Resumo
Este artigo teve como objetivo analisar as relações entre o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) que emergem de ações dialógicas com crianças e adolescentes em periferias urbanas vulnerabilizadas de São Vicente, São Paulo. Utilizando referencial metodológico das pesquisas participativas, a observação e registros de assembleias comunitárias e da parceria entre universidade pública e movimento social apontam para espaços de acolhimento às crianças e adolescentes que viabilizam leituras diagnósticas coletivas sobre a alimentação. Esses processos dialógicos permitem problematizar as dimensões do DHAA a partir da cadeia de produção, comercialização e consumo de alimentos, além da instabilidade a que essas crianças e adolescentes estão submetidos, em uma complexa rede de determinantes que produzem má-nutrição nos territórios onde vivem. Os resultados apontam que estas dimensões dialogam com todos os ODS, na medida em que demandam a sustentabilidade cultural, econômica, social e ambiental da alimentação. A parceria e a integração entre universidade e sociedade fortalece e potencializa os espaços de controle social e formação dos atores para a luta pelo DHAA, e pode também produzir efeitos de transformação nas desigualdades nos territórios e reconhecer a criança como sujeito de direitos com profundo rigor ético na construção de escutas inclusivas e de práticas qualificadas.
Palavras-chaves:
Segurança Alimentar e Nutricional; Desenvolvimento Sustentável; Pesquisa Participativa Baseada na Comunidade; Criança; Áreas de Pobreza
Abstract
This study aimed to analyze the relation between the Human Right to Adequate Food (HRAF) and Sustainable Development Goals (SDG) resulting from a dialogic experience with children and adolescents in the periphery of São Vicente, São Paulo. Using the methodological framework of participatory research, community assemblies observation, and the partnership between the university and social movements point to a caring place for children/adolescents that enable collective diagnostic readings on food. Dialogical processes enable us to problematize HRAF dimensions based on the chain of food production, trading and consumption, and the instability to which those children/adolescents are subjected in a complex network of determinants that produce hunger and malnutrition in the territories in which they live. Results show that these dimensions dialogue with all the SDGs, as they demand cultural, economic, social, and environmental sustainability of food. The partnership and integration between university and society strengthens and enhances the spaces of social control and training of actors to advocate for the HRAF. It can also change inequalities in the territories and acknowledge children as subjects of rights with deep ethical commitment in the construction of inclusive listening and qualified practices.
Keywords:
Food Security; Sustainable Development; Community-Based Participatory Research; Child; Poverty Areas
Introdução
A pauta da alimentação em territórios urbanos periféricos vulnerabilizados ganha visibilidade e complexidade com as recomendações de isolamento social a partir da emergência internacional da pandemia da covid-19, declarada pela Organização Mundial da Saúde em janeiro de 2020 (WHO, 2020WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Director-General’s statement on IHR Emergency Committee on Novel Coronavirus (2019-nCoV), Genebra, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.who.int/dg/speeches/detail/who-director-general-s-statement-onihr-emergency-committee-on-novel-coronavirus-(2019-ncov) >. Acesso em: 03 maio 2020.
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).
Ainda que o Brasil, em 2014, tenha saído do Mapa da Fome, os avanços quanto à queda das prevalências de insegurança alimentar moderada e grave ocorreram de modo desigual, sendo inferiores nos estratos mais vulneráveis, com a fome ainda presente nas famílias sem emprego estável, residentes nas periferias dos centros urbanos (Graziano, 2018GRAZIANO, J. O problema da fome não está na produção de alimentos - entrevista. Revista Radis, Rio de Janeiro, v. 186, p. 23-24, 2018., Frutuoso; Viana, 2021FRUTUOSO, M. F. P.; VIANA, C. V. A. Quem inventou a fome são os que comem: da invisibilidade à enunciação - uma discussão necessária em tempos de pandemia. Interface, Botucatu, v. 25, e200256, 2021. DOI: 10.1590/interface.200256
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). A crise financeira e política mais recente do país já vinha contribuindo para fragilidades na garantia do acesso à alimentação em populações mais vulneráveis. Dados nacionais indicavam que os piores estratos de emprego, apoio social e escolaridade apresentavam probabilidade duas vezes maior de enfrentar situações de insegurança alimentar (Sousa et al., 2019SOUSA, L. R. M. et al. Food security status in times of financial and political crisis in Brazil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, n. 35, v. 7, e00084118, 2019. DOI: 10.1590/0102-311X00084118
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).
Em 2020, a fome estrutural, crônica e muitas vezes invisível, que se agrava a partir da manutenção da desigualdade social e do contexto de crise, passa a compor os cenários alimentares dos territórios urbanos periféricos juntamente com a fome conjuntural, aguda e visível, produzida repentinamente pela pandemia e pelo isolamento social que impossibilita a sustentação da fonte de renda, predominantemente fruto do trabalho informal e precarizado, explicitando as enormes desigualdades sociais brasileiras. A organização da sociedade civil tem contribuído para o enfrentamento emergencial da fome durante a pandemia, com iniciativas de apoio e articulação comunitária, gestão coletiva e compartilhamento de comida, evidenciando a solidariedade como ferramenta histórica das relações sociais em territórios periféricos (Silva Filho; Gomes Júnior, 2020SILVA FILHO, O. J.; GOMES JÚNIOR, N. N. The future at the kitchen table: COVID-19 and the food supply. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 5, e00095220, 2020. DOI: 10.1590/0102-311X00095220
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; Frutuoso; Viana, 2021FRUTUOSO, M. F. P.; VIANA, C. V. A. Quem inventou a fome são os que comem: da invisibilidade à enunciação - uma discussão necessária em tempos de pandemia. Interface, Botucatu, v. 25, e200256, 2021. DOI: 10.1590/interface.200256
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). Este cenário nos convida a fortalecer a produção de conhecimento e a pensar a pauta da alimentação junto com aqueles que enfrentam situações de fome e insegurança alimentar.
Pensar na agenda da alimentação implica em entender que dietas nutricionalmente inadequadas, frutos de sistemas alimentares contemporâneos, resultam em diversas formas de má nutrição, que compõe uma sindemia global caracterizada pelas pandemias de obesidade, desnutrição e mudanças climáticas - com seus efeitos sobre a saúde e sistemas naturais -ganhando complexidade e visibilidade, internacional e local, após o contexto da pandemia (Swinburn et al, 2019SWINBURN, B. et al. The global syndemic of obesity, undernutrition, and climate change: The Lancet Commission report. The Lancet, Nova York, v. 393, n. 10173, p. 791-846, 2019. DOI: 10.1016/S0140-6736(18)32822-8
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; Ventura et al., 2020VENTURA, D. F. L.; RIBEIRO, H.; GIULIO, G. M.; JAIME, P. C.; NUNES, J.; BÓGUS, C. M. et al. Challenges of the COVID-19 pandemic: for a Brazilian research agenda in global health and sustainability. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 4, e00040620, 2020. DOI: 10.1590/0102-311X00040620.
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). Refletir sobre o manejo deste cenário exige reconhecer o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), com origem no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais: “direito humano inerente a todas as pessoas de ter acesso regular, permanente e irrestrito, quer diretamente ou por meio de aquisições financeiras, a alimentos seguros e saudáveis, em quantidade e qualidade adequadas e suficientes, correspondentes às tradições culturais do seu povo e que garantam uma vida livre do medo, digna e plena nas dimensões física e mental, individual e coletiva” (Leão, 2013LEÃO M. (Org.). O Direito Humano à Alimentação Adequada e o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Brasília, DF: ABRANDH - AÇÃO BRASILEIRA PELA NUTRIÇÃO E DIREITOS HUMANOS, 2013., p. 27).
Deve-se considerar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), como marco mundial, estabeleceu princípios comuns de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana em um nível de vida suficiente para assegurar a saúde e o bem-estar sem discriminação (UN, 1948UN - United Nations. Universal Declaration of Human Rights, 1948. Disponível em: Disponível em: https://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/217(III)⟪=E . Acesso em: 07 abr. 2022.
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).
Com a inserção deste normativo principiológico, a Constituição Federal do Brasil de 1988 formalizou, dentre os direitos sociais em 2010, a garantia fundamental do direito à alimentação por meio da Emenda Constitucional nº 64/2010, ratificada pela Emenda nº 90/2015 (Brasil, 2015BRASIL. Emenda Constitucional nº 90, de 15 de setembro de 2015. Altera o art. 6º da Constituição Federal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 set. 2015.). Mais do que elementar e óbvio, o formalismo legal ratifica a DUDH para garantir o DHAA.
No Brasil, a institucionalização normativa do DHAA se concretizou com a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), que permitiu um ordenamento jurídico nacional com instrumentos para a proposição de políticas públicas, ou seja, “a LOSAN como primeiro marco jurídico para o DHAA implicou na instituição formal desse direito” (Guerra; Cervato-Mancuso; Bezerra , 2019GUERRA, L. D. S., CERVATO-MANCUSO, A. M., BEZERRA, A. C. D. Alimentação: um direito humano em disputa - focos temáticos para compreensão e atuação em segurança alimentar e nutricional. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 24, n. 9, p. 3369-3394, 2019. DOI: 10.1590/1413-81232018249.20302017
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, p. 3370).
A Emenda Constitucional, portanto, ratificou a alimentação entre os direitos sociais que amparados na Lei Maior torna-se instrumento essencial para imposição das responsabilidades ao Estado quanto à efetivação da alimentação adequada, de forma a garantir a cada pessoa o acesso físico e econômico à alimentação adequada.
O DHAA pressupõe dimensões indivisíveis e fundamentais: o direito de estar livre da fome e da má-nutrição e o direito de ter acesso aos meios para obtenção de uma alimentação adequada. Garantir esse direito significa também assegurar a Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), ou seja, alimentos adequados em quantidade e qualidade, por meio de práticas alimentares promotoras da saúde, sustentáveis ambiental, cultural, social e economicamente (Brasil, 2006BRASIL. Lei nº 11.346 de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - SISAN com vistas a assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 18 set. 2006.).
A SAN é fruto de sistemas alimentares eficientes, sustentáveis e sensíveis à nutrição, o que significa pensar nas cadeias de produção, na comercialização de alimentos, nos ambientes e nas práticas alimentares (Fao, 2019FAO - FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS. FAO framework for the urban food agenda. Rome: FAO, 2019.; HLPE, 2017HLPE. Nutrition and food systems. A report by the high-level panel of experts on food security and nutrition of the committee on world food security. Rome: HLPE; 2017.). Assumindo a relação direta entre os sistemas e a insegurança alimentar, essa pauta se relaciona a todos os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), na medida em que as dietas consumidas são fruto de uma rede complexa e multifatorial que influencia diretamente os quatro prismas da SAN: a disponibilidade dos alimentos, da produção à comercialização; o acesso ao alimento, incluindo as escolhas alimentares; a utilização biológica do alimento e a estabilidade em manter uma dieta adequada quanti e qualitativamente (Leão, 2013LEÃO M. (Org.). O Direito Humano à Alimentação Adequada e o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Brasília, DF: ABRANDH - AÇÃO BRASILEIRA PELA NUTRIÇÃO E DIREITOS HUMANOS, 2013.; Ipes-Food, 2019IPES-FOOD - INTERNATIONAL PANEL OF EXPERTS ON SUSTANABLE FOOD SYSTEMS. Towards a common food policy for the European Union. The policy reform and realignment that is required to build sustainable food systems in Europe. Europe: IPES-FOOD, 2019.).
Tomando a questão da insegurança alimentar nos espaços urbanos, situações de pobreza e desigualdade social interferem diretamente na alimentação nos domicílios, que pode resultar em diferentes gradientes de insegurança alimentar - incluindo o mais grave, a fome e estratégias para obtenção/aquisição de alimentos. Nesse contexto, a produção de saúde nas cidades, especialmente nos territórios periféricos, requer o agenciamento da comunidade para o pensamento crítico e o enfrentamento de situações de violação de direitos, incluindo o DHAA, colocando em conexão a promoção da saúde e os ODS.
A experiência brasileira na construção de políticas públicas de alimentação e nutrição, tomando como norteador o DHAA e a SAN, aponta para articulações intersetoriais e mecanismos de governança a partir de instâncias de diálogo com a intensa participação da sociedade civil, à exemplo do Conselho de Segurança Alimentar (CONSEA), extinto em 2019 (Silva et al., 2018SILVA, A. C. F. et al. History and challenges of Brazilian social movements for the achievement of the right to adequate food. Global Public Health, Abingdon, v. 14, p. 875-883, 2018. DOI: 10.1080/17441692.2018.1439516
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; Frutuoso; Viana, 2021FRUTUOSO, M. F. P.; VIANA, C. V. A. Quem inventou a fome são os que comem: da invisibilidade à enunciação - uma discussão necessária em tempos de pandemia. Interface, Botucatu, v. 25, e200256, 2021. DOI: 10.1590/interface.200256
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).
Promover a saúde, a SAN e o DHAA implica em, de uma ampla perspectiva, atuar junto às condições de vida do indivíduo, família e comunidade, com ações que buscam fomentar escolhas saudáveis nos territórios. Significa também ampliar a autonomia e o poder dos atores e das instâncias locais de gestão; conhecer profundamente as dinâmicas territoriais; estabelecer pactos e parcerias locais; fomentar a participação e as redes de ação intersetorial e interdisciplinar, incluindo novos atores na gestão; desenvolver métodos e técnicas de trabalho, experimentá-los, revisá-los e modificá-los (Mendes; Fernandez; Sacardo, 2016MENDES, R.; FERNANDEZ, J. C. A.; SACARDO, D. Promoção da saúde e participação: abordagens e indagações. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 40, n. 108, p. 190-203, 2016. DOI: 10.1590/0103-1104-20161080016
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).
Métodos
Trata-se de uma investigação qualitativa baseada no modelo conceitual CBPR (Community Based Participatory Research), desenvolvido pela University of New Mexico - EUA, que norteia a identificação e análise de relações e práticas cooperativas entre parceiros em diversas áreas, a partir de quatro domínios: contexto; processos de parceria; intervenção e pesquisa; e resultados.
Na prática, o modelo representa as principais características de uma parceria de qualquer projeto, seu contexto social e a gama potencial dos resultados mais importantes, além de objetivos a médio e longo prazo, como empoderamento, democracia do conhecimento, equidade em saúde e justiça social (Wallerstein; Duran, 2010WALLERSTEIN, N.; DURAN, D. Community-Based Participatory Research contributions to intervention research: the intersection of science and practice to improve health equity. American Journal in Public Health, Washington, DC, suppl 1, p. S40-S46, 2010. DOI: 10.2105/AJPH.2009.184036
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; Kastelic et al., 2018KASTELIC, S. et al. Socio-ecologic framework for CBPR: development and testing of a model. In: WALLERSTEIN, N. et al. (ed.) Community-Based Participatory Research for health: advancing social and health equity. 3. ed. San Francisco: Jossey-Bass, 2018. p. 77-94.).
Considerando os princípios da CBPR, no que diz respeito ao diálogo entre os sujeitos envolvidos, implicados no processo de pesquisar e no enfrentamento das desigualdades sociais, na primeira etapa foi criado um Grupo Gestor (GG), com o intuito de aproximar pessoas para a tomada de decisão e condução de todas as etapas da pesquisa, bem como para o aprofundamento teórico dos temas da investigação. Uma das primeiras atividades do GG foi identificar as parcerias do Instituto Camará Calunga, organização da sociedade civil que desenvolve ações com crianças e adolescentes nas periferias vulnerabilizadas de São Vicente, em São Paulo, desde 1997.
A cidade de São Vicente, pelo olhar enviesado dos colonizadores, é conhecida como a primeira cidade do Brasil, entretanto, seu suposto pioneirismo histórico não garante um desenvolvimento justo e sustentável da garantia dos direitos humanos básicos no âmbito da saúde, educação ou habitação/moradia. Indicadores do Estado de São Paulo classificam o município como vulnerável, com baixa longevidade e escolaridade (Seade, 2019SEADE - FUNDAÇÃO SISTEMA ESTADUAL DE ANÁLISE DE DADOS. Índice Paulista de Responsabilidade Social - IPRS. Versão 2019. Disponível em: <Disponível em: https://iprs.seade.gov.br/downloads/pdf/iprs_release_site.pdf >. Acesso em: 10 abr. 2022.
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). A mortalidade infantil em São Vicente foi, em 2019, de 14,7; valor próximo à média da região da Baixada Santista (15,0), que apresenta as maiores taxas do estado (Seade, 2019SEADE - FUNDAÇÃO SISTEMA ESTADUAL DE ANÁLISE DE DADOS. Mortalidade infantil por região, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://produtos2.seade.gov.br/produtos2/mortalidade_infantil/mortalidade-infantil-2019/?periodo=2019&short=16 >. Acesso em: 20 ago. 2022.
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).
Neste cenário, o Camará investe fortemente na mobilização comunitária em articulação com as políticas públicas. Com a missão institucional de promover a defesa dos direitos humanos, nos diversos lugares e territórios em que as crianças e adolescentes vivem, intenciona - e tem garantido - a produção de experiências referenciais de cuidado, formação crítica, pesquisa e intervenção que incidam na formulação de políticas públicas de infância e juventude.
O Camará desenvolve uma metodologia de gestão por meio de assembleias comunitárias, onde crianças e adolescentes, nos espaços escolares ou domésticos de seus territórios, sentam-se em roda e vivem experiências críticas e coletivas de formação. Essas assembleias os mobilizam semanalmente para produzir vivências que acabam por instituir suas primeiras práxis democráticas: processos reflexivos de suas condições diárias, problemas sociais e condições dos territórios.
Em roda, as crianças, adolescentes, irmãos menores, pais e vizinhos elegem as pautas importantes: avaliação de um encontro/atividade, organização de uma expedição cultural, a enchente, a escola, a violência, saúde, vacinas etc. Todos escutam. A pauta é apresentada por quem a propõe e a palavra é aberta para contribuição de todos.
Há um compromisso radical de escuta e espaço para que todos, a partir de suas perspectivas, contribuam e, principalmente, escutem análises de outras perspectivas, a fim de produzir pensamento crítico. Se a pauta exige deliberação ou tomada de decisão, discute-se o tema até que uma posição comum seja acordada, evita-se o voto, entendendo-o como uma saída individual, por vezes cooptada por uma lógica neoliberal. O comum aqui não é entendido como um consenso, mas um lugar que sustenta contradições e diferenças, além de abarcar as complexidades de adultos e crianças em comum-idade.
O GG identificou, entre as parcerias do Camará, o curso de Nutrição da UNIFESP-Baixada Santista (BS) que, desde 2016, propõe ações com crianças e adolescentes sobre a temática da fome e do DHAA. Estas ações foram iniciadas a partir da articulação do estágio curricular em Nutrição Social; do Projeto de extensão “Saberes e sabores: a Nutrição em diálogos”, que propõe vivências interdisciplinares englobando os possíveis - e potentes - diálogos sobre alimentação; e do Projeto Terra Sonâmbula, o qual discutiu o direito à terra em sua perspectiva relacionada à moradia e à alimentação, inserindo a alimentação como eixo temático transversal nos espaços educativos do Camará, esses dedicados a pensar os processos de alfabetização integral. Esta articulação investiu em estratégias participativas a partir de construções coletivas desenvolvidas nos territórios onde vivem as crianças, adolescentes e famílias.
Este artigo focaliza nos resultados de pesquisa, a partir dos dois primeiros domínios do Modelo CBPR: contexto e processos de parcerias que apontam para uma gama de questões centrais à investigação, além de ter como objetivo analisar as relações entre o DHAA e os ODS, que emergem de ações dialógicas com crianças e adolescentes em periferias urbanas vulnerabilizadas de São Vicente, São Paulo.
Resultados e discussão
Parte-se da contextualização do território, considerando a “periferia” de Kowarick e Bonduki (1994KOWARICK, L.; BONDUKI, N. Espaço urbano e espaço político: do populismo à redemocratização. In: KOWARICK, L. (org.) As lutas sociais e a cidade: São Paulo, passado e presente. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. p. 147-177.), enfocada não só como lugares de ausências ou carências, mas aglomerados dotados de sociabilidades intensas: ajuda entre vizinhos, conversas, contatos, solidariedades e conflitos. São interações típicas de relações primárias tecidas na adversidade, no confronto entre internos e externos, ou na busca de direitos sociais e políticos. Destacam-se as lutas experimentadas no dia a dia dos contrastes, evidenciando o que o planejamento urbano baseado na construção de periferias não conseguiu eliminar, não obstante a tentativa de afastamento dos pobres para a cena mais oculta da cidade (Barreira, 2010BARREIRA, I. A. F. Cidade, atores e processos sociais: o legado sociológico de Lúcio Kowarick. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 25, n. 72, p. 149-159, 2010. DOI: 10.1590/S0102-69092010000100011
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).
O contexto: as assembleias comunitárias como espaço de leituras diagnósticas coletivas sobre alimentação e relação com os ODS
As experiências e experimentações de fazeres coletivos, na parceria em análise, partem da histórica construção das ações do Camará, tendo como prerrogativa os papéis decisivos da sociedade civil sob as políticas que interferem e, muitas vezes, determinam, as realidades sociais.
As assembleias comunitárias criam “espaços coletivos democráticos, onde de fato se tomem decisões, se negociem conflitos e se projetem reformas estruturais e funcionais de caráter democrático. Isso não seria uma nova forma de se fazer política?” (Campos, 2015CAMPOS, G. W. S. Um método para análise e cogestão de coletivos. São Paulo: Hucitec, 2015., p. 48). Assim, reconhecemos nas assembleias o exercício da capacidade de análise crítica e de intervenção, desmistificando o lugar da criança e do adolescente como aqueles que não podem ou não alcançam a maturidade crítica de leitura de territórios, ou que sejam incapazes de produzir interferências em suas realidades.
As assembleias vão se tornando um importante espaço de formação para todos os atores envolvidos, pois convoca a “abertura, da parte dos adultos, para escutar esses novos interlocutores, e, sobretudo, na coragem de ser desafiado na sua posição inabalável frente a ela, a de ser o único que tem o poder de definir as situações” (Castro, 2013CASTRO, L. R. O futuro da infância e outros escritos. Rio de Janeiro: 7letras, 2013., p. 106). Ao exercitar a dinâmica da roda - e da escuta - com as crianças e os adolescentes para sua formação, simultaneamente vai-se construindo a democracia. Estamos afirmando a necessidade imediata de, nessas lutas, aliarmos a desconstrução do adultocentrismo e o fortalecimento de metodologias de participação que deem conta da linguagem e da temporalidade das crianças em suas leituras de mundo (Martins; Viana, 2020MARTINS, E. C.; VIANA, C. V. A. Representação da infância e representatividade infante: posições ético-políticas. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 32, n. 1, p. 151-172, 2020. DOI: 10.33208/PC1980-5438v0032n01A07
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).
A observação participante das assembleias nos diversos territórios que o Camará atua foi servindo de referência para ampliar as discussões produzidas ali, levando à demanda da temática da alimentação, pautada pelas crianças e pelos adolescentes que participam desses espaços. A vivência real da fome e da insegurança alimentar foram os disparadores iniciais para as parcerias que foram sendo construídas com a Universidade e as ações compartilhadas entre os projetos citados, sempre pactuadas nas assembleias com docentes, estudantes, educadores, crianças e adolescentes.
Tomando o tema da alimentação, as assembleias viabilizam leituras diagnósticas coletivas sobre insegurança alimentar, fome e DHAA, que se relacionam a todos os ODS e se anunciam, explicitamente, no ODS 2: “fome zero e agricultura sustentável”, que abarca a dimensão do DHAA de estar livre da fome. Para o grupo em análise, interessa acabar com a fome e garantir o acesso de todas as pessoas, em particular os pobres e pessoas em situações vulneráveis - incluindo crianças -, a alimentos seguros, nutritivos e suficientes durante todo o ano.
É neste contexto - da complexidade para garantir a alimentação nos territórios onde estas crianças vivem - que a parceria em análise apostou, sem esgotá-la, na discussão sobre os determinantes da SAN e os ODS, como um importante norteador e balizador da luta pelo DHAA.
Neste cenário, a “localização” dos ODS pode possibilitar o apoio às ações de baixo para cima o que “… não implica simplesmente uma tradução direta das políticas globais dentro dos contextos locais. Implica, sim, fomentar um processo baseado na capacitação e articulação dos atores locais, dirigido a alcançar o desenvolvimento sustentável, por meio de ações relevantes para a população local, de acordo com as suas necessidades e aspirações” (CNM, 2017CNM - CONFEDERAÇÃO NACIONAL DE MUNICÍPIOS. Guia para Integração dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável nos Municípios Brasileiros - Gestão 2017-2020, Brasília, DF: CNM, 2017., p. 20).
As assembleias configuraram-se, então, como espaço para reconhecer a disponibilidade de alimentos que as crianças têm em seus territórios, a partir da construção coletiva de atividades de mapeamento dos pontos de venda; discussões sobre o abastecimento de gêneros alimentícios e as forças que o influenciam (como as dinâmicas do narcotráfico na região); e as limitações que essas forças trazem no repertório alimentar das famílias.
As crianças residem em territórios insulares e continentais, distantes do centro comercial da cidade, o que interfere diretamente na presença de estabelecimentos que comercializam alimentos que, no geral, são de pequeno porte, com pouca variedade e preços abusivos. Na descrição destes comércios, as crianças destacam os que vendem sanduíches, açaí e doces e citam as comidas comercializadas na rua.
Quais possibilidades e experiências coletivas podem ser pensadas a partir desses referenciais trazidos pelas crianças? Quais outras linhas de força podem compor essa rede? Desta forma, as crianças iniciam reflexões sobre os ambientes alimentares como mediadores entre o sistema e as práticas alimentares e dependentes do contexto geográfico, econômico, político e sociocultural de onde vivem.
Coloca-se em pauta o ODS 9: “indústria, inovação e infraestrutura”, que defende a promoção de industrialização inclusiva e sustentável. A industrialização, da perspectiva do DHAA, traz o contexto global de produção de alimentos em grande escala, por empresas transnacionais, que contribuem para o aumento do consumo de alimentos ultraprocessados, de baixa qualidade nutricional, responsável por padrões alimentares que produzem a má-nutrição e muito presentes nos territórios estudados.
No contexto dessas crianças, o ODS 16: “paz, justiça e instituições eficazes” emerge no componente das linhas de forças territoriais que controlam, inclusive, o abastecimento de alimentos, aproximando este ODS ao DHAA.
Os ambientes alimentares para garantia do DHAA trazem outras características do território para a discussão: locais com solo contaminado por dejetos químicos e ausência de saneamento básico em moradias precárias, como favelas, palafitas e áreas de ocupação. Locais com constantes enchentes e inundações, que impedem a circulação de pessoas para o trabalho, estudo e aquisição de comida. Destaca-se, também, a vida no mangue que, para as crianças e adolescentes, é lugar de lazer que fornece o caranguejo, consumido e comercializado pelas famílias. Revisita-se as discussões de Josué de Castro, da vida nos mangues recifenses e da produção da fome.
Este contexto dialoga com um conjunto de ODS: o 11, “cidades e comunidades sustentáveis”; o 13, “ação contra mudança global do clima”; o 14, “vida na água”; e o 15, “vida terrestre”. Isso significa, na realidade do coletivo de crianças residentes nestas regiões periféricas litorâneas, discutir o acesso à habitação segura, aos serviços básicos e à urbanização inclusiva e sustentável, além de assumir que a comida consumida está diretamente relacionada às mudanças climáticas, à preservação de ecossistemas marinhos, terrestres e de água doce.
Esses ODS enfatizam a promoção de mecanismos para a discussão dos temas com foco em mulheres, jovens, comunidades locais e marginalizadas. Soma-se o ODS 12: “consumo e produção responsáveis”, que anuncia a redução do desperdício de alimentos, do manejo ambientalmente saudável dos produtos químicos e todos os resíduos e da garantia de que as pessoas discutam sobre o desenvolvimento sustentável e estilos de vida em harmonia com a natureza.
Ao pensarmos na dimensão do direito de ter acesso aos meios para obtenção de uma alimentação adequada nos territórios onde as crianças residem, necessariamente precisamos construir discussões que perpassam a renda e o trabalho, temática que atravessa muito fortemente a vida de crianças e adolescentes em vulnerabilidade urbana. A inserção precoce no trabalho informal vai se tornando uma necessidade cada vez mais urgente. É a partir deste cenário que vamos construindo, com as próprias crianças, a leitura da renda e da estabilidade financeira das famílias e a construção de saídas, como uma rede social de apoio e, a depender da gravidade dos cenários, a construção coletiva desta rede. Tomamos aqui o ODS 1: “erradicação da pobreza”, que coloca na pauta o direito aos recursos econômicos e à proteção social e o ODS 8: “trabalho decente e crescimento econômico”, que promove apoio a atividades produtivas, geração de emprego decente, empreendedorismo, criatividade e inovação; e a erradicação do trabalho infantil. Ressaltamos o componente da proteção dos direitos trabalhistas, que se destaca no cenário brasileiro nos últimos anos, em processo de retrocesso de direitos.
No contexto onde estas crianças vivem, a garantia à participação em programas de transferência condicionada de renda é tema para discussão. Como pode ser o apoio para esta garantia? Os programas contribuem, em que medida, para diminuir a fome? Qual a contribuição dos recursos para a compra de alimentos? O trabalho infantil determina um cenário de insegurança alimentar ou sacia a fome? Essas análises vão compor a discussão com as crianças sobre a construção de políticas públicas efetivas para a garantia do DHAA.
As caminhadas e mapeamento dos territórios, bem como os relatos cotidianos das assembleias vão servindo de substrato para a leitura de como os alimentos, se disponíveis, podem ser utilizados em cenários supostamente insalubres de moradia, do não acesso à água potável, saneamento básico, gás de cozinha. Associam-se ao ODS 6: “água potável e saneamento”, que versa sobre o acesso universal e equitativo à água potável, saneamento e higiene; e o ODS 7: “energia limpa e acessível”. Analisar as dimensões do DHAA inclui o direito à água e os preços abusivos de gás de cozinha e energia elétrica, que impactam diretamente na manipulação e armazenamento dos alimentos (em geladeira, por exemplo) e na escolha considerando a necessidade de cocção.
Problematizam-se quais medidas as crianças podem tomar quanto às habilidades culinárias e práticas de higiene e conservação dos alimentos a que têm acesso. Práticas que vão reconhecendo as crianças como sujeitos ativos e críticos em suas realidades: o cenário onde crianças e adolescentes cozinham e são responsáveis pela alimentação dos irmãos mais novos; onde se constroem redes de apoio de vizinhos na ausência dos pais, em virtude de suas longas jornadas de trabalho (muitas vezes em subempregos ou empregos informais) e da absoluta fragilidade de vagas em creche.
Este cenário retoma o ODS 8 e nos remete à discussão do ODS 4: “educação de qualidade” e ODS 5: “igualdade de gênero”. As escolas, o ensino e a alimentação escolar são pautas constantes das assembleias e demandam discussões sobre a garantia de cuidado e educação/ensino desde a primeira infância. A maioria dos participantes das assembleias são meninas/mulheres e são frequentes as discussões sobre discriminação e violência nas esferas públicas e privadas, bem como o trabalho doméstico e de cuidado, que inclui a responsabilidade por todas as etapas da alimentação da família.
O cuidado em saúde é pauta dos encontros, com foco nos problemas frequentes, como a dificuldade de acesso aos serviços de saúde, as doenças infectocontagiosas e transmitidas pela água, o abuso de substâncias e a saúde sexual e reprodutiva, incluindo o planejamento familiar. Estes temas dialogam com o ODS 3: “saúde e bem-estar”.
Nas assembleias, perpassa a todo momento a discussão do ODS 10: “redução das desigualdades”, no diálogo da inclusão social, econômica e política de todos, independentemente da idade, gênero, raça, religião, condição econômica.
Processualmente, constroem-se espaços de acolhimento e de pensamento coletivo e as crianças vão ampliando a leitura que fazem do cenário que produz fome e insegurança alimentar em seus territórios e reconhecendo a profunda instabilidade a que estão submetidas. Neste sentido, o DHAA tem complexa relação com os ODS, tanto na dimensão do direito de estar livre da fome e da má-nutrição, como do direito ao acesso físico e econômico aos alimentos, mas também à água, educação, saúde, moradia, entre outros.
A busca pelo desenvolvimento sustentável significa alcançar as necessidades atuais sem comprometer as futuras gerações, pautando-se nas perspectivas econômicas (ODS 7 a 12), sociais (ODS 1, 2, 3, 4 e 5) e ambientais (ODS 6, 13 a 15), que dialogam diretamente com a agenda da alimentação, ainda que este tema não seja explicitado nas metas dos ODS.
Dos processos da parceria: fortalecimento, sustentabilidade e interferências
A parceria entre a Universidade e o Camará nos convida a pensar a fome e o DHAA nas periferias urbanas vulnerabilizadas, além de ampliar nossa compreensão desses conceitos nas experiências micro territoriais. Diante de indicadores populacionais que apontavam para a redução, e agora anunciam o aumento da fome no Brasil, e da necessidade imperativa de discussão sobre o acesso à terra e sobre a produção, distribuição e consumo de alimentos, como pensar, nestes espaços, em ações que encontrem lugar e efeitos na discussão, mas também que produzam experiências que analisem e ressignifiquem a relação com a comida e com a fome, e que inspirem mudanças concretas no cenário de não-acesso ao alimento?
Sendo pesquisadores e educadores que reconhecem na infância e na juventude espaço potente de produções inventivas, com investimento em mudanças processuais e estruturais, o desafio tem sido construir coletivamente, com crianças e adolescentes, ações coletivas referenciais para a formulação de políticas públicas. Isto significa conviver com aqueles que vivem a experiência da fome e de situações de violação do DHAA, construir possibilidades de compreensão e análise crítica da produção dessa experiência e propor ações que desloquem a subalternização ou o conformismo malthusiano deste cenário (Frutuoso; Viana, 2021FRUTUOSO, M. F. P.; VIANA, C. V. A. Quem inventou a fome são os que comem: da invisibilidade à enunciação - uma discussão necessária em tempos de pandemia. Interface, Botucatu, v. 25, e200256, 2021. DOI: 10.1590/interface.200256
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).
A teoria malthusiana, disseminada e defendida por Thomas Malthus, apontava a fome como lei natural da vida, como forma de reduzir o número de pessoas e de garantir o equilíbrio diante do aumento da população, da limitação da terra e da produção de alimentos. A partir de uma leitura fatalista da história da humanidade, resultante de um processo de seleção natural e regulação demográfica, até meados do século XX, a fome era considerada um tabu (Ziegler, 2013ZIEGLER, J. Destruição em massa: geopolítica da fome. São Paulo: Cortez, 2013.).
A discussão atual a respeito da fome, da insegurança alimentar e do DHAA implica em problematizar a pobreza e todos os elementos relacionados à cadeia de produção de alimentos em uma complexa rede de determinantes. Esta multifatorial produção da fome convida todos a construírem análises críticas que possam ir desde as micropolíticas cotidianas, até a produção de efeitos e provocações nas macropolíticas. É nesse sentido que esta experiência de fazeres coletivos com crianças e adolescentes, além de suas respectivas redes de cuidado e proteção, podem produzir referências metodológicas ou interferências nas políticas públicas que atravessam as temáticas afins. Essa intenção tem como prerrogativa os papéis decisivos que a sociedade civil têm sob as políticas que interferem e, muitas vezes, tão fortemente determinam, as realidades sociais.
Quando se afirma esse lugar de incidência nas políticas públicas, há que se investir na importância de integrar as instâncias não só de formulação, mas de controle social, bem como contribuir com educação permanente de trabalhadores e educadores sociais, na medida em que vai interferindo, ao longo de sua história, na crítica e na luta pela garantia de direitos. Esse recorte específico da infância e adolescência propicia metodologias de convivência e formação política, convidando crianças e adolescentes à participação efetiva e dialógica das políticas locais, bem como provocando os atores institucionais das políticas à escuta das realidades e experiências desses sujeitos em situação de violação de direitos.
Os Conselhos de Políticas Públicas, espaços institucionais garantidos à sociedade civil no controle social dessas políticas no Brasil, têm sido lugares aos quais o trabalho do Camará exerce pressão, incluindo o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), Conselho de Assistência Social e o CONSEA. Com a estratégia de integrar e conectar as experiências, leituras, diagnósticos e análises produzidas pelas crianças, adolescentes e suas famílias, em seus territórios, aos debates e formulações da política pública municipal, o Camará vai ganhando espaço e disseminando essas metodologias participativas em esfera estadual, além de filiar-se a redes nacionais e internacionais, trabalhando diariamente na formação política de crianças e jovens para que ocupem e pautem esses espaços a partir de suas experiências cotidianas. Esses movimentos reforçam a participação ativa da sociedade civil no processo de concepção, implementação e monitoramento das políticas públicas de alimentação e nutrição e de SAN (Silva et al., 2018SILVA, A. C. F. et al. History and challenges of Brazilian social movements for the achievement of the right to adequate food. Global Public Health, Abingdon, v. 14, p. 875-883, 2018. DOI: 10.1080/17441692.2018.1439516
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), colocadas em questão pela extinção recente do CONSEA.
Premiados, na categoria Ações e Experiências do Prêmio Nacional do Movimento Nacional dos Direitos Humanos - MNDH (2015) e reconhecidos como de impacto nacional no Prêmio Itaú-Unicef Educação Integral (2019), as metodologias participativas e o trabalho articulado do Camará vêm ganhando força e atraído parceiros na construção de outras possibilidades de análise, produção e mobilização. O fortalecimento dos projetos que se aproximam mais fortemente da temática do DHAA tem encontrado parceria e respaldo com a UNIFESP-BS.
Com visibilidade àqueles que têm sido sistematicamente desautorizados no campo político, as crianças têm sido cada vez mais reconhecidas como aquelas que incitam e fortalecem diversas outras reflexões no campo social, fazendo-se efetivamente sujeitos de enunciação de seus próprios direitos, ou da violação deles. Este rompimento de cadeias de silenciamentos e análise crítica das realidades locais pode tornar-se importante aliado na garantia de políticas de SAN e de combate à fome.
Com o reconhecimento dessas potencialidades, em 2020, a UNIFESP-BS, o Camará e a Prefeitura Municipal de São Vicente formalizaram um convênio tripartite que tem como objetivos fortalecer ações coletivas de crianças e adolescentes na produção de experiências referenciais que incidam nas políticas públicas e produzam efeitos de transformação nas desigualdades exorbitantes de seus territórios.
A produção de projetos coletivos de atores institucionais municipais; pesquisadores; professores; estudantes de graduação e pós-graduação; e crianças e adolescentes de territórios vulneráveis tem se mostrado um dispositivo potente de produção coletiva de analisadores do DHAA e da fome nestas periferias. E este convênio firmado inspira-se, dentre outras experiências, nas produções de projetos-pilotos e metodologias de formação e vivências nessas temáticas.
Diante de toda esta estrutura colaborativa se observa a intrínseca relação com o ODS 17: “parcerias e meios de implementação”, concretizada em relações que são motivadoras e incentivadoras para promoção de parcerias com a sociedade civil, academia e instituições públicas. Na agenda da alimentação urbana, essas parcerias significam garantir políticas públicas efetivas (Fao, 2019FAO - FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS. FAO framework for the urban food agenda. Rome: FAO, 2019.).
Considerações finais
A análise dos dois primeiros domínios do modelo CBPR - do contexto e dos processos da parceria em foco, entre o Camará e a UNIFESP-BS, indica uma experiência de formação de atores locais: estudantes, docentes, educadores, crianças e adolescentes e familiares, para a mobilização e discussão sobre o DHAA e diálogo com os ODS em áreas periféricas da cidade de São Vicente. A pesquisa avançará na discussão do terceiro e quarto domínios do modelo CBPR, intervenções e resultados. O desafio aqui é romper com as abordagens verticais e estanques de pesquisa, além de apostar na articulação e na potência de agir em favor do diálogo e interação para ativar novas formas de construir práticas promotoras de saúde.
A narrativa sobre a fome e o DHAA anuncia a necessidade de problematizar a pobreza, as desigualdades sociais e os elementos relacionados à cadeia de produção de alimentos em uma complexa rede de determinantes que se aproximam da estratégia essencial de todos os ODS e ilustram a Agenda 2030, em sua dimensão de localização dos ODS inclusive, para contextualização da vitalidade deste instrumento de desenvolvimento sustentável. A produção de projetos coletivos entre os diversos atores tem se mostrado um dispositivo potente de produção coletiva de analisadores do DHAA e da fome, por meio das assembleias comunitárias nos territórios e das ações curriculares de ensino, extensão e pesquisa com crianças nos locais onde vivem.
Ressalta-se que o deslocamento ético-político de reconhecer a criança e o adolescente como sujeitos de direitos traz consigo um profundo rigor ético na construção de escutas inclusivas e de práticas qualificadas para a amplificação do poder democrático e político dos diferentes sujeitos inseridos no campo social. Os espaços coletivos das assembleias vão garantindo lugar de acolhimento e de pensamento coletivo para a interferência positiva neste cenário, pelas mãos daqueles que fazem essa leitura.
Pensar nessa experiência, em tempos de pandemia, nos convida a investir na produção de pensamento crítico junto daqueles que residem em territórios periféricos urbanos vulnerabilizados e que, ainda hoje, enfrentam situações de fome e insegurança alimentar. Nas palavras de Audre Lorde (2000LORDE, A. A Litany for Survival. In: LORDE, A. The Collected Poems of Audre Lorde. New York: W.W. Norton, 2000.)2 2 No original: And when the sun rises we are afraid/ it might not remain/ when the sun sets we are afraid/ it might not rise in the morning/ when our stomachs are full we are afraid/ of indigestion/ when our stomachs are empty we are afraid/ we may never eat again/ when we are loved we are afraid/ love will vanish/ when we are alone we are afraid/ love will never return/ and when we speak we are afraid/ our words will not be heard/ nor welcomed/ but when we are silent/ we are still afraid./ So it is better to speak/ remembering/ we were never meant to survive. :
que talvez não permaneça
quando o sol se põe temos medo
que talvez não se erga de manhã
quando nossos estômagos estão cheios temos medo
da indigestão
quando nossos estômagos estão vazios temos medo
que talvez nunca mais comamos
quando nós amamos temos medo
que o amor desaparecerá
quando estamos sós temos medo
que o amor jamais voltará
e quando falamos temos medo
que nossas palavras não sejam ouvidas
nem benvindas
mas quando estamos em silêncio
ainda assim temos medo
Então é melhor falar
lembrando-nos
de que nunca fomos destinados a sobreviver
Referências
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O projeto conta com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, processo FAPESP 2018/13215-9.
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No original: And when the sun rises we are afraid/ it might not remain/ when the sun sets we are afraid/ it might not rise in the morning/ when our stomachs are full we are afraid/ of indigestion/ when our stomachs are empty we are afraid/ we may never eat again/ when we are loved we are afraid/ love will vanish/ when we are alone we are afraid/ love will never return/ and when we speak we are afraid/ our words will not be heard/ nor welcomed/ but when we are silent/ we are still afraid./ So it is better to speak/ remembering/ we were never meant to survive.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
04 Nov 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
13 Abr 2022 -
Revisado
13 Abr 2022 -
Aceito
02 Maio 2022