Resumos
O artigo tem por objetivo estimar taxas de mortalidade por causas externas no Brasil. Dados de 2010 corrigidos para sub-registro e ajustados por método direto foram avaliados por sexo, segundo idade, região de residência, raça/cor, escolaridade e estado conjugal, usando regressão de Poisson. O coeficiente padronizado de mortalidade por causas externas é muito maior entre homens (178 por cem mil habitantes) do que entre mulheres (24 por cem mil habitantes), sendo maiores entre homens mais jovens (20 a 29 anos) em todas as regiões e diminuindo com a idade. A razão de mortalidade por causas externas chega a ser quase nove vezes maior entre homens comparativamente às mulheres, com valores maiores nas regiões Norte e Nordeste. A incidência é muito maior entre homens (36,4%) do que entre mulheres (10,9%), com risco 170% maior entre homens. O risco também é maior entre os mais jovens: 6,00 para homens e 7,36 para mulheres. Os principais tipos de óbitos por causas externas entre homens são agressões, seguidas por acidentes de transporte terrestre, inverso das mulheres. Além do sexo, a idade foi o fator preditivo mais importante da mortalidade precoce por causas externas, indicando a necessidade de ações multissetoriais na construção de novas identidades de não violência.
Saúde do homem; Mortalidade; Causas externas; Gênero; Brasil
Objective:
To estimate mortality rate by external causes in Brazil.
Methods:
Mortality national 2010's data corrected by underreport and adjusted by direct method were evaluated by sex according to age, region of residence, race/skin color, education and conjugal situation.
Results:
The standardized mortality coefficient of external causes is higher among men (178 per thousand inhabitants) than among women (24 per thousand inhabitants), being higher among young men (20 to 29 years old) in all regions and decreasing with aging. The mortality rate reaches almost nine times higher among men comparably to women, being higher in North and Northeast regions. The death incidence by external causes is higher among men (36.4%) than among women (10.9%), meaning 170% more risk for men. The risk is also higher among the youngest: 6.00 for men and 7.36 for women. The main kind of death by external causes among men is aggressions, followed by transport accidents, the opposite of women.
Conclusions:
Besides sex, age is the more important predictive factor of precocious death by external causes, pointing the need of many and various sectors in order to construct new identities of non violence.
Men's health; Mortality; External causes; Gender; Brazil
Introdução
Desigualdades e gênero são temas que se encontram mutuamente relacionados. No século passado, o movimento feminista começou a empregar a expressão gênero para denunciar a inadequação das explicações existentes para as desigualdades entre mulheres e homens11. Scott J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade 1990; 16(2):5-22.. Nesse sentido, as explicações decorrentes das diferenças entre sexos podem se libertar de um determinismo biológico e ampliar a discussão, situando-a no âmbito da organização social da relação entre os sexos. A partir das últimas décadas do século XX o campo da saúde tem progressivamente incorporado a perspectiva de gênero visando compreender as relações que se estabelecem entre homens e mulheres na sociedade e suas repercussões para o estado de saúde, adoecimento e morte, bem como o acesso e a utilização de serviços de saúde22. Barata RB. Como e por que as desigualdades sociais fazem mal à saúde. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2009.. Assim, gênero - utilizado como uma categoria analítica - pode subsidiar o desenvolvimento de hipóteses explicativas para as diferenças dos perfis de mortalidade e morbidade, incluindo as causas externas, segundo sexo.
No Brasil, as causas externas (acidentes e violências) têm sido o grupo que mais revela a desigualdade entre homens e mulheres na população adulta de 20 a 59 anos de idade33. Moura EC. Perfil da situação de saúde do homem no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012.. Embora tenha havido uma queda destas taxas na última década, a redução ainda é discreta (7%) e coloca o país num padrão mundial de mortalidade diferenciada conforme ilustra Abouzhar et al.44. Abouzhar C, Mikkelsen L, Rampatige R, Lopez A. Mortality statistics: a tool to enhance understanding and improve quality. Queensland: University of Queensland; 2010., desafiando diversos setores para a reflexão e resolução da complexidade deste fenômeno.
Há mais de uma década, a literatura55. Gomes R. A dimensão simbólica da violência de gênero: uma discussão introdutória. Athenea Digit 2008; 14(2):237-243.
6. Greig A. Political connections: men, gender and violence. In: United Nations Publications. Partners in Change: Working with Men to End Gender-based Violence. Santo Domingo: Instraw; 2002. p. 10-32.
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77. Minayo MCS. Seis características das mortes violentas no Brasil. Rev Brasileira de Estudos de População 2009; 26(1):135-140. tem chamado especial atenção para o comportamento mais agressivo e arriscado dos homens, o que pode explicar a maior ocorrência de mortes por causas externas em comparação às mulheres. Por outro lado, se forem levadas em conta as considerações de Bourdieu88. Bourdieu P. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 1999. sobre a violência simbólica, mulheres podem ser alvo da dominação masculina sem que sejam reconhecidas como vítima de violência99. Gomes R. Sexualidade masculina, gênero e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008.. Coloca-se, ainda, que a compreensão dos modelos diferenciais de gênero é fundamental para a elaboração de estratégias direcionadas à redução desta desigualdade e da taxa de mortes por causas externas no geral.
Neste sentido, este artigo estima as razões das taxas de mortalidade por causas externas e, em específico, por agressões e suicídios, nas unidades federativas do país e avalia o risco de morrer conforme características sociodemográficas, sob a perspectiva relacional de gênero.
Métodos
Os dados foram obtidos do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) da Secretária de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, num total de 241.276 óbitos no sexo masculino e 112.386 no feminino para o ano de 2010. Por conta da extensão territorial do país, da investigação de causas de óbitos e da busca ativa há uma delonga no fechamento do banco de dados nacional, que varia de dois a três anos, sendo mundialmente considerado um dos mais rápidos.
Em 2010, a cobertura estimada dos óbitos ocorridos no país foi igual a 94,2%, de modo que os dados brutos foram corrigidos utilizando-se fatores do estudo sobre busca ativa de óbitos1010. Szwarcwald CL, Morais Neto OL, Frias PF, Souza Junior PRB, Cortez-Escalante JJ, Lima RB, Viola RC. Busca ativa de óbitos e nascimentos no Nordeste e na Amazônia Legal: estimação das coberturas do SIM e Sinasc nos municípios brasileiros. In: Brasil. Ministério da Saúde (MS). Saúde Brasil 2010: uma análise da situação de saúde e de evidências selecionadas de impacto de ações de vigilância em saúde. Brasília: MS; 2011. p. 99-116. conforme unidade federada (UF), sexo e faixa etária1111. Morais Filho OL, Moura EC, Cortez-Escalante JJ. Como morrem os brasileiros: tendências e desigualdades nas regiões, unidades federadas e nas categorias de raça-cor nos anos de 2000 a 2010. In: Brasil. Ministério da Saúde (MS). Saúde Brasil 2011: uma análise da situação de saúde e a vigilância da saúde da mulher. Brasília: MS; 2012. p.105-163..
A causa básica do óbito foi nomeada segundo os capítulos da Classificação Internacional de Doenças - CID-101212. World Health Organization. Injuries and violence: the facts. Geneva: WHO; 2010., sendo o capítulo XX - causas externas o foco deste estudo.
Utilizou-se método direto para padronização das taxas de mortalidade por idade, tendo a média da população masculina e feminina de 2010 por faixa decenal de idade (20 a 59 anos de idade) como padrão. Foram calculados os coeficientes brutos (por faixa etária e total) e padronizados por idade conforme local de moradia (Unidade da Federação, regiões e país). Adicionalmente, a razão entre os coeficientes de mortalidade entre homens e mulheres também foi computado.
A variável dependente - causas externas - foi dicotomizada em sim ou não. As variáveis independentes foram: idade (50-59, 40-49, 30-39 e 20-29 anos), região de residência (Sudeste, Sul, Centro-Oeste, Nordeste e Norte), raça/cor (preta, amarela, branca, parda e indígena), escolaridade (≥ 8 e < 8 anos de estudo) e estado conjugal estável (sim e não), ordenadas conforme ordem decrescente de ocorrência, de modo a facilitar o uso do teste de tendência conforme as categorias de cada variável. Razões de probabilidade bruta de morte por causa externa foram calculadas por sexo, separadamente para cada variável independente, utilizando-se modelo de regressão de Poisson e nível de significância (p) de 5%. Razões de probabilidade ajustadas por todas as variáveis também foram calculadas por regressão de Poisson com intervalo de confiança de 95%. A aplicação do modelo de Poisson permite avaliar a forma e a intensidade da associação entre morte por causa externa - evento incidente - e demais variáveis, tendo sido utilizado em outros estudos sobre mortalidade1313. Farias N, Souza JMP, Laurenti R, Alencar SM. Mortalidade cardiovascular por sexo e faixa etária em São Paulo, Brasil: 1996 a 1998 e 2003 a 2005. Arq Bras Cardiol 2009; 93(5):498-505. para avaliação de tendências.
Identificaram-se os principais tipos de óbitos, segundo grupamentos do CID-10. A fim de diferenciar casos de violência, computaram-se os coeficientes específicos de mortalidade por agressões e por suicídios.
Resultados
A Tabela 1 mostra que o coeficiente padronizado de mortalidade por causas externas é muito maior entre os homens (178 por cem mil habitantes) do que entre as mulheres (24 por cem mil habitantes). Os coeficientes são maiores entre os homens mais jovens (20 a 29 anos) em todas as regiões e diminuem com o aumento da idade. Entre as mulheres, este padrão acontece somente na região Centro-Oeste. Nas demais regiões, os coeficientes diminuem da primeira faixa etária (20 a 29 anos) para a segunda (30 a 39 anos), voltando a aumentar na terceira (40 a 49 anos) ou na quarta (50 a 59 anos), atingindo valores muito próximos ao das mulheres mais jovens, à exceção da região Sul, que basicamente estabiliza a queda a partir dos 30 anos de idade.
A diferença entre sexos é nitidamente identificada na razão da mortalidade por causas externas, que chega a 7,5 vezes mais entre os homens comparativamente às mulheres. Acrescenta-se, ainda, a diferença regional, cuja razão chega a 8,9 no Norte e 8,8 no Nordeste versus 6,5 no Sul, 6,6 no Centro-Oeste e 6,8 no Sudeste. Destacam-se Pará e Amapá na região Norte e Alagoas na Nordeste, a menor razão (4,9) foi verificada em Roraima.
A padronização das taxas de mortalidade por idade (taxa bruta de cada Unidade Federada aplicada a uma mesma estrutura etária populacional) permite a comparabilidade entre os locais de residência. Notadamente, a região Sudeste apresenta as menores taxas em ambos os sexos. As maiores taxas de mortalidade por causas externas em homens são observadas, em ordem decrescente, nas regiões Norte (63% maior que na Sudeste), Nordeste (62%), Centro-Oeste (38%) e Sul (13%). Entre as mulheres há uma inversão, com a região Centro-Oeste (38%, maior que na Sudeste) apresentando o maior coeficiente, seguida da Norte e Nordeste (24%) e Sul (14%). Entre as UF, destaca-se o estado de Pará com as mais altas taxas padronizadas em homens e Roraima em mulheres.
A Tabela 2 mostra que a incidência de óbitos por causas externas é muito maior entre os homens do que entre as mulheres (36,4% versus 10,9%), o que representa para os homens um risco quase cinco vezes maior de morrer precocemente por causas externas do que nas mulheres.
A associação com as variáveis sociodemográficas apresenta comportamento semelhante nos dois sexos, isto é, o risco é maior entre os mais jovens (6,3 entre os homens e 8,3 entre as mulheres), e é menor entre os residentes da região Sudeste (para os homens é maior entre os residentes na região Norte e para as mulheres na Centro-Oeste), também é maior entre os de raça/cor parda e indígena, entre os indivíduos com maior escolaridade e estado conjugal não estável.
Todavia, após ajuste para todas as variáveis verifica-se que a idade mantém o gradiente inverso (maior entre as mulheres, 7,36 versus 6,00), mas há uma redução das diferenças conforme região de moradia (ligeiramente maior na região Sul e Norte para os homens e menor na Sudeste e Norte para as mulheres), maior para os homens pardos e mulheres pardas e indígenas (destacando-se que no geral há sobreposição nos intervalos de confiança), há aumento do risco conforme aumento da escolaridade (homens com maior escolaridade têm 20% mais risco e mulheres 44% do que as respectivas categorias de menor escolaridade) e estado conjugal não estável (homens 3% e mulheres 17%).
Adicionando-se o sexo ao modelo de regressão ajustado, o risco entre os homens cai para 2,7. Isto significa que mantendo iguais todas as demais variáveis o risco dos homens morrerem precocemente por causas externas é 170% maior do que o das mulheres.
Os principais tipos de óbitos por causas externas (Figura 1) entre homens são agressões, seguidas por acidentes de transporte terrestre (envolvendo todos os tipos), inverso das mulheres. A distribuição proporcional por tipo de óbito referente às causas externas mostra que as mulheres morrem mais por suicídios do que os homens.
As agressões respondem por quase 80 óbitos por cem mil homens (Figura 2), o que corresponde a 12 vezes mais do que entre as mulheres. Os coeficientes diminuem gradativamente com o aumento da idade em todas as regiões do Brasil, nos dois sexos. Taxas maiores de 115 por cem mil homens foram observados nas regiões Norte e Nordeste e menores do que 60 no Sudeste e no Sul do país. Entre as mulheres variou de 5,0 no Sudeste a 8,5 no Norte. Destacam-se os altos coeficientes entre os homens mais jovens do Norte e Nordeste, que chegam a representar 18 vezes mais do que entre as mulheres mais jovens das mesmas regiões.
Coeficiente (por 100.000 habitantes) de mortalidade por agressão segundo faixa etária e região de moradia em homens e mulheres. Brasil, 2010.
Quanto às taxas de suicídios (Figura 3), no Brasil, morreram 10,7 homens e 3,4 mulheres por cem mil habitantes. No total, entre os homens, os coeficientes diminuem gradativamente com o aumento da idade, mas aumentam entre as mulheres. As maiores taxas foram observadas no Centro-Oeste (16,4 entre homens e 4,3 entre as mulheres) e as menores no Norte para os homens (10,7) e no Norte e Sudeste para as mulheres (3,1). As maiores diferenças ocorrem na região Sudeste (20 a 29 anos de idade) e na região Nordeste (30 a 39 anos de idade), com os homens apresentando coeficientes quase oito vezes maiores do que as mulheres.
Coeficiente (por 100.000 habitantes) de mortalidade por suicídio segundo faixa etária e região de moradia em homens e mulheres. Brasil, 2010.
Discussão
Este estudo mostrou que a diferença entre sexos é nitidamente identificada na razão da mortalidade, que estimou, para cada mulher, quase oito homens morrendo por causas externas, no Brasil. Esta diferença pode ser mais bem compreendida a partir das desigualdades entre homens e mulheres, numa perspectiva de modelos culturais de gênero. Segundo Souza1414. Souza ER. Masculinidade e violência no Brasil: contribuições para a reflexão no campo da saúde. Cien Saude Colet 2005; 10(1):59-70., os homens se expõem mais a situações de acidentes e violência por conta de comportamentos reafirmadores da masculinidade, próprios da sociedade contemporânea, que simbolizam maior poder e exigem maior virilidade e agressividade, tornando-os paradoxalmente mais vulneráveis a eventos de risco de morte precoce por agravos evitáveis.
Cumpre salientar que, no último período intracensitário, as mulheres apresentaram aumento das taxas brutas de óbitos por causas externas e também por neoplasias1515. Garcia LP, Freitas LRS. Mortalidade feminina no Brasil: evolução no período de 2000 a 2010. In: Brasil. Ministério da Saúde (MS). Saúde Brasil 2011: uma análise da situação de saúde e a vigilância da saúde da mulher. Brasília: MS; 2012. p.303-328..
Além da diferenças entre sexos, também se observa uma regional, em que as regiões Norte e Centro-Oeste são, em ordem decrescente, as mais afetadas no caso dos homens; sendo a Sudeste a menos afetada para ambos os sexos. Estes dados têm se mantido nas duas últimas décadas, conforme identificado em estudo sobre mortalidade de jovens de 15 a 29 anos por violências e acidentes no Brasil1616. Souza ER, Minayo MCS. Mortalidade de jovens de 15 a 29 anos por violências e acidentes no Brasil: situação atual, tendências e perspectivas. In: Rede Interagencial de informações para a saúde. Demografia e saúde: contribuição para análise de situação e tendências. Brasília: OPAS; 2009. p. 113-142., o qual apontou, no período de 1990 a 2005, a região Centro-Oeste em primeiro lugar na taxa de mortalidade por causas externas e com a região Norte com incremento gradual na mesma. A Região Sudeste, por outro lado, foi a única que mostrou declínio, influenciada, principalmente, pelo estado de São Paulo, que continua mantendo a posição.
A regressão de Poisson, ajustada para todas as variáveis estudadas (sexo, idade, região de moradia, raça/cor, escolaridade e união conjugal), mostra que os homens têm um risco 2,7 vezes maior de morrer precocemente por causas externas do que as mulheres.
Segundo Victora et al.1717. Victora CG, Barreto ML, Leal MC, Monteiro CA, Schmidt MI, Pain J, Bastos FI, Almeida C, Bahia L, Travassos C, Reichenheim M, Barros FC & the Lancet Brazil Series Working Group. Condições de saúde e inovações nas políticas de saúde no Brasil: o caminho a percorrer. Lancet 2011; 6(Supl. Saúde no Brasil):90-102., esses tipos de óbitos estão dentre os problemas de saúde que têm níveis inaceitavelmente elevados e que, constam, desde a década de 1980, entre as principais causas de mortalidade, o que se agrava pela desigualdade de gênero, desafiando diversos setores para a resolução deste fenômeno1818. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem: princípios e diretrizes. Brasília: MS; 2009..
De modo geral, os dados mostram que o principal fator de risco nos dois sexos é a idade. Considerando-se que estudos nacionais e internacionais apontam que a mortalidade por causas externas atinge sobremaneira os jovens do sexo masculino moradores de grandes centros urbanos em áreas com superposição de desvantagens sociais, importa considerar indicadores como violência comunitária e criminal, presença de tráfico de drogas e outras atividades ilegais como fatores importantes para o entendimento dos diferenciais entre os sexos segundo as diferentes faixas etárias1919. McCall PL, Parker KF, MacDonald JM. The dynamic relationship between homicide rates and social, economic, and political factors from 1970 to 2000. Social science research 2008; 37(3):721-735. , 2020. Zaluar A. Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas. Rio de Janeiro: Editora FGV; 2004..
Quando analisadas as mulheres, observa-se que aquelas com maior escolaridade e união conjugal não estável se arriscam mais do que os homens das mesmas categorias, assim como as de cor branca e de cor parda.
O presente estudo aponta que homens de raça/cor parda têm maior probabilidade de morte por causas externas (28%) do que os de raça/cor preta, amarela e indígena, bem como os de cor branca (8%). Um estudo realizado em Salvador (BA), abrangendo os óbitos ocorridos entre 1998 e 2003 por causas externas, mostrou que a população de cor parda perde mais anos potenciais de vida (13,0 vezes mais para os homens e 6,2 para as mulheres) por causas externas do que a população branca2121. Araújo EM, Costa MCN, Hogan VK, Mota ELA, Araújo TM, Oliveira NF. Diferenciais de raça/cor da pele em anos potenciais de vida perdidos por causas externas. Rev Saude Publica 2009; 43(3):405-441., assim como os homens de cor preta (3,0 vezes mais) Esses dados são parcialmente corroborados pelos dados apresentados por Soares Filho2222. Soares Filho AM. Vitimização por homicídios segundo características de raça no Brasil. Rev Saude Publica 2011; 45(4):745-755., em estudo sobre as mortes por homicídios acontecidas entre 2000 e 2009, que mostra maior (e crescente) risco de morte para a população negra (pretos e pardos) do que a branca, independentemente da escolaridade. Ressalta-se que os estudos citados excluíram as populações indígena e amarela pela baixa ocorrência do evento avaliado nestas categorias.
Quanto à região de moradia, o risco de morte precoce por causas externas é igual no Sul (19% maior) e no Norte (18% maior), pouco menor no Nordeste (13%) e no Centro-Oeste (10%), em relação à região Sudeste.
Andrade et al.2323. Andrade SM, Soares DA, Souza RKT, Matsuo T, Souza HD. Homicídios de homens de quinze a 29 anos e fatores relacionados no estado do Paraná, de 2002 a 2004. Cien Saude Colet 2011; 16(Supl.1):1281-1288., avaliando mortes por homicídios em homens de 15 a 29 anos de idade no estado do Paraná entre 2002 e 2004, identificaram associação com desigualdade social (expressa pelo índice de Gini) e não com a pobreza, constatando que a iniquidade de acesso a bens e serviços é determinante da situação de violência. O que corrobora com Peres et al.2424. Peres MFT, Almeida JF, Vicentin D, Cerda M, Cardia N, Adorno S. Queda dos homicídios no município de São Paulo: uma análise exploratória de possíveis condicionantes. Rev bras epidemiol 2011; 14(4):709-721., que sustentam a hipótese de que alterações demográficas, aceleração da economia, investimentos em políticas sociais e mudanças nas políticas de segurança pública atuaram em conjunto para a redução da taxa de mortalidade por homicídio no município de São Paulo de 1996 a 2008. Já, estudo ecológico sobre morte por homicídios em homens de 20 a 39 anos de idade, no período de 1999 a 2010, indica aumento de risco: nos municípios de maior porte populacional, na fecundidade, na desigualdade de renda e urbanização e na menor proporção de alfabetizados2525. Duarte EC, Garcia LP, Freitas LRS, Mansano NH, Monteiro RA, Ramalho WM. Associação ecológica entre características dos municípios e o risco de homicídios em homens adultos de 20-39 anos de idade no Brasil, 1999-2010. Cien Saude Colet 2012; 17(9):2259-2268..
Especificamente em relação ao suicídio, observa-se que, embora a porcentagem de mortes por esta causa entre as mulheres seja maior, as taxas são menores do que entre os homens, que por sua vez apresentam maior proporção de mortes por agressão. Lovisi et al.2626. Lovisi GM, Santos AS, Legay L, Abelha L, Valencia E. Análise epidemiológica do suicídio no Brasil entre 1980 e 2006. Rev Bras Psiquiatr 2009; 31(Supl. 2):S86-S93., quando discutem as taxas masculinas de suicídio maiores do que as femininas, apresentam estudos internacionais que refletem questões de gênero relacionadas à propensão de suicídio e destacam que mulheres são mais propensas tentar se matar, mas os homens frequentemente obtêm mais êxito em suas tentativas, sugerindo que os métodos mais letais entre estes deve-se à intenção masculina de morte ser mais forte. Ainda, segundo os mencionados autores, a menor taxa de mortalidade por suicídio feminina pode estar associada a: baixa prevalência de alcoolismo, crenças religiosas mais fortes, apoio social e procura de ajuda frente aos transtornos mentais e às ideações suicidas.
Souza1414. Souza ER. Masculinidade e violência no Brasil: contribuições para a reflexão no campo da saúde. Cien Saude Colet 2005; 10(1):59-70. já chamava a atenção para o crescimento das mortes por causas externas em jovens da classe média e alta, na medida em que o uso de armas (mortes por violência) e de carros (mortes por acidentes) são símbolos e representações de força: poder de submissão/controle da vida/controle da morte e poder de locomoção/velocidade/liberdade, o que ficou evidente neste estudo, no qual a maior escolaridade age como fator de risco. A probabilidade de morte por causas externas é 22% maior, comparado ao grupo de menor escolaridade, assim como a união conjugal não estável (risco 3% maior).
Dados mundiais mostram que as causas externas responderam em 2011 por aproximadamente 3,5 milhões de mortes entre indivíduos de 15 e 69 anos de idade, o que corresponde a 15,4% da mortalidade global e a 73 óbitos a cada 100 mil habitantes2727. World Health Organization (WHO). Disease and injury regional estimates: cause specific mortality: regional estimates for 2000-2011. Geneva: WHO; 2013.. Esses mesmos dados revelam, ainda, que a proporção de óbitos por essas causas é quase o dobro dentre homens (18,8%) do que entre mulheres (10,3%) e que a taxa de mortalidade é aproximadamente três vezes maior nesse sexo (105,6 em homens e 39,8 em mulheres). Ao contrastar os valores dos anos 2000 e 2011, observa-se que a mortalidade por causas externas tem minguado, contudo, a diferença entre os sexos tem aumentado2626. Lovisi GM, Santos AS, Legay L, Abelha L, Valencia E. Análise epidemiológica do suicídio no Brasil entre 1980 e 2006. Rev Bras Psiquiatr 2009; 31(Supl. 2):S86-S93..
No Brasil, os óbitos por causas externas giram em torno de 21,6% do total de mortes, em pessoas de 15 a 69 anos de ambos os sexos, sendo mais de três vezes maiores em homens (28,6% em homens e 8,3% em mulheres), acometendo 159 homens e 23 mulheres a cada 100 mil habitantes, segundo dados de 20102828. Brasil. Mortalidade geral e por causas - por local de residência - Brasil. Rio de Janeiro: MS; 2013. [acessado 2013 out 1]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sih/cnv/nruf.def Acesso em: outubro de 2013.
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi....
. Estes valores estão próximos aos de países da África, porém com desigualdade maior: aproximadamente 160 óbitos em homens e 59 em mulheres a cada 100 mil habitantes2727. World Health Organization (WHO). Disease and injury regional estimates: cause specific mortality: regional estimates for 2000-2011. Geneva: WHO; 2013..
Todavia, situações de violência, cujo desfecho não é o óbito, atingem principalmente as mulheres e os principais agressores são os homens2929. Gomes DL, Malta DC, Silva MMA, Paiva EA, Moraes Neto AV, Nunes ML, Silva RE, Medeiros AC, Viegas APB, Lima CM. Violência contra mulheres adultas no Brasil: análise das notificações do Sistema de Vigilância de Violências em 2010. In: Brasil. Ministério da Saúde (MS). Saúde Brasil 2011: uma análise da situação de saúde e a vigilância da saúde da mulher. Brasília: MS; 2012. p. 327-344. .
Neste contexto, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH), instituída em 2009 pelo Ministério da Saúde1818. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem: princípios e diretrizes. Brasília: MS; 2009. , 3030. Schwarz E, Gomes R, Couto MT, Moura EC, Carvalho SA, Silva SFC. Política de saúde do homem. Rev Saúde Pública 2012; 46(Supl. 1):108-116., com o objetivo de promover ações de saúde que ampliem a apreensão da realidade masculina e o acesso com qualidade dos homens entre 20 e 59 anos de idade, nos seus diversos contextos, aos serviços de assistência integral à saúde da Rede SUS - tem focado algumas de suas principais estratégias na população mais jovem, cujo risco de morte é seis vezes maior do que entre os homens de 50 a 59 anos, atentando para a força da associação entre causa de óbito e idade (4,27 entre 30 a 39 anos e 2,15 entre 40 e 49 anos).
Estas estratégias estão centradas, sobretudo, no planejamento e na execução de ações educativas nos territórios de saúde voltadas para a reconfiguração de estruturas e práticas da Atenção Básica, principalmente na Estratégia Saúde da Família (ESF), com especial foco na sensibilização e capacitação dos trabalhadores das equipes de saúde no que tange à prevenção de violências e acidentes, bem como ações de identificação, acolhimento e encaminhamento destas situações envolvendo homens na articulação em rede a partir da concepção de linhas de cuidado com os demais níveis de atenção da média e alta complexidade, contribuindo gradativamente para a redução da morbimortalidade por estes agravos e para a mudança de paradigma da esfera do cuidado e da valorização da vida como sendo exclusivamente do âmbito das mulheres, portanto, também disponível, cultivado e praticado por homens de todas as faixas etárias.
Este estudo foi realizado com dados secundários, obtidos a partir do Sistema de Informação sobre Mortalidade, não possibilitando análise de causalidade, mas simplesmente de associação. Todavia, reforça os achados da literatura e pontua diferenças importantes entre os dois sexos.
De qualquer forma, a discussão acerca do predomínio das mortes masculinas por causas externas em relação às femininas precisa ser ampliada com análise interdisciplinar, contemplando um maior aprofundamento na natureza singular dos modelos de masculinidade hegemônicos ainda presentes, atuantes e reforçados no imaginário social coletivo. A partir da compreensão desses modelos, as políticas públicas poderão ter melhores subsídios para compreender este fenômeno no qual os homens tanto morrem quanto matam mais porque - ao afirmarem sua condição viril como opção inalienável do que significa ser homem - acabam vivendo sob uma exacerbada tensão e contenção, atravessados tanto pela violência física quanto simbólica88. Bourdieu P. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 1999..
Além do próprio sexo, a idade é o fator preditivo mais importante da mortalidade precoce por causas externas, desaparecendo as diferenças entre as categorias das demais variáveis após ajuste para a maioria delas. Urgem ações multissetoriais, centradas nos locais de vivência coletiva de homens, especialmente durante a formação de suas crenças e valores (escolares, adolescentes), a fim de reduzir esta perda tão drástica que o país vem experimentando e que corre o risco de aumentar, caso novos valores não sejam estabelecidos: desconstruir os padrões hegemônicos vigentes de virilidade e agressividade, criar novas identidades de não violência, permitir o fluxo de emoções e ampliar a aproximação emotiva masculina e feminina.
References
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3Moura EC. Perfil da situação de saúde do homem no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012.
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30Schwarz E, Gomes R, Couto MT, Moura EC, Carvalho SA, Silva SFC. Política de saúde do homem. Rev Saúde Pública 2012; 46(Supl. 1):108-116.
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Errata
p. 779, onde se lê:3 Instituto Brasileiro de Ecologia Humana, Ministério da Saúde.leia-se:3 Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde.p. 782, onde se lê:Tabela 2. Incidência (%), razão de coeficiente de incidência, bruta (RI) e ajustada (RIaj) com intervalo de confiança de 95% (IC95%), de óbitos por causas externas segundo variáveis sociodemográficas e sexo. Brasil, 2010.Região de residência50-5940-4930-3920-29Raça/cor50-5940-4930-3920-29leia-se:Tabela 2. Proporção (%), razão de proporção, bruta (RP) e ajustada (RPaj) com intervalo de confiança de 95% (IC95%), de óbitos por causas externas segundo variáveis sociodemográficas e sexo. Brasil, 2010.Região de residênciaSECONERaça/corPretaAmarelaBrancaPardaIndígena
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Mar 2015
Histórico
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Recebido
03 Jun 2014 -
Aceito
14 Ago 2014