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Digressões da Reforma Psiquiátrica brasileira na conformação da Nova Política de Saúde Mental

Digressions of the Brazilian Psychiatric Reform in the conformation of the new Mental Health Policy

Resumo

No Brasil, a Política Nacional de Saúde Mental vinha se desenhando progressivamente em atos institucionais que buscavam consolidar o modelo de atenção aberto e de base comunitária por meio das diretrizes de desinstitucionalização, conquistando avanços legislativos, especialmente a partir da Lei nº 10.216/2001. Este artigo objetiva analisar a chamada Nova Política de Saúde Mental, considerando o período de 2011 a 2020. Foram analisados atos normativos dos governos brasileiros, em consonância com publicações recentes sobre a temática, inspirando-se no paradigma pós-construtivista em sua conjugação com a avaliação em profundidade de políticas, sobretudo no que tange à análise da trajetória da política na dimensão analítica do texto. Nesse percurso, observou-se o despojamento da proteção social em saúde mental por meio da desconstrução da atenção psicossocial em conformações com agendas do Estado brasileiro nesse período. Embora retrocessos sejam mais intensos a partir do recrudescimento do conservadorismo dos últimos governos, o estudo tonifica o argumento de que medidas instituídas em outros contextos políticos também dificultaram o processo de rompimento com o modelo asilar. Entende-se que atos institucionais, gestados no seio dos governos brasileiros no período de 2011 a 2020, materializam uma digressão da Reforma Psiquiátrica por meio da implementação da Nova Política em 2017.

Palavras-Chave:
Política Pública; Política de Saúde; Saúde Mental; Avaliação de Ações de Saúde Pública

Abstract

The Brazilian Mental Health National Policy was progressively drawn in institutional acts that sought to consolidate the community-based care model through deinstitutionalization guidelines, achieving legislative advances, especially after Law No. 10.216/2001. This article aims to analyze the so-called Brazilian New Mental Health Policy considering the period from 2011 to 2020. For this, regulatory acts of Brazilian governments were analyzed in line with recent publications on the subject, inspired by the post-constructivist paradigm in its conjunction with the in-depth evaluation of policies in terms of the dimension of text in policy institutional trajectory analysis. The dismantle of social protection in mental health was observed through the deconstruction of psychosocial care in conformations of the Brazilian State. Although setbacks are more intense after the resurgence of conservatism in the current government, the study strengthens the argument that measures instituted in other political contexts also hampered the process of breaking away from the asylum model. It is understood that institutional acts developed within Brazilian governments in the period from 2011 to 2020 materialize a digression of the Psychiatric Reform through the implementation of a New Policy in 2017.

Keywords:
Public Policy; Health Policy; Mental Health; Public Health Administration

A Política Nacional de Saúde Mental acompanha os movimentos de resistência atinentes ao processo de redemocratização, constituindo um campo preponderante para o reordenamento de políticas e práticas assistenciais.

Em seu percurso de desenvolvimento, a partir do final dos anos 1980 e início da década de 1990 começam a surgir os primeiros Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), dispositivos que buscam operar o cuidado em saúde mental orientado a partir de uma ética antimanicomial transversalizada pelos Direitos Humanos. Em 2001, aprovou-se a Lei Federal nº 10.216, de 06 de abril, que institui a política nacional e, dez anos depois, é lançada a portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011, criando a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) (BRASIL, 2001BRASIL. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Diário Oficial da União, Brasília, 09 abr. 2001.; 2011BRASIL. Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Diário Oficial da União, Brasília, 26 dez. 2011.).

Esses atos institucionais conformavam a consolidação do modelo de atenção psicossocial, garantindo o direito das pessoas com necessidades de cuidado em saúde mental por meio das diretrizes de desinstitucionalização.

Desde sua implementação, há mudanças políticas, organizacionais e ideológicas observadas nas (des)continuidades do reordenamento dos serviços, tais como aplicação de recursos que priorizam determinadas estratégias não coadunadas com os princípios da Reforma Psiquiátrica Brasileira.

A partir de 2011, sobretudo com a inserção das Comunidades Terapêuticas (CTs) na RAPS e no âmbito do programa Crack, é possível vencer! do Plano Nacional de Enfrentamento ao Crack, passam a conviver na esfera da política nacional modelos concorrentes de atenção: asilar e base territorial e comunitária. Isso se agrava em 2017 quando, já na esteira da chamada Nova Política de Saúde Mental, abandona-se a ideia de serviços substitutivos em um processo de remanicomialização do cuidado por meio da reinscrição da centralidade dos Hospitais Psiquiátricos Especializados (HPE), em detrimento da atenção psicossocial e do agravamento da operação do racismo e elitismo no delineamento de uma atenção ao uso de drogas sob o viés de políticas e modelos de atenção cada vez mais proibicionistas (AMARANTE; NUNES, 2018AMARANTE P., NUNES, A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Ciênc. Saúde Colet., v. 23, n. 6, p. 2067-2074, 2018.; PASSOS, 2018PASSOS, R. G. “Holocausto ou Navio Negreiro?”: inquietações para a Reforma Psiquiátrica brasileira. Argumentum, v. 10, n. 3, p. 10–23, 2018.; GUIMARÃES; ROSA, 2019GUIMARÃES, T. A. A.; ROSA, L. C. S. A remanicomialização do cuidado em saúde mental no Brasil no período de 2010-2019: análise de uma conjuntura antirreformista. Soc. quest., v. 22, n. 44., p. 111-138, 2019.; SOUSA; JORGE, 2019SOUSA, F. S. P.; JORGE, M. S. B. O retorno da centralidade do hospital psiquiátrico: retrocessos recentes na política de saúde mental. Trab. Educ. Saúde, v. 17, n. 1, e0017201, 2019.; COSTA, 2019COSTA, T. C. R. A política de saúde mental na atualidade e o avanço do conservadorismo. Argumentum, v. 11, n. 2, p. 163-178, 2019.; CRUZ; GONÇALVES; DELGADO, 2020CRUZ, N. F. O.; GONÇALVES, R. W.; DELGADO, P. G. G. Retrocesso da reforma psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a 2019. Trab. Educ. Saúde., v. 18, n. 3, e00285117, 2020.; FERNANDES et al., 2020FERNANDES, C. J. et al. Índice de Cobertura Assistencial da Rede de Atenção Psicossocial (iRAPS) como ferramenta de análise crítica da reforma psiquiátrica brasileira. Cad. Saúde Pública, v. 36, n. 4, e00049519, 2020.; ROSA; GUIMARÃES, 2020ROSA, L. C. S.; GUIMARÃES, T. A. A. O racismo na/da política proibicionista brasileira: redução de danos como antídoto antirracista. Rev. Em Pauta, v. 18, n. 45, p. 27-43, 2020.; DAVID; VICENTIN, 2021DAVID, E. C.; VICENTIN, M. C. G. Nem crioulo doido nem negra maluca: por um aquilombamento da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Saúde Debate, v. 44, n. 3, p. 264-277, 2020.; SAMPAIO; BISPO JÚNIOR, 2021SAMPAIO, M. L.; BISPO JÚNIOR, J. P. Entre o enclausuramento e a desinstitucionalização: a trajetória da saúde mental no Brasil. Trab. Educ. Saúde, v. 19, e00313145, 2021.).

A Portaria nº 3.588, de 21 de dezembro de 2017, e a Nota Técnica nº 11, de 04 de fevereiro de 2019, da Coordenação Geral de Saúde Mental do Ministério da Saúde, regulamentam essa chamada Nova Política ao anunciar alterações relevantes ao modelo de atenção que vinha sendo implementado e remanicomializam o cuidado (GUIMARÃES; ROSA, 2019GUIMARÃES, T. A. A.; ROSA, L. C. S. A remanicomialização do cuidado em saúde mental no Brasil no período de 2010-2019: análise de uma conjuntura antirreformista. Soc. quest., v. 22, n. 44., p. 111-138, 2019.; SOUSA; JORGE, 2019SOUSA, F. S. P.; JORGE, M. S. B. O retorno da centralidade do hospital psiquiátrico: retrocessos recentes na política de saúde mental. Trab. Educ. Saúde, v. 17, n. 1, e0017201, 2019.; CORREIA; MARTINS; REQUIÃO, 2019CORREIA, L. C.; MARTINS, L.; REQUIÃO, M. À beira do abismo e ao encontro do absurdo: considerações sociojurídicas sobre a nota técnica n. 11/2019 do Ministério da Saúde. Fund. Univ. Reg. Blumenau, v. 23, n. 50, e7918, 2019.; CRUZ; GONÇALVES; DELGADO, 2020CRUZ, N. F. O.; GONÇALVES, R. W.; DELGADO, P. G. G. Retrocesso da reforma psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a 2019. Trab. Educ. Saúde., v. 18, n. 3, e00285117, 2020.; SAMPAIO; BISPO JÚNIOR, 2021SAMPAIO, M. L.; BISPO JÚNIOR, J. P. Entre o enclausuramento e a desinstitucionalização: a trajetória da saúde mental no Brasil. Trab. Educ. Saúde, v. 19, e00313145, 2021.). Notadamente, esses atos institucionais implementam-se sem conter as respectivas resoluções de conselhos de controle social legitimamente constituídos (AMARANTE; NUNES, 2018AMARANTE P., NUNES, A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Ciênc. Saúde Colet., v. 23, n. 6, p. 2067-2074, 2018.; SOUSA; JORGE, 2019SOUSA, F. S. P.; JORGE, M. S. B. O retorno da centralidade do hospital psiquiátrico: retrocessos recentes na política de saúde mental. Trab. Educ. Saúde, v. 17, n. 1, e0017201, 2019.).

Contextualmente, em que pese o desenvolvimento de políticas de proteção social brasileiras nas últimas décadas, os reordenamentos se desenvolvem no âmbito da dependência do país nos percursos do capitalismo mundializado, aprofundando os aspectos do rentismo nas configurações e trajetórias do Estado brasileiro contemporâneo, intensificando a acumulação por espoliação, processos agravados nos circuitos autoritários de ultraliberalismo e militarismo inscritos sob a égide bolsonarista (ARAÚJO; CARVALHO, 2021ARAÚJO, M. S. S.; CARVALHO, A. M. P. Autoritarismo no Brasil do presente: bolsonarismo nos circuitos do ultraliberalismo, militarismo e reacionarismo. Rev. Katálysis, v. 24, n. 1, p. 146-156, 2021.). Observa-se, com isso, a conjugação dos delineamentos estatais e governamentais através da remanicomialização do cuidado no âmbito da Nova Política, uma vez que o racismo, o sexismo e o elitismo, estruturantes do projeto brasileiro de nação, atualizam o manicômio que, por sua vez, os fazem circular nos regimes de sociabilidade por meio da ação pública em saúde mental que materializa projetos societários em disputa (PASSOS, 2018PASSOS, R. G. “Holocausto ou Navio Negreiro?”: inquietações para a Reforma Psiquiátrica brasileira. Argumentum, v. 10, n. 3, p. 10–23, 2018.; ROSA; GUIMARÃES, 2020; DAVID; VICENTIN, 2021DAVID, E. C.; VICENTIN, M. C. G. Nem crioulo doido nem negra maluca: por um aquilombamento da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Saúde Debate, v. 44, n. 3, p. 264-277, 2020.).

Diante dessa problemática, questiona-se como inflexões da ação pública na política de saúde mental brasileira vem corrompendo o modelo de atenção psicossocial, em que o signo do manicômio, seja na figura do HPE, da CT ou da organização e atenção do serviço descaracterizada da base territorial e comunitária, reencena processos de remanicomialização do cuidado. Assim, o argumento deste artigo aponta que o Estado brasileiro contemporâneo enseja um movimento de gradativa substituição do modelo psicossocial, que vem sendo instituído na contramão da reforma por meio de recuos reveladores de contradições na implementação e gestão da política. Esses processos políticos em curso, inscritos sobretudo no contexto do Golpe de 2016, agravam-se ante uma agenda neoliberal voltada para a desconstrução de políticas sociais, em especial com o advento da Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016.

Destarte, este artigo objetiva analisar a chamada Nova Política de Saúde Mental, instituída a partir de 2017, considerando o período de 2011 a 2020. Apresenta e discute aspectos analíticos acerca dessa Nova Política, considerando os elementos de reordenamento político-institucional materializados em atos normativos que delineiam a ação pública em saúde mental empreendidos no seio dos governos brasileiros no período de 2011 a 2020. A análise empreendida conduziu à apresentação de momentos da Reforma Psiquiátrica Brasileira em sua inscrição na política nacional ante o despojamento da proteção social e digressões da política que ensejam um movimento de remanicomialização do cuidado.

Aspectos epistemológicos e metodológicos

Trata-se de estudo de natureza qualitativa que propõe analisar atos institucionais do governo federal brasileiro concernentes à política nacional de saúde mental, considerando o período de 2011 a 2020, resultado de inquietações oriundas da atuação na assistência e gestão da atenção psicossocial, bem como de pesquisas nos campos da Avaliação de Políticas Públicas e Saúde Coletiva.

O paradigma pós-construtivista de Lejano (2012LEJANO, R. Parâmetros para análise de políticas: a fusão do texto e contexto. Campinas: Arte Escrita, 2012.) foi adotado como referencial epistemológico e metodológico a partir da conjugação com a avaliação em profundidade de políticas no que tange à análise de percursos e trajetórias (GUSSI, 2008GUSSI, A. F. Apontamentos teórico-metodológicos para avaliação de programas de microcrédito. Rev. Aval. Pol. Pub., v. 1., n. 1, p. 29-37, 2008.; RODRIGUES, 2008RODRIGUES, L. C. Propostas para uma avaliação em profundidade de políticas públicas sociais. Rev. Aval. Pol. Pub., v. 1, n. 1, p. 7-15, 2008.). Tradicionalmente, o campo da avaliação de políticas se constitui de modelos hegemônicos em abordagens lineares que circunscrevem manuais e guias que são replicados na prática avaliativa, limitando a reflexividade da produção de conhecimento em aspectos tecnicistas de eficácia, eficiência e impacto referentes aos objetivos prévios das políticas, ignorando a experiência dos sujeitos nela envolvidos e as conformações societárias e ordenamentos político-institucionais que as contingenciam, elementos imprescindíveis para subsidiar a avaliação (BOULLOSA et al., 2021BOULLOSA, R. F. et al. Por um antimanual de avaliação de políticas públicas. Rev. Bras. Aval., vol. 10, n. 1, e100521, 2021.).

A proposta da Avaliação em Profundidade engendra o aspecto interpretativo da política pública incumbido na análise de trajetórias e experiências no paradigma pós-construtivista, conformando a avaliação sobre as dimensões de análise de conteúdo da política acerca das bases conceituais, formulação e coerência interna; do contexto de formulação; da trajetória institucional; e do espectro temporal e territorial (RODRIGUES, 2008RODRIGUES, L. C. Propostas para uma avaliação em profundidade de políticas públicas sociais. Rev. Aval. Pol. Pub., v. 1, n. 1, p. 7-15, 2008.).

Assim, a pesquisa constituiu uma matriz analítica para sustentar o esforço avaliativo das políticas de saúde mental a nível nacional, considerando, especificamente para este artigo, a dimensão analítica do texto para a avaliação de políticas, desdobrando um processo de análise documental em suas trajetórias institucionais e conjuntura político-institucional de implementação, materializados em atos normativos que contingenciam a política a nível de implementação e digressões quanto a sua formulação.

As fontes de informações analisadas constituíram documentos e atos normativos do governo federal, que conformam a organização dos serviços e da atenção em saúde mental, tais como portarias, notas técnicas e resoluções. A sistematização dessas informações foi realizada cruzando-se elementos de análise do Estado brasileiro contemporâneo, circunscrevendo um esforço avaliativo da política em consonância com os elementos de processo, mudança e (des)continuidade que ensejam o projeto de nação no período em estudo.

O estudo também se fundamentou na revisão narrativa de literatura de trabalhos publicados a partir de 2018, que, além de retomarem os marcos teóricos do campo da Saúde Mental e Atenção Psicossocial no Brasil, tecem análises específicas relevantes sobre as alterações vigentes e o contexto político-institucional da política, isto é, seu percurso e trajetória no período analisado.

Essa sistematização analítica apontou a disposição de três elementos: breve trajetória da Reforma Psiquiátrica Brasileira; despojamento da proteção social em ataques e retrocessos face ao reordenamento social brasileiro; e a volta da grande internação.

Breve trajetória da Reforma Psiquiátrica brasileira

A Reforma Psiquiátrica brasileira materializa uma série de lutas sociais e enseja um movimento de institucionalização de práticas profissionais, conformando dimensões teórico-conceituais, jurídico-políticas, técnico-assistenciais e socioculturais. acerca do fenômeno saúde mental, o qual envolve uma composição societária entre a norma e o corpo, circunscrevendo uma dinâmica de liberdade e invenção (YASUI, 2011YASUI, S. Rupturas e encontros: desafios da reforma psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010.). Isto convoca elementos que se movimentam na tentativa de apreender um campo de intervenções e práticas delineado por relações do poder: uma clínica em que um sujeito – o profissional – dispõe uma intencionalidade sobre um corpo, o manipulando e produzindo subjetividade. Neste ínterim, discute-se acerca de uma concepção de adoecimento amparada por uma pretensa normalidade, que baliza o processo entre o normal e o patológico, definido pela ausência ou presença de princípios pré-estabelecidos ou por meio da reestruturação do corpo anátomo-clínico (CANGUILHEM, 2011CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.).

Assim, a experiência da loucura como categoria nosográfica anuncia uma condição de possibilidade da Psiquiatria, inaugurando também um preceito de saúde mental como categoria de intervenção na qual os saberes psi se esforçam em manter sob sua égide. Por conseguinte, isso justifica a prática da violência e do saber-poder científico circunscrito no controle do corpo e da experiência desviante, jusnaturalizando a instituição asilar, isto é, os manicômios como espaços primordiais de operação desse poder (MACHADO et al., 1978MACHADO, R. et al. Danação da norma: medicinal social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978.).

Destarte, se necessita estabelecer uma maneira de operar o processo saúde-doença mental, engendrando a necessidade de uma mudança que transcenda o âmbito micropolítico, ao mesmo tempo em que opera elementos macropolíticos de alcance socioeconômico e cultural que se apresentam como determinantes do modelo de saúde mental, as quais precisam, assim, ser transformadas (BASAGLIA, 2005BASAGLIA, F. Escritos selecionados em Saúde Mental e Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.).

A partir dessa discussão, alarga-se a noção de manicômio o inscrevendo como regime de sociabilidade que, no caso do Estado brasileiro, anuncia elementos que fundam a identidade nacional e o Estado-nação, atualizando o sexismo, elitismo e racismo. Trata-se de um projeto delineado na conformação de políticas, serviços e práticas profissionais diversas, transversalizadas em campos que anunciam a ação pública do Estado no cuidado e o manejo de corpos em uma intencionalidade particularmente demarcada por estratégias de genocídio nas quais a manicomialização se apresenta como especialmente relevante (PASSOS, 2018PASSOS, R. G. “Holocausto ou Navio Negreiro?”: inquietações para a Reforma Psiquiátrica brasileira. Argumentum, v. 10, n. 3, p. 10–23, 2018.; ROSA; GUIMARÃES, 2020ROSA, L. C. S.; GUIMARÃES, T. A. A. O racismo na/da política proibicionista brasileira: redução de danos como antídoto antirracista. Rev. Em Pauta, v. 18, n. 45, p. 27-43, 2020.; DAVID; VICENTIN, 2021).

Pensando nestas questões, a reconstruir analiticamente uma trajetória político-institucional (GUSSI, 2008GUSSI, A. F. Apontamentos teórico-metodológicos para avaliação de programas de microcrédito. Rev. Aval. Pol. Pub., v. 1., n. 1, p. 29-37, 2008.), convém situar momentos que demarcam a história institucional da saúde mental brasileira no âmbito de política pública. Embora sejam adotadas perspectivas diversas para isso, autores concordam quanto ao recrudescimento do conservadorismo e à localização seminal da experiência de reforma no bojo do enfrentamento ao regime de ditadura civil-militar, circunscrevendo essa experiência no seio dos governos de direita no contexto do Golpe de 2016 (AMARANTE; NUNES, 2018AMARANTE P., NUNES, A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Ciênc. Saúde Colet., v. 23, n. 6, p. 2067-2074, 2018.; COSTA, 2019COSTA, T. C. R. A política de saúde mental na atualidade e o avanço do conservadorismo. Argumentum, v. 11, n. 2, p. 163-178, 2019.; FERNANDES et al., 2020FERNANDES, C. J. et al. Índice de Cobertura Assistencial da Rede de Atenção Psicossocial (iRAPS) como ferramenta de análise crítica da reforma psiquiátrica brasileira. Cad. Saúde Pública, v. 36, n. 4, e00049519, 2020.; CRUZ; GONÇALVES; DELGADO, 2020DELGADO, P. G. G. Voltando ao começo: desvelando os bastidores políticos da Lei Paulo Delgado. Saúde Debate, v. 44, n. 3, p. 21-28, 2020.; SAMPAIO; BISPO JÚNIOR, 2021). Algumas análises acentuam que, independente de matizes ideológico-partidárias, verifica-se a política proibicionista sob a égide de uma remanicomialização do cuidado ao longo do tempo (PASSOS, 2018PASSOS, R. G. “Holocausto ou Navio Negreiro?”: inquietações para a Reforma Psiquiátrica brasileira. Argumentum, v. 10, n. 3, p. 10–23, 2018.; GUIMARÃES; ROSA, 2019GUIMARÃES, T. A. A.; ROSA, L. C. S. A remanicomialização do cuidado em saúde mental no Brasil no período de 2010-2019: análise de uma conjuntura antirreformista. Soc. quest., v. 22, n. 44., p. 111-138, 2019.; ROSA; GUIMARÃES, 2020ROSA, L. C. S.; GUIMARÃES, T. A. A. O racismo na/da política proibicionista brasileira: redução de danos como antídoto antirracista. Rev. Em Pauta, v. 18, n. 45, p. 27-43, 2020.; DAVID; VICENTIN, 2021DAVID, E. C.; VICENTIN, M. C. G. Nem crioulo doido nem negra maluca: por um aquilombamento da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Saúde Debate, v. 44, n. 3, p. 264-277, 2020.). Nessa direção, reforça-se que o reordenamento político-institucional promove um cenário favorável aos retrocessos e ataques que configuram a nova política, mas é a agenda conservadora que, na verdade, em suas variadas nuances, estrutura o Estado-nação brasileiro, manifestando-se de algum modo nos diferentes momentos governamentais.

Seguindo essa perspectiva, destaca-se um primeiro momento institucional de constituição da política de saúde mental que abarca o período da ditadura civil-militar congregando movimentos populares diversos de enfrentamento ao regime autoritário e culmina, dentre outros atos, em uma greve na Divisão Nacional de Saúde Mental, em 1978 (YASUI, 2011YASUI, S. Rupturas e encontros: desafios da reforma psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010.; SAMPAIO; BISPO JÚNIOR, 2021SAMPAIO, M. L.; BISPO JÚNIOR, J. P. Entre o enclausuramento e a desinstitucionalização: a trajetória da saúde mental no Brasil. Trab. Educ. Saúde, v. 19, e00313145, 2021.). Esse momento se expande até 1991, pouco após a promulgação da Constituição, com o advento da Assembleia Constituinte. É no seio desse período de lutas que se estabelecem as bases para os modelos de atenção psicossocial brasileiros no período analisado.

O segundo momento dá-se a partir de 1992, com a implantação dos primeiros CAPS no final da década de 19801 1 Ressalta-se que os serviços e dispositivos institucionais de cuidado que começaram a surgir nesse período dispunham de diversas nomenclaturas, as quais foram uniformizadas pela Portaria nº 366, de 19 de fevereiro de 2002 (BRASIL, 2002). e a expansão da Rede de Atenção à Saúde Mental até 2000. Foi elaborado, em 1989, o projeto de lei que deu origem à Lei da Reforma Psiquiátrica, estabelecendo as diretrizes da política nacional e, como se pode perceber, passou anos tramitando nas casas legislativas até sua aprovação em 2001, o que demonstra as dificuldades de estabelecer acordos em relação à matéria (YASUI, 2011; SAMPAIO; BISPO JÚNIOR, 2021). Nesse período, as práticas e experiências de saúde mental e atenção psicossocial continuaram a ser discutidas e expandidas em todo o território brasileiro.

O terceiro momento se gesta a partir de 2001, já na institucionalização de uma política nacional na qual a implementação de um novo modelo é capilarizada em termos de política pública a partir de uma ação estatal que reorienta uma prática de atenção psicossocial e territorial, contrapondo-se ao modelo asilar (YASUI, 2011; SAMPAIO; BISPO JÚNIOR, 2021). Tal modelo vinha sendo implementado com a expansão de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico, especialmente os oferecidos pelos CAPS. Contudo, não significa dizer que não haja embate com relação à implantação desse modelo por parte de setores reacionários que lucram com as pessoas com sofrimento psíquico e com transtornos mentais.

O quarto momento começa a se desenhar em 2011, a partir de mudanças no modelo de atenção ensejadas, com a inserção das CTs na RAPS e com o programa Crack, é possível vencer!, sendo aprofundado e materializado em 2017, quando se inicia um trabalho para revogação da política de saúde mental construída há décadas pelos movimentos populares de trabalhadores e usuários, a fim de implementar a Nova Política de Saúde Mental, por meio também da organização de uma Frente Parlamentar Mista em favor dessa proposta, aglutinando atores diversos a fim de operacionalizá-la também a nível legislativo (GUIMARÃES; ROSA, 2019GUIMARÃES, T. A. A.; ROSA, L. C. S. A remanicomialização do cuidado em saúde mental no Brasil no período de 2010-2019: análise de uma conjuntura antirreformista. Soc. quest., v. 22, n. 44., p. 111-138, 2019.; ROSA; GUIMARÃES, 2020ROSA, L. C. S.; GUIMARÃES, T. A. A. O racismo na/da política proibicionista brasileira: redução de danos como antídoto antirracista. Rev. Em Pauta, v. 18, n. 45, p. 27-43, 2020.). Por esta razão, é este momento que constitui o enfoque da dimensão analítica do texto (LEJANO, 2012LEJANO, R. Parâmetros para análise de políticas: a fusão do texto e contexto. Campinas: Arte Escrita, 2012.), neste artigo. Ademais, depreende-se um aprofundamento da crise em 2018, com a eleição do candidato de extrema-direita Jair Bolsonaro, quando diversos elementos da história social brasileira se aprofundam em vários desmontes no campo das políticas públicas (ARAÚJO; CARVALHO, 2021ARAÚJO, M. S. S.; CARVALHO, A. M. P. Autoritarismo no Brasil do presente: bolsonarismo nos circuitos do ultraliberalismo, militarismo e reacionarismo. Rev. Katálysis, v. 24, n. 1, p. 146-156, 2021.).

Tais demarcação e sistematização do ordenamento político-institucional em atos normativos desses momentos demonstram como o campo da Saúde Mental inscreve uma centralidade na cena pública brasileira nos jogos de poder, no regime de sociabilidade e na dinâmica das ações em saúde, isto é, das dinâmicas institucionais das políticas de saúde.

Despojamento da proteção social em ataques e retrocessos face ao reordenamento social brasileiro: o que está posto com a Nova Política de Saúde Mental?

O Projeto de Lei nº 3.657, apresentado ao Congresso Nacional em 1989, constituiu-se como o primeiro ato institucional que versa acerca da jurisdição de uma política nacional nos preceitos reformistas, tendo sido elaborado junto a setores organizações e entidades vinculadas à questão da saúde mental, dando origem, posteiormente, ao marco legal orientador da política nacional (DELGADO, 2021).

Já a portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011, institui e normatiza a RAPS, cujo objetivo é “[…] a criação, ampliação e articulação de pontos de atenção à saúde para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas” (BRASIL, 2011BRASIL. Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Diário Oficial da União, Brasília, 26 dez. 2011., s.p.). Trata-se de instrumento para operar a política, apresentando como diretrizes e objetivos elementos que apontam para uma prática de saúde mental territorial e comunitária concatenada com princípios históricos da reforma, salvo pela inserção desde já das CTs, além de traçar aspectos legislativos e regulações acerca dos serviços.

Define, ainda, a composição da rede, dispondo modelos de atenção nos componentes de Atenção Básica, Atenção Psicossocial Estratégica, Atenção de Urgência e Emergência, Atenção Residencial de Caráter Transitório, Atenção Hospitalar, Estratégia de Desinstitucionalização e Estratégia de Reabilitação Psicossocial (BRASIL, 2011).

Houve, assim, uma gradual ampliação de serviços no Brasil, capilarizando a atenção em saúde mental. De 1998 a 2020, passou-se de 148 CAPS para 2.730 com uma média de 112 CAPS implantados por ano. A maior expansão desses serviços deu-se de 2002 a 2014, enquanto observou-se uma desaceleração entre 2015 e 2020 (BRASIL, 2015BRASIL. Saúde Mental em Dados – 12. Brasília: Ministério da Saúde, 2015. Disponível em: <https://www.mhinnovation.net/sites/default/files/downloads/innovation/reports/Report_12-edicao-do-Saude-Mental-em-Dados.pdf>. Acesso em: 03 nov. 2020.
https://www.mhinnovation.net/sites/defau...
; COSTA, 2019COSTA, T. C. R. A política de saúde mental na atualidade e o avanço do conservadorismo. Argumentum, v. 11, n. 2, p. 163-178, 2019.; FERNANDES et al., 2020FERNANDES, C. J. et al. Índice de Cobertura Assistencial da Rede de Atenção Psicossocial (iRAPS) como ferramenta de análise crítica da reforma psiquiátrica brasileira. Cad. Saúde Pública, v. 36, n. 4, e00049519, 2020.). Em relação à cobertura, houve incremento gradativo de atenção psicossocial em todo o país desde a implementação da RAPS (COSTA, 2019COSTA, T. C. R. A política de saúde mental na atualidade e o avanço do conservadorismo. Argumentum, v. 11, n. 2, p. 163-178, 2019.; FERNANDES et al., 2020FERNANDES, C. J. et al. Índice de Cobertura Assistencial da Rede de Atenção Psicossocial (iRAPS) como ferramenta de análise crítica da reforma psiquiátrica brasileira. Cad. Saúde Pública, v. 36, n. 4, e00049519, 2020.).

Contudo, por meio de um cálculo mais sofisticado do índice de cobertura da RAPS, observa-se que 77% da população brasileira habita localidades com cobertura de serviços comunitários baixa ou inexistente e que somente 439 (7,9%) dos 5.570 municípios brasileiros dispõem de cobertura assistencial total da RAPS, contando com todos os serviços disponíveis; identifica-se também que as metrópoles, que concentram quase a metade da população nacional, não apresentaram avanço na cobertura de serviços comunitários (FERNANDES et al., 2020FERNANDES, C. J. et al. Índice de Cobertura Assistencial da Rede de Atenção Psicossocial (iRAPS) como ferramenta de análise crítica da reforma psiquiátrica brasileira. Cad. Saúde Pública, v. 36, n. 4, e00049519, 2020.). Ademais, apesar do processo progressivo de fechamento de leitos em HPE, não houve significativa implantação de serviços substitutivos para capilarizar essa atenção (BRASIL, 2015BRASIL. Saúde Mental em Dados – 12. Brasília: Ministério da Saúde, 2015. Disponível em: <https://www.mhinnovation.net/sites/default/files/downloads/innovation/reports/Report_12-edicao-do-Saude-Mental-em-Dados.pdf>. Acesso em: 03 nov. 2020.
https://www.mhinnovation.net/sites/defau...
; COSTA, 2019COSTA, T. C. R. A política de saúde mental na atualidade e o avanço do conservadorismo. Argumentum, v. 11, n. 2, p. 163-178, 2019.).

Isso enseja um contexto de despojamento, que se agrava a partir da instituição da portaria nº 3.588, de 21 de dezembro de 2017, e traz mudanças no âmbito da gestão e organização da rede, dentre as quais a realocação do HPE como figura central na organização da política de saúde mental, demarcando um retrocesso e demonstrando que a consolidação da atenção psicossocial ainda é um desafio no âmbito da política nacional, uma vez que, apesar de ser desenhada a partir disto, o que se vê, até então, é a priorização de modelos asilares com aumento de maior aporte e cobertura, tais como leitos de internação em CTs e HPE (AMARANTES; NUNES, 2018AMARANTE P., NUNES, A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Ciênc. Saúde Colet., v. 23, n. 6, p. 2067-2074, 2018.; GUIMARÃES; ROSA, 2019GUIMARÃES, T. A. A.; ROSA, L. C. S. A remanicomialização do cuidado em saúde mental no Brasil no período de 2010-2019: análise de uma conjuntura antirreformista. Soc. quest., v. 22, n. 44., p. 111-138, 2019.; SOUSA; JORGE, 2019SOUSA, F. S. P.; JORGE, M. S. B. O retorno da centralidade do hospital psiquiátrico: retrocessos recentes na política de saúde mental. Trab. Educ. Saúde, v. 17, n. 1, e0017201, 2019.; CRUZ; GONÇALVES; DELGADO, 2020CRUZ, N. F. O.; GONÇALVES, R. W.; DELGADO, P. G. G. Retrocesso da reforma psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a 2019. Trab. Educ. Saúde., v. 18, n. 3, e00285117, 2020.; FERNANDES et al., 2020FERNANDES, C. J. et al. Índice de Cobertura Assistencial da Rede de Atenção Psicossocial (iRAPS) como ferramenta de análise crítica da reforma psiquiátrica brasileira. Cad. Saúde Pública, v. 36, n. 4, e00049519, 2020.; SAMPAIO; BISPO JÚNIOR, 2021).

A portaria cria e regulamenta, também, o CAPSad IV como dispositivo estratégico de cuidado contínuo para pessoas com quadros graves e intensos de sofrimento decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, os quais podem ser implantados em municípios brasileiros com mais de 500.000 habitantes e em todas as capitais da federação (BRASIL, 2017BRASIL. Portaria nº 3.588, de 21 de dezembro de 2017. Diário Oficial da União, Brasília, 22 dez. 2017a.). Na equipe de referência desse dispositivo, foi inserido o Profissional de Educação Física (PEF), que não era contemplado pelas portarias anteriores regulamentadoras dos CAPS. Isso demarca um importante reconhecimento, ainda que tardio, pois esses profissionais já realizavam atividades no âmbito da atenção psicossocial, muitas vezes em caráter formativo de currículos de graduação e pós-graduação, enquanto campo de estágio ou cenário de prática de residências multiprofissionais.

Alterou-se, ainda, o dimensionamento de equipes multidisciplinares em serviços hospitalares de referência em saúde mental instalados em hospitais gerais de acordo com o número de leitos implantados; definiu-se os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) em tipo I e tipo II de acordo com a capacidade; e criou-se a Equipe Multiprofissional de Atenção Especializada em Saúde Mental (AMENT) com regulamentação e custeio para implementação (BRASIL, 2017BRASIL. Portaria nº 3.588, de 21 de dezembro de 2017. Diário Oficial da União, Brasília, 22 dez. 2017a.).

Com relação à AMENT, há um risco implícito. É notória a necessidade do ambulatório multiprofissional para incremento do cuidado, sobretudo pensando na articulação entre a Atenção Básica e o componente especializado. Contudo, a portaria não estebelece a vinculação da AMENT a um equipamento psicossocial de referência, não condiciona a sua implantação à existência de uma rede de serviços constituída e oferece um custeio, às vezes, superior ao de um CAPS. Com isso, em um futuro próximo, em especial considerando a conjuntura antirreformista, pode acontecer de os municípios abandonarem os CAPS e adotarem a AMENT junto às CTs e aos HPE como rede de serviço, nos moldes antirreformistas e do modelo de atenção em saúde mental da década de 1970.

Cientes da ameaça dessas reordenações, entidades como o Conselho Nacional de Saúde (CNS), Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) e Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME) trabalhavam em mobilizar atores para obstruí-la. Contudo, no dia de sua aprovação na plenária da Comissão Intergestores Tripartite (CIT), foi negado o direito a voz a todas essas entidades (SOUSA; JORGE, 2019SOUSA, F. S. P.; JORGE, M. S. B. O retorno da centralidade do hospital psiquiátrico: retrocessos recentes na política de saúde mental. Trab. Educ. Saúde, v. 17, n. 1, e0017201, 2019.; CRUZ; GONÇALVES; DELGADO, 2020DELGADO, P. G. G. Voltando ao começo: desvelando os bastidores políticos da Lei Paulo Delgado. Saúde Debate, v. 44, n. 3, p. 21-28, 2020.).

A partir de 2018 e 2019, a plataforma do governo Bolsonaro traz com veemência a negação de direitos sociais e retrocessos diversos no campo civilizatório e das políticas públicas, anunciando uma nova face do autoritarismo brasileiro (ARAÚJO; CARVALHO, 2021ARAÚJO, M. S. S.; CARVALHO, A. M. P. Autoritarismo no Brasil do presente: bolsonarismo nos circuitos do ultraliberalismo, militarismo e reacionarismo. Rev. Katálysis, v. 24, n. 1, p. 146-156, 2021.).

Já no início de seu governo é lançada a Nota Técnica nº 11, de 04 de fevereiro de 2019, com o fim da estratégia de substituição de serviços e o refinanciamento de leitos hospitalares, reordenando o cuidado para o modelo asilar de internação, a proposta de inserção da Eletroconvulsoterapia (ECT) no escopo de técnicas custeadas pelo SUS, a possibilidade de internação de crianças e adolescentes em instituições hospitalares e asilares e o maior aporte de financiamento para as CTs (BRASIL, 2019aBRASIL. Nota técnica nº 11, de 04 de fevereiro de 2019. Brasília, 2019a. Disponível em: <https://pbpd.org.br/wp-content/uploads/2019/02/0656ad6e.pdf>. Acesso em: 17 jun. 2021.
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).

Em uma dimensão sociojurídica, esse documento apresenta um conteúdo na contramão da legislação brasileira de saúde mental, restabelecendo de forma legitimada pelo Estado, no âmbito da ação pública, as práticas manicomiais, o que viola direitos estabelecidos das pessoas com necessidades de cuidados em saúde mental e anula o marco legal do modelo de atenção psicossocial (CORREIA; MARTINS; REQUIÃO, 2019CORREIA, L. C.; MARTINS, L.; REQUIÃO, M. À beira do abismo e ao encontro do absurdo: considerações sociojurídicas sobre a nota técnica n. 11/2019 do Ministério da Saúde. Fund. Univ. Reg. Blumenau, v. 23, n. 50, e7918, 2019.). Ademais, apresenta-se como nota política direcionada aos movimentos de Luta Antimanicomial e Reforma Psiquiátrica brasileiros, atacando preceitos da atenção psicossocial como se evidencia logo em seu início:

Todos os Serviços, que compõem a RAPS, são igualmente importantes e devem ser incentivados, ampliados e fortalecidos. O Ministério da Saúde não considera mais Serviços como sendo substitutos de outros, não fomentando mais fechamento de unidades de qualquer natureza (BRASIL, 2019aBRASIL. Nota técnica nº 11, de 04 de fevereiro de 2019. Brasília, 2019a. Disponível em: <https://pbpd.org.br/wp-content/uploads/2019/02/0656ad6e.pdf>. Acesso em: 17 jun. 2021.
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, p. 3-4).

O excerto destacado demonstra uma ruptura institucional ao reorientar a diretriz de desospitalização e desinstitucionalização em um modelo de política que demarca o recrudescimento e fortalecimento do caráter asilar.

A grande internação

Esse enquadramento político-jurídico-institucional da saúde mental vem aprofundar aspectos já apresentados nas portarias da RAPS, sobretudo no que diz respeito à reinserção do HPE como equipamento estratégico de cuidado, ao retroagir décadas no campo da saúde mental brasileira, alinhando-se a uma conjuntura de remanicomialização do cuidado alinhavada em uma conjuntura antirreformista, conservadora e ultraliberal que ganha novos contornos no contexto autoritário do bolsonarismo.

Neste sentido, há a proposta de inserção da eletroconvulsoterapia (ECT) na gama de serviços custeados pelo SUS. A discussão a respeito da técnica envolve a operação de poder e remonta às práticas de tortura vivenciadas em manicômios (OLIVEIRA, 2019OLIVEIRA, W. F. Eletroconvulsoterapia (ECT) / Eletrochoque: A produção de evidências sobre seu uso, eficácia e eficiência. Cad. Bras. Saúde Mental, v. 11, n. 28, p. 46-68, 2019.). Ao se analisá-la nas dimensões epistemológica e clínica, se visualiza comprometimento não apenas do conhecimento produzido, que advém de conflitos éticos e metodológicos diversos, mas também sobre a terapêutica, convocando a necessidade de retomar princípios e diretrizes do SUS para se demarcar a posição da atenção psicossocial na produção do cuidado integral em saúde mental (OLIVEIRA, 2019OLIVEIRA, W. F. Eletroconvulsoterapia (ECT) / Eletrochoque: A produção de evidências sobre seu uso, eficácia e eficiência. Cad. Bras. Saúde Mental, v. 11, n. 28, p. 46-68, 2019.). Ademais, se questiona sobre a sua aplicação na realidade da saúde pública brasileira, considerando a falta de evidências científicas que justifiquem sua aplicação neste cenário (OLIVEIRA, 2019OLIVEIRA, W. F. Eletroconvulsoterapia (ECT) / Eletrochoque: A produção de evidências sobre seu uso, eficácia e eficiência. Cad. Bras. Saúde Mental, v. 11, n. 28, p. 46-68, 2019.), o contexto de uma política precarizada e subfinanciada e um debate sobre os intrínsecos aspectos políticos envolvidos na atenção psicossocial do SUS.

Com relação aos HPE, apontados na política de saúde mental brasileira como serviços especializados no manejo da internação de transtornos mentais e situações de crise e emergência, a sua existência e reinserção, em caráter de ordenamento da rede no eixo normativo da política, representa uma digressão no campo da integralidade da atenção e da clínica, pois não oferece cuidado integral e orienta a assistência em modelo manicomial e hospitalocêntrico (GUIMARÃES; ROSA, 2019GUIMARÃES, T. A. A.; ROSA, L. C. S. A remanicomialização do cuidado em saúde mental no Brasil no período de 2010-2019: análise de uma conjuntura antirreformista. Soc. quest., v. 22, n. 44., p. 111-138, 2019.; SOUSA; JORGE, 2019SOUSA, F. S. P.; JORGE, M. S. B. O retorno da centralidade do hospital psiquiátrico: retrocessos recentes na política de saúde mental. Trab. Educ. Saúde, v. 17, n. 1, e0017201, 2019.). Além disso, observa-se um cenário de violações de direitos diversos e tortura no interior dessas instituições no Brasil (CFP, 2020CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Hospitais Psiquiátricos no Brasil: relatório de inspeção nacional. Brasília: CFP; 2020.).

Aliando isto ao uso da ECT em um contexto de intenso desfinanciamento, desabilitação e baixíssima cobertura de serviços de base territorial e comunitária que também compõem a rede (FERNANDES et al., 2020FERNANDES, C. J. et al. Índice de Cobertura Assistencial da Rede de Atenção Psicossocial (iRAPS) como ferramenta de análise crítica da reforma psiquiátrica brasileira. Cad. Saúde Pública, v. 36, n. 4, e00049519, 2020.), este período demarca um cenário de intensa ameaça.

Já com relação às CTs, em geral instituições religiosas pautadas pela caridade e assistencialismo, o Estado brasileiro demonstra incapacidade de regulamentar e fiscalizar o seu funcionamento (IPEA, 2017INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA E APLICADA. Nota Técnica nº 21 – Perfil das Comunidades Terapêuticas Brasileiras. Brasília: IPEA, 2017.). São dispositivos que, apesar de comporem a RAPS, têm os contratos geridos no âmbito do Ministério do Cidadania na Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas (SENAPRED), que somente em 2019 instituiu o Sistema de Gestão de Comunidades Terapêuticas (SISCT), por meio da portaria nº 1, de 12 de novembro, regulamentando, somente depois, com a portaria nº 582, de 8 de janeiro de 2021, que instituiu normas e procedimentos administrativos para a comprovação da prestação de serviços, mecanismos de gestão que funcionam à revelia do SUS (BRASIL, 2019bBRASIL. Portaria nº 1, de 12 de novembro de 2019. Diário Oficial da União, Brasília, 19 nov. 2019b.; 2021BRASIL. Portaria nº 582, de 8 de janeiro de 2021. Diário Oficial da União, Brasília, 8 jan. 2021.).

Além de não haver evidências que comprovem a eficácia do modelo de tratamento pautado na abstinência, reclusão e religiosidade que, em geral, essas instituições oferecem (IPEA, 2017), entidades como o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e o Mecanismo Nacional de Combate e Prevenção à Tortura (MNPCT) já denunciaram as condições precárias de funcionamento das instituições, demonstrando violações diversas dos Direitos Humanos, práticas de tortura, trabalho forçado, dentre outras violências (CFP, 2018CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas – 2017. Brasília: CFP, 2018.).

Ademais, é importante frisar que o governo Bolsonaro tentou exonerar todos os peritos do MNPCT por meio do decreto nº 9.831, de 10 de junho de 2019, visando esvaziar a funcionalidade do órgão, e sancionou a Lei nº 13.840, de 05 de junho de 2019, que, dentre outros aspectos, autoriza a internação involuntária de pessoas em uso de drogas em CTs, endurecendo a perspectiva proibicionista da política brasileira de drogas (BRASIL, 2019cBRASIL. Decreto nº 7.959, de 11 de abril de 2019. Diário Oficial da União, Brasília, 11 abr. 2019e.; 2019dBRASIL. Portaria nº 1.325, de 18 de maio de 2020. Diário Oficial da União, Brasília, 25 mai. 2020a.) ao demarcar o amálgama de mais elementos do caráter autoritário do governo bolsonarista e sua incursão nas políticas e ações em saúde mental.

Ainda no período analisado, por meio da portaria nº 1.325, de 18 de maio de 2020, o Ministério da Saúde revogou o capítulo III, do Anexo XVIII da Portaria de Consolidação nº 2/GM/MS, de 28 de setembro de 2017, que trata do Serviço de Avaliação e Acompanhamento de Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei (Equipes EAP), no âmbito da Política Nacional de Atenção às Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (BRASIL, 2020aBRASIL. Portaria nº 1.325, de 18 de maio de 2020. Diário Oficial da União, Brasília, 25 mai. 2020a.), em mais um ato de desmonte da RAPS. A referida portaria foi revogada no mês seguinte, em 15 de julho, após a Recomendação CNS nº 44, de 15 de junho de 2020 (CNS, 2020CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Recomendação nº 23, de 17 de maio de 2019. Brasília, DF, 2019.), em que o Conselho Nacional de Saúde, junto a outras entidades e dialogando com legislações específicas do campo da assistência à saúde das pessoas privadas de liberdade e resoluções do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, recomendou a sua revogação imediata.

Outrossim, considerando a Atenção Residencial de Caráter Transitório no âmbito da RAPS, convém lembrar as Unidades de Acolhimento (UA), que constituem a rede e objetivam oferecer acolhimento e cuidados contínuos para pessoas com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas em situação de vulnerabilidade social e familiar e demandem acompanhamento terapêutico e protetivo, pautando-se no direito à moradia, educação e convivência familiar e social, atrelados a um CAPS de referência no território (BRASIL, 2012BRASIL. Portaria nº 121, de 25 de janeiro de 2012. Diário Oficial da União, Brasília, 25 jan. 2012.). Dispositivos paulatinamente abandonados na estratégia de atenção, preferindo-se as CTs com caráter asilar.

Com este tipo de equipamento na rede constituído em um modelo de atenção psicossocial de base territorial e comunitária, questiona-se o interesse e preferência pelas CTs, ambulatórios e leitos em HPE. Esse privilégio se demonstra além das mudanças significativas na política de drogas e na localização de ações à revelia da saúde com gerência na SENAPRED em outro ministério, mas também pela portaria nº 3.449, de 25 de outubro de 2018, que institui o comitê com a finalidade de consolidar normas técnicas, diretrizes operacionais e estratégicas, em articulação com as CTs (BRASIL, 2018aBRASIL. Portaria nº 3.449, de 25 de outubro de 2018. Diário Oficial da União, Brasília, 25 out. 2018.); da portaria nº 3.718, de 22 de novembro de 2018, que lista os municípios com projetos habilitados, entre 2005 a 2017, para implantação de centenas de serviços comunitários no âmbito da RAPS, constituindo o montante de R$43.655.000,00 e, por alguma razão, não foram implantados, dos quais figuram 93 UAs em todo o território nacional (BRASIL, 2018bBRASIL. Portaria nº 3.718, de 22 de novembro de 2018. Diário Oficial da União, Brasília, 22 nov. 2018.); e do edital federal para credenciamento de CTs no valor de R$300.000.000,00 de 2020, representando incremento de 95% do financiamento em internação asilar em comparação com o ano de 2019 (BRASIL, 2020bBRASIL. Resolução nº 3, de 24 de julho de 2020. Diário Oficial da União, Brasília, 28 jul. 2020b.; 2021bBRASIL. Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas. Aviso nº 1/2021 SEDS/SENAPRED Edital de credenciamento público nº 17/2019. Diário Oficial da União, Brasília, 09 fev 2021.). Sobre este aspecto, somente no período de 2017 a 2020, as CTs perceberam montante acumulado em torno de R$500.000.000,00 em financiamento público considerando recursos federais, estaduais e emendas parlamentares (CONECTAS; CEBRAP, 2022CONECTAS DIREITOS HUMANOS; CENTRO BRASILEIRO DE ANÁLISE E PLANEJAMENTO. Financiamento Público de Comunidades Terapêuticas Brasileiras entre 2017 e 2020. São Paulo: Conectas Direitos Humanos; CEBRAP, 2022. Disponível em: https://www.conectas.org/wp-content/uploads/2022/04/Levantamento-sobre-o-investimento-em-CTs-w5101135-ALT5-1.pdf. Acesso em: 23 jul. 2022.
https://www.conectas.org/wp-content/uplo...
).

Ainda sobre essas questões, com a resolução CONAD nº 3, de 24 de julho de 2020, se regulamenta o acolhimento de crianças e adolescentes em CTs (BRASIL, 2020cBRASIL. Resolução nº 652, de 14 de dezembro de 2020. Cad. Bras. Saúde Mental, v. 12, n. 33, s.p., 2020b.), o que além de sérias ameaças aos direitos deste púbico, ataca o funcionamento dos poucos CAPS infantil (CAPSi) e UAs infantojuvenil. Ademais, considerando o escopo analítico apresentado, é importante ressaltar que foi no seio dos governos considerados progressistas que se abriu caminho para acontecimentos do tipo, na medida em que as CTs são alocadas enquanto dispositivos da RAPS já na sua constituição, demarcando as digressões a partir do período de 2010/2011 com a implementação do programa Crack, é Possível Vencer! e da inserção das CTs na RAPS (GUIMARÃES; ROSA, 2019GUIMARÃES, T. A. A.; ROSA, L. C. S. A remanicomialização do cuidado em saúde mental no Brasil no período de 2010-2019: análise de uma conjuntura antirreformista. Soc. quest., v. 22, n. 44., p. 111-138, 2019.; ROSA; GUIMARÃES, 2020ROSA, L. C. S.; GUIMARÃES, T. A. A. O racismo na/da política proibicionista brasileira: redução de danos como antídoto antirracista. Rev. Em Pauta, v. 18, n. 45, p. 27-43, 2020.).

A decisão de ordenar a devolução do montante em detrimento do trabalho de agenciar os demais entes federados de gestão em buscar formas de implantar os serviços e consequentemente ampliar a capilaridade da RAPS, demonstra um aspecto gerencialista e punitivo sem interesse de consolidar os preceitos da atenção psicossocial, modulando uma administração pública burocrática em um modelo de gestão inerente à inscrição neoliberal que conforma o Estado na subordinação à racionalidade instrumental do mercado.

Essa movimentação motivou o CNS a deliberar, por meio da Recomendação nº 23, de 17 de maio de 2019, a solicitação da suspensão imediata da Nova Política de Saúde Mental por entender sua ilegalidade ao não dispor de resoluções dos respectivos conselhos competentes, nem mesmo ter passado por debate amplo com a sociedade civil (CNS, 2019), o que corrobora o argumento sociojurídico de Correia, Martins e Requião (2019).

Observa-se, assim, que as propostas e reformas que vem delineando a política, vem sendo impostas sem debate com os usuários, atendendo a interesses privados em detrimento da coisa pública aprofundando o caráter autoritário brasileiro. Convém, portanto, destacar o decreto nº 7.959, de 11 de abril de 2019, um ato que pretendeu extinguir dezenas de conselhos nacionais que atuavam na formulação, implementação e monitoramento de políticas públicas diversas, entre as quais a política de drogas (BRASIL, 2019eBRASIL. Resolução nº 3, de 24 de julho de 2020. Diário Oficial da União, Brasília, 28 jul. 2020b.).

Neste sentido, é importante ressaltar o agenciamento de setores corporativistas alinhados às ideologias manicomiais, tais como a Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (FEBRACT), a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e o Conselho Federal de Medicina (CFM), na aprovação e escrita desses textos, configurando mais uma vez o caráter autoritário, corporativista e patrimonialista do Estado brasileiro, alinhado ao aspecto ultraliberal e conservador que enseja rupturas significativas no despojamento da proteção social no âmbito das políticas de saúde mental, álcool e outras drogas.

A ABP em particular, junto ao CFM, constitui interesses antirreformistas no intento de desmantelar as conquistas da reforma por meio do documento Diretrizes para um Modelo de Assistência Integral em Saúde Mental no Brasil, no qual, em suma, assevera-se a existência de desvalorização da prática psiquiátrica, modelo de atenção focado em ambulatórios ligados aos HPE, a utilização de ECT, a internação de crianças e adolescentes e a retirada dos serviços comunitários do escopo da saúde para a assistência social. O documento foi lançado em 2006 e relançado sem mudanças significativas diversas vezes, sendo apresentado a diferentes governos na versão 2014 e por último em sua versão atual lançada em 2020 (ABP, 2006ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSIQUIATRIA. Diretrizes para um Modelo de Assistência Integral em Saúde Mental no Brasil. Rio de Janeiro: ABP, 2006; 2014; 2020.; 2014; 2020). Esta última constituiu diretriz da política nacional ao encontrar ressonância privilegiada no governo de extrema-direita frente aos arranjos político-institucionais ensejados no seio do governo federal.

Ademais, adensando-se o campo analítico para a conformação do Estado brasileiro, convém remontar a experiência de higienismo da medicina brasileira, que forneceu as bases para o estabelecimento do signo manicomial da ação pública em saúde mental no país, orientada pelo tratamento moral e isolamento, bem como possibilitou os agenciamentos necessários do aspecto privatista e hospitalocêntrico desenvolvido no período da ditadura civil-militar (SAMPAIO; BISPO JÚNIOR, 2021).

Essa situação traz à memória os escritos de Foucault (2014FOUCAULT, M. História da loucura na idade clássica. 10. ed. São Paulo: Perspectiva, 2014.) sobre o fenômeno da grande internação, momento em que a loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho e da impossibilidade de integração à sociedade. Em que os desviantes da norma se constituem como problemas para o projeto ideológico gestado, anunciando-se, assim, o golpe de força para a expulsão da loucura: encarcerada, administrada e sob o controle biológico, moral e social do Estado (FOUCAULT, 2014FOUCAULT, M. História da loucura na idade clássica. 10. ed. São Paulo: Perspectiva, 2014.). Esse cenário desafiador que avança vertiginosamente, conforme a inscrição da ordem social e político-institucional, porém, também enseja resistência através da formação da Frente Ampliada em Defesa da Saúde Mental, da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, que aglutina movimentos diversos em todo o território nacional, e a convocação da 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental, a ser realizada em 2022 (CNS, 2020b), demonstrando novos ânimos para conformação dos atores no campo, aspectos que merecem ser situados nas futuras análises pautadas na avaliação da política nacional de saúde mental.

Toda essa conformação demarca uma série de retrocessos em curso, gestados durante o período analisado, por meio da contradição de maior centralidade nos dispositivos asilares em detrimento dos dispositivos de base territorial e comunitária.

Considerações finais

Realizou-se uma reconstrução da trajetória política, legal e institucional como estratégia analítica para se avaliar a política nacional de saúde mental em suas novas conformações no período de 2011 a 2020. Essa disposição de seus conteúdos em atos normativos e institucionais, os quais materializam contextos políticos e institucionalidades, apresenta material relevante que aponta para a necessidade de envolvimento dos atores da reforma no âmbito da disputa de poder institucional conjugada ao enfrentamento político.

De forma sintética, o cruzamento da análise das trajetórias normativas da política nacional enseja as três perspectivas apresentadas, situando que os momentos da reforma materializam lutas trabalhistas inscritas no enfrentamento aos autoritarismos na busca pela garantia de direitos, um despojamento da proteção social em saúde mental que vai se configurando nos governos sob a égide do conservadorismo, que por sua vez reencena um momento de grande internação com a operação da violência e poder na Nova Política de Saúde Mental.

Essas ordenações do Estado brasileiro têm demarcado um aspecto autoritário, reverberando na composição política e social e ensaiando o processo de remanicomialização, que se evidenciam na gestão da política a nível federal desde meados de 2011 até a operação da Nova Política de Saúde Mental em privilegiar os dispositivos asilares em detrimento dos componentes de atenção psicossocial que foram constituídos a partir da política nacional delineada pela Reforma Psiquiátrica e ensejos da Luta Antimanicomial.

Ademais, no período analisado, percebem-se inflexões de um desmonte sistemático agravado por parte dos últimos governos, o que incrementa o argumento deste artigo a partir da análise realizada, convocando a necessidade de um difícil, mas urgente, esforço de se compreender a vida política em seus recentes acontecimentos.

Já a análise da literatura sobre a temática demonstra, por vezes, a localização desse recrudescimento do conservadorismo no seio dos governos de direita pós-2016. O que o estudo avaliativo demonstrou, todavia, foi que esse aspecto conservador, que engendra mudanças na política, se dá já no seio dos governos progressistas com programas proibicionistas que remontam ao racismo e ao elitismo fundantes do Estado-nação.

Por fim, este artigo advoga a afirmação do campo da saúde mental em sua essência de movimento e lutas concorrentes entre o paradigma hegemônico-tradicional-conservador e a agenda programática de políticas de atenção psicossocial, privilegiando a ética do cuidado pautado na categoria vida. Além disso, evidencia a necessidade de pesquisas avaliativas acerca da política nacional de saúde mental que considerem o processo de remanicomialização em curso, os elementos político-institucionais acerca da ação pública apontados neste estudo e sobretudo com foco na experiência cotidiana dos atores que operam e utilizam as ações e serviços de saúde mental que vem sendo inscritos nos desdobramentos da política, a fim de alargar os elementos analíticos enfocados nos atos normativos apresentados.

  • 1
    Ressalta-se que os serviços e dispositivos institucionais de cuidado que começaram a surgir nesse período dispunham de diversas nomenclaturas, as quais foram uniformizadas pela Portaria nº 366, de 19 de fevereiro de 2002 (BRASIL, 2002BRASIL. Portaria nº 366, de 19 de fevereiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 fev. 2002.).

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Editor responsável: Rossano Lima

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Jul 2022
  • Aceito
    06 Mar 2023
  • Revisado
    12 Dez 2022
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