam emergir) de um tipo de pactuação entre profissional e paciente, a qualidade dessa relação também imprimiu valores à adesão à medicação:

Se eu tiver alguma dúvida, se eu tiver uma receita que eu que tiver dúvida e eu achar que eu não vou tomar, então eu vou procurar um esclarecimento melhor do médico, quer dizer, eu não tomo sem esclarecer nada. Inclusive, eu também não fico sem ler a bula. Mesmo o médico me falando, eu olho a bula, eu passo pela bula ainda. Eu não vou, assim, direto, tomando remédio, não. Eu sempre procuro saber o porquê que eu tô tomando e pra que que é, o que que vai me fazer, o que que vai me causar. Eu sempre procuro isso. (Paciente 1)

A experiência com doenças crônicas confere a esses pacientes um extenso repertório empírico de tratamentos e médicos. E, em vista disso, observou-se maior facilidade no reconhecimento de seus estágios clínicos, assim como as repercussões frente ao uso ou à interrupção dos medicamentos:

Eu sei bem. Eu tomando o remédio geralmente eu me sinto melhor do que sem o remédio. Somente o remédio da pressão que eu tomo, então eu me sinto melhor. Quando eu não tomo, já não me sinto bem, então. (Paciente 10)

Então, eu sinto, assim, porque eu já, eu já experimentei ficar sem o medicamento e eu não consigo ficar. Eu não consigo, eu fico tonta, eu chego até cair. Eu caio, né, eu fico tontinha, então eu preciso do remédio. (Paciente 15)

Se eu não tomo o meu remédio da pressão, eu começo a ter dor de cabeça, começo a ter dor na nuca, fico indisposta, e eu já tive até começo de infarto, então eu não posso ficar sem os meus remédios de pressão. E eu tomo também antidepressivo, eu também não posso ficar, certo? Porque eu fiquei chorando pros canto, certo, então eu acho que o remédio é essencial pra a gente que tem problema, sabe? Porque eu sem os meus remédios eu não fico não. (Paciente 3)

Já a desconsideração desse conhecimento incide negativamente na percepção do cuidado:

Ah, eu tenho meio cisma assim. Uma vez, me deu um treco que eu nem sei o que que me aconteceu, aí eu não sei, é uma coisa esquisita. O cara me entuchando um remédio pra mim dormir, eu falei “moço, não é nada disso, entuchando remédio”. Falei “não, moço! Nossa Senhora, eu não tomo remédio”. Sei que eu fui com uma ambulância e voltei com ambulância. Agora, que diabo você me pergunta o que que eu tinha, eu não sei. O médico tava querendo me dar um remédio pra dormir. Óia dormir não é o que vai resolver o problema, né? Até foi assim, oh, eu guardei tudo os papel, o nome do médico, tudo, foi esse daqui. Então, mas jamais qualquer médico não pode fazer isso. E eu falando “não precisa disso, moço”. “Bebe”, sabe? O médico. Nossa Senhora, não! Vixe. (Paciente 13)

Observa-se, também, que essas trajetórias farmacoterapêuticas forjam um tipo de propriedade no cuidar de si e que implicam uma capacidade de manejar e reconfigurar condutas:

Porque, assim, o remédio, a gente tem que ir trocando de horário. Eu, por mim mesma, eu tomo fluoxetina. E ele, eu tomava ele nove horas da manhã. Ele dava uma dor de estômago horrível, né? Aí comecei a tomar outro horário pra ver se melhora. Então, assim, quando eu vou no médico, eu pergunto, né? Mas, como os retornos hoje são demorados, são de três em três meses, então, nesse intervalo, eu vou tentando mudar por mim mesma vendo um horário que dá certo. (Paciente 9)

No contexto doméstico, outras questões se associam à doença, que adquire feições dos próprios problemas cotidianos:

Às vezes muda, né? Do remédio. Mas eu já tô achando que tá me prejudicando. Mas se eu também ficar sem tomar, é pior, porque eu passo muito momento difícil, e no meio da minha família tem lidado com muita doença, muita dificuldade, e aí a pressão descontrola mesmo. Tem que tomar. Hoje mesmo eu passei um dia corrido. A minha menina fez uma cirurgia e, depois disso, alterou muito, e foi obrigado a chamar a ambulância, aí veio, pegou ela, ela ficou nesse postinho aí. Oh ficamo assim, sem nada, sem comer, assim, até aí veio uma hora, tudo sem almoçar. Chegou lá, a gente chegou lá duas horas lá, quando foi atender minha menina sentindo dor e quando eles foram nos atender foi cinco hora, né? (Paciente 8)

A rotina de uso dos medicamentos demarca grande responsabilidade, assim como um fardo para os pacientes:

Ah, eu sinto que é uma responsabilidade muito grande, você entendeu? Eu já levanto e cato minha caixa de medicamento. Antes de eu dormir, a primeira coisa que eu tenho que fazer é tomar os remédios. Então, é uma coisa, assim, que você não pode tirar isso da cabeça. Você tem que tá sabe ligado no remédio as 24 horas. Mas, se eu parar, eu morro, então... (Paciente 5)

O que eu sinto é que seria bom se não precisasse tomar, né? Porque o fato de eu tomar remédio é porque eu tenho um problema, né. Então, assim, eu sinto que é falta de saúde, não é verdade? Eu gostaria de ter mais saúde e não precisar tomar o remédio, não depender do remédio, né? (Paciente 6)

Durante a observação dos momentos de dispensação dos medicamentos, no serviço de farmácia, esse misto de sentimentos era facilmente observado. Havia, de modo geral, um tipo de gratidão pelo recebimento dos medicamentos. Entretanto, tanto a rotina de administração dos medicamentos quanto a necessidade de comparecimento à farmácia para retirá-los revelavam outras posições. Esse ritual tornava-se cansativo, especialmente pela idade avançada de alguns pacientes e pelas condições precárias de mobilidade urbana e infraestrutura dos serviços.

O momento da dispensação de medicamentos, que deveria ser um espaço privilegiado para o relacionamento com os pacientes, é bastante subutilizado. O contato com os atendentes limita-se aos aspectos burocráticos e procedimentais da dispensação. Apenas quando o atendente possuía algum vínculo afetivo com o paciente, é que pudemos identificar maior interesse sobre a experiência passada com os medicamentos. Com o profissional farmacêutico, repetia-se a mesma situação. Nas poucas ocasiões em que este participava da dispensação, apenas quando existia certa proximidade com o paciente, observou-se a demonstração de interesse sobre o andamento do tratamento.

Assim, o trabalho empírico demonstrou que a perspectiva profissional e o pragmatismo da decisão terapêutica simplificam o vasto e complexo campo das experiências que constituem o processo saúde-doença e o uso dos medicamentos. Já entre os pacientes, o risco da morte, as oscilações do cotidiano e seus próprios encontros clínicos sustentam uma rede de expectativas e experiências que incidem sobre o uso dos medicamentos e a percepção da doença.

Discussão

Uma parte da crítica epistemológica de Deleuze e Guattari (1997DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs. Vol. 5. São Paulo: Ed. 34; 1997.) às ciências examina justamente o poder conferido aos intelectuais e profissionais para imprimir e perpetuar suas ideias e essências, enquanto exclui e reprime outras visões sobre as formas de organização da vida social. Para os autores, essa capacidade é ilusória, uma que vez que a ciência, ao participar do campo social, não pode ser tomada como uma matéria preparada ou homogeneizada, mas essencialmente portadora de singularidades, que constituem suas formas e conteúdos.

No entanto, é justamente uma separação entre mundos que o campo biomédico busca impor. Para impedir o movimento dos pacientes entre o mundo da vida e da clínica, reforçam-se determinados traços e esquemas, que preenchem o espaço com sua inscrição arbitrária. Porém, na perspectiva deleuziana, essa maquinação não alcança sucesso. A encenação sobre o espaço liso não o transforma em absoluto num espaço estriado. Por isso, para operar e viabilizar essa intenção, os profissionais se apoiam em discursos científicos que fortificam suas ideias e esquemas, a fim de neutralizar a urgência criadora dos pacientes. Nisso consiste a função da métrica, da técnica e da imposição de conceitos, exteriores ao próprio indivíduo.

Os saberes da clínica são utilizados como ferramentas de estabilização. Sua reprodutibilidade garante permanência e fixidez, e a centralidade profissional delimita fronteiras definidas para a ação. O paciente é posto à margem, sendo reconstituído e reconfigurado. Um esquema que é próprio das ciências régias, que utilizam de seu poder teoremático ou axiomático para subtrair todas as operações da subjetividade, convertendo-as em verdadeiros conceitos intrínsecos ou "categorias" (DELEUZE; GUATTARI, 1997DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs. Vol. 5. São Paulo: Ed. 34; 1997.).

A conduta assimétrica do campo biomédico insiste na dualidade de posições como forma de sustentar a continuidade e a estabilidade de seus próprios princípios. Não aceita que, como demonstrado no trabalho de campo, a adesão à medicação é um fenômeno inteiramente social. Perpassando complexos enredos individuais, econômicos, clínicos e culturais, a adesão torna-se uma bricolagem que tem o medicamento como seu principal mediador. E é partindo do medicamento que se distinguem duas visões radicalmente distintas sobre a adesão.

Para os profissionais da saúde, os medicamentos não incidem sobre as subjetividades, mas apenas às fisiologias dos corpos. São, portanto, incapazes de produzir sensações para além das clínico-terapêuticas. Já para os pacientes, os medicamentos possuem repertório ampliado nem sempre reconhecido pela constituição biomédica. Sobre esses objetos recaem sentidos e conexões, que redefinem seu espectro e suas formas de ação. O efeito dos medicamentos não se propaga apenas sobre células, mas, também, sobre as experiências e relações cotidianas.

Por isso, a partir da fundamentação teórica de Deleuze e Guattari e Latour, a proposta aqui defendida é de que a adesão à medicação seja situada não apenas pelos objetos da constituição biomédica (indicadores clínicos, prescrição, medicamentos) mas como um fenômeno híbrido que também é atravessado e tem sua eficácia mobilizada pelos objetos do sujeito - sociedade/pensamento/conhecimento/cultura. Ao retirar da técnica o lugar de porta-voz exclusivo da interpretação da ação e do efeito dos medicamentos, incluem-se, também, os pacientes como tradutores desse fenômeno.

São justamente esses atores que escapam aos inúmeros testes e questionários que avaliam a adesão à medicação e seus determinantes. É preciso localizar e explorar com profundidade o uso dos medicamentos. Aderente e não aderente não são apenas opostos qualitativos. São comportamentos inteligíveis, que expressam condições de ação. Os testes e questionários são peças que analisam a questão em segmentação. São incapazes de produzir uma opinião sintetizada e conferida pela observação ampliada, que inclua os sujeitos em ação na vida, com sua reflexividade e em inter-relação com uma diversidade de ambientes e elementos.

Ao problematizar as bases em que se assenta a adesão à medicação e deslocando o paciente do consultório e dos questionários para seu modo de ser no mundo, seremos conduzidos a uma postura bem mais cautelosa do que a rápida polarização entre o certo e o errado. Ao mesmo tempo, novas possibilidades compreensivas sobre o comportamento não aderente poderão ser criadas. Dialogando com a abordagem dos agenciamentos terapêuticos, proposta por Tavares (2017TAVARES, F. Rediscutindo conceitos na antropologia da saúde: notas sobre os agenciamentos terapêuticos. Mana, v. 23, p. 201-228, 2017.), assimilamos que, sobre o estudo da adesão à medicação, improcedem modelos ancorados em dicotomias e classificações apressadas. “Não há “entidades” a priori, nem “relação” como consequência, nem totalidades sistemáticas ou tipológicas: há relações que fazem fazer” (TAVARES, 2017TAVARES, F. Rediscutindo conceitos na antropologia da saúde: notas sobre os agenciamentos terapêuticos. Mana, v. 23, p. 201-228, 2017., p. 201).

O processo de decisão na adesão à medicação é dinâmico, que envolve um deliberado, complexo e prolongado engajamento. Pacientes revisam suas experiências anteriores, avaliam suas relevâncias, negociam situações, resgatam experiências prévias com médicos e medicamentos. Associam-se a isso disparidades educacionais, econômicas e de acesso aos serviços de saúde. Todos esses aspectos figuram como elementos interpretativos, que conduzem todo processo do cuidado.

Entre os pacientes acompanhados, fica claro que a adesão à medicação não é uma categoria êmica. Não é sobre esses termos que eles definem os processos fundantes de suas experiências com os medicamentos e as prescrições médicas. No processo de cuidado farmacoterapêutico, o indivíduo se guia por categorias cognitivas e clínicas, mediado por empiria e reflexividade, para eleger os elementos que o subsidiarão a decidir o que fazer e como agir. Não podemos dizer que a simples experiência negativa motiva a não tomada do medicamento. E nem que o conhecimento ou mesmo a experiência dos riscos e das complicações da doença sejam conclusivos para sua utilização. Há um universo de decisões e mediações que complexificam e exigem maior profundidade à dimensão compreensiva.

O paciente não é um objeto a ser estudado com relação à adesão, mas constitui o próprio sujeito da adesão. Altera-se, portanto, sua base investigativa, sem a delimitação apriorística de seus contornos. E quais seriam as consequências para as ciências da saúde? Porque é a própria dinâmica da clínica e seu desenho de trabalho que demandam a necessidade de instrumentos generalizantes. Nenhum médico ou farmacêutico provavelmente gostará de se ver obrigado a agir como um antropólogo. O acesso à interioridade do indivíduo é mais restrito e não se encontra em prontuários ou consultas apressadas. Entretanto, há de se considerar que essas dificuldades não abrem precedentes para a destituição de conteúdo do processo de adesão à medicação.

Nesse aspecto, ficou claro no trabalho de campo, o quanto os pacientes refletem sobre sua saúde e seu tratamento, a partir de um declarado senso de responsabilidade sobre sua condição clínica. A ilusão da generalização e da impessoalidade impede que os profissionais se integrem aos agenciamentos produzidos na interrelação entre sujeito, medicamento e prescrição. A submissão aos procedimentos padronizados e a hegemonia da evidência desprovida de conexão com o sujeito, reduzem o mais significativo da prática em saúde: o peso e a vitalidade da ação humana, inventiva, inovadora e imprevisível.

Referências

  • ANDERSON, L. J. et al A systematic overview of systematic reviews evaluating medication adherence interventions. American Journal of Health-System Pharmacy, v. 77, n. 2, p. 138-147, 2020.
  • AYRES, J. C. R. M. et al O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: CZERESNIA, D.; FREITAS, C. M. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2009. p. 117-139.
  • BLACKWELL, B. Patient Compliance. New England Journal of Medicine, v. 289, n. 5, p. 249-252, 1973.
  • BLACKWELL, B. Treatment Adherence. British Journal of Psychiatry, v. 129, n. 6, p. 513-531, 1976.
  • BONET, O.; TAVARES, F. Redes em redes: dimensões intersticiais no sistema de cuidados à saúde. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A. (Org.). Gestão em redes Práticas de avaliação, formação e participação na saúde. Rio de Janeiro: Cepesc; 2006. p. 385-400.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Ciência e Tecnologia. Síntese de evidências para políticas de saúde: adesão ao tratamento medicamentoso por pacientes portadores de doenças crônicas. Brasília: Ministério da Saúde, 2016. 52 p.
  • CAMPOS, R. T. O. et al Adaptação multicêntrica do guia para a gestão autônoma da medicação. Interface - Comunicação, Saúde, Educação Botucatu, v. 16, p. 967-980, 2012.
  • CUTLER, D. M.; EVERETT, W. Thinking outside the pillbox-medication adherence as a priority for health care reform. N Engl J Med, v. 362, n. 17, p. 1553-1555, 2010.
  • DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs Vol. 5. São Paulo: Ed. 34; 1997.
  • FONTANELLA, B. J. B.; RICAS, J.; TURATO, E. R. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Cadernos de Saúde Pública, v. 24, p. 17-27, 2008.
  • GILL, R. Análise de discurso. In: BAUER, M. W.; GASKELL, G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
  • GURWICH, E. L.; SWANSON, L. N. Clinical pharmacy practice in an outpatient clinic. J Am Pharm Assoc, v. 15, n. 7, p. 392-399, 1975.
  • KASSIRER, J. P. Diagnostic reasoning. Ann Intern Med, v. 110, p. 893-900, 1989.
  • KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1978.
  • LATOUR, B. Reagregando o social Bauru, SP: EDUSC; Salvador: EDUFBA, 2012.
  • MORISKY, D. E.; GREEN, L. W.; LEVINE, D. M. Concurrent and predictive validity of a self-reported measure of medication adherence. Med Care, V. 24, n.1, p. 67-74, 1986.
  • NIEUWLAAT, R. et al Interventions for enhancing medication adherence. Cochrane Database Syst Rev, v. 20, 2014.
  • NUNES, B. P. et al Multimorbidity: The Brazilian Longitudinal Study of Aging (ELSI-Brazil). Revista de Saúde Pública, v. 52, 2018.
  • OLIVEIRA, F. J. A. Concepções de doença: o que os serviços de saúde têm a ver com isto? In: DUARTE, L. F. D.; LEA, O. F. (Org.). Doença, sofrimento, perturbação: perspectivas etnográficas. Rio de Janeiro: FIOCRUZ , 1998. p. 81-94.
  • TAVARES, F. Rediscutindo conceitos na antropologia da saúde: notas sobre os agenciamentos terapêuticos. Mana, v. 23, p. 201-228, 2017.
  • WHYTE, W. F. Sociedade de esquina Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 390 p.
  • 1
    Segundo o documento “Síntese de evidências para políticas de saúde: adesão ao tratamento medicamentoso por pacientes portadores de doenças crônicas”, são dois os tipos de pacientes não aderentes à medicação: os involuntários, que operam por falhas de conhecimento ou interpretação das instruções da equipe de saúde, com esquecimentos de horários e desorganização na administração dos medicamentos; e os voluntários, que são aqueles que optam por não tomar parcialmente ou totalmente os medicamentos por múltiplos motivos (BRASIL, 2016BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Ciência e Tecnologia. Síntese de evidências para políticas de saúde: adesão ao tratamento medicamentoso por pacientes portadores de doenças crônicas. Brasília: Ministério da Saúde, 2016. 52 p.).
  • 2
    As perguntas que compõem o Teste Morisky e Green são: 1) Você alguma vez esquece de tomar o seu remédio; 2) Você às vezes é descuidado quanto ao horário de tomar o seu remédio; 3) Quando você se sente bem, alguma vez, deixa de tomar seu remédio; 4) Quando você se sente mal com o remédio, às vezes, deixa de tomá-lo?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Nov 2020
  • Revisado
    01 Nov 2020
  • Aceito
    08 Jan 2021
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Instituto de Medicina Social Hesio Cordeiro - UERJ, Rua São Francisco Xavier, 524 - sala 6013-E -Maracanã, CEP: 20550-013, E-mail: revistaphysis@gmail.com, Web:https://www.ims.uerj.br/publicacoes/physis/ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: publicacoes@ims.uerj.br