Resumo
O Programa de Volta Para Casa (PVC) é uma das Estratégias de Desinstitucionalização da Rede de Atenção Psicossocial do Sistema Único de Saúde. Baseado na mudança de paradigma proposta pela Psiquiatria Democrática Italiana, tem o objetivo de promover a inclusão social e acesso aos direitos humanos de egressos de internações psiquiátricas. Objetivou-se saber quem são, onde moram e por onde andam os moradores da cidade de Santos beneficiários do PVC, local em que o processo de desinstitucionalização foi pioneiro. Por meio de entrevista semiestruturada e observação participante, em uma pesquisa qualitativa, identificou-se que as beneficiárias são pessoas acima de 50 anos, não escolarizadas, negras, com renda média de um salário mínimo; moradoras dos cortiços do centro; usuárias de transporte público e dos serviços de saúde; e frequentadoras de estabelecimentos comerciais e religiosos. Utilizando o método hermenêutico-dialético e a análise interseccional, concluiu-se que os marcadores sociais raça/cor e origem estão relacionados às internações mais longas, ao menor acesso à moradia digna e à vivência de maior exclusão social. Para uma práxis crítica, é necessário garantir acesso ao PVC por pessoas negras e adotar estratégias de descolonização do eu no enfrentamento das relações de opressão mais vivenciadas pelos beneficiários negros e migrantes, bem como de seus descendentes.
Palavras-chaves:
Saúde Mental; Interseccionalidade; Direitos Humanos
Abstract
The de Volta Para Casa Program (Back Home Program - PVC) is one of the Deinstitutionalization Strategies of the Psychosocial Care Network of the Brazilian Unified Health System. Based on the change of perspective proposed by the Italian Democratic Psychiatry, it aims to promote social inclusion and access to human rights for those leaving psychiatric hospitalizations. The objective was to find out who are the PVC beneficiaries habitants of the municipality of Santos, where the deinstitutionalization process was a pioneer, where they live, and where they are now. With a semi-structured interview and participant observation, in a qualitative research, it was identified that the beneficiaries are people over 50 years old, without schooling, black, with an average income of a minimum wage, residents of the tenements in the city center, public transport and public health services users, and attending commercial and religious establishments. By using the hermeneutic-dialectical method and the intersectional perspective, it was concluded that the social markers race/color and origin are related to longer hospitalization, lack of access to decent housing, and greater social exclusion. For a critical praxis, it is necessary to guarantee access to PVC for black women and to adopt strategies for the decolonization of the self in facing the oppressive relationships most experienced by black and migrants beneficiaries, as well as their descendants.
Keywords:
Mental Health; Intersectionality; Human Rights
Introdução
A superlotação dos hospitais psiquiátricos, a negligência e maus-tratos vivenciados pelos internos, as péssimas condições de trabalho para os profissionais de saúde, a redemocratização do país e a afirmação dos direitos humanos universais foram importantes elementos para o movimento de luta antimanicomial no Brasil, intensificado na década de 1970 (Nicácio, 2003NICÁCIO, M. F. D. S. Utopia da realidade: contribuições da desinstitucionalização para a invenção de serviços de saúde mental. 2003. 205 f. Tese (Doutorado) - Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003.).
Entre 1989 e 1993, o município de Santos protagonizou uma das mais importantes transformações do cuidado em saúde mental. A Secretaria Municipal de Saúde realizou uma intervenção administrativa e política na Casa de Saúde Anchieta, o hospício local sob gestão do Estado. Foi realizada, por profissionais de saúde, vigilância epidemiológica e sanitária contra os interesses dos donos de hospitais psiquiátricos, para a desconstrução do manicômio e a “defesa da vida” dos cidadãos (Campos, 1997CAMPOS, G. W. S. Saúde em Santos: o SUS que está dando certo. In: BRAGA CAMPOS, F. C.; HENRIQUE, C.M. P. (Org.). Contra a maré à beira-mar: a experiência do SUS em Santos. São Paulo: Hucitec , 1997. p. 11-13.).
As primeiras medidas foram a proibição de agressões, do uso de celas fortes e de eletrochoques. Seguiu-se com a recuperação da identidade e histórias de vidas dos internos, por meio da revisão de diagnóstico, condutas e da criação de uma rede de serviços de atenção à Saúde Mental (Nicácio, 1994NICÁCIO, M. F. S. O processo de transformação da saúde mental em Santos: desconstrução de saberes, instituição e cultura. 1994. 174 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1994.). Segundo David Capistrano, secretário de saúde da época, “a intervenção trouxe para dentro do manicômio os olhos e ouvidos da cidade (e) uma grande adesão da opinião pública, superando a expectativa mais otimista” (Braga, 2000BRAGA, F. C. O modelo da reforma psiquiátrica brasileira e as modelagens de São Paulo, Campinas e Santos. 2000. 177 f. Tese (Doutorado) - Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000. Disponível em: <Disponível em: https://hdl.handle.net/20.500.12733/1590192 >. Acesso em: 1 dez. 2022.
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, p. 119).
A desconstrução da “velha ordem” e a criação de uma “nova ética” foi inspirada na psiquiatria democrática italiana (Kinoshita, 1997KINOSHITA, R. T. Em busca da cidadania. In: CAMPOS, F. C. C. B.; HENRINQUE, C. M. P. (Org.). Contra a maré à beira-mar: a experiência do SUS em Santos. São Paulo: Hucitec , 1997. p. 67-77.). A desinstitucionalização, conceito central dessa proposta e da Reforma Psiquiátrica Brasileira, é uma mudança de paradigma na qual a doença mental é colocada entre parênteses para que o sujeito seja reconhecido em todas as suas dimensões (Basaglia, 2011BASAGLIA, F. Escritos selecionados: em saúde mental e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Garamond, 2011.). Nas palavras de Telma de Souza, prefeita de Santos, “A loucura é questão do dia a dia de cada um de nós, numa sociedade absolutamente enlouquecida” (Braga, 2000BRAGA, F. C. O modelo da reforma psiquiátrica brasileira e as modelagens de São Paulo, Campinas e Santos. 2000. 177 f. Tese (Doutorado) - Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000. Disponível em: <Disponível em: https://hdl.handle.net/20.500.12733/1590192 >. Acesso em: 1 dez. 2022.
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, p. 119).
Neste novo modelo de cuidado territorial, em Santos, entre 1989 e 1996, foram criados: cinco Núcleos de Apoio Psicossocial (NAPS); um Núcleo de Atenção aos Toxicodependentes; um Serviço de Urgência nos Prontos Socorros Municipais; um Lar Abrigado que acolhia os usuários graves, ex-moradores, sem vínculos familiares, da Casa de Saúde Anchieta; uma Unidade de Reabilitação Psicossocial, encarregada de coordenar e acompanhar os projetos de trabalhos dos usuários, visando sua participação social e autonomia; e um Centro de Convivência Tam-Tam, que promovia ações culturais e artísticas (Luzio; L’Abbate, 2006LUZIO, C. A.; L’ABBATE, S. A reforma psiquiátrica brasileira: aspectos históricos e técnico-assistenciais das experiências de São Paulo, Santos e Campinas. Interface, Botucatu, v. 10, n. 20, p. 281-298, 2006. DOI: 10.1590/S1414-32832006000200002
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).
No âmbito nacional, em 1995, foi aprovado o Plano de Apoio à Desospitalização (PAD), proposto pelo Ministério da Saúde (Silva, 2010SILVA, D. A. B. Cotidiano das Residências Terapêuticas. 2010. 118 f. Dissertação (Mestrado) - Pós-graduação em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010.). Estimava-se que 20 mil pessoas poderiam se beneficiar desse plano para “reverter a situação injusta, dívida social impagável, das pessoas internadas por longo tempo nos hospícios, por ausência de políticas públicas” (Alves, 2001ALVES, D. S. N. Por um programa de apoio à desospitalização: o programa de apoio à desospitalização (PAD) enquanto estratégia nacional de reabilitação. In: PITTA, A. (Org.). Reabilitação psicossocial no Brasil. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 2001, p. 27-30., p. 28). Entre 1996 e 2005, os leitos psiquiátricos no Brasil foram reduzidos de 72.514 para 42.076.
A Lei Federal n. 10.708, de 31 de julho de 2003, instituiu o auxílio reabilitação psicossocial, com o subsídio financeiro de 240 reais, como parte do Programa de Volta para Casa (PVC). Este auxílio é considerado inovador por ser pago diretamente para as pessoas que tiveram internações psiquiátricas com duração igual ou superior a dois anos, promovendo, assim, aumento no poder de contratualidade social, bem como potencializando sua emancipação e autonomia (Brasil, 2003BRASIL. Ministério da Saúde. De Volta para Casa: Manual do Programa. Brasília, DF, 2003. Disponível em: <Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Manual_PVC.pdf > Acesso em: 11 mar. 2021.
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). Em 2011, o PVC passou a ser um dos componentes das Estratégias de Desinstitucionalização da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do Sistema Único de Saúde (SUS) (Brasil, 2013BRASIL. Portaria GM nº 3088, de 23 de Dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool, e outras drogas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Republicada em 20 de Maio de 2013. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2013. Disponível em: <Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html >. Acesso em: 19 fev. 2018.
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).
Desde a criação do PVC, a inclusão de novos beneficiários foi crescente e ocorreram poucos ajustes no valor do auxílio. O último ajuste foi de 412 reais para 500 reais, em 2021. Entre 2014 e 2022, houve uma queda de 4.349 para 4.073 beneficiários. Por outro lado, nesse mesmo período, o investimento em leitos de saúde mental em hospitais gerais mais que duplicou, são gastos R$130 milhões para o financiamento de 1.952 leitos. Além disso, ainda existem 106 hospitais psiquiátricos com 12.662 leitos distribuídos em 81 municípios brasileiros. É importante destacar que cada leito custa, anualmente, 10 vezes mais que o valor pago a um participante do PVC (Brasil, 2022BRASIL. Ministério da Saúde. Dados da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília, DF, 2022. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/caps/raps/arquivos/dados-da-rede-de-atencao-psicossocial-raps.pdf/ >. Acesso em 30 nov. 2022.
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).
A “nova política” proposta pela gestão federal 2019-2022 não se comprometeu com a diminuição das desigualdades sociais e, mais do que isso, direcionou recursos no sentido contrário: sem expansão do PVC e aumento dos leitos psiquiátricos (Cruz; Gonçalves; Delgado, 2020CRUZ, N. F. O.; GONÇALVES, R. W.; DELGADO, P. G. G. Retrocesso da Reforma Psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a 2019. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, p. 1-20, 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/tes/v18n3/0102-6909-tes-18-3-e00285117.pdf . Acesso em: 24 fev. 2023.
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). Além do histórico de subfinanciamento e atual desfinanciamento, outra importante justificativa para a não expansão do PVC foi identificada pelo Censo de moradores de hospital psiquiátrico de São Paulo. A precariedade social - não ter lugar para residir fora do hospital e/ou não ter renda - é o principal motivo (65,3%) para existência de moradores em hospitais psiquiátricos (Barros, 2014BARROS, S. et al. Censo psicossocial dos moradores em hospitais psiquiátricos do estado de São Paulo: um olhar sob a perspectiva racial. Saúde e sociedade, São Paulo, v. 23, n. 4, p. 1235-1247, 2014. DOI: 10.1590/S0104-12902014000400010.
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), assim, estima-se que o número de beneficiários do programa deveria ser três vezes maior para atender a demanda de desospitalização.
Esses dados mostram que existe um grupo populacional específico que passa a morar nos hospitais psiquiátricos, e não é beneficiado por este programa de reinserção social. A investigação interseccional, no campo das políticas públicas de saúde mental, está em estágio inicial (Passos; Pereira, 2017PASSOS, R. G.; PEREIRA, M. O. Luta Antimanicomial, Feminismos e Interseccionalidades: notas para o debate. In: PEREIRA, M. O.; PASSO, R. G. (Org.) Luta Antimanicomial e feminismos: discussões de gênero, raça e classe para a reforma psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro: Autografia, 2017. p. 25-51.) e pode ser usada como ferramenta analítica para revisão de políticas públicas, em busca de uma práxis crítica e justiça social (Collins; Bilge, 2020COLLINS, P. H.; BILGE, S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2020). Ao entrelaçar dois ou mais eixos da subordinação, tais como o racismo, o patriarcalismo e a opressão de classe, é possível compreender formas mais complexas de desigualdades e prejuízos vivenciados por determinado grupo populacional no acesso a programas (Crenshaw, 1989CRENSHAW, K. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics, University of Chicago Legal Forum, Chicago, v. 1989, n. 1, 1989. Disponível em: <Disponível em: http://chicagounbound.uchicago.edu/uclf/vol1989/iss1/8 >. Acesso em: 11 mar. 2021.
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). Os marcadores sociais da diferença ou categorias de diferenciação social são construções que preexistem ao nosso nascimento e que se entrelaçam de maneira a produzir maior ou menor inclusão/exclusão (Mello; Gonçalves, 2012MELLO, L.; GONÇALVES, E. Diferença e interseccionalidade: notas para pensar práticas em saúde. Revista Cronos, Natal, v. 11, n. 2, 2012. Disponível em: <Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/cronos/article/view/2157/pdf > Acesso em: 11 mar. 2021.
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).
Considerando a intervenção santista, pioneira na década de 1980 para o fechamento do hospital psiquiátrico e a sua substituição por estratégias antimanicomiais - entre elas o Programa de Volta Para Casa -, e que há, nos últimos anos, um desinvestimento nacional na desinstitucionalização; o objetivo deste estudo é apresentar quem são, onde moram e por onde andam os beneficiários do PVC moradores de Santos. Pretende-se também refletir sobre a sustentação da desinstitucionalização, com base na trajetória dos participantes e nas contribuições da interseccionalidade.
Metodologia
Esta pesquisa está inserida no campo das pesquisas sociais em saúde, de abordagem qualitativa, na qual é fundamental a proximidade entre pesquisador e pesquisado, segundo Castro-Silva, Mendes e Nakamura (2012CASTRO-SILVA, C. R. D.; MENDES, R.; NAKAMURA, E. A dimensão da ética na pesquisa em saúde com ênfase na abordagem qualitativa. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 21, n. 1, p. 32-41, 2012. DOI: 10.1590/S0104-12902012000100005
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). Nessa perspectiva, o objeto, que ao mesmo tempo se constitui em sujeito, fará parte de um processo de compreensão intersubjetiva por meio de um método que pode ser entendido como uma maneira de fazer ciência, um “caminho para ir em busca de algo” (Castro-Silva; Mendes; Nakamura, 2012CASTRO-SILVA, C. R. D.; MENDES, R.; NAKAMURA, E. A dimensão da ética na pesquisa em saúde com ênfase na abordagem qualitativa. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 21, n. 1, p. 32-41, 2012. DOI: 10.1590/S0104-12902012000100005
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, p. 36).
A entrevista semiestruturada (Moré, 2015MORÉ, C. L. O. O. A “entrevista em profundidade” ou “semiestruturada”, no contexto da saúde. Investigação Qualitativa em Ciências Sociais, [s.l.], v. 3, p. 126-131, 2015. Disponível em: <Disponível em: https://proceedings.ciaiq.org/index.php/ciaiq2015/article/view/158 > Acesso em: 11 mar. 2021.
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) e a observação participante (Magnani, 2009MAGNANI, J. G. C. Etnografia como prática e experiência. Horizontes antropológicos, Porto Alegre, ano 15, n. 32, p. 129-156, 2009. Disponível em: <Disponível em: https://www.scielo.br/j/ha/a/6PHBfP5G566PSHLvt4zqv9j/?format=pdf⟨=pt >. Acesso em: 19 fev 2018.
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) foram as ferramentas de coleta de dados. Para análise, em uma perspectiva hermenêutica-dialética, a interseccionalidade (Crenshaw, 1989CRENSHAW, K. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics, University of Chicago Legal Forum, Chicago, v. 1989, n. 1, 1989. Disponível em: <Disponível em: http://chicagounbound.uchicago.edu/uclf/vol1989/iss1/8 >. Acesso em: 11 mar. 2021.
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) foi escolhida como referencial teórico. A entrevista semiestruturada levantou informações sobre os marcadores sociais, tais como: raça/cor, origem, idade, renda, região de moradia, identidade de gênero, orientação sexual e o acesso à habitação, espaços públicos e equipamentos sociais do município de Santos. O uso da observação participante teve o objetivo de coletar dados sobre os acontecimentos vivenciados pelos beneficiários do PVC nos territórios reais da vida, com ênfase no acesso a direitos e sua relação com seus marcadores sociais.
As entrevistas foram gravadas e transcritas. O passo inicial foi a ordenação e quantificação das respostas, buscando traçar o perfil dos participantes, em seguida houve a leitura exaustiva do material transcrito, para a eleição de trechos que ajudassem a responder aos objetivos e, ao final, a análise qualitativa buscou apreender significados na fala dos sujeitos, interligada ao contexto em que eles se inserem e delimitada pela abordagem conceitual, como propõe Minayo (2002MINAYO, M. C. S. (Org.) Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. 21 ed. Petrópolis: Vozes, 2002).
A observação participante do cotidiano foi realizada com parte do grupo entrevistado e registrada em diários de campo. Ocorreu entre maio de 2019 e dezembro de 2020, com uma interrupção do acompanhamento presencial entre março e setembro de 2020, em decorrência do isolamento social da pandemia. Este estudo foi aprovado pelo comitê de ética sob o parecer número 3.243.147 e os nomes dos participantes e locais citados são fictícios, de forma a manter o anonimato.
Resultados
O mapeamento dos moradores de Santos beneficiários do PVC se iniciou pela visita aos cinco Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). A lista do Ministério da Saúde era composta por 54 beneficiários. Destes, 49 foram identificados e cinco não foram localizados nos registros dos serviços. Dentre os identificados, não foi possível localizar o contato atual de cinco e, dos 44 localizados, 25 não foram entrevistados. Os motivos principais foram: falecimento (15), não comparecimento ou retorno de contato (4), impossibilidade de participar por questões de saúde (4) e mudança de cidade (2).
Sobre os beneficiários localizados e moradores de Santos (27), podemos afirmar que a maior parte está em acompanhamento em um dos CAPS do município, a maioria (18) em regime intensivo, ou seja, frequentando diariamente o serviço de saúde. Foram entrevistados os 19 beneficiários que assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) e cinco destes aceitaram ser acompanhados em seus cotidianos.
Quem são os beneficiários do PVC de Santos?
A idade média dos entrevistados é 56 anos, a maioria é mulher (10) e se declaram pardos ou pretos (13). Duas pessoas são analfabetas e a maioria é alfabetizada com menos de 5 anos de escolaridade (13). Somente três são casados e todos com pessoas que também são acompanhadas pelos serviços de saúde mental. A maior parte tem outra fonte de renda, além do PVC, recebem o Benefício de Prestação Continuada e dois também recebem pensão ou aluguel. A maioria (12) não gerencia sua renda sozinho, recebe apoio dos familiares ou profissionais de saúde. Sete dos entrevistados relatam a migração para Santos como parte da sua história de vida, como mostram os trechos selecionados.
“Eu nasci em Sergipe em 71 […] eu morava na rua antes de ser internado, eu tinha perdido minha mãe, então fugi de casa aos 15 […] como ninguém me dava serviço, eu resolvi dar cabo da vida […] fiquei no Anchieta dos 17 e até perdi a conta […] meu pai estava em São Manoel […] mas ele não me queria em casa” (Milton)
“Quando eu cheguei de Sergipe com meu pai, eu tinha 12 anos […], meu pai morreu logo que chegamos aqui, aí eu fiquei sozinha, eu ficava na rua, um tempo em albergue, na casa de acolhida, internada em colégio das freiras espanhola […] sai com 17 anos […] com 18 anos eu arrumei casa para trabalhar, mas não deu certo de trabalhar e morar. Eu nunca mais voltei para Sergipe” (Grace).
“Preciso trabalhar ou me casar para me curar […] trabalhei em muitas casas de família […] tive muitas patroas, a primeira foi minha mãe adotiva […] eu tinha 10 anos quando fui adotada para cuidar da casa e dos filhos dela […] que não chamo de irmãos por que eles eram loiros e eu mulata, por isso ela não deu seu nome para mim […] uma das irmãs, Eliete, […] às vezes ela era ruinzinha, denunciava que eu batia no Felipinho e eu levava uma surra […] eu tinha que cuidar dele e da casa toda sozinha” (Janaina).
A migração e, em seguida, a perda familiar levaram Janaina e Grace a ter que trabalhar e morar em casas de outras famílias, regime análogo ao vivido no período escravocrata. Janaina, então, percebe dois caminhos para a cura: casar-se ou trabalhar. Na sua percepção, a cura não seria eliminar sintomas, mas cumprir o papel social esperado de uma mulher negra que perdeu a mãe e é adotada por uma família branca para realizar as atividades domésticas. Quando Milton entende que é um menino negro de 15 anos que chega do Nordeste e não consegue trabalho, a vida perde o sentido, ele deseja morrer e o pai o rejeita. São falas que revelam o itinerário de exclusão de migrantes, negros e pobres entre a chegada em Santos e a internação psiquiátrica.
Onde moram os beneficiários do PVC?
Metade mora com seus familiares ou cônjuges, nove moram sozinhos e uma em um Serviço Residencial Terapêutico (SRT). Em relação ao tipo de moradia, seis moram com a família em casa herdada e o restante (13) em espaços alugados. Estar de volta em uma cidade na qual não tem casa é a realidade da maior parte dos participantes entrevistados. Os cinco beneficiários acompanhados em sua rotina são moradores da região central, por este motivo os trechos a seguir mostram questões específicas das pessoas que vivem nessa área da cidade.
Na recepção do CAPS, Nina entregou um pedaço de papel para Maria, sua profissional de referência, e disse que enquanto não pagasse o valor que estava escrito, não poderia tomar banho no banheiro coletivo da pensão onde mora. Maria, que apoia a gestão do PVC de Nina, lembrou que já tinha lhe dado o valor para pagar a água e a luz do mês. Nina explicou que o chuveiro queimou e todos da pensão disseram que foi ela, sendo assim, tinha que comprar um novo. Maria havia observado que nos últimos dias Nina estava vindo ao CAPS sem ter tomado banho. Nina explicou: “por que quem leva filho na escola ou sai pra trabalhar, fica na frente da fila do chuveiro […] como eu venho cedo ao CAPS para tomar a medicação, fico sem o banho”.
Estevão estava sentado no CAPS e contou que ficaria ali até as 20 horas, porque não podia entrar no seu quarto:
Simplesmente a dona da pensão achou que eu tinha quebrado a bacia do banheiro, aí ela veio pra cima de mim. Eu sai fora e não voltei mais lá, porque eu sei que ela ia me cobrar. Eu não to devendo nada, simplesmente eu saí, deixei 400 de aluguel. Minhas coisas estão lá, tá fechado. Tô dormindo na rua, eu não tenho para onde levar minhas coisas. A única coisa que tem lá que eu necessito é o violão […] se eu te levar na minha casa é a mesma coisa que você ir no banheiro depois de mim e eu não apertar a descarga. (Estevão)
Na rua, Milton apontou a porta da sua casa: “é aqui que eu moro, já morei em mais de 10 quartos diferentes […] eu mudo porque a casa é despejada, mesmo pagando aluguel […] eu uso o endereço do CAPS como comprovante de endereço”. As roupas ficam guardadas em sacolas plásticas penduradas em pregos na parede. “Perdi meu armário […] meu quarto tá vazando água e a escada tá quebrada […] é uma casa de família e ela aluga os quartos”. Sua esposa seguiu a conversa e contou que achou outro quarto para alugar, Milton continuou: “Não podemos mudar […] “Tenho empréstimo no meu nome, fiz a pedido da dona da pensão que tem uma filha deficiente […] as parcelas vão até 2025, caem na minha conta e fica pelo aluguel, […] a dona não é uma má pessoa, se puder, ela ajuda a gente”. Concluiu: “estamos presos aqui”.
Janaina estava caminhando entre o seu quarto e o portão principal da pensão. Na janela, estava um homem que disse: “Janaina eu to sozinho”. Depois que ele saiu, Janaina disse:
O Marcel é o que toma conta dos quartos, ele fica me cantando, quando ele vai entregar carta, pergunta se estou peladinha ou só de calcinha e sutiã, uma vez disse: Janaina vamos fazer uma suruba, eu você e a Fabíola? Eu acho que ele tá brincando comigo, por que ele faz isso na frente da esposa dele. Eu levo na brincadeira, mas eu não gosto. (Janaina)
Os relatos de Nina, Estevão, Milton e Janaina ilustram a realidade de quem mora em cortiços, pensões e porões: (1) pagam um valor exorbitante comparado ao que recebem; (2) são vigiados e assediados pelos proprietários; (3) recebem o ônus de prover a reforma ou manutenção de itens coletivos, como chuveiro e vaso sanitário, como se fossem proprietários; (4) perdem mobiliários que estragam com as infiltrações ou alagamentos; e (5) não consideram o local como casa, para poderem receber visitas. Percebe-se como sofrem discriminação, pois são tratados como inquilinos de menor valor, apesar do pagamento do aluguel em igual valor.
Por onde andam os beneficiários do PVC?
A maior parte relata utilizar transporte público e acessar diferentes espaços públicos: estabelecimentos comerciais (14), instituições religiosas (7) e espaços de lazer (4).
Esperando o ônibus, Estevão disse:
Os tempos mudaram […] agora as moças não aceitam mais os homens como eles são, tem que ter dinheiro […] hoje eu tenho meu sabonete, tomo banho, uso desodorante e não consigo nada e cadê? O que que falta? […] fui expulso pelo pastor do culto da igreja por não poder ficar com as senhoras. Ter uma mulher que cuide da casa, roupa, seria a solução dos meus problemas, mas […] eu não tenho dinheiro para isso. (Estevão)
No dia de sacar o seu PVC, Wilson caminhou do CAPS até a lotérica com Rebeca, uma profissional de saúde. Entregou seus documentos à atendente, digitou a senha que estava em uma etiqueta no cartão e recebeu os 412 reais. Wilson, ainda dentro da lotérica, enrolou o dinheiro e guardou na sua pochete. Devolveu os documentos e cartão para Rebeca e disse: “Guarda no meu prontuário que daqui vou direto pagar minha dívida com a loja de caixas de som”.
Estevão estava no CAPS e disse que precisava ir à Caixa sacar o PVC, mas tinha perdido o seu cartão. Ao entrar na Caixa, ele disse: “eu já vim aqui e estava sem identidade, eu não saquei nada […] precisei chamar a viatura, fui no orelhão, disquei 190 e disse que estava na Caixa e não me deixavam entrar, eu fiquei desnorteado”. A atendente ao ouvir a conversa se dirigiu a Estevão e perguntou: “Cadê a sua identidade?”. Estevão respondeu: “O meu número de identidade eu tenho de cor de cabeça”. A atendente seguiu: “Você já foi avisado […] que sem documento você não saca mais.” Estevão disse: “Roubaram meu documento […] Está para quarta-feira buscar no Poupatempo a minha segunda via […] o governo vai cancelar meu benefício se ficar parado aí” e a atendente respondeu: “o governo não corta, fica na sua conta até você retirar […] você precisa voltar com seu RG para fazer a segunda via do seu cartão”.
Caminhando do CAPS de volta para casa, Janaína contou:
Eu estava no ponto de ônibus e tinha um senhor que eu não conhecia, e ele me disse que também tinha quebrado o pé e na época tomou sucupira e se recuperou bem […] aí na quinta eu fui na manicure, eu vou lá a cada 15 dias, elas me conhecem […] aí a manicure perguntou no google sobre o remédio sucupira e o google respondeu tudo sobre a farmácia que vendia e ela fez o pedido para mim por telefone e combinou de entregar na minha casa e aí eu paguei 6 reais de taxa de entrega e 25 do remédio, agora eu to tomando e tô melhor.(Janaína)
Em sua casa, contou a novidade:
encontrei minha irmã! […] quando minha mãe biológica morreu, […] fomos para um orfanato […] quando fui adotada, perdi contato com ela, mas sei que com 18 anos ela foi morar na favela do canal D. Não falava com ela há 3 anos […] quando alguém me falou que o pessoal de lá tinha sido levado para um conjunto habitacional […] um dia fui lá na portaria do prédio e perguntei pelo nome dela e me disseram que ela estava no apartamento do 17º. Andar […] agora sempre visito ela, até passei o natal lá. (Janaína)
Janaina, Estevão e Wilson são pessoas pretas, com baixa escolaridade e renda, seus laços familiares estão rompidos, moram sozinhos em casas na cidade e gerenciam o auxílio com autonomia. Observou-se três aspectos que influenciam a desinstitucionalização: a busca por relações de afeto, a importância da mediação para a emancipação e o pertencimento a um território, por meio do acesso à moradia. Seguiremos na discussão com a análise desses aspectos na perspectiva interseccional.
Discussão
Os recursos investidos nas estratégias de desinstitucionalização no município de Santos viabilizaram que pessoas antes mantidas internadas por longos períodos pudessem viver nas cidades. Para que haja um salto da desospitalização para a desinstitucionalização, os resultados mostram que é necessária uma política ampla de acesso a direitos constitucionais, em especial a moradia, e é necessário o enfrentamento da desigualdade social.
“De volta” representa a ideia de que um dia foram inseridos, deixaram de ser durante a internação e agora poderão ser reinseridos. “Para Casa”, no sentido figurado e literal, representa tanto um laço de pertencimento quanto um local físico de moradia. Apesar disso, os beneficiários do PVC representam uma parcela da população que enfrenta dificuldade em pertencer e ter casa na cidade: pessoas acima de 50 anos, não escolarizadas, negras, migrantes nordestinos ou seus descendentes, com renda média de um salário mínimo e moradores dos cortiços do centro. Ou seja, o não acesso à moradia e a circulação na cidade já limitavam a sua vida antes da internação psiquiátrica.
Fica claro que, para parte dos beneficiários do PVC, a internação psiquiátrica é o que o Estado ofereceu como solução para os problemas gerados pela falta de acesso à educação, saúde, renda, moradia digna, lazer, relações de afeto e pertencimento, confirmando a ideia que programas de reparação e justiça social, como o PVC, são dependentes de mudanças estruturais (Moreira; Guerreiro; Bessoni, 2019MOREIRA, M. I. B.; GUERRERO, A.V.P.; BESSONI, E. A. Entre desafios e aberturas possíveis: vida em liberdade no contexto da desinstitucionalização brasileira. Saúde e Sociedade , v. 28, n. 3, 2019. DOI: 10.1590/s0104-12902019000003.
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). Então, em uma gestão federal (2019-2022) de extrema direita e ultra neoliberal, na qual as mudanças estruturais para promoção da igualdade social ficam inviabilizadas, a sustentação da desinstitucionalização é prejudicada. A interseccionalidade é uma ferramenta útil para investigar a desigualdade no acesso aos direitos para diferentes segmentos populacionais e apontar caminhos para uma práxis crítica em uma política pública em saúde mental.
Contribuições interseccionais
Uma das ideias centrais de uma investigação interseccional é o contexto, ou seja, o período, o local e a cultura devem ser considerados na análise de como determinados marcadores sociais podem afetar desproporcionalmente uma parcela da população (Collins; Bilge, 2020COLLINS, P. H.; BILGE, S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2020). A partir do resgate da formação histórico-social de Santos, sabe-se que a construção do porto para exportação da produção cafeeira ocorreu na mesma época em que os imigrantes europeus vieram para a substituição da mão de obra negra e escravizada. Essa realidade contribuiu para que o município tivesse um dos maiores quilombos do Brasil (Blume, 1998BLUME, L. H. A moradia da população pobre e a Reforma Urbana em Santos-SP no fim do século XIX. 1998. 204f. Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1998. Disponível em: <Disponível em: https://sapientia.pucsp.br/handle/handle/13053 >. Acesso em: 11 mar. 2021.
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).
O intenso processo de urbanização de Santos levou à expulsão da população pobre e dos ex-escravizados libertos para a periferia ou instituições públicas, como os hospitais psiquiátricos (Blume, 1998BLUME, L. H. A moradia da população pobre e a Reforma Urbana em Santos-SP no fim do século XIX. 1998. 204f. Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1998. Disponível em: <Disponível em: https://sapientia.pucsp.br/handle/handle/13053 >. Acesso em: 11 mar. 2021.
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). Além disso, no século seguinte, Santos recebeu um excessivo contingente de migrantes nordestinos em busca de trabalho no polo industrial de Cubatão. Assim, a exploração da moradia precária com a sublocação de quartos, sem estrutura adequada de ventilação, água e esgoto encanado, é uma realidade local há mais de um século (Rocha Santos, 2011ROCHA SANTOS, A. Habitação precária e os cortiços da área central de Santos. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 13, n. 26, p. 549-571, 2011. Disponível em: <Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=402837821012 >. Acesso em: 30 abr. 2022.
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).
Na perspectiva decolonial, as feministas interseccionais brasileiras defendem que a “matriz de opressão” é fruto do processo de colonização, ou seja, a origem geopolítica e os papéis de colonizado e colonizador são centrais para análise das relações de opressão e desvantagem social (Akotirene, 2019AKOTIRENE, C. Interseccionalidade. São Paulo: Jandaíra , 2019.). Em acordo com essa perspectiva, observou-se que os marcadores sociais raça/cor e origem estão relacionados à menor inclusão social dos beneficiários do PVC. Dos entrevistados, os que são migrantes ou filhos de migrantes com uma pessoa parda ou preta passaram por internações psiquiátricas de maior duração e vivem hoje em situações de maior precariedade social na cidade, em especial no acesso à moradia digna. Essa realidade pode ser explicada pelo entrelaçamento entre esses marcadores e o contexto brasileiro: ser colônia de exploração, com regime escravocrata e um atual sistema capitalista de economia dependente, que vivencia internamente grande desigualdade social.
Depois de entender o porquê, seguimos para a compreensão de quais são os prejuízos que sofrem as pessoas na intersecção de dois ou mais marcadores sociais, outra ideia central da análise interseccional. Iniciamos essa reflexão, lembrando que algumas pessoas não são incluídas no PVC, apesar de cumprirem os critérios. Existem quase 4 mil pessoas morando em hospitais psiquiátricos e, segundo o relatório do CFP (2019CFP - CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Hospitais psiquiátricos no Brasil: relatório de inspeção nacional. Brasília, DF, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2019/12/549.3_ly_RelatorioInspecaoHospPsiq-ContraCapa-Final_v2Web.pdf > Acesso em: 11 mar. 2021.
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), são pessoas negras e pobres, ou seja, não desospitalizar essas pessoas é uma medida discriminatória do Estado, um exemplo de racismo estrutural, como descrito por Almeida (2021ALMEIDA, S. L. Racismo estrutural. São Paulo: Jandaíra, 2021.).
Seguimos com a discussão sobre os três aspectos identificados na observação do cotidiano dos beneficiários do PVC, para entender como algumas pessoas são mais prejudicadas que outras no processo de desinstitucionalização. O primeiro aspecto é a busca pelo estabelecimento de relações de afeto. Concluímos que, de volta para casa, essa busca é protagonizada pelos beneficiários do PVC, mas a discriminação racial, de classe e sexista dificultam o estabelecimento de relações de afeto. Estevão quer casar-se, mas acaba sendo expulso da Igreja em que corteja as senhoras. Janaina é assediada pelo dono da pensão, que a convida para relações sexuais, enquanto seu desejo é resgatar o laço com a família biológica para celebrar o Natal.
Um segundo aspecto determinante para o processo de desinstitucionalização é a mediação para a emancipação. Foi observada a mediação sendo feita por profissionais de saúde, não médicos e do CAPS. São exemplos do apoio para o acesso à renda e moradia: negociar o pagamento na pensão; guardar o documento e cartão bancário no prontuário; receber a correspondência; e acompanhar no trajeto da lotérica. Mesmo não sendo procedimentos clínicos tradicionais, são ações de promoção à contratualidade, previstas em um serviço territorial de portas abertas.
Ilustram um processo de emancipação em andamento porque apoiam parte de uma interação social e são ofertadas de forma singular, a depender da necessidade de cada um e na medida em que são acionados pelos beneficiários do PVC. Por exemplo, Wilson precisa de ajuda para não perder seus documentos e fazer o saque, mas não para gerir o seu recurso ao longo do mês, como Nina precisa. Essa mediação também foi ofertada à Janaína pelo vizinho do ponto de ônibus e pela manicure, o que comprova que essa mediação pode extrapolar, inclusive, os muros dos serviços de saúde territorial.
A relação com as pessoas depende da presença no bairro, por meio do acesso à moradia. Portanto, o pertencimento a um território é o terceiro aspecto que contribui para a desinstitucionalização. As condições precárias da moradia e a condição de inquilino de menor valor prejudicam Nina, Estevão e Milton de duas formas: (1) materialmente, quando perdem seus móveis e pertences, ou assumem financeiramente os custos com a manutenção e (2) emocionalmente, quando se mudam com frequência, ou não se sentem à vontade para receber visitas, são assediados, ou ficam em situação de rua. Na trajetória de Janaina, o PVC permitiu que ela voltasse a morar na cidade, a inclusão da irmã no Conjunto Habitacional proporcionou a oportunidade de ter uma moradia fixa e, assim, ser localizada por ela. Então, o acesso a dois programas públicos, PVC e Conjunto Habitacional, promoveu o reencontro e o resgate de um laço familiar.
A terceira ideia central da perspectiva interseccional é o compromisso com uma práxis crítica, endereçando esforços e recursos para os que são mais prejudicados, porque quando estes forem reparados, todos os outros com menores prejuízos também o serão (Crenshaw, 1989CRENSHAW, K. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics, University of Chicago Legal Forum, Chicago, v. 1989, n. 1, 1989. Disponível em: <Disponível em: http://chicagounbound.uchicago.edu/uclf/vol1989/iss1/8 >. Acesso em: 11 mar. 2021.
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). Considerando que ainda há pessoas negras e pobres morando em hospitais psiquiátricos, confirma-se que foi dado um menor valor à questão racial na Reforma Psiquiátrica Brasileira (Passos; Moreira, 2018PASSOS, R. G.; MOREIRA, T. W. F. Reforma Psiquiátrica brasileira e Questão Racial: contribuições marxianas para a Luta Antimanicomial. SER Social, Brasília, DF, v. 19, n. 41, p. 336-354, 2018. DOI: 10.26512/ser_social.v19i41.14943.
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), então é urgente a ampliação do PVC, com a inclusão prioritária desse grupo populacional.
Para os beneficiários do PVC, o investimento deverá ser direcionado para a revisão das estratégias de cuidado dos serviços territoriais e para a mudança de horizontes, não mais a busca pela reabilitação psicossocial dos indivíduos, mas um processo de descolonização, como defende Fanon (1968FANON, F. Os condenados da terra. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira S. A., 1968., p. 26), “que modifica fundamentalmente o ser, transforma espectadores sobrecarregados de inessencialidade em atores privilegiados” é um triunfo que se propõe a mudar a ordem do mundo. Exigirá a adoção de uma educação política para a construção de uma ideologia revolucionária (Passos; Moreira, 2018PASSOS, R. G.; MOREIRA, T. W. F. Reforma Psiquiátrica brasileira e Questão Racial: contribuições marxianas para a Luta Antimanicomial. SER Social, Brasília, DF, v. 19, n. 41, p. 336-354, 2018. DOI: 10.26512/ser_social.v19i41.14943.
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), focada na diminuição dos prejuízos vivenciados, no contexto de Santos, pelas pessoas migrantes, negras e moradoras de cortiços.
Conclui-se que o cuidado em liberdade, como proposto na desinstitucionalização da Reforma Psiquiátrica Brasileira, não será levado a cabo enquanto não houver o fim das práticas coloniais na produção de conhecimento, no sistema de crenças, valores e atitudes cotidianas. Na perspectiva decolonial de Quijano (2009QUIJANO, A. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, B. S., MENESES, M. P. (Org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2009, p. 73-118.), a colonialidade do poder, do saber e do ser direciona a relação entre as pessoas e é um entrave para uma socialização solidária, mesmo com o fim do colonialismo enquanto regime econômico, político e social.
Considerações finais
A partir das entrevistas e observação do cotidiano dos beneficiários do PVC de Santos, analisadas na perspectiva da interseccionalidade, concluiu-se que o cuidado em liberdade pode ser mais limitado para pessoas negras, migrantes e moradoras de cortiço. Primeiro por serem mantidas como moradoras de hospitais psiquiátricos, mesmo após 20 anos de existência do PVC e, segundo, porque de volta na cidade, encontram as mesmas condições que já limitavam a sua vida em liberdade, antes da internação psiquiátrica.
Concluiu-se que o PVC é nomeado como auxílio-reabilitação psicossocial, mas sua demanda é por reparação social. Assim, o maior investimento deve ser na articulação intersetorial para acesso a direitos, em especial, ao da moradia digna. Para o cuidado em liberdade proposto na desinstitucionalização, no contexto de Santos, recomenda-se a aproximação com o pensamento decolonial, em busca da conscientização como um passo inicial para o enfrentamento das relações de opressão vivenciadas no cotidiano.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
18 Set 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
26 Jan 2023 -
Revisado
07 Dez 2022 -
Revisado
26 Jan 2023 -
Aceito
01 Fev 2023