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Família: representações sociais de trabalhadores da Estratégia Saúde da Família

Families: workers' social representations of the Family Health Strategy

Resumos

A família vem ocupando um lugar central nas políticas públicas, principalmente no setor saúde, através da Estratégia Saúde da Família. Essa centralidade foi fruto de um processo histórico e cultural de significações, por vezes normativas, sobre a família. Nesse processo, situam-se os trabalhadores da Estratégia Saúde da Família (ESF) enquanto atores sociais que constroem suas práticas e concepções sobre famílias dentro de uma realidade social permeada por contradições. Considerando as Representações Sociais como instrumento para identificação de uma realidade social, esse estudo se vale dessa abordagem para descrever as representações sociais de família construídas por trabalhadores da ESF. A pesquisa foi realizada em uma Unidade Básica de Saúde da Família da periferia de São Paulo, com um representante de cada categoria profissional que compõe as equipes de saúde da família. O material analisado demonstrou limitações no processo de formação dos trabalhadores no que se refere aos temas família e comunidade. As representações apontam para uma visão ampliada das configurações familiares, porém percebe-se uma desvalorização das camadas populares. São permeadas por sentimentos de angústia, principalmente quando se referem às famílias atendidas na ESF. Porém, podem-se vislumbrar possibilidades de construção de projetos de saúde eficazes, caso haja investimento na formação desses trabalhadores, visto que eles não se mostram indiferentes às necessidades de saúde das famílias atendidas na ESF.

Família; Representação Social e Estratégia Saúde da Família; Trabalhadores da ESF


In Brazil, the family has been occupying a central place in public policies, mainly in the health sector, through Estratégia Saúde da Família (ESF - Family Health Strategy). This centralization is the result of a historical and cultural process of significations which, at times, created regulations over the family. In this process, the ESF workers exist as social actors who construct their practices and concepts about families within a social reality permeated with contradictions. Considering Social Representations as an instrument to identify a social reality, this study uses this approach to describe the social representations of family constructed by ESF workers. The study was carried out in a primary health care unit located in the periphery of São Paulo, with a representative from each of the professional categories that compose the family health care teams. The analyzed material demonstrated limitations in the training process of the workers regarding the family and community theme. The representations show a wider view of family configurations, but an underestimation of the less privileged class is noted. These representations are permeated with feelings of anxiety, principally when the families referred to are the ones followed up by the ESF. However, possibilities to construct efficient health care projects can exist if there is investment in the training of these professionals, since health care workers are not indifferent to the health needs of the families that are assisted by the ESF.

Family; Social Representation; Family Health Strategy; Family Health Strategy Workers


PARTE I - ARTIGOS

Patrícia Jimenez PereiraI; Monique BourgetII

IGraduada em Psicologia. Especialista em Saúde da Família. Endereço: Avenida Padre Arlindo Vieira, 898, apto 241, Isabel Cristina, CEP 04297000, Vila Vermelha, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: pereirajimenez@ig.com.br

IIMédica. Especialista em Medicina de Família e Comunidade. Mestre em Epidemiologia. Coordenadora da Atenção Primária da Casa de Saúde Santa Marcelina. Endereço: Rua Santa Marcelina, 177, CEP 08270-070, Itaquera, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: monique@santamarcelina.org

RESUMO

A família vem ocupando um lugar central nas políticas públicas, principalmente no setor saúde, através da Estratégia Saúde da Família. Essa centralidade foi fruto de um processo histórico e cultural de significações, por vezes normativas, sobre a família. Nesse processo, situam-se os trabalhadores da Estratégia Saúde da Família (ESF) enquanto atores sociais que constroem suas práticas e concepções sobre famílias dentro de uma realidade social permeada por contradições. Considerando as Representações Sociais como instrumento para identificação de uma realidade social, esse estudo se vale dessa abordagem para descrever as representações sociais de família construídas por trabalhadores da ESF. A pesquisa foi realizada em uma Unidade Básica de Saúde da Família da periferia de São Paulo, com um representante de cada categoria profissional que compõe as equipes de saúde da família. O material analisado demonstrou limitações no processo de formação dos trabalhadores no que se refere aos temas família e comunidade. As representações apontam para uma visão ampliada das configurações familiares, porém percebe-se uma desvalorização das camadas populares. São permeadas por sentimentos de angústia, principalmente quando se referem às famílias atendidas na ESF. Porém, podem-se vislumbrar possibilidades de construção de projetos de saúde eficazes, caso haja investimento na formação desses trabalhadores, visto que eles não se mostram indiferentes às necessidades de saúde das famílias atendidas na ESF.

Palavras-chave: Família; Representação Social e Estratégia Saúde da Família; Trabalhadores da ESF.

ABSTRACT

In Brazil, the family has been occupying a central place in public policies, mainly in the health sector, through Estratégia Saúde da Família (ESF - Family Health Strategy). This centralization is the result of a historical and cultural process of significations which, at times, created regulations over the family. In this process, the ESF workers exist as social actors who construct their practices and concepts about families within a social reality permeated with contradictions. Considering Social Representations as an instrument to identify a social reality, this study uses this approach to describe the social representations of family constructed by ESF workers. The study was carried out in a primary health care unit located in the periphery of São Paulo, with a representative from each of the professional categories that compose the family health care teams. The analyzed material demonstrated limitations in the training process of the workers regarding the family and community theme. The representations show a wider view of family configurations, but an underestimation of the less privileged class is noted. These representations are permeated with feelings of anxiety, principally when the families referred to are the ones followed up by the ESF. However, possibilities to construct efficient health care projects can exist if there is investment in the training of these professionals, since health care workers are not indifferent to the health needs of the families that are assisted by the ESF.

Keywords: Family; Social Representation; Family Health Strategy; Family Health Strategy Workers.

Perspectiva Histórica da Família

Cada sociedade tem uma representação social do que seja família conformando um modelo ideal, porém isso não significa que esse modelo abarque todas as diversas formas de organizações familiares, nem a mais predominante (Aun, 2006). Narvaz e Koller (2005) traçam um percurso histórico das diferentes configurações de família, passando pelas comunidades tribais coletivistas, pela família nuclear burguesa e pelas diversas configurações familiares contemporâneas, influenciadas pelos movimentos de transformação social: emancipação da mulher, redimensionamento da sexualidade e questionamento dos valores sociais estabelecidos. Evidencia-se que, em todas as épocas, os modelos normativos de família preconizados pela sociedade não correspondiam à pluralidade de configurações existentes na realidade social. Esses modelos hegemônicos serviam e ainda servem como instrumento de poder e desqualificação das demais configurações familiares. Atualmente, apesar das influências dos movimentos de transformação social nas diversas configurações familiares, ainda persiste no imaginário social o ideal normativo de família nuclear.

O modelo nuclear da família moderna fundamenta-se no amor romântico, na limitação do poder paterno e na primazia da relação mãe-filho.

"A família contemporânea une dois indivíduos em busca de relações íntimas atribuindo à esfera do privado 'o lugar de uma das experiências subjetivas mais importantes da nossa sociedade'." (Roudinesco apud Rodrigues, 2009, p. 18).

Fonseca (2005) afirma que a noção do que é família varia de acordo com a categoria social das pessoas que a compõem. Considerando esse pressuposto, Sarti (2004), ao estudar famílias pobres da periferia de São Paulo, percebe que elas se configuram em rede, contrariando o modelo hegemônico de família nuclear. Essa rede é caracterizada por um sistema de obrigações morais, não sendo necessariamente composta de parentes consanguíneos. Isso viabiliza a sobrevivência desses grupos frente ao desamparo social em que vivem, porém dificulta a individualização. Essa pesquisa reitera que existem famílias histórica e socialmente situadas, e não família num sentido universal.

No século XX, a família se tornou alvo de interesse das ciências. Com a socialização das ciências "psi" (Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise), a família e outros grupos sociais ganharam status de determinantes de saúde/doença do indivíduo e objeto de intervenção (Aun, 2006). Encontramos na literatura diversos autores corroborando com a ideia da família como lócus privilegiado do desenvolvimento humano (Campos, 2004; Mello Filho, 2004; Dessen e Polonia, 2007; Ciampone, 1999; Sarti, 2004; Gomes, 2005; Cerveny, 2002). Porém, ao mesmo tempo que a família foi valorizada como local de influência para o desenvolvimento do indivíduo, ela foi também culpada pelos sofrimentos mentais.

Muitos desses discursos científicos acabavam por naturalizar e legitimar ideais normativos de família, dando sustentação a crenças negativas e preconceitos acerca de modelos alternativos de família (Narvaz e Koller, 2005). Portanto, é importante que os profissionais que trabalham com família façam um esforço de estranhamento, no sentido de reconhecerem modelos diferentes dos seus próprios referenciais, para não imporem modelos normativos. O tema família apresenta forte tendência ao etnocentrismo e, nesse processo, as famílias pobres podem ser desvalorizadas e estigmatizadas, fortalecendo mecanismos que instituem a desigualdade social (Sarti, 2004).

Família e Políticas Públicas: limites e possibilidades

A história da família como objeto de atenção das políticas públicas é recente. Anteriormente, as famílias eram alvo de iniciativas caritativas de cunho religioso e viés moralizante. Em âmbito mundial, o interesse na atuação familiar foi retomado com a escolha do ano de 1994 como o Ano Internacional da Família pela Organização das Nações Unidas (ONU). No Brasil, na década de 1980, junto às discussões das políticas públicas e à reforma do SUS (Sistema Único de Saúde), esse tema foi consagrado pela Constituição de 1988 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Vasconcelos, 1999), ocorrendo com isso o fortalecimento de programas que inserem a família no cenário das políticas de saúde e sociais. Porém, muitas dessas políticas, influenciadas pelas teorias científicas mencionadas anteriormente, culpabilizam a família.

"O pior é que muitas vezes a noção de que a família é o principal responsável pela saúde de seus membros vem antes de qualquer política efetiva de fortalecimento familiar" (Fonseca, 2005, p. 58).

Na tentativa de reorganizar a atenção básica em saúde para substituir a prática assistencial vigente, o Ministério da Saúde (MS) assumiu o desafio de incorporar em seus planos de ações e metas prioritárias o Programa Saúde da Família (PSF). A partir de 1996, o MS começa a romper com o conceito de programa, que estava vinculado a uma ideia de verticalidade e transitoriedade, passando a utilizar a denominação de Estratégia Saúde da Família (ESF) (Corbo e Morosini, 2005). A ESF incorpora e reafirma os princípios e diretrizes básicas do SUS (universalidade, equidade, integralidade, regionalização, participação social e descentralização). A equipe de saúde da família é composta de um médico, dois auxiliares de enfermagem, um enfermeiro e cinco a seis agentes comunitários de saúde. Quando ampliada, conta com a equipe de saúde bucal (Brasil, 1997).

A ESF constitui-se de equipes multiprofissionais que devem atuar numa perspectiva interdisciplinar priorizando a família como foco das intervenções. A família na ESF deve ser entendida de forma integral e em seu espaço social, abordando seu contexto socioeconômico e cultural (Brasil, 1997). Segundo Silva e Trad (2004), ao ampliar o foco de intervenção para além do clínico e individual, contemplando o grupo familiar e seu entorno, o profissional precisa construir novas formas de atuação, dentro de um processo de trabalho coletivo que contemple e integre os saberes dos diferentes membros da equipe.

A literatura nos mostra que mencionar a família como foco central da atenção não garante que isso se concretize na ESF. "Nesse cenário pode-se trabalhar com múltiplas abordagens de família, produzindo-se o falso entendimento de que se fala e se cuida de um mesmo objeto" (Ribeiro, 2004, p. 663). Apesar de os documentos oficiais da ESF ressaltarem a importância da dinâmica familiar, do contexto de vida e da rede social, pouco se faz para preparar os profissionais para as abordagens de família. Sendo que a atuação fica, na maioria das vezes, por conta das experiências pessoais ou dos "talentos inatos" de cada um, ignorando a necessidade de um conhecimento especializado sobre o assunto. Marsiglia (2004) reforça que talvez seja necessário constituir novas especialidades no campo da saúde que contemplem as implicações do trabalho com famílias e comunidades.

A maioria dos estudos realizados sobre o tema família na ESF tem como foco a atuação do enfermeiro e constatou a reprodução de práticas focadas no indivíduo e na doença (Ribeiro, 2004; Weirich e col., 2004; Ciampone, 1999; Marcon e Oliveira, 2007). Considerando que as necessidades de saúde expressam múltiplas dimensões, tornando complexo o conhecimento e as intervenções nessa área, a totalidade das ações de saúde não poderá ser realizada por uma única categoria profissional (Silva e Trad, 2004). Sendo assim, faz-se necessário entender como os trabalhadores das equipes multiprofissionais de saúde da família significam seu foco de atenção, as famílias, já que esses significados foram construídos dentro de um processo sócio-histórico relevante e norteiam as práticas construídas por esses trabalhadores.

Procedimentos Metodológicos

Trata-se de uma pesquisa de campo, exploratória, usando a teoria das Representações Sociais (TRS) (Minayo, 2004). Strassburger (2007, p. 40) atribui algumas capacidades para essa teoria:

"capacidade de identificar o que os sujeitos conhecem sobre determinado assunto; de reconhecer se as práticas desenvolvidas estão sendo bem assimiladas pelos participantes; avaliar como as práticas estão sendo ofertadas e avaliar o vínculo da sociedade com as práticas".Considerando a Estratégia Saúde da Família enquanto prática social, esse estudo descreve as representações sociais de família para trabalhadores da Estratégia Saúde da Família presentes no contexto histórico e social em que foram produzidas, vislumbrando as concepções construídas no cotidiano desses atores que permeiam as práticas desenvolvidas.

As diretrizes da Política Nacional de Atenção Básica (Brasil, 2007) preconizam a prática do trabalho interdisciplinar e em equipe; portanto, foi escolhido por sorteio um representante de cada categoria profissional que compõe as equipes de saúde da família de uma Unidade Básica de Saúde da Família (UBSF) na zona leste da cidade de São Paulo. Além disso, na literatura revisada observou-se pouca discussão sobre o tema família no âmbito das equipes multiprofissionais, priorizando a perspectiva de algumas categorias profissionais isoladamente. Essa pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Prefeitura de São Paulo.

- Campo de estudo: a pesquisa foi desenvolvida em uma UBSF na região da zona leste da cidade de São Paulo. Foi escolhida a Unidade em que a pesquisadora desenvolve a prática da residência, devido ao interesse em entender melhor a realidade vivenciada na prática, tendo em vista a inserção cotidiana e intensa da residência, facilitando também o contato com os sujeitos de pesquisa.

- Sujeitos: Um representante de cada categoria profissional das equipes saúde da família: um agente comunitário de saúde, um cirurgião-dentista, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e um médico. Foi realizada uma reunião com os funcionários, explicando a pesquisa, e todos foram convidados a participar. Dentre aqueles que se interessaram em participar, foi realizado um sorteio. Os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, de acordo com a ética em pesquisa com seres humanos.

- Instrumentos e procedimento de coleta de dados: foram colhidos os seguintes dados para identificação dos sujeitos: tempo de formação profissional; tempo de trabalho na ESF; Capacitações, cursos, especializações e correlatos referentes ao tema; Nível socioeconômico; Idade. Em seguida foi aplicado o seguinte roteiro de perguntas abertas:

1) O que é família para você?

2) Descreva, em detalhes, uma situação de atendimento a uma das famílias cadastradas que tenha chamado sua atenção por algum motivo.

- Análise e tratamento de dados: foi utilizada a análise de conteúdo proposta por Laura Franco (2007), transcrevendo as entrevistas e submetendo-as à pré-análise e à exploração dos dados, isolando elementos do discurso e organizando em unidades agregadoras de sentidos. Em seguida, foram estabelecidas relações entre os dados obtidos e o referencial teórico, tendo como base o material disponível sobre PSF e publicações científicas sobre família.

O Olhar dos Trabalhadores da Estratégia Saúde da Família

Depois da leitura exaustiva dos discursos, foram extraídos indicadores que deram origem às categorias de análise criadas a partir do conteúdo das falas, embasadas pelo referencial teórico. As categorias de análise criadas foram: configurações familiares, família e moradia, relações familiares, condições de vida das famílias atendidas gerando emoções nos trabalhadores, estranhamento das famílias atendidas e exigências sociais com a família.

Categoria 1 - Configurações familiares

No que se refere ao modelo de família presente no discurso, existe uma forte ambiguidade:

"Elas se juntam por afinidade ou pela constituição da própria família: mãe, pai, filho... que pode ser constituída de uma família ou pode ter outras coisas que nem os homossexuais... as outras famílias que tem aqui que vieram do nordeste, agregando outros parentes".

"Família geralmente é pai, mãe, irmão, onde você nasceu e essa é a sua família... O núcleo familiar não está só vinculado a laços de sangue, eu digo das relações de família."

Os trabalhadores demonstram um predomínio da visão nuclear de família, constituída por laços de sangue e em torno do núcleo pai, mãe e filho. Mas consideram a existência de outros modelos de família não determinados por relações consanguíneas e nem limitados a um núcleo, geralmente identificados nas famílias que atendem na ESF. Isso demonstra que o contato com configurações de família divergentes do modelo normativo presente na nossa sociedade conduz os trabalhadores a repensarem seus referenciais. Percebe-se uma confusão no discurso, apontando para uma dificuldade de como nomear e não estigmatizar essas configurações familiares divergentes dos modelos enraizados de família.

Categoria 2 - Família e moradia

Na ESF, as famílias são identificadas pelo domicílio e isso influencia de maneira significativa as representações dos trabalhadores analisadas:

"... quando mora dentro da sua casa, faz parte do dia a dia da sua família. Eu acho que é família".

"Não precisa ser pai, mãe e filho, morou dentro de uma mesma casa, convive debaixo do mesmo teto, pra mim, tudo ali é família."

Porém essa concepção, apesar de predominante, não é unânime:

"... tem também quando elas tão numa rua, cada um tem sua casa... aquela coisa de se ajudarem, de dividir suas obrigações, elas acabam se formando como uma família".

"Não precisa morar na mesma casa e nem no mesmo bairro."

Limitar o grupo familiar à divisão do mesmo espaço físico, conforme preconizam as diretrizes da ESF, contraria as pesquisas sobre famílias pobres que afirmam sua configuração em rede, abarcando famílias extensas e vizinhança que são importantes para a manutenção da sobrevivência dessas pessoas (Sarti, 2004; Fonseca, 2005). Dessa forma, essa diretriz que favorece a elaboração dos trabalhadores pode colaborar para a desconsideração de uma parcela importante de relações interpessoais que influenciam as condições de vida e saúde das pessoas atendidas e geram incongruências no processo de trabalho em equipe no que diz respeito às pessoas que são consideradas ao abordar o grupo familiar e planejar intervenções.

Categoria 3 - Relações familiares

Os trabalhadores identificam nas relações familiares possibilidades de apoio, sustentação, enfim, de condições favoráveis para o desenvolvimento humano:

"Família é tudo, porque é onde você tem apoio".Mas também não ignoram a dimensão do conflito como algo natural e o percebem relacionado a questões de individualidade e de gênero:

"... a família briga por coisa besta, divergência de opinião. Acaba tendo a briga, mas depois, quando acontece alguma coisa, tá todo mundo junto".

"Ou porque uma das partes se anulou, então ela faz o que o outro determina."

Essa concepção de lugar de apoio e também de conflito se aproxima de uma visão mais realista da dinâmica das relações familiares, não idealizando a convivência familiar, pois referem às contradições e aos conflitos que permeiam o cotidiano dos familiares, esperados pelas funções atribuídas a essa instituição social. O fato de ser responsável pela sobrevivência de seus membros, pela socialização primária, pela divisão sexual de papéis, entre tantas outras funções atribuídas para a família, é potencialmente causador de conflitos. Ao mesmo tempo em que também se constitui como espaço privilegiado para o desenvolvimento humano.

Categoria 4 - Condições de vida das famílias atendidas gerando emoções nos trabalhadores

O contato com as condições de vida das camadas populares gera representações permeadas por sofrimento e angústia. Os trabalhadores sentem-se impotentes diante das situações vividas por essas famílias:

"Eu tento ser forte, mas não dá, mas eu já me acostumei".

"Eu vi a necessidade deles, a pobreza... eu não aguentei, não sei se eu tava assim num dia que eu não tava bem, eu sei que não aguentei... aí, eu saí da casa dela e fui chorar."

"E, realmente, eu não sou Deus, você faz, mas milagre não dá."

Quando a demanda manifestada pela família extrapola o campo do biológico, os trabalhadores sofrem por não conseguir identificar possibilidades de intervenção. Provavelmente isso é influenciado pela formação centrada na doença e no indivíduo de grande parte das profissões da saúde, demonstrando pouco investimento na capacitação dos trabalhadores para o trabalho com famílias e comunidades, corroborando com as autoras Marsiglia (2004) e Ribeiro (2004). Muitas das questões apresentadas por essas famílias necessitam de ações intersetoriais e interdisciplinares, práticas que, geralmente, não fazem parte do cotidiano dos serviços de saúde. Diante dessas demandas, os trabalhadores, com seus processos de formação reduzidos, têm o olhar direcionado para identificar limitações e não enxergar as potencialidades das famílias. O sofrimento manifestado cria condições para estabelecer empatia e aproveitar processos de formação que contemplem a saúde como processo influenciado por condições materiais de vida, como a teoria da determinação social da saúde.

Categoria 5 - Estranhamento das famílias atendidas

Os trabalhadores manifestam estranhamento ao cotidiano e às relações que se estabelecem nas famílias atendidas pela ESF. Percebe-se claramente a tendência ao etnocentrismo, comparando as famílias da comunidade com seus modelos pessoais de família. Por vezes, essa comparação aparece com tons de preconceito e desvalorização:

"A gente tem sorte de nascer na família certa, porque eu nasci numa família que não tem problemas, porque como a gente vê aqui é muita miséria, miséria de tudo, de valores, de sentimentos".

"É diferente a família que a gente vive, e não é nem por ter nível superior, mas porque a gente conseguiu trabalhar, conseguiu ter uma casa."

O grau de estranhamento faz os trabalhadores questionarem e se impressionarem com a capacidade de ser feliz nas condições em que as famílias vivem. Por um lado, isso pode contribuir para o reconhecimento e empatia, através da identificação da resiliência e do sofrimento das camadas populares. Mas também estipula condições materiais para se atingir a felicidade, desacreditando nas potencialidades que as comunidades podem ter:

"... você entra numa casa com poucos recursos financeiros e você vê que a pessoa é feliz".

"... apesar de toda situação ruim, se tiver um elo emocional forte, eles superam o que a vida não traz de melhor."

Tais representações apareceram nos trabalhadores médicos e cirurgiões-dentistas. Esses entrevistados apresentaram a maior renda familiar. Pode-se inferir que quanto mais distante das camadas populares é o espaço ocupado pelos trabalhadores na sociedade, maior será a estigmatização dessas famílias, fortalecendo mecanismos que instituem a desigualdade social, corroborando com os estudos de Sarti (2004).

Categoria 6 - Exigências sociais com a família

Sabe-se que muitas das políticas públicas, ao tomarem a família como foco de atenção, foram influenciadas por teorias científicas que culpabilizam a família como responsável pela saúde dos seus membros (Aun, 2006; Narvaz e Koller, 2005). As representações dos trabalhadores foram, em parte, influenciadas por esse contexto sócio-histórico em que essas políticas surgiram:

"E se o cara não for muito especial e não tiver uma família coesa, ele não vai pra frente".

"... ela tava criando uma condição ruim para as crianças, porque elas só se alimentavam de besteira e tavam com baixo peso."

Dessa forma, atribui-se à família o papel de única influência para os indivíduos, ou se for uma influência considerada negativa, a possibilidade de uma vida saudável dependerá exclusivamente dos atributos de cada um. Essa representação desacredita na influência de outras instituições sociais, como escola, saúde e rede social, como importantes no desenvolvimento das pessoas e das famílias. E o próprio profissional, enquanto membro dessas instituições, não se enxerga enquanto ator social importante no processo de viabilizar melhores condições de saúde das pessoas.

Considerações Finais

Os trabalhadores consideram variadas configurações familiares, demonstrando uma aceitação de modelos divergentes da norma social. Ainda assim, as representações sociais identificadas nesse grupo de trabalhadores evidenciam limitações nos seus processos de formação. Percebe-se que chegam a gerar contradições nos processos de trabalho, como observado, por exemplo, na relação da moradia com a família. Tal situação gera um importante grau de sofrimento e angústia, quando eles se deparam com situações que exigem ações intersetoriais e interdisciplinares. O trabalhador pouco acredita no seu potencial enquanto promotor de saúde ao entrar em contato com as condições de vida das famílias atendidas. Infere-se que a formação biologicista e centrada no indivíduo da maioria das profissões da saúde contribui para olhares reducionistas com dificuldade para identificar potencialidades nas famílias pobres e comunidades, gerando um descrédito na possibilidade de construção de processos de saúde e doença mais saudáveis.

Como potencialidade de mudança das práticas assistenciais, as diretrizes da ESF apontam para a consideração da rede social, para a parceria com outros setores, para as ações interdisciplinares e para a reflexão sobre o espaço socioeconômico. Porém os processos de formação tradicionais não acompanham essas diretrizes. Ainda assim, os trabalhadores não são indiferentes e se afetam pelas condições de vida das famílias, sofrendo com a falta de instrumentos para a intervenção. Dessa forma, existem condições para o estabelecimento de vínculo e tendo também a proximidade com as famílias, identificamos elementos favoráveis para a construção de práticas ampliadas. Porém, é necessário um redirecionamento nos processos de formação dos trabalhadores de saúde que contemplem o estudo das políticas públicas, a consideração dos contextos sócio-históricos e a instrumentalização para o trabalho com famílias e comunidades. Pois somente nessa perspectiva é possível construir projetos de saúde efetivos para a população e para os trabalhadores de saúde.

Recebido em: 17/08/2009

Aprovado em: 03/02/2010

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  • Família: representações sociais de trabalhadores da Estratégia Saúde da Família

    Families: workers' social representations of the Family Health Strategy
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Out 2010
    • Data do Fascículo
      Set 2010

    Histórico

    • Recebido
      17 Ago 2009
    • Aceito
      03 Fev 2010
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