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Fome, um objeto da história?

Hunger: a subject of history?

POHL-VALERO, Stefan; VARGAS DOMÍNGUEZ, Joel. El hambre de los otros: ciencia y políticas alimentarias en Latinoamérica, siglos XX y XXI. Bogotá: Editorial Universidad del Rosario, 2021. 496p.

A pandemia de covid-19 trouxe, além da tragédia das milhões de vidas perdidas, outros impactos no cotidiano dos latino-americanos. Em um continente plural e diverso, marcado pela desigualdade social, pela informalidade nas relações de trabalho e pela desigualdade de acesso aos sistemas de saúde, o novo coronavírus trouxe consequências trágicas para as populações locais, como o aumento vertiginoso da fome.

A América Latina e o Caribe têm, de acordo com o relatório The state of food security and nutrition in the World 2021 , o maior nível de desigualdade social do mundo. Junto a isso, as crises econômicas, intensificadas pela covid-19, resultaram no aumento de 14 milhões de pessoas afetadas pela insegurança alimentar, sendo, proporcionalmente, a região mais afetada do planeta ( FAO et al., 2021FAO et al. The state of food security and nutrition in the World 2021: transforming food systems for food security, improved nutrition and affordable healthy diets for all. Roma: FAO, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.4060/cb4474en. Acesso em: 12 dez. 2021.
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). Conforme Josué de Castro (2008)CASTRO, Josué de. Geografia da fome . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. demonstra no clássico Geografia da fome , mais que uma manifestação biológica, a análise do fenômeno da fome passa obrigatoriamente por uma abordagem multidisciplinar, relacionando-se a outros fatores, como a desigualdade social e o latifúndio.

Diante dessas contingências, cabe a pergunta: qual seria a contribuição da história para esse debate? Trabalhos como Hunger: a modern history , de James Vernon (2007)VERNON, James. Hunger: a modern history . Cambridge: Belknap Press of Harvard University Press, 2007. , analisam não apenas as causas e as consequências materiais da fome, mas suas mudanças e seus significados no curso da história da Inglaterra. Nesse sentido, o livro organizado por Stefan Pohl-Valero e Joel Vargas Domínguez (2021)POHL-VALERO, Stefan; VARGAS DOMÍNGUEZ, Joel (org.). El hambre de los otros: ciencia y políticas alimentarias en Latinoamérica, siglos XX y XXI . Bogotá: Editorial Universidad del Rosario, 2021. é uma contribuição fundamental para o entendimento desse assunto em um contexto latino-americano. Resultado do encontro acadêmico internacional Ensamblajes del Problema Alimentario en America Latina Durante el Siglo XX, o livro El hambre de los otros: ciencia y políticas alimentarias en Latinoamérica, siglos XX y XXI traz capítulos e abordagens que representam a riqueza e a diversidade dos pesquisadores que compõem a Red de Estudios Históricos y Sociales de la Nutrición y Alimentación en América Latina (REHSNAL).1 1 Disponível em: https://www.redehsnal.com . Acesso em: 1 dez. 2021. Como os autores do livro demonstram, mais que analisar a história da fome, é necessário compreender de que modo ela foi entendida historicamente, e quais causas e soluções emergiram em diferentes contextos e lugares para dar conta do fenômeno. Os capítulos discutem as diferentes temáticas resultantes dessa questão, demonstrando a riqueza dos estudos sobre os sistemas alimentares e sobre as políticas voltadas para o combate à desnutrição. Dessa forma, há no livro um esforço colaborativo para abordar, em perspectiva histórica, as relações entre ciência, Estado e políticas públicas na concepção e na gestão dos problemas alimentares na América Latina.

Para os organizadores, os significados dos alimentos e dos corpos que os consomem não são uma realidade predefinida, mas, sim, o resultado histórico de complexos processos que envolvem tradições culturais locais, transformações científicas e epistêmicas, desenvolvimentos tecnológicos, novas formas de governo sobre o social e o corporal, bem como sistemas industriais de produção, distribuição e de publicidade alimentar. Tendo como recorte temporal o século XX e o início do XXI, os autores destacam, como um de seus objetos, a construção social dos saberes sobre alimentação e saúde, além das articulações com redes acadêmicas internacionais e organismos estatais, bilaterais e multilaterais, partindo dos contextos latino-americanos.

Duas questões guiaram as reflexões do livro: ao longo da história, quais foram as formas que se produziram e que circularam sobre os saberes da nutrição? Como esses saberes se institucionalizaram e colaboraram na definição de problemas sociais locais? Além disso, existe o objetivo de destacar as relações de poder responsáveis pelas formas de conhecer e intervir nas políticas alimentares de populações inteiras. Nos capítulos dedicados ao trabalho de organizações internacionais e filantrópicas, os autores argumentam que essas agências não encontraram espaços institucionais e científicos vazios, pois, na maior parte dos casos, vieram ao encontro de arquiteturas institucionais e comunidades epistêmicas que vinham sendo gestadas desde o início do século XX, incluindo aí a formação de redes colaborativas sul-sul, presentes nas reflexões dos capítulos escritos por José Buschini, Rodrigo Ramos, Joel Vargas Domínguez, Sören Brinkmann e Stefan Pohl-Valero acerca das realidades argentina, brasileira, mexicana e colombiana.

Os estudos de caso presentes nos capítulos aprofundam muitas das questões levantadas pelos organizadores na introdução da obra. Entre as temáticas abordadas, estão os esforços dos Estados latino-americanos para sustentar as políticas públicas de produção de alimentos, bem como os estudos (levados adiante por pesquisadores ligados às ciências sociais) que tinham o objetivo de conhecer melhor o consumo, os produtos e os hábitos alimentares das populações locais. Em alguns casos, a institucionalização da nutrição e de seus experts colaborou para a construção de narrativas relacionadas à “boa alimentação” que utilizavam padrões de dieta das classes médias urbanas. Consequentemente, essas ideias consolidaram narrativas pedagógicas que menosprezaram a alimentação da população nativa e estabeleceram estereótipos eurocêntricos sobre as dietas locais. Ocorreu, assim, o incentivo ao uso de suplementos alimentares, bem como políticas voltadas para a infância, que viam nessa faixa etária a melhor formação do “capital humano” por meio da alimentação.2 2 Na Amazônia brasileira, esse processo também ocorreu com a dieta local, em especial, na construção da ideia de uma insuficiência alimentar da mandioca, durante os anos do pós-Segunda Guerra Mundial. Ver Andrade e Hochman (2015) .

Outras concepções preconceituosas sobre a alimentação também se direcionaram aos corpos dessas populações, vistos como “degenerados” e deficientes – ideias essas sustentadas pela biotipologia e pela antropometria. Os capítulos de Sandra Aguilar, Flavia Demonte e Sandra Daza-Caicedo trazem essa discussão nas realidades colombiana, argentina e mexicana. Já o capítulo escrito pela historiadora Eve Buckley demonstra que a eugenia também se fez presente em outro debate: o do controle populacional. Esse discurso, que teve origem em organizações científicas dos países ditos desenvolvidos, foi rechaçado por intelectuais e cientistas latino-americanos, como o brasileiro Josué de Castro. Por fim, os ruídos entre os experts locais e os estrangeiros também merecem destaque, demonstrando desencontros nas agendas sanitárias dos países, assim como tensões geopolíticas resultantes do intrincado contexto internacional da Guerra Fria.

Alimentar, como destacam Pohl-Valero e Vargas Domínguez (2021)POHL-VALERO, Stefan; VARGAS DOMÍNGUEZ, Joel (org.). El hambre de los otros: ciencia y políticas alimentarias en Latinoamérica, siglos XX y XXI . Bogotá: Editorial Universidad del Rosario, 2021. , é conhecer processos culinários e o uso dos alimentos locais, mas também é o nó de onde se articulam debates, tendências e os processos sociais, políticos, econômicos e culturais. Dessa forma, cabe também lembrar o comentário de Henrique Carneiro (2003CARNEIRO, Henrique Soares. Comida e sociedade: uma história da alimentação . [s.l.: s.n.], 2003. , p.20): “A história da alimentação é a história da luta contra a fome”. Obras como El hambre de los otros reforçam a urgência da preservação dessa história, que envolveu profissionais, instituições e utopias no combate à fome na América Latina.

REFERÊNCIAS

  • ANDRADE, Rômulo de Paula; HOCHMAN, Gilberto. A civilização da mandioca sob os cuidados da nutrição: escritos sobre a alimentação da Amazônia. In: Silva, Sandro Dutra e; Sá, Dominichi Miranda de; Sá, Magali Romero (org.). Vastos sertões: história e natureza na ciência e na literatura . Rio de Janeiro: Mauad X, 2015. p.213-228.
  • CARNEIRO, Henrique Soares. Comida e sociedade: uma história da alimentação . [s.l.: s.n.], 2003.
  • CASTRO, Josué de. Geografia da fome . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
  • FAO et al. The state of food security and nutrition in the World 2021: transforming food systems for food security, improved nutrition and affordable healthy diets for all. Roma: FAO, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.4060/cb4474en Acesso em: 12 dez. 2021.
    » https://doi.org/10.4060/cb4474en
  • POHL-VALERO, Stefan; VARGAS DOMÍNGUEZ, Joel (org.). El hambre de los otros: ciencia y políticas alimentarias en Latinoamérica, siglos XX y XXI . Bogotá: Editorial Universidad del Rosario, 2021.
  • VERNON, James. Hunger: a modern history . Cambridge: Belknap Press of Harvard University Press, 2007.

NOTAS

  • 1
    Disponível em: https://www.redehsnal.com . Acesso em: 1 dez. 2021.
  • 2
    Na Amazônia brasileira, esse processo também ocorreu com a dieta local, em especial, na construção da ideia de uma insuficiência alimentar da mandioca, durante os anos do pós-Segunda Guerra Mundial. Ver Andrade e Hochman (2015)ANDRADE, Rômulo de Paula; HOCHMAN, Gilberto. A civilização da mandioca sob os cuidados da nutrição: escritos sobre a alimentação da Amazônia. In: Silva, Sandro Dutra e; Sá, Dominichi Miranda de; Sá, Magali Romero (org.). Vastos sertões: história e natureza na ciência e na literatura . Rio de Janeiro: Mauad X, 2015. p.213-228. .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022
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