Resumo
Este trabalho discute os efeitos da covid-19 na saúde de idosos, considerados principal grupo de risco nesta pandemia. Para tanto, partiremos de uma breve exposição demográfica do envelhecimento no Brasil para, então, discutir sobre como este período tem produzido e reforçado discursos que revelam estereótipos sobre envelhecimento. Esses discursos se relacionam com as dificuldades no enfrentamento dos efeitos deste período de distanciamento social e de suas possiblidades, tanto no contexto do cuidado residencial quanto nas instituições de longa permanência na Bahia, onde centralizamos esta discussão. Para finalizar, ressaltamos a urgência de ações organizadas e coordenadas que compreendam a complexidade do processo de envelhecimento para o enfrentamento, tanto dos discursos preconceituosos sobre os idosos quanto para os efeitos do isolamento. Também apontamos para a necessidade de nos reconhecermos e nos implicarmos nas demais gerações de que fazemos parte, seja em memória ou projeção.
Palavras-chave:
Envelhecimento; Pandemias; Ageísmo; Saúde do Idoso Institucionalizado
Abstract
Our work discusses the effects of Covid-19 on older adults’ health, which is considered the leading risk group in this pandemic. We start with a brief ag(e)ing demographic discussion in Brazil and then address how this period has produced and reinforced discourses that show ag(e)ing stereotypes. These discourses are related to the difficulties in facing the social distancing effects and its possibilities in the context of residential care and in long-term institutions in the state of Bahia, Brazil, where we centralize this discussion. To conclude, we emphasize the urgency of organized and coordinated actions that understand the ag(e)ing process complexity to face both the prejudiced discourses about older adults and the effects of isolation. We also point to the need to recognize and involve ourselves in the other generations of which we are a part, whether in memory or projection.
Keywords:
Aging; Pandemics; Ageism; Health of the Institutionalized Elderly
Introdução
A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, em janeiro de 2020, pandemia em razão da covid-19, doença causada pelo vírus Sars-CoV-2, após caracterizá-la como uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional. Considerando o Boletim Epidemiológico nº 27, que trata da semana 33 (8 a 15 de agosto), vemos que 104.065 pessoas vieram a óbito em decorrência da Covid-19 no Brasil. Nesse quadro, o percentual de óbitos de idosos no Brasil é de 72,6% (75.588) - número alarmante e que pode ser muito maior dada a subnotificação de casos2 2 Os números de casos variam especialmente pela incerteza sobre o número total de infectados, o que se dá pela falta de disponibilidade de testes de confirmação da infecção, o que produz discrepâncias importantes. Ver análise disponível em: <https://bit.ly/3ekvJbk>. e o plateau encontrávamos em agosto (Brasil, 2020aBRASIL. Boletim Epidemiológico Especial 27. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2020a.).
Do ponto de vista populacional, considera-se, que as populações mais envelhecidas são mais susceptíveis às complicações da covid-19 do que as mais jovens. Apesar disso, a região Sul, por exemplo, é mais populosa e mais que duplamente envelhecida do que a região Norte e, de acordo com o Boletim Epidemiológico supracitado, é na região Norte que se encontram os maiores índices de incidência e de mortalidade por covid-19. Dessa divergência, podemos observar que o abrangente cenário de desigualdade do país incide diretamente nas experiências de envelhecimento e deve, portanto, ser considerado em toda reflexão sobre o tema. A pandemia, nesse sentido, incide sobre cenários que já existiam previamente, escancarando as desigualdades e tornando-as mais profundas.
É preciso, portanto, ter clareza e lucidez para refletir sobre a complexidade da relação entre envelhecimento e a pandemia no Brasil. O país, que hoje conta com mais de 28 milhões de idosos (13,4% da população) apresenta quadros diferentes de envelhecimento. No estado da Bahia, por exemplo, o percentual de idosos é menor do que a média no país (12,6%), no entanto, o processo demográfico de envelhecimento deve ser mais intenso no estado. Estima-se que, entre 2018 e 2060, o percentual de idosos deve mais do que duplicar (+156,5%), sendo previsto que um a cada três baianos seja idoso em 2060. Nesse cenário, o índice de envelhecimento da população baiana, que hoje é o 11º mais alto dentre os 27 estados brasileiros, chegaria, em 2060, ao 3º maior do país (IBGE, 2018IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Projeções da População do Brasil e Unidades da Federação por sexo e idade: 2010-2060. Rio de Janeiro: 2018.).
É fundamental lembrar, assim, que o envelhecimento é um fenômeno multidimensional e que, portanto, varia de acordo com questões socioeconômicas, culturais, raciais, de gênero e territoriais. No contexto atual brasileiro, não podemos deixar de olhar, portanto, para o envelhecimento como um processo histórico costurado às desigualdades econômicas, raciais e de gênero. Há idosos que cuidam e que são cuidados, que dão suporte financeiro, que precisam de insumos para sua sobrevivência, que vivem nas ruas. Isso também nos leva a pensar, sobretudo em meio a esta pandemia, sobre o lugar reservado ao idoso dentro de uma lógica neoliberal que privilegia a força de trabalho em detrimento da heterogeneidade de papéis que poderiam provir da valorização dos saberes sociais e culturais pertencentes aos idosos, inclusive nos ambientes de trabalho. É nesse contexto que esta reflexão se insere e que busca apresentar opções que abarquem essas questões tão importantes.
Na próxima seção, discutimos como os discursos que circulam sobre os idosos nos ajudam a compreender esse lugar reservado a eles em nossa sociedade. Em seguida, discutiremos os desafios de um isolamento responsável, multidimensional, também calcado pelo afastamento da rede socioafetiva, e que pode agravar situações de sofrimento psíquico. Nessa discussão, trazemos dados importantes sobre a parcela mais vulnerabilizada - aquela que está em instituições de longa permanência. Articulamos, portanto, discursos sobre os idosos em tempos de pandemia com os desafios impostos pela dinâmica do isolamento físico como forma de enfrentamento da covid-19. Por fim, apontamos para a necessidade de ouvir os idosos em sua heterogeneidade; ou seja, buscamos caminhos de compreensão da experiência vivida por eles, refletindo sobre a necessidade de discutirmos a responsabilidade intergeracional na promoção de saúde, tão necessária neste momento.
Discursos sobre envelhecimento em tempos de pandemia: entre a infantilidade e a teimosia
Já não é novidade pensar que a pandemia escancarou os problemas de desigualdade que assolam o Brasil. Da educação à saúde, vemos que não lidamos apenas com os desafios impostos por um vírus cuja transmissão é assustadoramente rápida e cujos efeitos em nosso organismo são diversos e, embora mais compreendidos hoje, ainda bastante misteriosos.3 3 Pensemos, por exemplo, no fato de o vírus estar sendo associado a casos de AVC isquêmicos em pacientes jovens (Beyrouti et al., 2020), enquanto imaginávamos, no início da pandemia, que seu principal foco eram as vias respiratórias. Há relatos, ainda, de problemas no coração associados à infecção e muitos pesquisadores ainda investigam possíveis efeitos duradouros em decorrência da infecção em crianças e jovens.
Os desafios postos, são, portanto, vários, mas, quando observamos nosso contexto mais de perto, percebemos que os idosos, que deveriam contar com uma proteção maior da sociedade, além de não estarem sendo assistidos pelo Estado, sofrem com a discriminação que os coloca na posição do não saber: não sabem como se cuidar e não entendem como a situação do país é complexa. É o que podemos observar, por exemplo, em memes4 4 Memes podem ser compreendidos como “unidades de transmissão cultural, ou de imitação” (Dawkins, 1976). No contexto das mídias sociais, memes referem-se às mensagens compartilhadas que podem ser acompanhadas por imagem ou vídeo e que carregam um tom irônico e jocoso (Torres, 2016). que circulam pelas redes sociais desde o início da pandemia, produções discursivas interessantes de observação da circulação de sentidos sobre envelhecimento.5 5 Embora não seja escopo deste artigo debater sobre o conceito de discurso, podemos compreendê-lo, de maneira geral, como o enunciado ou texto (oral e escrito) produzido em uma dada situação e determinado por condições históricas e sociais.
Essa discussão sobre os modos de circulação da discriminação é fundamental para compreender seus efeitos na vida dos idosos e para combatê-la. No primeiro exemplo, que trazemos para fundamentar esta reflexão, os idosos são comparados a “crianças com mais de 60 anos” e que devem ficar em casa pois há um “carro preto no bairro pegando idosos para fazer sabão”. O tom jocoso do meme retoma narrativas infantis muitas vezes utilizadas como inibidoras de comportamento indesejáveis. Nesse caso, retoma-se a narrativa popular dos perigos que existem fora de casa para garantir que as crianças e, nesse caso, os idosos, compreendam a necessidade da permanência em casa, dadas as ameaças externas. A estratégia se justificaria na crença de que, somente com esse recurso, os idosos poderiam compreender a gravidade da situação e o risco de se exporem às ruas e ao vírus.
Esse recurso discursivo de retorno à infância para dialogar com o envelhecimento e com idosos não é novidade. Hockey e James (1993HOCKEY, J.; JAMES, A. Growing up and Growing old: age and dependency in the life course. London: SAGE, 1993.) mostram que a associação dos mais velhos aos mais jovens, empregada recorrentemente em propagandas publicitárias, por exemplo, são indícios de como essa relação estrutura metaforicamente as experiências de envelhecimento. Segundo as autoras, “o pareamento conceitual dos muito jovens com os muito velhos no uso da linguagem reflete um enquadramento particular do envelhecimento nas culturas ocidentais” (Hockey; James, 1993HOCKEY, J.; JAMES, A. Growing up and Growing old: age and dependency in the life course. London: SAGE, 1993., p. 18). A infância e a juventude funcionam, assim, como uma bússola orientadora das possibilidades, qualidades e demandas dos idosos, constituindo, portanto, nosso universo de compreensão sobre envelhecimento. É assim que passamos a pensar frequentemente a velhice em termos infantis, afirmam as autoras: idosos raciocinam como crianças, têm qualidades associadas a estágios de desenvolvimento na infância (como birra e teimosia) e precisam ser cuidados como crianças.
Esse modo de pensar e de tratar o processo de envelhecimento sustenta-se, ainda, no paradoxo de que para envelhecer bem é preciso manter características jovens, ao mesmo tempo que tais características são também vistas como problemáticas ao serem associadas a esse grupo. A esse respeito, Py e Scharfstein (2001PY, L.; SCHARFSTEIN, E. A. Caminhos da Maturidade: representações do corpo, vivências dos afetos e consciência da finitude. In: NERI, A. (Org.). Maturidade e velhice: trajetórias individuais e socioculturais. Campinas: Papirus, 2001.) afirmam que nossa cultura
[...] a uma só vez coroa duas senhoras: juventude e longevidade. Corpo infantil almejando a juventude que almeja a longevidade; fantasia de perenizar o corpo jovem no avanço dos anos de vida; desejo de viver muito, horror de ficar velho! (...) É preciso responder ao apelo do social, traduzido num verdadeiro marketing da juventude. Fazem-se necessários, aí, esforços e ajustes, compreensões ilegítimas do tempo, tentativas de reversão do impossível, tudo a postos para atender às expectativas do suposto interlocutor. Pensemos, então, na tendência que nos assola “a oferecer à audiência uma impressão idealizada, uma versão ‘aprimorada’ do corpo, próxima à dos jovens, mais ao gosto de um padrão identificatório valorizado, da sociedade atual”. (p. 123-124)
Essa bússola orientadora também aparece na interpretação de decisões tomadas por pessoas em processo de envelhecimento. A recusa de idosos a adquirirem celulares mais modernos, como os smartphones, é compreendida como resultado da dificuldade/incapacidade que eles teriam com seu uso e não como um possível desejo de viver sem essa tecnologia. Embora as duas interpretações sejam possíveis e o mercado esteja se adaptando criando aparelhos que respondam às demandas dos idosos, a primeira parece ser a mais recorrente. O desejo de viver sem essa tecnologia passa a ser respeitado como tal somente quando há um movimento reivindicando uma vida sem esses recursos. O movimento “phone free life”, por exemplo, ganhou espaço na mídia quando famosos passaram a defendê-lo, como o ator Eddie Redmayne, o jornalista James Brown e o escritor Peter Brown Hoffmeister. Todos, em algum momento, precisaram justificar esse desejo de viver sem a tecnologia, contudo, em nenhum dos casos seus interlocutores questionaram sua capacidade para utilizar a tecnologia (Mazuchelli, 2019MAZUCHELLI, L. P. Stereotypes and representations: discourses on and in ag(e)ing. 2019. Tese (Doutorado em Linguística) - Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2019.). Assim concluímos que, enquanto para uns essa decisão pode ser vista como excêntrica ou política (se considerarmos, por exemplo, os recentes escândalos de vazamento de informações privadas nas redes sociais), para outros ela é interpretada como efeito direto do envelhecimento, ou seja, interpreta-se a recusa como dificuldade quando nessa interpretação entra a questão do avanço da idade.
O segundo exemplo que trazemos, fundamenta-se, novamente, na circulação de estratégias para conter essa população, já que as decisões tomadas por eles, em geral, são desconsideradas. Na imagem apresentada a seguir, vemos uma mulher dentro de uma gaiola acompanhada da descrição “vende-se gaiola para idoso teimoso em até 10 vezes”. A inserção de “para idoso” como elemento qualificador de “gaiola” confere características animalescas a “idoso”, destituindo-o de características humanas e, portanto, o objetificando. Não é à toa que Chauí afirma, na apresentação do trabalho Memória e Sociedade, de Ecléa Bosi, que “em nossa sociedade, ser velho é lutar para continuar sendo homem” (Chauí, 1994CHAUÍ, M. Apresentação. In: BOSI, E. Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 17-33., p. 18).
Há, nesse meme, outro exemplo da essencialização do processo de envelhecimento que contribui para a perpetuação da discriminação desse grupo. São recorrentes as afirmações de que velhos são teimosos, embora não haja provas científicas de que envelhecer significa tornar-se (mais) teimoso. O que parece ocorrer é que possíveis dificuldades de compreensão e discordâncias são interpretadas pela sociedade como efeito direto do envelhecimento. Desconsideram-se, assim, aspectos biológicos, geracionais, geográficos, econômicos, de gênero e de raça, além dos contextos situacionais em que esses sujeitos estariam sendo teimosos. Não é exagero pensar como outros adjetivos poderiam ser usados: “persistentes”, “insistentes”, “caprichosos”, “obstinados”, “resistentes”, “relutantes”, entre diversos outros que poderiam carregar um aspecto mais ou menos positivo. Assim, mais uma vez observamos atitudes de idosos sendo interpretadas de maneira negativa, o que nos revela o atravessamento de um imaginário que os observa apenas por um viés negativo.
A crença, portanto, de que os idosos saem de casa por não entenderem a situação grave pela qual passa o país não fortalece apenas a proliferação desses memes, mas o próprio olhar discriminatório sobre o envelhecimento.
Colocar em questão essas e outras afirmações que circulam de maneira recorrente é fundamental para podermos refletir sobre os mecanismos de opressão da velhice que fundamentam práticas discriminatórias e violentas, como julgar idosos incapazes de se cuidarem ao mesmo tempo em que são deixados de lado nas decisões de controle dessa pandemia.6 6 Um exemplo diz respeito ao retorno das aulas presenciais que desconsidera, de maneira geral, o efeito dominó da reabertura das escolas, já que a porcentagem de famílias com crianças em idade escolar que convivem com idosos é alta. Segundo dados do IBGE (2016) entre os que vivem com idosos, 13% têm até 17 anos, 41% são adultos e 46% também são idosos. Embora não seja escopo deste artigo, um outro exemplo que deverá ser acompanhado para garantir a saúde e o respeito aos idosos se refere aos planos de vacinação da Covid-19. Vale a pena notar a falta de pesquisa, neste momento de pandemia especialmente, sobre quem são esses idosos que saem de casa e por que o fazem. É bastante significativo pensar, por exemplo, que uma das primeiras mortes notificadas no Brasil em decorrência da infecção do vírus foi a da empregada doméstica Cleonice Gonçalves, de 63 anos. Moradora de Miguel Pereira, Cleonice viajava 120 km para trabalhar em uma residência em bairro nobre da capital do Rio de Janeiro. Foi na casa de sua empregadora, que acabara de retornar de uma viagem à Itália, que Cleonice contraiu o vírus e morreu três dias após apresentar os primeiros sintomas. Ela, que trabalhava desde os 13 anos de idade, como milhares de outros idosos, precisava sair de casa para sustentar sua família.7 7 Uma reportagem sobre o caso de Cleonice pode ser vista aqui: <https://glo.bo/3dwvISt>. Acesso em julho de 2020. Segundo dados de pesquisa da LCA Consultores, cerca de 10 milhões de pessoas dependem da renda de aposentados para viver (Chiara; Brandão, 2018CHIARA, M.; BRANDÃO, R. O material jornalístico produzido pelo Estadão é protegido por lei. O Estado de São Paulo, São Paulo, 15 jul. 2018.). O caso de Cleonice, portanto, não é exceção.
Refletir sobre os discursos que circulam sobre envelhecimento nos mostra a naturalização do pensamento sobre a velhice. Em tempos de pandemia, esses discursos estereotipados revelam o desprezo que a sociedade carrega por esses sujeitos ao compará-los a animais ou os destituindo da capacidade de refletir sobre seu tempo. Vale notar que, embora os dois memes brinquem com a estratégia de criação de saídas para garantir o cuidado desses sujeitos, a natureza desses discursos é violenta justamente por destituí-los de sua humanidade, contribuindo para a naturalização dos mais de 70% de idosos mortos por Covid-19.
Desafios e implicações do isolamento social
Considerando a complexidade da doença e a falta de fármacos adequados e seguros para seu tratamento, a principal forma de enfrentamento da Covid-19, até hoje, são as medidas de distanciamento social, que reduzem as interações entre pessoas não infectadas e pessoas infectadas ainda não identificadas e, portanto, não isoladas. Essas medidas incluem o fechamento e restrição de funcionamento de locais de trabalho, escola, comércio, além do cancelamento de atividades que envolvam aglomerações. O isolamento social tem sido utilizado mundialmente como estratégia de contenção do avanço da pandemia e, consequentemente, o colapso dos sistemas de saúde. Uma outra medida, que requer maior investimento na detecção precoce dos casos, é o isolamento das pessoas doentes daquelas não infectadas para reduzir o risco de transmissão da doença (Aquino et al., 2020AQUINO, E. M. L. et al. Medidas de distanciamento social no controle da pandemia de Covid-19: potenciais impactos e desafios no Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, supl. 1, p. 2423-2446, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020256.1.10502020
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).
Tais medidas, embora fundamentais para aqueles mais suscetíveis à forma mais grave da doença, apresentam desafios, já que a cobrança e o efeito do isolamento serão muito diferentes dependendo da situação social do idoso. Como dito anteriormente, a natureza heterogênea do processo de envelhecimento, somada à desigualdade social, de gênero e de raça, torna essa situação ainda mais complexa, o que justifica nossa reflexão.
Pode-se afirmar que um dos principais resultados do distanciamento e do isolamento social como medidas necessárias contra o avanço da doença é seu efeito nas relações interpessoais e na própria saúde dos idosos. Como vimos na seção anterior, esse cuidado tem revelado a natureza violenta de alguns discursos estereotipados que acabam por infantilizar os idosos ou até mesmo tratá-los como dispensáveis no processo de compreensão, prevenção e contenção da doença. Nesse contexto, destacamos as implicações do isolamento social no trabalho, nas redes de apoio e, por fim, no aumento da violência aos idosos.
De maneira geral, os dados populacionais mostram que 26,3% dos idosos brasileiros permanecem ativos no mundo do trabalho e que 53,8% dos que recebem benefícios de aposentadoria continuam trabalhando (IBGE, 2016IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro: 2016.). A decisão de continuar no mundo do trabalho após os 60 anos justifica-se, por exemplo, pela necessidade de complementação de renda familiar. Em tempos de pandemia, estar vinculado ao trabalho implica em duas situações: (1) a impossibilidade de ir fisicamente ao trabalho, tendo a opção, ou não, do trabalho remoto, e (2) a continuidade do trabalho presencial que leva à exposição ao contato social e, portanto, aumenta a probabilidade de contrair a doença.
Considerando que 30% dos idosos brasileiros são analfabetos e que 16,6 % têm menos de 3,3 anos de estudo (Neri, 2020NERI, M. Onde estão os idosos? Conhecimento contra o COVID 19. Rio de Janeiro: FGV Social, 2020.), a possibilidade de que os idosos socialmente mais vulneráveis ocupem uma função que possa ser desenvolvida remotamente por intermédio de tecnologias digitais é bastante reduzida.8 8 É importante lembrar que, mesmo antes da pandemia, muitos idosos, especialmente os mais pobres, além de perderem seus empregos pelo avanço da idade, acabam ocupando os postos mais precários por questões como a baixa escolaridade. Assim, a probabilidade de que essas pessoas fiquem sem o rendimento integral ou sem nenhum rendimento, nos casos de demissão, é grande. Em ambas as situações, parte dessa população dependerá das ações de seguridade social do governo para manter a subsistência do seu lar, o que tem sido objeto de disputa política desde o início da pandemia. Um outro aspecto importante para a compreensão dessa realidade é a diminuição e precarização dos postos de trabalho voltados para os idosos, como apontado anteriormente (ver nota 7). Além disso, é preciso considerar que, nos casos de rescisão contratual durante a pandemia, a retomada do posto de trabalho será, posteriormente, provavelmente mais difícil, visto que o idoso vai disputar com um maior contingente de pessoas jovens e adultas também desempregadas.
Ainda que o Estatuto do Idoso, Lei 10.741/2003, determine a proibição de discriminação em decorrência de limite de idade, a realidade do mundo neoliberal, baseada na produtividade, acirra a desigualdade de oportunidades, como afirma o presidente do Centro de Estudos de Economia da Longevidade, Jorge Felix:
Você tem as pessoas que vão pro Uber, pro camelô, trabalhadores de limpeza de firmas terceirizadas. Ele está numa condição de trabalho que não é ideal para a idade dele. Pessoas que limpam banheiros lidam com produtos químicos sem proteção. Esta é a forma que este contingente menos qualificado, com menos anos de estudo, se submete para voltar ao mercado de trabalho. (Valente, 2019VALENTE, J. Total de idosos no mercado de trabalho cresce; precariedade aumenta. Agência Brasil, Brasília, DF, 1 maio 2019. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3v8WI0y >. Acesso em: 20 abr. 2021.
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O risco, portanto, da perda de renda, ainda que parcial, e de emprego, seja durante a pandemia ou posteriormente a ela, é um fator determinante seja para compreender as “quebras” de isolamento social, como vimos na seção anterior, seja para entender o estresse gerado pela situação financeira precária e a falta de perspectiva futura. É sintomático observar que esses elementos são sistematicamente ignorados no processo de controle da doença no Brasil e da discussão na comunidade, aumentado o cenário de fragilidade da saúde física e mental desses idosos e impondo desafios mais contundentes a eles.
A segunda situação exposta, na qual o idoso permanece desenvolvendo seu trabalho de forma presencial, garantindo a manutenção do posto de trabalho, gera outro tipo de consequência: a exposição diária aumenta o risco de contágio, adoecimento e morte, além da possibilidade de transmissão do vírus para seus familiares. A corda bamba diária do medo de adoecer e da manutenção das atividades laborais, o medo de ser o agente transmissor aos seus familiares e o medo da morte aumentam substancialmente o estresse desses idosos. Embora essas situações não sejam específicas à pessoa idosa, já que impactam a vida de todo trabalhador, as consequências podem ser mais duras na vida dos idosos se considerarmos a maior probabilidade de exclusão total do mundo do trabalho, ameaçando a manutenção da subsistência familiar, além do maior risco de morte. O cenário de complexidade em que idosos trabalhadores se encontram escancaram, assim, a falta de assistência do Estado e a ineficiência do Estatuto do Idoso e das políticas de proteção a esse seguimento populacional.
Somando-se ao medo pela situação de trabalho, o isolamento também perturba a vida dos idosos ao restringir a mobilidade e interação social, seja com familiares com os quais não vivem ou com o meio com o qual se relacionam. No caso de idosos autônomos que moram só, a realização das atividades de rotina torna-se novo desafio, já que o isolamento demanda maior independência. Essa situação pode constituir uma angústia importante, levando à falta de motivação, apetite, vontade de viver e à diminuição do autocuidado, trazendo consequências para a saúde física e mental. Afonso (2015AFONSO, C. V. C. A integração do idoso na sociedade: o papel das redes sociais. 2015. Dissertação (Mestrado em Educação Social) - Instituto Politécnico de Bragança, Escola Superior de Educação, Bragança, 2015.) pondera que a sensação de inutilidade pode desempenhar um papel negativo significativo nesta etapa da vida, já que os laços afetivos, constituídos dentro da rede social dentro e fora do lar, exercem um papel fundamental na vontade de viver.
Vale a pena lembrar que, em muitas realidades, é fora de casa que se estabelecem as relações sociais e vínculos afetivos mais significativos, já que nem sempre é a família que representa o maior suporte ao idoso. Segundo o relatório do Disque 100, referente a 2019, as denúncias de violência contra os idosos representam o segundo maior número de registros, representando 30% das denúncias, somando 50.118 (Brasil, 2019BRASIL. Disque Direitos Humanos: relatório 2019. Brasília, DF: Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, 2019.). Do total de denúncias, 41% são por negligência; 24% por violência psicológica; 12% por violência física e 2% por violência institucional. A grande maioria das denúncias aponta que a violência é realizada dentro da casa da vítima e, em 81% das denúncias, a violência é cometida por alguém de convívio familiar ou próximo à vítima. Mulheres são mais sujeitas (66%) do que homens, e 67% das pessoas que sofreram violência têm grau de instrução baixo (analfabetos ou fundamental incompleto). Isso significa que o idoso não está seguro dentro de seu domicílio, local que supostamente deveria ser seu lugar de proteção, mesmo durante a pandemia.
Além disso, as relações familiares disfuncionais e a desigualdade social acirram o comportamento violento, a intolerância, o abuso de álcool e outras substâncias, sendo as mulheres, crianças e idosos os mais desamparados nesse contexto. Em um momento de crise social profunda, com incertezas de todas as naturezas, a violência doméstica tende a aumentar, portanto, não é raro que idosos fiquem em uma posição de maior vulnerabilidade e sejam alvos mais frequentes de violência doméstica (Moraes et al., 2020MORAES, E. N. et al. COVID-19 nas instituições de longa permanência para idosos: estratégias de rastreamento. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 9, p. 3445-3458, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020259.20382020
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).
Nesse sentido, pode ser ainda mais difícil para o idoso manter-se isolado. É preciso manter em vista, portanto, a complexidade da experiência da pandemia pelos idosos e lidar com as contradições das possíveis transgressões com responsabilidade, antes de as considerar como efeitos direto da incompreensão e teimosia, como observamos nos discursos que circulam na sociedade discutidos na seção anterior.
Além da complexidade já apontada, as relações ficam ainda mais complexas à medida que a dependência física ou mental dos idosos aumenta, como muitas vezes observamos no processo de envelhecimento. Aqueles com status de dependência talvez já estejam mais habituados ao confinamento domiciliar, o que não significa, contudo, que o isolamento social não os afete, já que as redes sociais de apoio externas ao núcleo familiar e de cuidado são interrompidas, representando um possível sofrimento significativo. Por outro lado, a suspensão de cuidadores, por exemplo, em decorrência de como a crise da pandemia afeta os integrantes da família, pode gerar uma expressiva mudança de rotina. O peso desses novos arranjos, a médio e longo prazo, podem comprometer os laços familiares, a harmonia domiciliar e a saúde dos envolvidos. É fundamental, portanto, que todos esses elementos sejam considerados no quadro de avaliação dos impactos diretos e indiretos, tanto da Covid-19 quanto do isolamento decorrente na vida de idosos.
Na próxima seção, discutiremos o impacto do isolamento social nas instituições de longa permanência, contexto de maior vulnerabilidade, dando ênfase aos desafios encontrados por aqueles que ali vivem.
Idosos institucionalizados e a Covid-19
Além das questões apontadas na seção anterior sobre os efeitos do isolamento na vida de idosos que estão isolados em suas residências, a pandemia chama atenção para a grande vulnerabilidade dos que residem em Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI) (Comas-Herrera et al., 2020COMAS-HERRERA, A. et al. Mortality associated with COVID-19 outbreaks in care homes: early international evidence. London: International Long-term Care Policy Network, 2021.). Com a suspensão das visitas, por exemplo, em decorrência das medidas de isolamento, idosos foram privados do convívio (já bastante reduzido) que tinham com seus familiares e amigos que os visitavam. O contato com o mundo externo passou a ser mediado por dispositivos eletrônicos, até então inusuais para maioria e inacessível para muitos.
A necessidade do controle de acesso às ILPI é inquestionável, tanto devido à taxa de trasmissibilidade poder ser superior a 60% após a introdução do vírus nesses contextos (Arons et al., 2020ARONS, M. M. et al. Presymptomatic SARS-CoV-2 infections and transmission in a skilled nursing facility. The New England Journal of Medicine, Waltham, v. 382, n. 22, p. 2081-2090, 2020. DOI: 10.1056/NEJMoa2008457
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; Moraes et al., 2020MORAES, E. N. et al. COVID-19 nas instituições de longa permanência para idosos: estratégias de rastreamento. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 9, p. 3445-3458, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020259.20382020
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A velocidade de propagação é influenciada pelo fato de a infecção ter apresentações clínicas diversas. Enquanto idosos, hipertensos, diabéticos, cardiopatas e imunodeprimidos apresentam alta mortalidade, muitos infectados apresentam sintomas leves e moderados ou permanecem assintomáticos (Dowd et al., 2020; Wu; McGoogan, 2020).
quanto a outros fatores associados às ILPI no Brasil, como maior incidência de sujeitos institucionalizados em virtude de fragilidade física e falta de suporte social e familiar, já que muitos podem apresentar comprometimento cognitivo, serem fisicamente inativos, não terem companheiro(a) ou filhos(as) e familiares, ou terem idade igual ou superior a 80 anos (Del Duca et al., 2012DEL DUCA, G. F. et al. Indicadores da institucionalização de idosos: estudo de casos e controles. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 46, n. 1, p. 147-153, 2012. DOI: 10.1590/S0034-89102012000100018
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; Lini; Portella; Doring, 2016LINI, E. V.; PORTELLA, M. R.; DORING, M. Factors associated with the institutionalization of the elderly: a case-control study. Revista Brasileira de Geriatria e Gerontologia, Rio de Janeiro, v. 19, n. 6, p. 1004-1014, 2016. DOI: 10.1590/1981-22562016019.160043
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). Contudo, o perfil dos idosos institucionalizados também difere de acordo com o financiamento da ILPI. Naquelas sem fins lucrativos, há uma maior proporção de idosos não alfabetizados, sem companheiros, pretos e pardos, não aposentados, sem plano de saúde, sem filhos e que, de maneira geral, não recebiam visitas antes da pandemia. Nas ILPI particulares, contudo, o principal motivo associado à institucionalização é a gravidade da doença (Pinheiro et al., 2016PINHEIRO, N. C. G. et al. Desigualdade no perfil dos idosos institucionalizados na cidade de Natal, Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 11, p. 3399-3405, 2016. DOI: 10.1590/1413-812320152111.19472015
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).
Observa-se, assim, que a reunião de idosos frágeis com multimorbidades e reserva funcional reduzida em residências coletivas aumenta a probabilidade de desenvolvimento de desfechos de maior gravidade da Covid-19. Além do perfil dos residentes, outro fator fundamental para compreendermos a vulnerabilidade das ILPI é a concentração de um contingente de funcionários que circula em outros ambientes de risco, como transporte público, outras instituições de cuidado e assistência, ambulatórios e hospitais.
Nesse contexto, é importante considerar que, como residências coletivas, as ILPI ainda prescindem de profissionais de saúde para seu pleno funcionamento (Brasil, 2005BRASIL. Ministério da Saúde. Resolução - RDC no 283, de 26 de setembro de 2005. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 26 set. 2005. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3emWmwv >. Acesso em: 22 abr. 2021.
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). A ausência de profissionais capacitados para a correta avaliação de residentes e funcionários sintomáticos e identificação de sinais e sintomas de agravamento do quadro aumentam os riscos de disseminação da doença e desfechos adversos. Esse aspecto em particular é fundamental, já que o combate à pandemia nas ILIPI é ainda mais complexo pois inclui, além da adoção de medidas de isolamento, ampla testagem para diagnóstico precoce, vigilância constante das ações de saúde com os cuidadores e residentes, treinamentos e capacitações, disponibilidade de EPIs, limpeza constante e desinfecção dos ambientes e controle de acesso e circulação na ILPI (Danis et al., 2020DANIS, K. et al. High impact of COVID-19 in long-term care facilities, suggestion for monitoring in the EU/EEA, May 2020. Euro Surveillance, Stockholm, v. 25, n. 22, 2020. DOI: 10.2807/1560-7917.ES.2020.25.22.2000956
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; Yen et al., 2020YEN, M. Y. et al. Recommendations for Protecting Against and Mitigating the COVID-19 Pandemic in Long-Term Care Facilities. Journal of Microbiology, Immunology and Infection, Amsterdam, v. 53, n. 3, p. 447-453, 2020. DOI: 10.1016/j.jmii.2020.04.003
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). Essas medidas trariam segurança ainda maior com um profissional da saúde nas ILPI, o que poderia permitir a diminuição da proporção de óbitos nessas instituições já que, quando comparadas à população geral, ultrapassou 50% em países como Canadá, Noruega e França.10
10
Cabe ressaltar que a comparação entre diferentes países não é simples, tendo em vista as diferenças de políticas públicas e de saúde, tipo de testagem utilizada, critérios para definição se o óbito foi secundário à Covid-19 e as características das residências que podem ser consideradas ILPI (Comas-Herrera et al., 2020).
A Covid-19 escancarou, portanto, uma questão que se impõe há muitos anos. O fato de que, na lacuna deixada pelo Estado para o cuidado daqueles sem condições econômicas familiares, como determina o Estatuto do Idoso (Brasil, 2003BRASIL. Estatuto do Idoso. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2003.), o cuidado passou a ser ocupado, em grande medida, pela filantropia. Sem fiscalização, contudo, muitas ILPI não atendem aos critérios mínimos para seu funcionamento adequado, permanecendo irregulares, ou funcionando na clandestinidade, o que, no contexto da pandemia, aumenta ainda mais a vulnerabilidade de idosos residentes nessas instituições. O problema se agrava, ainda, quando se considera que não é raro os cuidadores prescindirem de formação na área da saúde, problema que poderia ser minimizado se todo o território nacional fosse, por exemplo, coberto e atendido por equipes da Estratégia de Saúde da Família (ESF). A ESF tem como prerrogativa realizar visitas domiciliares, buscando conhecer e prestar assistência aos moradores de seu território adscrito (Brasil, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria no 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 set. 2017.). A cobertura da ESF, contudo, atinge apenas 62,79% do território brasileiro. Nas áreas cobertas, muitas vezes essas equipes não conhecem as ILPI daquela localidade em virtude da problemática de sua regularização (Brasil, 2020bBRASIL. Ministério da Saúde. Nota Técnica no 9/2020-COSAPI/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS - Isolamento para idosos institucionalizados: orientações de higiene e cuidados. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2020b. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3tGdBiE >. Acesso em: 27 set. 2020.
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).
Atenta a essas questões, a Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (SESAB), de maneira pioneira, criou a Comissão Intersetorial de Acompanhamento das ILPI na Bahia, com o objetivo de monitorar as ações de saúde nas instituições através de teleorientação, instalada no Centro de Referência Estadual de Atenção à Saúde do Idoso (Bahia, 2020bBAHIA. Tribunal Regional Eleitoral - BA. Portaria no 133, de 9 de setembro de 2020. Diário da Justiça Eletrônico, Salvador, 23 set. 2020b.).11 11 Estruturada sob a gestão do Creasi, a comissão é formada por seis equipes de trabalho. Quatro equipes realizam o telemonitoramento de cada ILPI no intervalo de 72h. Quando identificado algum residente ou funcionário com sintomas sugestivos ou confirmação de Covid-19, a ILPI passa a ter o telemonitoramento realizado diariamente por uma equipe especializada do Creasi (geriatria, enfermagem e fisioterapia). A equipe de apoio técnico-operacional é acionada quando há necessidade de articulações intersetoriais para junto aos gestores municipais e estaduais para sanar problemas identificados nos contatos com as ILPI, como apoio assistencial, testagens, transferências, treinamentos e reuniões (Brasil, 2020b).
O boletim divulgado pela comissão no início de agosto aponta que haviam sido identificadas 193 ILPI em 79 municípios do estado, compreendendo um total de 5.087 idosos institucionalizados (Bahia, 2020aBAHIA. Boletim informativo nº 2. Salvador: Comissão Intersetorial de Monitoramento das Instituições de Longa Permanência do Estado da Bahia, 2020a.). Entre as instituições mapeadas, quatro foram fechadas no curso da pandemia, permanecendo em atividade 69, localizadas na capital, e 120 em outros municípios. Desse total, 54% estão localizadas na macrorregião Leste, com 37,8% do total no município de Salvador. Em aproximadamente quatro meses de atividades da comissão, foram confirmados 796 casos de Covid-19 entre residentes em ILPI. Desses, 532 (67%) já estavam recuperados e 94 foram a óbito. A taxa de letalidade em decorrência da Covid-19 nas instituições observadas na Bahia foi de 11,8%, considerando 94 óbitos entre os 796 casos de idosos residentes em ILPI confirmados. Entre os funcionários, 306 tiveram confirmação de Covid-19, com recuperação de 225 (83%) no período. Não houve relatos de óbitos por Covid-19 entre funcionários de ILPI no estado.
O trabalho dessa comissão, pioneiro no Brasil, é fundamental para a compreensão da situação em que se encontram os idosos institucionalizados neste momento de pandemia e para o desenvolvimento de ações concretas que garantam o funcionamento das ILPI, sua segurança e a saúde de seus residentes e daqueles que nela trabalham. O trabalho realizado pela comissão aponta para a necessidade de avançarmos no desenvolvimento de políticas públicas de cuidado do idoso, já garantidos por lei mas ainda incipientes, especialmente considerando o momento pelo qual passamos. Contribui, ainda, para o importante desenvolvimento de compreensão do que significa envelhecer nas diversas localizações e contextos brasileiros, o que, mais uma vez, é fundamental para combater discursos estereotipados que sustentam práticas discriminatórias e violentas.
Considerações finais
Este trabalho, escrito em plena pandemia provocada pela Covid-19, nasceu da demanda de articular os efeitos de discursos que circulam sobre idosos com as questões impostas pelas medidas de distanciamento social. Em virtude de uma desvalorização abrangente dessa parcela da população que é frequentemente ignorada, homogeneizada e invisibilizada, consideramos tal reflexão fundamental para compreendermos o cenário complexo de envelhecimento no Brasil de maneira crítica. Pelo caráter geral desta reflexão, há ainda muitas questões que necessitam de maior aprofundamento e investigação, principalmente considerando os efeitos a longo prazo das medidas de isolamento e dos impactos econômicos e sociais na vida dessa parcela da população.
No que diz respeito aos desafios impostos pelas medidas de distanciamento social e de isolamento, tanto no contexto residencial quanto das instituições de longa permanência, os desafios apresentados apontam para uma necessidade urgente de ações organizadas e coordenadas, de caráter integral, que valorizem a lógica de cuidado do SUS, sobretudo as ações em Atenção Primária em Saúde. Além disso, consideramos fundamental integrar tais ações com reflexões que não homogeneízem o processo de envelhecimento e que não alimentem discursos preconceituosos, o que nos mostra a necessidade de ouvi-los, de compreender como, dentro de realidades e saberes diversos, esses idosos estão lidando com a pandemia. Partimos, assim, do entendimento de que qualquer ação bem-sucedida de enfrentamento e cuidado relacionado aos idosos deve estar relacionada ao questionamento e à desconstrução de estereótipos e à construção de ações fundadas na heterogeneidade e na singularidade das experiências de envelhecimento.
Considerando que este ensaio foi escrito em agosto de 2020, já são mais de 120 mil idosos brasileiros que vieram a óbito pela Covid-19, e, mesmo sem a diminuição expressiva dos casos diários, as questões relacionadas às retomadas de um novo “normal” parecem ganhar cada vez mais espaço sem a devida reflexão crítica e humanitária sobre a saúde física e mental dos idosos. Além das ações institucionais, é necessário entender que este momento exige uma outra responsabilidade, de caráter intergeracional, que se fundamenta na compreensão de nos reconhecermos e nos implicarmos nas demais gerações de que somos parte, seja em memória ou em projeção (Mazuchelli; Oliveira, 2020MAZUCHELLI, L. P., OLIVEIRA, M. V. B. Morra quem morrer: desprezo aos idosos em meio à pandemia da Covid-19. Medium, [s.l], 4 ago. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3sA3wCs >. Acesso em: 25 ago. 2020.
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).
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» https://doi.org/10.1016/j.jmii.2020.04.003
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1
A discussão aqui apresentada é resultado das reflexões apresentadas na mesa “Envelhecimento e saúde em tempos de pandemia” do Congresso Virtual UFBA 2020.
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2
Os números de casos variam especialmente pela incerteza sobre o número total de infectados, o que se dá pela falta de disponibilidade de testes de confirmação da infecção, o que produz discrepâncias importantes. Ver análise disponível em: <https://bit.ly/3ekvJbk>.
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3
Pensemos, por exemplo, no fato de o vírus estar sendo associado a casos de AVC isquêmicos em pacientes jovens (Beyrouti et al., 2020BEYROUTI, R. et al. Characteristics of ischaemic stroke associated with COVID-19. Journal of Neurology, Neurosurgery, and Psychiatry, London, v. 91, n. 8, p. 889-891, 2020. DOI: 10.1136/jnnp-2020-323586
https://doi.org/10.1136/jnnp-2020-323586... ), enquanto imaginávamos, no início da pandemia, que seu principal foco eram as vias respiratórias. Há relatos, ainda, de problemas no coração associados à infecção e muitos pesquisadores ainda investigam possíveis efeitos duradouros em decorrência da infecção em crianças e jovens. -
4
Memes podem ser compreendidos como “unidades de transmissão cultural, ou de imitação” (Dawkins, 1976DAWKINS, R. O gene egoísta. Oxford University Press Inc.: New York, 1976.). No contexto das mídias sociais, memes referem-se às mensagens compartilhadas que podem ser acompanhadas por imagem ou vídeo e que carregam um tom irônico e jocoso (Torres, 2016TORRES, T. O fenômeno dos memes. Ciência e Cultura, Campinas, v. 68, n. 3, p. 60-61, 2016. DOI: 10.21800/2317-66602016000300018
https://doi.org/10.21800/2317-6660201600... ). -
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Embora não seja escopo deste artigo debater sobre o conceito de discurso, podemos compreendê-lo, de maneira geral, como o enunciado ou texto (oral e escrito) produzido em uma dada situação e determinado por condições históricas e sociais.
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Um exemplo diz respeito ao retorno das aulas presenciais que desconsidera, de maneira geral, o efeito dominó da reabertura das escolas, já que a porcentagem de famílias com crianças em idade escolar que convivem com idosos é alta. Segundo dados do IBGE (2016IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro: 2016.) entre os que vivem com idosos, 13% têm até 17 anos, 41% são adultos e 46% também são idosos. Embora não seja escopo deste artigo, um outro exemplo que deverá ser acompanhado para garantir a saúde e o respeito aos idosos se refere aos planos de vacinação da Covid-19.
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7
Uma reportagem sobre o caso de Cleonice pode ser vista aqui: <https://glo.bo/3dwvISt>. Acesso em julho de 2020.
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É importante lembrar que, mesmo antes da pandemia, muitos idosos, especialmente os mais pobres, além de perderem seus empregos pelo avanço da idade, acabam ocupando os postos mais precários por questões como a baixa escolaridade.
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A velocidade de propagação é influenciada pelo fato de a infecção ter apresentações clínicas diversas. Enquanto idosos, hipertensos, diabéticos, cardiopatas e imunodeprimidos apresentam alta mortalidade, muitos infectados apresentam sintomas leves e moderados ou permanecem assintomáticos (Dowd et al., 2020DOWD, J. B. et al. Demographic science aids in understanding the spread and fatality rates of COVID-19. PNAS, Washington, DC, v. 117, n. 18, p. 9696-9698, 2020. DOI: 10.1073/pnas.2004911117
https://doi.org/10.1073/pnas.2004911117... ; Wu; McGoogan, 2020WU, Z.; MCGOOGAN, J. M. Asymptomatic and Pre-Symptomatic COVID-19 in China. Infectious Diseases of Poverty, Berlin, v. 9, n. 1, p. 72, 2020. DOI: 10.1186/s40249-020-00679-2
https://doi.org/10.1186/s40249-020-00679... ). -
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Cabe ressaltar que a comparação entre diferentes países não é simples, tendo em vista as diferenças de políticas públicas e de saúde, tipo de testagem utilizada, critérios para definição se o óbito foi secundário à Covid-19 e as características das residências que podem ser consideradas ILPI (Comas-Herrera et al., 2020COMAS-HERRERA, A. et al. Mortality associated with COVID-19 outbreaks in care homes: early international evidence. London: International Long-term Care Policy Network, 2021.).
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Estruturada sob a gestão do Creasi, a comissão é formada por seis equipes de trabalho. Quatro equipes realizam o telemonitoramento de cada ILPI no intervalo de 72h. Quando identificado algum residente ou funcionário com sintomas sugestivos ou confirmação de Covid-19, a ILPI passa a ter o telemonitoramento realizado diariamente por uma equipe especializada do Creasi (geriatria, enfermagem e fisioterapia). A equipe de apoio técnico-operacional é acionada quando há necessidade de articulações intersetoriais para junto aos gestores municipais e estaduais para sanar problemas identificados nos contatos com as ILPI, como apoio assistencial, testagens, transferências, treinamentos e reuniões (Brasil, 2020bBRASIL. Ministério da Saúde. Nota Técnica no 9/2020-COSAPI/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS - Isolamento para idosos institucionalizados: orientações de higiene e cuidados. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2020b. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3tGdBiE >. Acesso em: 27 set. 2020.
https://bit.ly/3tGdBiE... ).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
23 Ago 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
-
Recebido
31 Dez 2020 -
Revisado
31 Dez 2020 -
Aceito
16 Mar 2021