Acessibilidade / Reportar erro

CONCEIÇÃO, Willian Luiz da. 2020. BRANQUITUDE: dilema racial brasileiro. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 92 pp.

CONCEIÇÃO, Willian Luiz da. . 2020. BRANQUITUDE: dilema racial brasileiro. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 92 pp.
No meu peito as tricolores
Flores dizem: o coração
Nasce livre de senhores
E tem ódio à escravidão
(Heine 2013:201HEINE, Heinrich. 2011. Heine, hein? São Paulo: Perspectiva-Goethe Institut.)

O antropólogo e historiador Willian Luiz da Conceição em Branquitude: dilema racial brasileiro realiza uma apresentação, bastante rigorosa e bem fundamentada da noção de “branquitude”. O livro se divide em quatro capítulos, sendo que o último bem pode ser contado como uma conclusão. Há ainda um prefácio da antropóloga Ilka Boaventura Leite. Gostaria de sobrevoar os capítulos em seus traços mais gerais e por fim levantar algumas perguntas que a leitura enseja. O livro já foi resenhado por duas vezes de maneira detalhada e competente, de modo que recomendo ao leitor que confira essas contribuições (Martins 2021MARTINS, Daniara Thomaz Fernandes. 2021. “Resenha de Branquitude: dilema racial brasileiro”. Novos Debates, 7 (2):1-8.; Rodrigues 2021RODRIGUES, Yuri Franklin dos Santos. 2021. “Resenha de Branquitude: dilema racial brasileiro”. Cadernos de Campo, 30 (2):1-7.). Por esta razão mesma, vou preterir um pouco o aspecto descritivo e tentar explorar a dimensão teórica propiciada pela reflexão de Conceição.

Em “O espelho quebrado de Narciso O branco, a brancura e a branquitude”, Conceição introduz seu tema: a não tematização pelas ciências sociais do branco enquanto objeto de análise. Essa ausência revela que o branco, no fundo, é a norma diante daquilo que é “desviante” e que seria o objeto preferido de consideração, o negro. Nesse sentido, a investigação de Conceição se volta a pensar justamente naqueles que atribuem a racialização aos outros, mas que, eles próprios, não se veem emaranhados no labirinto das raças. Conceição define seu objeto:

Os estudos contemporâneos da branquitude têm convencionado concebê-la como fenômeno histórico, de caráter interseccional e relacional em sociedades marcadas por desigualdades raciais e sociais advindas do colonialismo ou do imperialismo [...]. A branquitude seria, ainda, um lugar estrutural de vantagem e de privilégios “raciais” baseados em práticas e identidades culturais, não necessariamente marcadas ou fixas, mas nas quais a brancura é estabelecida como valor simbólico e material. Nesse lugar, poderíamos observar a brancura agir por meio das e nas relações de poder, produzindo dessa forma violências sociais e epistemológicas permanentes (Conceição 2020:23CONCEIÇÃO, Willian Luiz da. 2020. BRANQUITUDE: dilema racial brasileiro. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 92 pp.).

Ou seja, a ambição teórica é clara: a branquitude se trata de um conceito que é o ponto de encontro de um movimento histórico preciso (o colonialismo), ao mesmo tempo em que encarna uma dimensão sociológica e econômica (porque relacionada à atribuição desigual de status e recursos). Além disso, é uma questão epistemológica, que se liga à disputa e ao debate de como se conhecer a realidade social que nos permeia, qual seria o ponto de vista mais adequado e como se produzem processos de invisibilização.

O segundo capítulo, “O labirinto e o círculo vicioso: Raça, história, modernidade e nação no Brasil”, se define por um grande primor exegético ao inventariar as diferentes concepções de raça que influenciaram de maneira decisiva a formação nacional. Ainda que Conceição demonstre com argúcia as diferenças de ênfase e de concepção entre Von Martius, Arthur de Gobineau, Silvio Romero e Nina Rodrigues em relação à mestiçagem - seja como degeneração, seja como etapa necessária de aclimatação do brasileiro -, trata-se de mostrar o horizonte que o quarteto compartilha: a proeminência do branco como meta e ideal. No terceiro capítulo, “A branquitude como campo de estudo no Brasil: Um problema novo?”, é como se Conceição elegesse um outro quarteto para fazer frente ao anterior: agora é o caso de considerar as contribuições de intelectuais brasileiros especialistas em relações raciais que se esforçaram em dar peso e relevo ao branco, o verso do discurso racista. A psicóloga e ativista Maria Aparecida da Silva Bento com a noção de pacto narcísico da branquitude, a especialista em comunicação Liv Sovik e sua crítica à indistinção racial que serve apenas ao ocultamento de relações assimétricas efetivas, o sociólogo Lourenço Cardoso e a noção de branquitude crítica, e a psicóloga Lia Vainer Schucman com a diferenciação entre brancura (fenotípica) e branquitude (posição de identidade e ideologia), enfim, cada um a seu modo, sob um ponto de vista preciso, trataram da branquitude como um fenômeno estruturante da sociedade brasileira no que diz respeito à salvaguarda de privilégios. Conceição passa em revista todas essas concepções e acentua o aporte teórico de cada pensador.

Por fim, Conceição conclui em Branquitude à brasileira com alguns casos particulares que instanciam esse conceito geral, como o evento de nomeação frustrada do ministro Decotelli - cujas críticas recebidas, mesmo quando se pretendiam “de esquerda”, na verdade se tratava de açodamento branco sobre negro - e o caso absolutamente lamentável da morte do menino Miguel Otávio Santana da Silva. Ou seja, como era anunciado no primeiro capítulo, a branquitude é vigente enquanto um lugar de privilégio histórico, social, econômico e mesmo epistemológico.

Penso que a melhor maneira de prestar tributo ao importante e rigoroso livro de Willian Conceição consiste, justamente, em inquiri-lo e, se não for excessivo, pensar junto dele a partir das possibilidades que sua reflexão traz aos leitores. Ainda que o livro seja escrito em uma linguagem muito fluente, ele não descuida dos debates difíceis e sofisticados que embasam as formulações. Nesse sentido, gostaria de dirigir três observações, muito sucintas, que me foram despertadas pela leitura.

A investigação sobre as “ciências da raça” que informaram as concepções, de algum modo populares até hoje, certamente são um ponto importante da hegemonia da branquitude. Ainda que possamos, sob um registro normativo, considerá-las “pseudociências” (Rodrigues 2021:5), não me parece ser esta a única maneira de tomar esse tipo de investigação. Em outros termos: penso que uma das dimensões epistemológicas mais essenciais da branquitude a que a investigação de Conceição alude diz respeito, precisamente, ao fato de esse tipo de pensamento ser, ao menos historicamente, ciência - ciência em um sentido descritivo: considerada enquanto tal na época de sua gênese, vinculada às comunidades de pensadores e mesmo influente na formulação de políticas. Assim, poder-se-ia ler o problema à luz de outras maneiras de se pensar ciência e seus modelos de legitimação como conhecimento, isto é, a partir, para citar apenas um dos mais proeminentes, de Thomas KuhnKUHN, Thomas. 2007. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva. e de todos os outros pensadores sociais da ciência que investigam como a análise social esclarece, em larga medida, aspectos epistemológicos. Aliás, em termos jornalísticos, ainda assim muito instrutivos, é o que fez Saini (2018SAINI, Angela. 2018. Inferior é o Car*lhø. São Paulo: Darkside Books.) em relação ao modo como a ciência tratou as mulheres - e, por extensão, o privilégio masculino. O aspecto epistemológico contido no conceito de branquitude bem pode ser lido e revisto à luz da teoria da ciência a fim de se demonstrar como no âmago mesmo do conhecimento se enraizava o racismo.

Uma outra dimensão aberta pelo livro de Conceição diz respeito à questão dos aspectos econômicos da branquitude. Penso, por exemplo, quando ele menciona, amparado em Maria Bento, a circulação de uma certa compreensão da escravidão enquanto uma marca passada, obviamente uma chaga, mas em um registro explicativo totalizante do racismo (:51): é como se o problema todo que constitui o racismo tivesse sido a escravidão, de modo que as desigualdades raciais pudessem ser entendidas como uma corrida de retardatários a fim de que os negros alcançassem o patamar econômico dos brancos. Essa compreensão elide, justamente, o próprio papel do branco na manutenção das desigualdades atuais. Além disso, vale lembrar que Conceição endossa o ponto de vista de Foucault e Mbembe a partir da noção de biopolítica e necropolítica (:30), ideias cheias de implicações no que tange aos mecanismos de gênese e manutenção do racismo. Em outros termos: não se está diante de uma consequência de um trauma passado (ainda que também se esteja), mas sim em face de expedientes atuais que garantem a conservação das assimetrias sociais de toda ordem. Eu fiquei a me perguntar sobre algo que o livro parece sugerir, embora não seja explícito, que poderia ser dito, de maneira lassa, como uma economia política da branquitude, isto é, os procedimentos econômicos que garantem que as assimetrias passadas sejam postas e repostas pela totalidade social. Eu penso, por exemplo, na questão da tributação regressiva brasileira, cujo efeito sobre os mais pobres significa, também, um efeito dilapidador da população negra (Almeida 2018:170-171ALMEIDA, Silvio. 2018. Racismo estrutural. São Paulo: Letramento.). Ou, no mesmo sentido, na noção de subsunção real do trabalho pelo capital (Almeida 2018:173-175ALMEIDA, Silvio. 2018. Racismo estrutural. São Paulo: Letramento.). Ainda que Mbembe e Foucault sejam referências incontornáveis a fim de se compreender a origem moderna do racismo, fiquei a me perguntar se Marx não contribuiria de maneira decisiva para se pensarem os processos sincrônicos de reposição do racismo nas sociedades contemporâneas, em especial os mecanismos de reprodução da branquitude para além daqueles que dizem respeito ao exercício do status.

Por fim, uma observação crítica, mas pontual: em alguns momentos do livro, ao ressaltar o falso universalismo que orientou a construção narrativa da história do Ocidente, eu fiquei a me perguntar se Conceição não recairia um tanto em uma contranarrativa, também ela, excessivamente totalizante, como se modernidade ocidental fosse um bloco pouco afeito à diferenciação interna. Por exemplo, certas passagens ensejam a pergunta de quais seriam, por um lado, as fundações normativas para se pensar um conceito mais substantivo de igualdade - que superasse o racismo e a branquitude - e se a modernidade que propôs essa noção (ainda que não realizada) poderia ou deveria ser vista exclusivamente sob o signo puro da violência. Ou ainda quando Conceição parece sugerir que deveríamos revisar o conceito mesmo de “reconhecimento” (entendido como a compreensão ampliada de uma comunidade livre) ao afirmar que a noção mesma de humanidade talvez não passasse de uma “ficção violenta, uma distopia” (:19). Que permaneçamos no império atroz da raça é uma evidência que qualquer pessoa não obliterada é capaz de admitir, mas disso o que se segue? A circulação mesma da noção de “igualdade” e a tentativa de realizá-la - ainda que ao custo de muito fracasso - parece ser tão signo da modernidade quanto a escravização de largas parcelas da humanidade. Ainda que constate essa ambivalência, Conceição soa cético em relação ao potencial normativo inscrito na modernidade. Não seria essa tensão entre o universal e sua singularização o “mais forte signo da modernidade” (:19)? Eu penso, por exemplo, em Buck-Morss (2017BUCK-MORSS, Susan. 2017. Hegel e o Haiti. São Paulo: N-1 edições.), na medida em que ela procede a uma reconstrução histórica e filosófica da revolução haitiana em face de Hegel. Entendo que isso extravasa em alguma medida o próprio escopo do livro de Conceição, mas, no fundo, a fina análise textual que ele propõe é orientada por um conceito de liberdade que, ao enfatizar privilégios historicamente consolidados, reclama pela supressão deles.

Referências bibliográficas

  • ALMEIDA, Silvio. 2018. Racismo estrutural São Paulo: Letramento.
  • BUCK-MORSS, Susan. 2017. Hegel e o Haiti São Paulo: N-1 edições.
  • CONCEIÇÃO, Willian Luiz da. 2020. BRANQUITUDE: dilema racial brasileiro Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 92 pp.
  • HEINE, Heinrich. 2011. Heine, hein? São Paulo: Perspectiva-Goethe Institut.
  • KUHN, Thomas. 2007. A estrutura das revoluções científicas São Paulo: Perspectiva.
  • MARTINS, Daniara Thomaz Fernandes. 2021. “Resenha de Branquitude: dilema racial brasileiro”. Novos Debates, 7 (2):1-8.
  • RODRIGUES, Yuri Franklin dos Santos. 2021. “Resenha de Branquitude: dilema racial brasileiro”. Cadernos de Campo, 30 (2):1-7.
  • SAINI, Angela. 2018. Inferior é o Car*lhø São Paulo: Darkside Books.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistamanappgas@gmail.com