Acessibilidade / Reportar erro

O consumo de drogas por homens homossexuais em uma casa noturna do Rio de Janeiro, RJ

Drug consumption by gay men in a nightclub from Rio de Janeiro, RJ

Resumo

À luz das práticas de lazer, objetivamos analisar os sentidos do consumo de drogas por homens homossexuais em uma casa noturna da cidade do Rio de Janeiro, RJ. Realizamos o processo de observação participante em 36 episódios de festas eletrônicas em uma boate, entre janeiro de 2018 e setembro de 2019. Detectamos que os usos de substâncias estabelecem um sentimento de pertencimento social entre os sujeitos, funcionando como rede de apoio coesa e cerimonial. Concluímos que, para os interlocutores, as drogas assumem diferentes sentidos para um “bem-viver” coletivo, em que a droga simboliza a união e o apoio socioemocional que conecta os homossexuais consumidores em um espaço plural às diversidades, a princípio sem julgamentos morais. O consumo das drogas em cada festa fortaleceu a coesão grupal, além de refletir sentimentos de fraternidade, companheirismo e irmandade, edificando e retroalimentando uma espécie de “grupo terapêutico” atrelado a essa vivência do lazer, uma prática acionada para “suportar e sobreviver” às demandas sociais, por vezes preconceituosas e discriminatórias.

Palavras-chave:
Atividades de Lazer; Drogas Ilícitas; Homossexualidade Masculina; Política Pública Antidiscriminatória; Pesquisa Qualitativa

Abstract

In light of leisure practices, we aim to analyze the meanings of drug consumption by homosexual men in a nightclub in the city of Rio de Janeiro, RJ. We carried out the participant observation process in 36 episodes of electronic parties in a nightclub, between January 2018 and September 2019. We detected that substance use establishes a sense of social belonging among the subjects, functioning as a cohesive and ceremonial support network. We conclude that, for those interlocutors, drugs take on different meanings for a collective “good living,” in which the drug symbolizes the union and socio-emotional support that connects homosexual consumers in a plural space to diversities, at first without moral judgments. The consumption of drugs at each party strengthened group cohesion, in addition to reflecting feelings of fraternity, companionship, and brotherhood, building and feeding back a kind of “therapeutic group” linked to this experience of leisure, a practice activated to “endure and survive” the social demands, sometimes prejudiced and discriminatory.

Keywords:
Leisure Activities; Illicit Drugs; Male Homosexualitiy; Public Nondiscrimination Policies; Qualitative Research

Introdução

Inicialmente, destacamos que as possibilidades de experienciar ou vivenciar o lazer constituem uma multiplicidade de enredos e desfechos de acordo com fatores sociais, culturais, políticos e econômicos (Rojek, 1999ROJEK, C. Abnormal leisure: Invasive, mephitic and wild forms. Loisir et société/Society and Leisure, Abingdon, v. 22, n. 1, 1999. p. 21-37.). O lazer pode ser compreendido enquanto atividade escolhida de forma livre, com o intuito de ser prazerosa e agradável durante o tempo livre do sujeito, isto é, em seus momentos de não-trabalho e/ou demais atividades lucrativamente oficiosas (Elias; Dunning, 1992ELIAS, N.; DUNNING, E. A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992.).

Nesse contexto, ante o consumo de drogas, pautamos esse estudo na abordagem teórico-metodológica do sociólogo britânico Chris Rojek (1999ROJEK, C. Abnormal leisure: Invasive, mephitic and wild forms. Loisir et société/Society and Leisure, Abingdon, v. 22, n. 1, 1999. p. 21-37.), que argumenta sobre a importância de compreender e analisar as práticas de lazer vistas como “anormais” ou “desviantes”. Conforme nos lembram Liana Romera e Mariana Martins (2017ROMERA, L. A.; MARTINS, M. Z. A busca por tensões nas experiências de lazer: uma releitura de Norbert Elias. Licere, Belo Horizonte, v. 20, n. 3, p. 367-391, set. 2017.), essa forma de enquadramento não almeja situar as práticas do lazer de forma antagônica, atribuir-lhes juízo moral ou patológico sobre suas práticas, mas sim considerar as múltiplas formas de se compor, viver e experienciar o lazer, mesmo que por meio de tensões e rupturas de conhecimentos usuais e que constituem inúmeros padrões considerados aprumados ou desviantes.

Assim, neste estudo, atemo-nos mais especificamente ao lazer denominado por Rojek (1999ROJEK, C. Abnormal leisure: Invasive, mephitic and wild forms. Loisir et société/Society and Leisure, Abingdon, v. 22, n. 1, 1999. p. 21-37.) como “invasivo”, explorando aspectos concernentes ao consumo de drogas e outras substâncias, principalmente as ilícitas, enquanto possível estratégia de fuga e/ou libertação da relação estabelecida entre consumidores, bem como por uma suposta sensação de invalidação. Embora os sujeitos que vivenciem o lazer invasivo possam teoricamente transparecer uma figura de bonomia e companheirismo para com seus pares, por vezes, há o entendimento de que apresentam, em seu interior, uma série de conflitos e divergências que os desqualificam e possibilitam uma leitura de invalidez. Nesse caso, o lazer seria possivelmente acionado para atenuar essa sensação de inferioridade, tristeza e/ou vazio, pelo uso de álcool e/ou drogas, por exemplo (Rojek, 1999ROJEK, C. Abnormal leisure: Invasive, mephitic and wild forms. Loisir et société/Society and Leisure, Abingdon, v. 22, n. 1, 1999. p. 21-37.).

Entretanto, reconhecemos que as razões para o consumo de drogas são simbolicamente diversas, contraditórias, híbridas e fluidas, a depender das interações sociais (Velho, 1998VELHO, G. Nobres & anjos: um estudo de tóxicos e hierarquia. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.; Becker, 2008BECKER, H. S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.), entre elas, a busca por diversão, prazer, por curiosidade, quebra da rotina, curtir os efeitos das substâncias, diminuir a ansiedade e relaxar. Isso pode ser visto na própria literatura sobre o tema (Schneider; Limberger; Andretta, 2016SCHNEIDER, J. A.; LIMBERGER, J.; ANDRETTA, I. Habilidades sociais e drogas: revisão sistemática da produção científica nacional e internacional. Avances en psicología latinoamericana, Bogotá, v. 34, n. 2, p. 339-350, 2016.).

Neste trabalho, investigamos este consumo dentro de casas noturnas, também identificadas como raves/clubs, sendo o público frequentador denominado ravers/clubbers.Gibran Braga (2018BRAGA, G. T. ‘O fervo e a luta’: políticas do corpo e do prazer em festas de São Paulo e Berlim. 2018. 292 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2018.) explica que o significado de rave se refere ao delírio, apresentando traços de cerimônias religiosas que envolvem cânticos, músicas, danças e conexões exacerbadas. Desse modo, nos orientamos pela seguinte questão norteadora: quais são os sentidos do consumo de drogas por esse público em situações de lazer ditas “desviantes”?

Argumentamos que a relevância desta pesquisa se concretiza a partir das seguintes perspectivas: em primeiro lugar, visibilizar os diferentes sentidos atribuídos ao consumo de drogas ajuda a compreender, de modo interdisciplinar, as múltiplas possibilidades de práticas de lazer para além de um “olhar” ético-moral permeado de juízos de valor. Em segundo lugar, explorar os usos de drogas pela via do lazer permite subsídios teórico-práticos para intervenções profissionais em distintos campos de saber mais humanizadas, o que pode fundamentar uma série de elaborações de políticas públicas em saúde pautadas em redução de danos (Pires; Santos, 2021PIRES, R. R. C.; SANTOS, M. P. G. Desafios do multiprofissionalismo para a redução de danos em Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 2, e200072, 2021.).

Além disso, aprofundar as análises da utilização de drogas em sociabilidade com base em dados marcadores sociais da diferença, como gênero e orientação sexual, ilumina, ainda que em parte, como determinados sujeitos cuidam de si e interagem com os outros, já que “as cenas de festa underground são espaços onde se deslocam e reproduzem normas e expectativas relativas aos marcadores sociais da diferença, produzindo arranjos variados, cujos significados estão em disputa e tensão constantes” (Braga, 2018BRAGA, G. T. ‘O fervo e a luta’: políticas do corpo e do prazer em festas de São Paulo e Berlim. 2018. 292 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2018., p. 27).

Nesse sentido, Braga (2018BRAGA, G. T. ‘O fervo e a luta’: políticas do corpo e do prazer em festas de São Paulo e Berlim. 2018. 292 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2018.) destaca que festas underground se opõem às mainstream por serem realizadas longe das vistas do público, distante do que é convencional. Os fenômenos que são manifestados nesses espaços são múltiplos e diversos, mas, neste trabalho, enfatizaremos especificamente o público de homens homossexuais e a interação com drogas em contextos de festas de música eletrônica denominadas “tribal house”. Ao citar o antropólogo Edward MacRae, Braga (2018BRAGA, G. T. ‘O fervo e a luta’: políticas do corpo e do prazer em festas de São Paulo e Berlim. 2018. 292 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2018.) explica que o autor foi um dos pioneiros em discutir sociabilidades homossexuais, destacando a relação entre o avanço da visibilidade da homossexualidade e o surgimento de espaços de lazer noturno voltados às pistas de dança como um importante fator para a criação de identidades sexuais não-heterossexuais, principalmente nos grandes centros dos países ocidentais durante o século XX.

A partir desse cenário, instiga-nos traçar uma investigação voltada aos homens homossexuais e, em particular, daqueles que residem no Rio de Janeiro que, conforme Fabiano Gontijo (2007GONTIJO, F. S. Carioquice ou carioquidade? Ensaio etnográfico das imagens identitárias cariocas. In: GOLDENBERG, M. (Org.). Nu & Vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 41-77.), é uma cidade ímpar no tratamento e expressão de corpos sociais, com significativa valorização do corpo físico e territorialização de espaços com setorizações internas pré-estabelecidas, de acordo com as aparências, gostos e costumes dos membros das camadas gays fluminenses. Sendo assim, à luz das práticas de lazer, objetivamos analisar os sentidos do consumo de drogas por homens homossexuais em uma casa noturna da cidade do Rio de Janeiro, RJ.

Procedimentos metodológicos

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sendo o número do parecer 3.801.620, CAAE 26649419.8.0000.5257 e protocolo 434-19.

É uma pesquisa de natureza qualitativa, pautando-se fundamentalmente na observação participante e, especialmente para o trabalho de campo, inspirada em Clifford Geertz (1989GEERTZ, C. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In: GEERTZ, C. (Org.) A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989. p. 13-41.), quando argumenta sobre a relevância da permanência de determinado tempo, considerável, no espaço a ser analisado; o estabelecimento de uma distância interrelacional entre os sujeitos/cultura/hábitos pesquisados e o pesquisador; a observação atenta aos fatores que permeiam o tema e objeto de investigação da pesquisa; a necessidade de readequar-se aos planos iniciais, caso necessário, tendo em vista encontrar o máximo de detalhes possíveis; a descrição mais densa e fidedigna possível dos acontecimentos vislumbrados; a ausência de juízo de valor e/ou julgamentos morais e éticos nas observações e posteriores análises; e a busca do significado e do sentido nas práticas que estão se materializando neste trâmite simbológico.

O processo de observação participante ocorreu em uma boate de shows eletrônicos no bairro Saúde, localizado na região central da cidade do Rio de Janeiro, RJ. O local era frequentado por público variado, sendo reconhecido como espaço de festas e encontros ao público LGBTI+,1 1 Optamos pelo uso dessa sigla por ser a utilizada pela Aliança Nacional LGBTI+, uma organização sem fins lucrativos que luta pelos direitos das pessoas LGBTI+ no Brasil. Para mais informações, cf. https://aliancalgbti.org.br/ em especial, homens gays de classe média/alta. Popularmente, também era conhecido por membros da comunidade gay como um espaço mais plural e aberto para o consumo de drogas e eventuais práticas de sexo entre homens, inclusive chemsex (ato sexual sob efeito de drogas). Continha dois ambientes de música: um para o estilo eletrônica (principal) e outro para o estilo pop (alternativo). O ingresso de entrada era disponibilizado via aplicativo de celular, podendo variar de cortesias (entrada até 00hs), entrada comum (R$40,00 até 01h; R$60,00 até 02hs; R$80,00 após 02hs), camarote (R$80,00 até 01h; R$100,00 até 02hs; R$120,00 após 02hs) e/ou entrada revertida em consumação (a partir de R$60,00).

Foram acompanhados 36 episódios em festas eletrônicas, sempre aos sábados, todos com média de 8 horas de duração, totalizando 288 horas, entre os meses de janeiro de 2018 a setembro de 2019. A incursão ao campo de pesquisa ocorreu da seguinte maneira: houve a convivência do primeiro pesquisador com seus interlocutores nos momentos das festas e consumo de drogas. Por meio de conversas informais, estabeleceu-se a aproximação com o grupo entrevistado. Durante o trabalho de campo, optou-se por delimitar as razões, necessidades e prazeres que o consumo de drogas promovia e/ou desencadeava nos sujeitos, de acordo com a perspectiva do lazer desviante. Cabe frisar que este pesquisador já frequentava o círculo social dos interlocutores e interagia com eles em outras ocasiões, o que exigiu um exercício de reflexividade (Kulick, 1995KULICK, D. The sexual life of anthropologists: erotic subjectivity and ethnographic work. In: KULICK, D.; WILLSON, M. (Ed.). Taboo: Sex, identity, and erotic subjectivity in anthropological fieldwork. London: Routledge, 1995. p. 1-28.).

Nesse sentido, tal qual já apontou Gilberto Velho (1998VELHO, G. Nobres & anjos: um estudo de tóxicos e hierarquia. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.), a entrada e permanência do investigador no contexto de investigação de práticas desviantes provoca problemas éticos e morais. De fato, algumas características sociais contribuíram para que o pesquisador conseguisse se integrar aos interlocutores e observá-los sem recusas explícitas. Ser homem, homossexual, branco, jovem e afetivo-sexualmente atraído pelos homens que frequentavam o espaço fazia com que houvesse uma permeabilidade acessível na cena da rave/club junto dos demais ravers/clubbers. A partir daí, o pesquisador pôde compartilhar da intimidade, sentimentos e pensamentos dos interlocutores, além de juntos e de forma ritualizada “botarem para dentro” as substâncias2 2 Para evitar o consumo de substâncias perturbadoras de consciência, o pesquisador fazia uso de placebo [aprovado CEP]. Dessa forma, por estar supostamente compartilhando das substâncias e sensações do grupo, teve pleno acesso ao comportamento dos interlocutores, estando junto e acompanhando-os nas idas e vindas ao banheiro para que pudessem consumir mais drogas. tão valorizadas naquele contexto. O compartilhamento relativo dos desejos, dos contatos, das vivências e do próprio exercício dessas sexualidades fluidas, conforme sinalizam Don Kulick (1995KULICK, D. The sexual life of anthropologists: erotic subjectivity and ethnographic work. In: KULICK, D.; WILLSON, M. (Ed.). Taboo: Sex, identity, and erotic subjectivity in anthropological fieldwork. London: Routledge, 1995. p. 1-28.), Kate Altork (1995ALTORK, K. Walking the fire line: the erotic dimension of the fieldwork experience. In: KULICK, D.; WILLSON, M. (Ed.). Taboo: Sex, identity, and erotic subjectivity in anthropological fieldwork. London: Routledge, 1995. p. 107-139.) e Ralph Bolton (1995BOLTON, R. Tricks, friends, and lovers: erotic encounters in the field. In: KULICK, D.; WILLSON, M. (Ed.). Taboo: Sex, identity, and erotic subjectivity in anthropological fieldwork. London: Routledge, 1995. p. 140-167.), edificou a idealização desta pesquisa e trouxe ganhos potentes para a inserção/permanência no ambiente, ampliando, assim, a gama de interações realizadas e situações encontradas.

É importante pontuar que as observações e o processo de geração do material empírico foram realizados de forma encoberta, seguindo as orientações da Resolução nº 510 do Conselho Nacional de Saúde, de 07 de abril de 2016.3 3 Vide: <https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/Reso510.pdf> Acesso em: 20 ago. 2020. Nenhum dos interlocutores soube da realização da pesquisa, uma vez que a temática é sensível e a sua ciência poderia fazer com que rejeitassem ou se distanciassem do pesquisador com receio de serem identificados, estigmatizados e/ou tratados com olhares outros que não aquele de fraternidade grupal estabelecido. Frisa-se que o Comitê de Ética que aprovou essa pesquisa concordou e nos autorizou a realizá-la dessa forma.

Não houve, portanto, qualquer distinção do pesquisador como raver/clubber, tendo ele participado de todas as atividades com os demais interlocutores. Já durante suas anotações e análises, buscou-se exprimir todas e quaisquer sensações ou juízos de valor sobre a prática e seu engajamento com os interlocutores. Reconheceu-se, assim, que a proximidade e intimidade com os colaboradores era fundamental para que se tivesse acesso aos acontecimentos na íntegra e, para preservá-los de serem identificados, foram suprimidos seus nomes, o nome da boate e demais características que poderiam facilitar sua descoberta, com o intuito de não os prejudicar em nenhuma ocasião ou esfera social.

Assim, o grupo de interlocutores foi composto, ao todo, por 22 sujeitos autodeclarados homens homossexuais, marcados por distintas classificações de raça/cor/etnia e inseridos em variadas camadas sociais. Para melhor ilustrar nosso grupo, elaboramos o quadro a seguir, nominando-os por deuses ou heróis da mitologia grega. Optamos por essa designação por identificar forte apreço dos interlocutores ao ideal de um corpo masculino dito belo e sarado, às vezes identificado como “um deus grego” por eles. Esse ideal de beleza grego, muito difundido pelo mundo ocidental, parece orientar as práticas dos interlocutores com relação à manutenção e à conquista de corpos nos momentos das festas e/ou fora delas, sendo uma aspiração, um objetivo a ser alcançado, de significativo valor para o grupo.

Quadro 1
Perfil dos participantes investigados4 4 Todas as informações foram autodeclaradas pelos participantes ao longo do período de pesquisa.

Tanto as observações quanto as conversas ocorreram nos momentos das festas, antes, durante e após o consumo das drogas. Tão logo observava algum acontecimento, o pesquisador registrava-o em seu diário de campo digital, contido em seu aparelho celular no aplicativo de e-mail Outlook, de acesso e uso restritos a ele. Tão logo o pesquisador retornava das festas, relia suas anotações e as ratificava de modo a poder sistematizá-las para posteriores análises, a fim de não perder nenhum detalhe do “vivenciado em campo”, como sugerem Aaron Cicourel (1980CICOUREL, A. Teoria e método em pesquisa de campo. In: ZALUAR, A. (Org.). Desvendando máscaras sociais. São Paulo: Francisco Alves, 1980. p. 87-121.) e Howard Becker (1997BECKER, H. S. Métodos de pesquisa em ciências sociais. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1997.).

Apresentação e discussão dos resultados

Para compreender os sentidos estabelecidos entre homossexuais consumidores de drogas com fins de lazer em uma casa noturna da cidade do Rio de Janeiro, RJ, nos orientamos pela noção de “lazer invasivo” de Rojek (1999ROJEK, C. Abnormal leisure: Invasive, mephitic and wild forms. Loisir et société/Society and Leisure, Abingdon, v. 22, n. 1, 1999. p. 21-37.). Na concepção do autor, essa forma de experienciar o lazer ocorre quando o sujeito se torna incapaz de construir relacionamentos viáveis em termos sociais, isto é, a busca pelo lazer se dá como forma de se afastar da vida cotidiana.

Entretanto, o material empírico do trabalho de campo do estudo em tela indica como o “lazer invasivo” de Rojek (1999ROJEK, C. Abnormal leisure: Invasive, mephitic and wild forms. Loisir et société/Society and Leisure, Abingdon, v. 22, n. 1, 1999. p. 21-37.) pode não somente ser “observado”, como também ressignificado, reapropriado ou, ainda, reincorporado, a depender dos grupos sociais, a saber.

O prazer “mascarado”

Em inúmeros relatos e situações sociais, notamos o uso de substâncias para se atingir um estado de não-consciência, esquecer dos problemas ou, ainda, sentir-se fora do próprio corpo. Os depoimentos que justificam essa assertiva encontram-se explicitados abaixo:

Olha, eu uso isso é mesmo pra ficar louco, adoro misturar tudo, bala, key, gi, padê, dá uns efeitos fortes, é ótimo! A gente sai do corpo, essa onda é uma delícia, ver as coisas de fora, parece até que estou flutuando, me ajuda a relaxar né… aguentar essa merda de vida todo dia não dá não. (Apolo)

Eu gosto de viver no limite, sou insano, gosto do perigo. Do abuso, de me sentir na beira do precipício. Gosto de coisas fortes! Muito padê! (Eros)

Eu tomo essas coisas é pra esquecer dos meus problemas, entendeu? A vida tá um saco, eu estou cheio de cobrança no serviço, estou com problema em casa, estou de saco cheio disso tudo já […] só se entupindo de muito key pra aguentar isso, só assim pra curtir a onda […] (Adônis)

Quero ter lazer, todo sábado eu preciso vir aqui, é minha diversão. Uso tanto key que sempre saio de mim, fico travada, toda dura […] é babadeiro viu mulher, isso tomba mesmo, mas é uma delícia. Igual a Gisele, vixe […] mas a gente gosta né. (Aristeu)

As drogas supracitadas fazem parte do rol de substâncias que são utilizadas neste espaço em questão. Os interlocutores compartilham de um vocabulário para nomear as drogas a fim de não somente facilitar a comunicação entre os consumidores, como também com o intuito de desmistificar o sentido dado à substância, do modo pejorativo socialmente construído. Vasco Calado (2006CALADO, V. G. Drogas sintéticas: mundos culturais, música trance e ciberespaço. Lisboa: IDT. 2006., p. 73) explica que esses elementos fazem parte de uma subcultura6 6 Cabe frisar que o uso do termo não é uníssono pois, se por um lado identifica grupos que realizam/cultuam práticas sociais desviantes ou contra normativas, por outro cristaliza a compreensão de dinâmicas fluidas entre aquilo que seria típico e atípico de forma ininterrupta (Velho, 1998). que está “intimamente ligada ao imaginário e ao universo simbólico que caracteriza esta subcultura, mas prende-se também com razões utilitárias e motivos de pertença e afirmação no seio do grupo”. A partir do Quadro 2, podemos apreender como as relações se estabeleceram entre os interlocutores.

Quadro 2
Substâncias e seus pseudônimos

Assim, a suspensão (ainda que temporária) de si, seja pelo “gostar de ficar louco”, “de viver no perigo”, “flutuando”, quando “saio de mim” ou “pra esquecer dos meus problemas”, sinaliza que há elementos de ordem biológica, psicológica e social que atravessam suas práticas de lazer: o momento da festa eletrônica e o agrupamento entre seus pares servem como palco para compartilharem suas realidades de vida, ainda que “dopados” (Braga, 2018BRAGA, G. T. ‘O fervo e a luta’: políticas do corpo e do prazer em festas de São Paulo e Berlim. 2018. 292 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2018.).

“Desafiar a consciência”, “driblar os problemas” ou “escapar de si” por meio das drogas dialoga não somente com uma prática de lazer aleatória, que aponta para certo “divertimento”, mas, sobretudo, traduzem como vivem ou querem viver. Neste sentido, é possível vislumbrar o aspecto utilitarista do lazer, que funciona como via de fuga para aliviar as tensões das demandas sociais modernas do cotidiano (Elias; Dunning, 1992ELIAS, N.; DUNNING, E. A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992.).

Desse modo, observamos e sentimos junto aos interlocutores como o prazer mencionado por eles objetiva mascarar o próprio contexto sociocultural que os afeta. Podemos entender que as drogas, renomeadas a fim de expressar uma forma cerimonial de viver e experienciar o lazer, caracterizam um momento específico da vida social dos participantes. Esse momento é a(o) rave/club e os modos como tais homens homossexuais relacionam-se com suas próprias vidas ordinárias.

Nesta leitura, é importante compreender a maneira como o termo “droga” carrega um estigma sinalizado às baixas classes, ou ainda à população menos favorecida e/ou periférica, aludindo a um contexto punitivo e proibicionista (Silva; Souza; Peres, 2021SILVA, P. C. O.; SOUZA, C. M.; PERES, S. O. Uso de drogas sob a perspectiva de gênero: uma análise das histórias de vida de jovens das camadas médias no Rio de Janeiro. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 3, 2021.), e passando a ser utilizada sob outra conotação pelo público interlocutor (majoritariamente de classe média-alta), ou seja, através de pseudônimos. Coadunando com as afirmações anteriores, é possível notar esse apontamento nos diálogos a seguir:

Isso que está aí com você é cocaína? (Pesquisador)

Isso não é cocaína, não fala cocaína, fala padê.(Orfeu)

Ué gente, mas padê não é cocaína não?(Pesquisador)

Eu sei que é, mas não precisa falar isso, esse nome não é legal. É padê.(Orfeu)

Para que todos esses nomes, não é mais simples falar que calvin é padê com key e special é bala com key? (Pesquisador)

Não amigo, a gente usa esses códigos porque é da onda, entendeu, são os nomes que a gente dá. Também nem sei, é isso. (Poseidon)

Toda hora vejo você nesse entre e sai desse banheiro, tá aprontando hein […] (Pesquisador)

Estou na função, adoro uma colocação! Pra mim o maior divertimento às vezes não é nem usar, é entrar no banheiro, fazer aquela roda, sacar as coisas, misturar tudo e fazer a função, depois sair em fila do banheiro. (Teseu)

Se não for para me colocar bem colocado eu não saio de casa. (Atlas)

Todo mundo usa alguma coisa, mas aí chega aqui quer apontar o dedo e dizer que tá tudo drogado. (Apolo)

As pessoas pensam que só porque você tá aqui na [nome da boate] você é viciado, mas todo mundo aqui usa as coisas e ninguém é viciado não. (Morfeu)

O termo “colocação” vem justamente para substituir a expressão “uso de drogas”, bem como os pseudônimos das substâncias, que são acionados para expressar, de maneira suavizada, o que se está consumindo. Essa adoção contribui para o entendimento de lazer, distanciando-se de um quadro de dependência química, em que apenas se consegue “curtir” a festa se ocorrer o consumo dessas substâncias (já que todos os sujeitos demonstraram a necessidade de utilização em todos os eventos registrados).

No entanto, enquanto estratégia de amenização do reconhecimento deste possível quadro, o uso de termos brandos parece trazer certo alento e possibilitar o divertimento de uma forma mais potente, contribuindo para o estabelecimento de elos entre os consumidores, para a repartição de seus significados de determinada forma de inserção no mundo e para a subsistência de concepções dominantes, baseadas nas realidades compartilhadas (Sousa et al., 2021SOUSA, Y. S. O. et al. Drogas, Normas e Representações Sociais: Uma Análise de Conteúdos Evocados em Diferentes Contextos. Revista de Psicologia da IMED, Passo Fundo, v. 13, n. 1, p. 55-71, 2021.).

Destarte, conforme sugere Velho (1998VELHO, G. Nobres & anjos: um estudo de tóxicos e hierarquia. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.), não podemos conceber o mundo das drogas no singular, uma vez que coexistem inúmeros “mundos das drogas”, bem como sentidos sobre elas, de acordo com as várias formas de constituição e interações sociais. Em adição, Becker (2011BECKER, H. S. Falando da sociedade: ensaios sobre as diferentes maneiras de representar o social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011.) expõe que a utilização de termos diferentes e sobre olhares de diversos pontos de vista se traduzem em uma linguagem das drogas, em que aquele que a enuncia possui um entendimento que parte da sua própria relação com a(s) substância(s). Nesse sentido, os ravers/clubbers não estão drogados, mas sim colocados, levando-se a apontar que “A linguagem dos usuários sugere que o uso é voluntário, agradável e inocente” (Becker, 2011BECKER, H. S. Falando da sociedade: ensaios sobre as diferentes maneiras de representar o social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011., p. 159).

Para além disso, o estabelecimento dessa linguagem própria reforça a distância do “resto da sociedade”, já que “uma escala de valores comum, uma certa consciência de identidade, nascida inclusive da própria acusação de desvio, e um sistema de comunicação até certo ponto próprio” (Velho, 1998VELHO, G. Nobres & anjos: um estudo de tóxicos e hierarquia. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998., p. 16) constituiria o cerne da identidade/grupo dos ravers/clubbers. Estar “colocado” significa que os interlocutores estão aditivados, sentindo boas sensações, no “delírio” e no protagonismo da situação, tornando-os sujeitos ativos e autônomos da substância que ingerem. Em outras palavras, não são dependentes ou viciados, mas exploradores de sensações regozijantes que “rejeitam os contos de fadas exóticos em que pessoas sem qualquer experiência de primeira mão acreditam” (Becker, 2011BECKER, H. S. Falando da sociedade: ensaios sobre as diferentes maneiras de representar o social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011., p. 86).

Logo, o prazer “mascarado” aqui abordado nos demonstra como os próprios usuários concebiam as substâncias, reconhecendo seus efeitos físico-orgânicos durante os momentos de lazer. Os modos como se reportavam às drogas e as maneiras como interagiam durante as festas indicavam que, a todo instante, sabiam o que estavam “colocando para dentro”. Portanto, o processo de “tomar algo” constrói-se simbolicamente durante as interações sociais, de modo que falem pelos sujeitos que consomem determinadas substâncias (Silva, 2017SILVA, A. C. Corpos no limite: suplementos alimentares e anabolizantes em academias de ginástica. Jundiaí: Paco Editorial, 2017.).

A tentativa de reduzir danos

Identificamos, também, que os sujeitos adotavam medidas para evitar que o consumo das substâncias pudesse causar efeitos nocivos a curto prazo, bem como para diminuir seus efeitos a longo prazo:

A questão é essa, sempre acionar o protocolo de redução de danos! A gente malha é para isso, come bem para isso, para chegar aqui e ficar toda colocada mesmo! (Orfeu)

A sociedade toda usa substâncias, então o segredo está na redução de danos, saber controlar isso para ficar bem mesmo com o uso. (Poseidon)

Quando faz colocação tem que se hidratar bem, ainda mais a bala, porque ela desidrata né. Todas elas na verdade, ajudam o corpo a eliminar isso, então precisa reduzir os danos. (Hefesto)

Percebemos o acionamento de uma espécie de protocolo de segurança reconhecido como Redução de Danos (RD). “Essa estratégia permite a possibilidade de se pensar como o usuário pode conviver com o consumo da droga, preconizando o autocuidado e a redução dos riscos - sociais e à saúde - que a droga pode causar” (Lima; Mesquita, 2019LIMA, P. L.; MESQUITA, K. O. A estratégia de redução de danos como prática potencializadora no cuidado ao usuário de droga: um ensaio teórico. In: SILVA NETO, B. R. (Org.). Saúde Pública e Saúde Coletiva: dialogando sobre interfaces temáticas. Ponta Grossa: Atena Editora, 2019. v. 4. p. 12-23., p. 13). A RD compreende que substâncias, sejam elas as mais diversas, estão presentes em inúmeros meios sociais, sendo, portanto, utilizadas pela população: “[…] alguns grupos ou alguns sujeitos inseridos na coletividade irão recorrer, por diversos motivos, a experiências de alteração de consciência” (Costa; Silva, 2018COSTA, J. H. R.; SILVA, M. N. A. A redução de danos e o arquétipo da alteridade: uma análise do modelo proibicionista dominante no âmbito do tratamento para pessoas que fazem uso problemático de drogas. Revista Eletrônica da Faculdade Sete de Setembro, Paulo Afonso, v. 12, n. 16, p. 107-123, 2018., p. 118).

“Estar ligado”, “cuidar-se para usar” e “controlar para consumir” são perspectivas êmicas desse grupo analisado. Assim, mais do que um consumo de drogas aleatório ou “inconsciente”, detectamos, ao longo do trabalho de campo, as preocupações de cuidados entre eles, tais como a adoção de estilos de vida entendidos como saudáveis (malhar e comer bem); atenção à hidratação e intervalos pré-estabelecidos entre o consumo das substâncias, para se evitar uma overdose.

Logo, nesse caso, o lazer “invasivo” de Rojek (1999ROJEK, C. Abnormal leisure: Invasive, mephitic and wild forms. Loisir et société/Society and Leisure, Abingdon, v. 22, n. 1, 1999. p. 21-37.) precisa ser reterritorializado. Por um lado, Rojek defende que o sujeito almeja mascarar elementos considerados inválidos sob o prisma de que as condições sociais envolvidas neste processo não se alterarão. Como resposta, desenvolve-se um sentimento hostil, de frustração e falta de autenticidade, que é internalizado e se torna proeminente na vivência do lazer, já que nas esferas profissional e/ou familiar, tais sensações podem ser ignoradas pela ocupação social. Entretanto, para esses homens, ali durante o momento de lazer havia uma preocupação de si com base na RD.

O uso de drogas e/ou substâncias psicoativas tem aumentado consideravelmente na contemporaneidade (Silva; Souza; Peres, 2021SILVA, P. C. O.; SOUZA, C. M.; PERES, S. O. Uso de drogas sob a perspectiva de gênero: uma análise das histórias de vida de jovens das camadas médias no Rio de Janeiro. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 3, 2021.), em que a falta de informação e as políticas precárias acerca do desenvolvimento de estratégias de saúde para tratar esse quadro contribuem para uma leitura simplista sobre a temática (Sousa et al., 2021SOUSA, Y. S. O. et al. Drogas, Normas e Representações Sociais: Uma Análise de Conteúdos Evocados em Diferentes Contextos. Revista de Psicologia da IMED, Passo Fundo, v. 13, n. 1, p. 55-71, 2021.; Montenegro; Brilhante; Munguba, 2021MONTENEGRO, Y. F. L.; BRILHANTE, A. V. M.; MUNGUBA, M. C. Paradoxo nas políticas sobre drogas: embates discursivos sobre a Lei 13.840/2019 em portais de notícia. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 4, e210064, 2021.). No imaginário social, acredita-se que a RD estimule o uso e consumo de drogas, tanto lícitas quanto ilícitas, uma vez que essa proposta se contrapõe aos clássicos modelos punitivos e proibicionistas - higienistas - que adotam intervenções culpabilizantes e/ou de abstinência compulsória aos consumidores de drogas (Lopes; Gonçalves, 2018LOPES, H. P.; GONÇALVES, A. M. A política nacional de redução de danos: do paradigma da abstinência às ações de liberdade. Pesquisas e Práticas Psicossociais, São João del Rei, v. 13, n. 1, p. 1-15, 2018.; Montenegro; Brilhante; Munguba, 2021MONTENEGRO, Y. F. L.; BRILHANTE, A. V. M.; MUNGUBA, M. C. Paradoxo nas políticas sobre drogas: embates discursivos sobre a Lei 13.840/2019 em portais de notícia. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 4, e210064, 2021.).

Nesse contexto da RD, lembramos que os usos do corpo dos sujeitos público-alvo dessa pesquisa devem ser discutidos especificamente à luz das condições pertinentes a gênero e orientação sexual. Podemos perceber este fenômeno nos seguintes depoimentos:

Não basta ser viado, ainda tem que usar essas coisas (drogas). Ou seja, vai no hospital passando mal, as enfermeiras já olham com aquela cara né. (Hermes)

Primeiro eu desconstruí o padrão da heteronormatividade quando me aceitei gay. Aí agora eu quebrei a barreira moral sobre a droga. Vou usar mesmo, me faz bem, me sinto bem, me ajuda, depois a gente cuida dos problemas, morrer um dia todo mundo vai, então foda-se, vou aproveitar a vida mesmo porque só se vive uma vez. (Adônis)

Tu conhece alguma gay que não usa nada? Se não for colocação é álcool, a gente viada já sofre de todo lado, então bora ser feliz e ficar colocada que aqui dentro (da boate) a gente pelo menos é igual e feliz, e não tem problema nenhum. (Aristeu)

Destarte, a rede de relações construída por esses homens consumidores de drogas durante o lazer baseava-se também na perspectiva de outsider, tão problematizada por Becker (2008BECKER, H. S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.). Se “ser gay” significava “fugir da norma”, “drogar-se” era apenas mais um (ou mero) elemento que os tornavam “desviantes”, ou “duplamente desviantes”. Fazê-lo em um espaço onde teoricamente são iguais e ficam felizes faz com que subvertam essas normatividades, pois as práticas do local são sublinhadas como normais e aceitáveis, uma característica de fraternidade, companheirismo e aceitação que o ambiente das festas propicia (Braga, 2018BRAGA, G. T. ‘O fervo e a luta’: políticas do corpo e do prazer em festas de São Paulo e Berlim. 2018. 292 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2018.). Todavia, Hermes diz que chegar ao hospital “drogado” seria motivo de discriminação e de um mau atendimento, indicando que, por vezes, não somente os profissionais de saúde demonizam tais substâncias (Becker, 2011BECKER, H. S. Falando da sociedade: ensaios sobre as diferentes maneiras de representar o social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011.), como também quem frequenta essas festas é considerado “viciado perigoso” (Velho, 1998VELHO, G. Nobres & anjos: um estudo de tóxicos e hierarquia. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.; Becker, 2008BECKER, H. S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.).

Dessa maneira, era na festa eletrônica e entre eles que o sentimento de “ser de fora” ficava atenuado, por isso a importância da RD nesses cuidados de si. Em outras palavras, havia ali um modo positivado de pertencimento afetivo entre aqueles homens homossexuais. A(o) rave/club caracterizava-se como um “mundo à parte” que permitia empatia e solidariedade entre os interlocutores, estabelecendo uma estratégia de vínculos (Pires; Santos, 2021PIRES, R. R. C.; SANTOS, M. P. G. Desafios do multiprofissionalismo para a redução de danos em Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 2, e200072, 2021.).

Historicamente, a literatura indica que pessoas homossexuais encontram-se mais suscetíveis ao uso e consumo de álcool e drogas, uma vez que tanto no seio familiar quanto socialmente podem ser estigmatizados e marginalizados, portanto, uma das redes de apoio no qual se sustentam é, justamente, em substâncias psicoativas ou que promovem alteração de consciência (Nascimento; Scorsolini-Comin, 2018NASCIMENTO, G. C. M.; SCORSOLINI-COMIN, F. A revelação da homossexualidade na família: revisão integrativa da literatura científica. Temas em Psicologia, Ribeirão Preto, v. 26, n. 3, p. 1527-1541, set. 2018.).

Face ao exposto, Adriana Nunan (2010NUNAN, A. Preconceito internalizado e comportamento sexual de risco em homossexuais masculinos. Psicologia Argumento, Curitiba, v. 28, n. 62, p. 247-259, 2010.) especifica os estressores aos homossexuais enquanto externos e internos, sendo os primeiros aqueles que são direcionados pelas demais esferas sociais ao sujeito e o interno aquele que o sujeito já introjetou e reproduz para si mesmo através de discursos, práticas e comportamentos desqualificadores. Para a autora:

[…] quando o estereótipo é muito forte ou pernicioso, membros do grupo alvo tendem a aceitá-lo e incorporá-lo à sua auto-imagem, fazendo com que sentimentos negativos com relação à própria orientação sexual sejam generalizados para o self como um todo (Nunan, 2010NUNAN, A. Preconceito internalizado e comportamento sexual de risco em homossexuais masculinos. Psicologia Argumento, Curitiba, v. 28, n. 62, p. 247-259, 2010., p. 248).

A tensão que esses estressores conferem ao público de homossexuais seria um dos principais motivadores à submissão deste público à conduta de riscos, que ultrapassa do uso e consumo de drogas vista como “descontrolada”. Parente et al. (2015PARENTE, J. S. et al. Álcool, drogas e violência: implicações para a saúde de minorias sexuais. Reprodução & Climatério, São Paulo, v. 30, n. 3, p. 108-114, 2015.) problematizam como esses fatores influenciam na construção da autoestima de sujeitos LGBTI+, explorando os efeitos exclusivos, individualizados e coletivos do abuso de substâncias psicoativas neste grupo como estratégias de enfrentamento a vários sentimentos negativos sociais e pessoais, apontando a forte sujeição a que se encontram a situações de violência emocional, psicológica e física. A autoria conclui que mais pesquisas sobre a temática precisam ser realizadas para auxiliar na elaboração de novas políticas de saúde, inclusive aquelas que reconheçam que os fatores sociais de determinados contextos discriminatórios podem influenciar as minorias sexuais a se engajarem em práticas de drogatização.

Em síntese, subverter o olhar dado aos homossexuais consumidores de drogas, desmistificando ideias de julgamento que os enquadrem em quadros psicopatológicos e possibilitando uma nova leitura por outro prisma, que privilegia as relações entre o sujeito, a droga e seu meio sociocultural, tornam-se os principais norteadores das políticas adotadas de RD neste contexto. Desta forma, é possível estabelecer uma relação entre conhecimento, prevenção e diminuição dos riscos aos quais os consumidores se submetem, além de considerar outros fatores que tentem compreender o porquê da necessidade de consumirem essas substâncias (Costa; Silva, 2018COSTA, J. H. R.; SILVA, M. N. A. A redução de danos e o arquétipo da alteridade: uma análise do modelo proibicionista dominante no âmbito do tratamento para pessoas que fazem uso problemático de drogas. Revista Eletrônica da Faculdade Sete de Setembro, Paulo Afonso, v. 12, n. 16, p. 107-123, 2018.), já que nesta pesquisa, os marcadores de gênero e orientação sexual influenciaram relativamente a ideia de fugir da realidade e/ou relaxar mediante situações de vida estressantes.

O manejo coletivo das substâncias

Registamos aqui como as próprias maneiras de consumir as drogas se estabeleciam na rede de relações entre eles e como, de fato, isso implicava nos diversos sentidos atribuídos ao consumo das substâncias. As situações sociais construídas nas festas eletrônicas não se tratavam apenas de comportamentos individuais e isolados, mas de uma maneira de participar cerimonial e fundamentalmente importante na coesão do grupo em tela. Esses episódios encontram-se descritos nos cenários abaixo:

Cenário 1: Os primeiros momentos da festa

Após a entrada na festa, todos os seis integrantes do grupo (Zeus, Hades, Argus, Aristeu, Hefesto, Belerofonte) dirigiram-se para a área vip da boate e entraram em conjunto na cabine do banheiro. Formaram um círculo e Hades cedeu seu celular para que nele fossem despejados cocaína e cetamina. Aristeu sacou o cartão de consumo da festa e misturou as substâncias com ele, dividindo o produto final em seis carreiras de pó. Logo em seguida, cedeu um canudo pequeno e cada um os presentes aspirou uma carreira. Ao término, todos saíram do banheiro e se dirigiram para a pista de dança.

Cenário 2: O retoque de maquiagem

Assim que os efeitos das substâncias inaladas passavam, no julgar dos participantes, novamente se reuniam e se dirigiam para o banheiro para realizar uma nova rodada de consumo, seguindo os mesmos procedimentos anteriores. Essa etapa era denominada de “retocar a maquiagem”.

Cenário 3: O culto e a missa

Alguns participantes, tais como Apolo, Zeus, Hades, Poseidon e Argus, nomeavam os eventos promovidos pela boate de “culto” ou “missa”, em que era cultuada uma espécie de rito da diversão.

Cenário 4: A onda compartilhada

Em todos os eventos observados, Ajax sempre se configurou como o detentor das substâncias, aquele que “salvava” os amigos. Sempre munido de anfetaminas, cocaína e cetamina, quase sempre era acionado pelos seus companheiros que, sem o porte de substâncias, solicitavam consumir o aporte de Ajax. Este, por sua vez, sempre cedia as substâncias, no esquema supracitado, alegando querer compartilhar a onda e promover essa amistosidade entre ele e seus amigos, sob a seguinte justificativa: “Eu não tenho problema de dar colocação pros meus, se estão comigo são dos meus, eu defendo e ajudo mesmo, então se precisar estamos aí”.

Como se pode perceber, o consumo das substâncias não era realizado sem um código comum que permeava a todos os interlocutores. Havia uma espécie de cerimonial para se consumir e desfrutar dos prazeres que as drogas poderiam ofertar, estabelecendo, assim, elos e redes simbólicas entre os interlocutores. Todos mantinham laços afetivos fora do espaço analisado em questão, ou seja, nesses momentos observados, eles se reuniam para se divertir e aproveitar ao máximo a companhia de/no seu(s) grupo(s) social(is).

Neste sentido, reportamo-nos à Maria Carmo Carvalho (2016CARVALHO, M. C. A. Ambientes Recreativos Noturnos: as dimensões ambientais e os fenómenos do uso de substâncias psicoativas, do risco e da proteção. 2016. 508 f. Tese (Doutorado em Psicologia) - Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade do Porto, Porto. 2016.) e sua interpretação acerca das redes significativas, que são estabelecidas entre os consumidores de substâncias para configurar uma espécie de grupo de que se vale da adoção de medidas ancestrais, históricas e que se encontram intrínsecas ao caráter biopsicossocial do ser humano. A autora aciona o antropólogo Scott R. Hutson e sua clássica obra, Technoshamanism: Spiritual healing in the rave subculture, de 1999, para situar as raves enquanto espaço com traços ritualísticos, o que pode ser aqui bem observado pelo uso dos termos “culto” e “missa” atribuídos aos eventos em que os participantes presenciavam, incluindo aspectos de vivência temporal, “[…] a abertura, a busca de um estado de indiferenciação e unidade em relação ao outro, de um estado de total solidariedade, a que corresponde o referido ideal de communitas” (Carvalho, 2016CARVALHO, M. C. A. Ambientes Recreativos Noturnos: as dimensões ambientais e os fenómenos do uso de substâncias psicoativas, do risco e da proteção. 2016. 508 f. Tese (Doutorado em Psicologia) - Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade do Porto, Porto. 2016., p. 28).

O uso e repartição em conjunto, por exemplo, ocorriam como uma espécie de cerimônia, em que os sujeitos se reuniam em círculo para apreciar a mistura das substâncias em um eixo (o celular, por exemplo), que era posteriormente finalizada (com o uso do cartão para misturar as substâncias) e só então consumida de forma sequencial, compartilhando o mesmo objeto continuadamente (o canudo ou uma nota de dinheiro enrolada, por exemplo). A reprodução deste modelo se deu veementemente fiel em todos os eventos observados, revelando-se uma maneira de como consumir (Carvalho, 2016CARVALHO, M. C. A. Ambientes Recreativos Noturnos: as dimensões ambientais e os fenómenos do uso de substâncias psicoativas, do risco e da proteção. 2016. 508 f. Tese (Doutorado em Psicologia) - Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade do Porto, Porto. 2016.).

Coadunando com as inferências tecidas, expressões de suavização eram acionadas para mascarar o uso e consumo das substâncias, tais como “retocar a maquiagem”. Assim, suavizava-se o fato de se estarem consumindo mais drogas, ainda que em determinados momentos alguns interlocutores acabassem experimentando efeitos da superdosagem.

O cuidado prestado pelo grupo também foi outro fator muito presente e enaltecido entre seus membros. Quando algum deles se sentia desconfortável ou acabava “entrando no buraco”,8 8 Termo utilizado para designar sensações estranhas ou desconfortáveis após o consumo excessivo de uma substância em pouco tempo, especialmente a cetamina. era comum que algum ou alguns dos demais prestassem atendimentos para auxiliar no retorno do membro à “good trip”.9 9 Termo acionado para identificar o estado que se almejava atingir com o consumo das substâncias, fazendo alusão a um prazer dito sensacional. Geralmente, esse papel é desempenhado por aquele com mais experiência e que já conhece os efeitos e situações decorrentes de uma superdosagem (Calado, 2006CALADO, V. G. Drogas sintéticas: mundos culturais, música trance e ciberespaço. Lisboa: IDT. 2006.). De acordo com Braga (2018BRAGA, G. T. ‘O fervo e a luta’: políticas do corpo e do prazer em festas de São Paulo e Berlim. 2018. 292 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2018.), esse cuidado transfigurado como “código de conduta” faz parte do universo dessas festas porque seus frequentadores integram e compartilham algo especial, onde ritualizam o consumo de substâncias psicoativas de variadas formas que, embora consideradas perigosas,10 10 Como possíveis riscos e/ou perigos do universo das drogas, Braga (2018) identifica que o uso das substâncias pode ocorrer de forma abusiva; criminosos podem utilizar altas quantidades de drogas depressoras com o intuito de diminuir a consciência da vítima e roubá-la ou abusar sexualmente dela; e pode ocorrer o envolvimento de clubbers com o comércio ilegal dessas substâncias, acarretando consequências legais e punitivas. Percebe-se que, embora o engajamento com as drogas possa vir a apresentar riscos, igualmente coexiste uma lógica de cuidado e instauração de redes de apoio e solidariedade para amenizar ou lidar com esses perigos. estabelecem significativas redes de afeto e confiança.

Além disso, a adoção dessa medida visava impedir que os seguranças da casa identificassem o mal-estar da pessoa e a retirassem do estabelecimento, o que denota a construção de um grupo de membros fiéis entre si, que buscam compartilhar dos mesmos prazeres e cuidar uns dos outros caso algo saia do previsto (embora, em alguns casos, como nos de Eros e Adônis, por exemplo, “entrar no buraco” fosse o objetivo do consumo das substâncias).

Além disso, a “troca de mercadorias” também era uma das formas de fortificar o vínculo entre os grupos, já que eram compartilhadas bebidas e outras drogas de acordo com a disponibilidade de cada um(a), ou seja, no caso de acabar alguma substância de algum membro, outro prontamente cedia a sua para manter o consumo sempre presente ao longo da madrugada. Geralmente, essas substâncias eram cedidas em maior quantidade pelos interlocutores de classe média-alta aos demais, até mesmo pelo alto custo das drogas em questão: o vidro de cetamina, por exemplo, era conseguido em torno de R$ 250,00; os comprimidos de ecstasy, a R$ 30,00 cada; e as quantidades de cocaína para uma noite, a R$ 140,00.

Outro artifício identificado, ainda se referindo às questões de classe social, é que Apolo, Ares, Eros, Hades e Hermes, membros de classe baixa ou média-baixa, só adentravam nas festas antes de 00h, com o ingresso de cortesia, enquanto os de classe média (Zeus, Aquiles, Adônis e Orfeu) variavam entre cortesias e os ingressos comuns, e os demais, de classe média-alta, sempre entravam como camarote ou ingresso revertido em consumação. Nessa dinâmica, percebia-se que a maior parte deles carregava consigo as drogas a serem consumidas, porém os de classe baixa sempre recebiam contribuições de seus companheiros mais avantajados socioeconomicamente. Não foi possível notar até que ponto essa comunidade em torno das substâncias era recreativa, ocasional, dependente ou danosa, mas o que ficou mais explícito durante as interações sociais foi o engajamento de homens homossexuais de classe social média-alta a alta nessa rave/club que, por vezes, custeavam a consumação de seus “apadrinhados” de menor poder aquisitivo, denunciando que esta rede de interlocutores, diversão e consumo, é significativamente marcada por questões de classe e gênero.11 11 Dentro da sigla LGBTI+, membros da letra G (gays) são os mais representados/visualizados quando se discute sobre a temática. Igualmente, é possível perceber condições socioeconômicas melhores entre eles quando comparados aos(às) seus(suas) colegas de sigla. Embora o uso de drogas em festas não seja uma exclusividade do público de homens homossexuais, há de se considerar que, em função de outras relações, tais como classe social e cor/raça, por exemplo, coexistem inúmeros espaços de usufruto de práticas desviantes, o que não foi possível explorar neste estudo. A continuidade de pesquisas sobre o tema, com outros perfis e espaços, desponta como frutífero nicho de pesquisa, sendo essa uma de nossas limitações, mas também uma de nossas recomendações.

Em suma, o que se percebe é, à luz de Velho (1998VELHO, G. Nobres & anjos: um estudo de tóxicos e hierarquia. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.), o estabelecimento de um ethos entre os sujeitos que construíam vínculos de pertencimento e aparentavam conexões significativas entre eles, sendo as substâncias utilizadas uma forma de compartilhar dessa experienciação de forma contínua, plural e diversa.

Considerações finais

A partir de uma microrrealidade em uma casa noturna da cidade do Rio de Janeiro, RJ, percebemos como o consumo de drogas pode assumir distintos sentidos, orientados primordialmente por determinados marcadores sociais da diferença, tais como a identidade de gênero, a orientação sexual, a raça/etnia e a faixa etária. Para além de qualquer generalização de práticas de lazer do tipo “invasivo” ou “desviante” por determinado grupo social, este trabalho aprofundou analiticamente como as drogas são concebidas ou manejadas de forma múltipla, a partir de uma teia de estruturas simbólicas atribuídas ao espaço, às substâncias e aos utensílios que fazem parte desta atividade.

Em termos gerais, notamos como os comportamentos dos interlocutores possibilitaram o vislumbre de um cenário social significativo e articulado, em que a droga simboliza a união e o apoio socioemocional que conecta os homossexuais consumidores em um espaço plural às diversidades, a princípio sem julgamentos morais às condições sexuais e às práticas desviantes aqui discutidas. Além disso, identificamos que o consumo das drogas em cada festa fortalecia a coesão grupal, além de refletir sentimentos de fraternidade, companheirismo e irmandade, edificando e retroalimentando, assim, as relações cultivadas entre eles. Estabelecia-se, portanto, uma espécie de “grupo terapêutico” atrelado à essa vivência do lazer, prática acionada para “suportar e sobreviver” às demandas sociais, por vezes preconceituosas e discriminatórias.

Logo, este trabalho indica como um “bem-viver” para dados grupos sociais pode ser atravessado por dispositivos que, a princípio, no senso comum, são considerados “danosos”. Para além de romantizar ou descartar o consumo abusivo e os possíveis efeitos deletérios das drogas, tais dados revelam como certas substâncias são simbolizadas em um sentido de cuidado individual e coletivo. Tais achados vão de encontro às perspectivas drogacêntricas tradicionalmente invasivas, agressivas e que condenam moral e exclusivamente o sujeito consumidor de forma isolada e marginalizada.

Assim, compreender o consumo de drogas por homens homossexuais em espaços e momentos de lazer significa, sobretudo, permitir o exercício de alteridade na busca de lógicas de certos (ou outros) cuidados de si igualmente legítimos àqueles em que a racionalidade biomédica dita como “saudáveis”. Nessa direção, argumentamos sobre a potência desses tipos de empreendimentos investigativos acerca das práticas ditas “desviantes”, desmistificando o tratamento vilipendioso da temática e estimulando/possibilitando o desenvolvimento/implementação/fortalecimento de novas ou atuais políticas públicas de saúde mais eficazes, afetivas e, especialmente, humanas.

Referências

  • ALTORK, K. Walking the fire line: the erotic dimension of the fieldwork experience. In: KULICK, D.; WILLSON, M. (Ed.). Taboo: Sex, identity, and erotic subjectivity in anthropological fieldwork. London: Routledge, 1995. p. 107-139.
  • BECKER, H. S. Falando da sociedade: ensaios sobre as diferentes maneiras de representar o social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011.
  • BECKER, H. S. Métodos de pesquisa em ciências sociais. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1997.
  • BECKER, H. S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
  • BOLTON, R. Tricks, friends, and lovers: erotic encounters in the field. In: KULICK, D.; WILLSON, M. (Ed.). Taboo: Sex, identity, and erotic subjectivity in anthropological fieldwork. London: Routledge, 1995. p. 140-167.
  • BRAGA, G. T. ‘O fervo e a luta’: políticas do corpo e do prazer em festas de São Paulo e Berlim. 2018. 292 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2018.
  • CALADO, V. G. Drogas sintéticas: mundos culturais, música trance e ciberespaço. Lisboa: IDT. 2006.
  • CARVALHO, M. C. A. Ambientes Recreativos Noturnos: as dimensões ambientais e os fenómenos do uso de substâncias psicoativas, do risco e da proteção. 2016. 508 f. Tese (Doutorado em Psicologia) - Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade do Porto, Porto. 2016.
  • CICOUREL, A. Teoria e método em pesquisa de campo. In: ZALUAR, A. (Org.). Desvendando máscaras sociais. São Paulo: Francisco Alves, 1980. p. 87-121.
  • COSTA, J. H. R.; SILVA, M. N. A. A redução de danos e o arquétipo da alteridade: uma análise do modelo proibicionista dominante no âmbito do tratamento para pessoas que fazem uso problemático de drogas. Revista Eletrônica da Faculdade Sete de Setembro, Paulo Afonso, v. 12, n. 16, p. 107-123, 2018.
  • ELIAS, N.; DUNNING, E. A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992.
  • GEERTZ, C. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In: GEERTZ, C. (Org.) A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989. p. 13-41.
  • GIORGETTI, R. et al. When “chems” meet sex: a rising phenomenon called “chemsex”. Current neuropharmacology, San Francisco, v. 15, n. 5, p. 762-770, 2017.
  • GONTIJO, F. S. Carioquice ou carioquidade? Ensaio etnográfico das imagens identitárias cariocas. In: GOLDENBERG, M. (Org.). Nu & Vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 41-77.
  • KULICK, D. The sexual life of anthropologists: erotic subjectivity and ethnographic work. In: KULICK, D.; WILLSON, M. (Ed.). Taboo: Sex, identity, and erotic subjectivity in anthropological fieldwork. London: Routledge, 1995. p. 1-28.
  • LIMA, P. L.; MESQUITA, K. O. A estratégia de redução de danos como prática potencializadora no cuidado ao usuário de droga: um ensaio teórico. In: SILVA NETO, B. R. (Org.). Saúde Pública e Saúde Coletiva: dialogando sobre interfaces temáticas. Ponta Grossa: Atena Editora, 2019. v. 4. p. 12-23.
  • LOPES, H. P.; GONÇALVES, A. M. A política nacional de redução de danos: do paradigma da abstinência às ações de liberdade. Pesquisas e Práticas Psicossociais, São João del Rei, v. 13, n. 1, p. 1-15, 2018.
  • MAXWELL, S.; SHAHMANESH, M.; GAFOS, M. Chemsex behaviours among men who have sex with men: a systematic review of the literature. International Journal of Drug Policy, Liverpool, v. 63, p. 74-89, 2019.
  • MONTENEGRO, Y. F. L.; BRILHANTE, A. V. M.; MUNGUBA, M. C. Paradoxo nas políticas sobre drogas: embates discursivos sobre a Lei 13.840/2019 em portais de notícia. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 4, e210064, 2021.
  • NASCIMENTO, G. C. M.; SCORSOLINI-COMIN, F. A revelação da homossexualidade na família: revisão integrativa da literatura científica. Temas em Psicologia, Ribeirão Preto, v. 26, n. 3, p. 1527-1541, set. 2018.
  • NUNAN, A. Preconceito internalizado e comportamento sexual de risco em homossexuais masculinos. Psicologia Argumento, Curitiba, v. 28, n. 62, p. 247-259, 2010.
  • PARENTE, J. S. et al. Álcool, drogas e violência: implicações para a saúde de minorias sexuais. Reprodução & Climatério, São Paulo, v. 30, n. 3, p. 108-114, 2015.
  • PIRES, R. R. C.; SANTOS, M. P. G. Desafios do multiprofissionalismo para a redução de danos em Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 2, e200072, 2021.
  • ROJEK, C. Abnormal leisure: Invasive, mephitic and wild forms. Loisir et société/Society and Leisure, Abingdon, v. 22, n. 1, 1999. p. 21-37.
  • ROMERA, L. A.; MARTINS, M. Z. A busca por tensões nas experiências de lazer: uma releitura de Norbert Elias. Licere, Belo Horizonte, v. 20, n. 3, p. 367-391, set. 2017.
  • SCHNEIDER, J. A.; LIMBERGER, J.; ANDRETTA, I. Habilidades sociais e drogas: revisão sistemática da produção científica nacional e internacional. Avances en psicología latinoamericana, Bogotá, v. 34, n. 2, p. 339-350, 2016.
  • SILVA, A. C. Corpos no limite: suplementos alimentares e anabolizantes em academias de ginástica. Jundiaí: Paco Editorial, 2017.
  • SILVA, P. C. O.; SOUZA, C. M.; PERES, S. O. Uso de drogas sob a perspectiva de gênero: uma análise das histórias de vida de jovens das camadas médias no Rio de Janeiro. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 3, 2021.
  • SOUSA, Y. S. O. et al. Drogas, Normas e Representações Sociais: Uma Análise de Conteúdos Evocados em Diferentes Contextos. Revista de Psicologia da IMED, Passo Fundo, v. 13, n. 1, p. 55-71, 2021.
  • VELHO, G. Nobres & anjos: um estudo de tóxicos e hierarquia. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.
  • 1
    Optamos pelo uso dessa sigla por ser a utilizada pela Aliança Nacional LGBTI+, uma organização sem fins lucrativos que luta pelos direitos das pessoas LGBTI+ no Brasil. Para mais informações, cf. https://aliancalgbti.org.br/
  • 2
    Para evitar o consumo de substâncias perturbadoras de consciência, o pesquisador fazia uso de placebo [aprovado CEP]. Dessa forma, por estar supostamente compartilhando das substâncias e sensações do grupo, teve pleno acesso ao comportamento dos interlocutores, estando junto e acompanhando-os nas idas e vindas ao banheiro para que pudessem consumir mais drogas.
  • 3
  • 4
    Todas as informações foram autodeclaradas pelos participantes ao longo do período de pesquisa.
  • 5
    Gontijo (2007GONTIJO, F. S. Carioquice ou carioquidade? Ensaio etnográfico das imagens identitárias cariocas. In: GOLDENBERG, M. (Org.). Nu & Vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 41-77.) descreve como se deu a ocupação geográfica do Rio de Janeiro, especialmente do período imperial em diante. O autor expõe que a zona norte surge da necessidade de criar vilas para operários e trabalhadores, enquanto a elite se instalava cada vez mais longe, na zona sul. Posteriormente, com o inchaço de Copacabana, começa-se a popularização de regiões distantes, como Barra da Tijuca e Jacarepaguá, que compõem a zona oeste e são reconhecidos como público emergente. Percebe-se que a cidade apresenta escalas sociais territorializadas com forte dissociação cultural e social (Gontijo, 2007GONTIJO, F. S. Carioquice ou carioquidade? Ensaio etnográfico das imagens identitárias cariocas. In: GOLDENBERG, M. (Org.). Nu & Vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 41-77.).
  • 6
    Cabe frisar que o uso do termo não é uníssono pois, se por um lado identifica grupos que realizam/cultuam práticas sociais desviantes ou contra normativas, por outro cristaliza a compreensão de dinâmicas fluidas entre aquilo que seria típico e atípico de forma ininterrupta (Velho, 1998VELHO, G. Nobres & anjos: um estudo de tóxicos e hierarquia. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.).
  • 7
    Embora alguns dos interlocutores também realizassem chemsex com vários parceiros nos banheiros da boate, o pesquisador não teve penetrabilidade suficiente nessa prática, tampouco diálogo aprofundado sobre o assunto com os colaboradores. A prática era extremamente comum, porém permanecia silenciada/reservada a quem o praticava e de forma discreta, ou era algo tão comum que sequer merecia atenção. Nesse sentido, não foi possível se debruçar analiticamente sobre tal, muito embora tenha-se percebido menções genéricas a essa manifestação: havia o estabelecimento de um jogo simbólico atrelado aos efeitos das substâncias. Aqueles que utilizavam cetamina ou poppers, vez ou outra, informavam que elas ajudavam a relaxar na relação sexual enquanto passivo (quando se deixava ser penetrado), enquanto aqueles que utilizavam bala ou GHB, por vezes, desempenhavam um papel ativo (de penetrador), já que as substâncias aumentavam consideravelmente os níveis de libido e bem-estar.
  • 8
    Termo utilizado para designar sensações estranhas ou desconfortáveis após o consumo excessivo de uma substância em pouco tempo, especialmente a cetamina.
  • 9
    Termo acionado para identificar o estado que se almejava atingir com o consumo das substâncias, fazendo alusão a um prazer dito sensacional.
  • 10
    Como possíveis riscos e/ou perigos do universo das drogas, Braga (2018BRAGA, G. T. ‘O fervo e a luta’: políticas do corpo e do prazer em festas de São Paulo e Berlim. 2018. 292 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2018.) identifica que o uso das substâncias pode ocorrer de forma abusiva; criminosos podem utilizar altas quantidades de drogas depressoras com o intuito de diminuir a consciência da vítima e roubá-la ou abusar sexualmente dela; e pode ocorrer o envolvimento de clubbers com o comércio ilegal dessas substâncias, acarretando consequências legais e punitivas. Percebe-se que, embora o engajamento com as drogas possa vir a apresentar riscos, igualmente coexiste uma lógica de cuidado e instauração de redes de apoio e solidariedade para amenizar ou lidar com esses perigos.
  • 11
    Dentro da sigla LGBTI+, membros da letra G (gays) são os mais representados/visualizados quando se discute sobre a temática. Igualmente, é possível perceber condições socioeconômicas melhores entre eles quando comparados aos(às) seus(suas) colegas de sigla. Embora o uso de drogas em festas não seja uma exclusividade do público de homens homossexuais, há de se considerar que, em função de outras relações, tais como classe social e cor/raça, por exemplo, coexistem inúmeros espaços de usufruto de práticas desviantes, o que não foi possível explorar neste estudo. A continuidade de pesquisas sobre o tema, com outros perfis e espaços, desponta como frutífero nicho de pesquisa, sendo essa uma de nossas limitações, mas também uma de nossas recomendações.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    24 Mar 2023
  • Revisado
    08 Ago 2022
  • Aceito
    04 Abr 2023
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. Av. dr. Arnaldo, 715, Prédio da Biblioteca, 2º andar sala 2, 01246-904 São Paulo - SP - Brasil, Tel./Fax: +55 11 3061-7880 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br