Resumo
A pandemia de COVID-19 desafiou gestores e explicitou fragilidades dos sistemas de saúde. No Brasil, a pandemia surgiu em meio a dificuldades para o trabalho no SUS e na vigilância sanitária (VISA). O objetivo deste artigo é analisar os efeitos da COVID-19 sobre a organização, as condições de trabalho, a gestão e a atuação de VISA, conforme a percepção de gestores de capitais de três regiões do Brasil. É uma pesquisa exploratória, descritiva, com análise qualitativa. Utilizou-se o software Iramuteq no tratamento do corpus textual e a análise de classificação hierárquica descendente gerou quatro classes: características do trabalho de VISA na pandemia (39,9%), organização e condições de trabalho de VISA na pandemia (12,3%), efeitos da pandemia sobre o trabalho (34,4%) e proteção da saúde de trabalhadores e da população (13,4%). A VISA implantou trabalho remoto, ampliou turnos de trabalho e diversificou suas ações. Entretanto, enfrentou dificuldades de pessoal, infraestrutura e capacitação insuficiente. O estudo apontou as potencialidades das ações conjuntas para a VISA.
Palavras-chave:
Vigilância sanitária; COVID-19; Trabalho em saúde; Gestão em saúde
Abstract
The COVID-19 pandemic has challenged managers and exposed weaknesses in health systems. In Brazil, the pandemic emerged amid difficulties to work in the Brazilian Unified Health System (SUS) and in health surveillance (HS). The purpose of this article is to analyze the effects of COVID-19 on the organization, working conditions, management, and performance of HS, according to the perception of capital city managers from three regions of Brazil. This is an exploratory, descriptive research with qualitative analysis. The Iramuteq software was used in the treatment of the textual corpus and analysis of descending hierarchical classification, which generated four classes: characteristics of HS work during the pandemic (39.9%), HS organization and working conditions during the pandemic (12.3%), effects of the pandemic on work (34.4%), and the class of the health protection of workers and the population (13.4%). HS implemented remote work, expanded work shifts, and diversified its actions. However, it faced difficulties with personnel, infrastructure, and insufficient training. The present study also pointed out the potential for joint actions concerning HS.
Key words:
Health surveillance; COVID-19; Health work; Health management
Introdução
A pandemia de COVID-19 desafiou gestores públicos e desnudou as fragilidades dos sistemas de saúde. Esse fenômeno exigiu medidas rápidas de controle sanitário sobre bens, ambientes, serviços, meios de locomoção e população. No Brasil, a crise sanitária se entrelaçou com a crise social, econômica, ambiental e política, e as iniquidades e condições de vulnerabilidade potencializaram os efeitos da pandemia sobre a carga de doenças, quadro considerado uma sindemia11 Horton R. Offline: COVID-19 is not a pandemic. Lancet 2020; 396(10255):874.
2 Júnior JPB, Santos DB. COVID-19 como sindemia: modelo teórico e fundamentos para a abordagem abrangente em saúde. Cad Saude Publica 2021; 37(10):e00119021.-33 Barbosa TP, Costa FBP, Ramos ACV, Berra TZ, Arroyo LH, Alves YM, Santos FL, Arcêncio RA. Morbimortalidade por COVID-19 associada a condições crônicas, serviços de saúde e iniquidades: evidências de sindemia. Rev Panam Salud Publica 2022; 46:e6..
Em adição, a pandemia agravou as desigualdades no mundo do trabalho, em uma conjuntura na qual os trabalhadores(as) em geral já sofriam pelas perdas de direitos44 Santos KOB, Fernandes RCP, Almeida MMC, Miranda SS, Mise YF, Angelim MAGL. Trabalho, saúde e vulnerabilidade na pandemia de COVID-19. Cad Saude Publica 2020; 36(12):e00178320.. Em particular o trabalho em saúde, por sua natureza e essencialidade, apresentou índices significativos de morbimortalidade pela COVID-1955 Teixeira CFS, Soares CMS, Souza EA, Lisboa ES, Pinto, ICM, Andrade LR, Espiridião MA. A saúde dos profissionais de saúde no enfrentamento da pandemia de COVID-19. Cien Saude Colet 2020; 25(9):3466-3474.. A sobrecarga de trabalho produziu sofrimento mental e a síndrome de burnout passou a ser frequente66 Ribeiro AP, Oliveira, GL, Silva LS, Souza ER. Saúde e segurança de profissionais de saúde no atendimento a pacientes no contexto da pandemia de COVID-19: revisão de literatura. Rev Bras Saude Ocup 2020; 45:e25. No início da pandemia, a insuficiência de equipamentos de proteção individual (EPI) para os profissionais de saúde acarretou risco de adoecimento e morte77 Vedovato TG, Andrade CB; Santos DL, Bitencourt SM, Almeida LP, Sampaio JFS. Trabalhadores(as) da saúde e a COVID-19: condições de trabalho à deriva? Rev Bras Saude Ocup 2021; 46(1):2317-6369..
Na tentativa de conter a transmissão do SARS-Cov-2, evidenciou-se uma divisão internacional do trabalho, com poucos países dominando a produção de tecnologias biomédicas e insumos para saúde, e o Brasil mostrou-se dependente da importação desses produtos88 Fernandes DRA, Gadelha CAG, Maldonado JMSV. Vulnerabilidades das indústrias nacionais de medicamentos e produtos biotecnológicos no contexto da pandemia de COVID-19. Cad Saude Publica 2021; 37(4):e00254720.. Nessas circunstâncias, sobressai a importância do trabalho da vigilância sanitária (VISA) para o controle dos riscos potenciais à saúde nas cadeias de produção e consumo de bens, serviços e do meio ambiente. Destacou-se a importância estratégica do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS) para a proteção da saúde da população brasileira, composto pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), as vigilâncias estaduais e municipais e a rede de laboratórios analíticos em saúde, coordenada pelo Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS).
Durante a pandemia, as atividades de fiscalização sanitária da produção e comercialização ocorreram principalmente sobre dispositivos médicos, medicamentos, prestação de serviços de saúde, e também na adoção de processos fast track para o registro de vacinas e testes rápidos para COVID-19, autorização de pesquisas clínicas de novas terapêuticas e de reposicionamento de antigas drogas99 Costa EA, Souza GSC, Souza MKB, Araújo PS, Paz BMS, Costa EAM, Lima YOR. A pandemia da COVID-19 sob a perspectiva da vigilância sanitária. Boletim ObservaCovid-19. Ano 3, ed. 14. 2022., controle da saúde de viajantes, entre outras medidas.
O trabalho da VISA se organiza de modo sistêmico, em uma lógica de complementaridade, observadas as relações interfederativas e competências dos entes que compõem o SNVS. Seus objetos de trabalho são, ao mesmo tempo, bens sociais de interesse da saúde e mercadorias disponíveis para consumo, portanto o trabalho da VISA é parte das funções do Estado no processo de regulação das relações entre a saúde e o mercado.
Desse modo, suas ações têm distintas dimensões: a sanitária, a econômica e a jurídico-política, que competem, entre si nos processos decisórios de controle sanitário. A fiscalização sanitária, exercício do poder de polícia da VISA, ocorre observando os princípios da administração pública. A VISA compartilha competências com outros órgãos do Estado, o que requer ações articuladas e intersetoriais para intervenção nos problemas sanitários, sendo estratégica para conferir melhor efetividade às ações em uma situação complexa como a pandemia de COVID-191010 Costa EA. Fundamentos da vigilância sanitária. Salvador: EDUFBA; 2009..
A pandemia surge em meio às dificuldades do trabalho no SUS e nos serviços de VISA pelas condições precárias de trabalho, insuficiência de pessoal e infraestrutura, com limitações à sua atuação1111 Costa E, Costa EAM, Souza MKB, Araujo OS, Souza GS, Lima YOR, Paz BMS. Desafios à atuação dos trabalhadores de vigilância sanitária nos serviços de saúde. Vigil Sanit Debate 2022; 10(1):14-24.. Torna-se importante refletir a respeito os desafios colocados para o trabalho em VISA durante a pandemia, e ao mesmo tempo identificar potencialidades que despontaram durante seu curso.
O objetivo deste artigo é analisar os efeitos da COVID-19 sobre a organização e as condições de trabalho, gestão e atuação da VISA, conforme a percepção de gestores de capitais de três diferentes regiões do Brasil.
Estratégias metodológicas
Este artigo integra a pesquisa “Análise de modelos e estratégias de vigilância em saúde da pandemia do COVID-19 (2020-2022)”, aprovada e financiada por meio da Chamada MCTIC/CNPq/FNDCT/MS/SCTIE/Decit nº 07/2020. Trata-se de uma pesquisa exploratória e descritiva, com abordagem qualitativa com gestores de VISA de capitais de três regiões do Brasil: Norte, Nordeste e Sudeste.
A partir das entrevistas, construiu-se e submeteu-se o conteúdo à análise textual lexicográfica, por meio do software Interface de R pour Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionneires (Iramuteq). Esse software permite analisar de forma transparente e sistemática a linguística complexa do corpus oriunda de dados textuais. A análise agrupa palavras com sentidos semelhantes, bem como separa aquelas que têm sentidos diferentes dentro dos discursos, permitindo subsidiar a compreensão do ambiente de sentido das palavras e, dessa forma, indicar os significados/representações/percepções referentes ao objeto estudado1212 Camargo BV, Justo AM. Iramuteq: um software gratuito para análise de dados textuais. Temas Psicol 2013; 21(2):513-518..
O Iramuteq é um software gratuito, desenvolvido sob a lógica open source, e tem sido recomendado para análises de dados qualitativos compostos por corpus de maior volume textual, permitindo aos pesquisadores explorar, descrever e comparar dados com maior detalhamento1212 Camargo BV, Justo AM. Iramuteq: um software gratuito para análise de dados textuais. Temas Psicol 2013; 21(2):513-518..
Participaram do estudo 12 gestores de VISA municipais de captais das três regiões do Brasil citadas, de ambos os sexos, com tempo na função de gestor variando de dois meses a 16 anos. As capitais foram selecionadas a partir dos seguintes critérios: ser capital do estado; município de diferentes regiões brasileiras; e apresentar estágios distintos de transmissão do vírus (aceleração, desaceleração e estabilização) na primeira onda da pandemia no Brasil.
Os dados foram produzidos por meio de entrevistas semiestruturadas aplicadas individualmente, entre setembro de 2021 e abril de 2022. Diante do contexto da pandemia, as entrevistas foram conduzidas via plataforma virtual em horários agendados, tendo o áudio gravado.
O processamento e análise dos dados ocorreu em algumas etapas. No primeiro momento, fez-se a transcrição, leitura e revisão de todas as entrevistas realizadas. Na segunda etapa, constitui-se um corpus a partir do agrupamento de respostas dos gestores entrevistados sobre a gestão da VISA na pandemia e aspectos da infraestrutura. A elaboração desse corpus seguiu padronização de acordo com recomendações do software e cada resposta dos gestores foi agrupada e separada por linhas de comando que incluíram variáveis de interesse para o estudo, de maneira que fosse possível identificar nos discursos analisados a variável significativa. O corpus foi submetido à análise de classificação hierárquica descendente (CHD), modelo proposto por Reinert1212 Camargo BV, Justo AM. Iramuteq: um software gratuito para análise de dados textuais. Temas Psicol 2013; 21(2):513-518..
A CHD classifica segmentos de texto com base nos vocabulários e o agrupamento ocorre de acordo com a frequência do radical lexical. Tal análise identifica as palavras coincidentes e, em seguida, mostra os indícios de conectividade entre os termos, revelando a estrutura do corpus textual, e atribui os elementos comuns e específicos conforme as variáveis ilustrativas na análise. Assim, cada texto é transformado em segmentos de texto que são reagrupados em classes de sentido.
Os critérios para formação das classes utilizam a frequência de palavras maior que o dobro da média de ocorrências no corpus e a associação com a classe determinada pelo valor de qui-quadrado igual ou superior a 3,84 e o cálculo definido de significância inferior a 0,05 (p < 0,05). O software apresenta a análise dos dados no formato de um dendograma, que são representações das relações entre as classes, possibilitando a descrição de cada uma das classes, que são fundamentadas no vocabulário e suas variáveis1212 Camargo BV, Justo AM. Iramuteq: um software gratuito para análise de dados textuais. Temas Psicol 2013; 21(2):513-518..
Na última etapa, realizou-se uma análise interpretativa dos sentidos das classes. O sentido atribuído às categorias foi efetuado por três pesquisadores para reduzir o risco de viés de alocação. A interpretação e conclusão dos achados da pesquisa foram fundamentadas nas teorias/referências do campo da vigilância sanitária.
Os aspectos éticos foram respeitados com base nas Resoluções do Conselho Nacional de Saúde e a coleta foi iniciada após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Instituto de Saúde Coletiva e dos CEP dos respectivos serviços e/ou instituições, conforme os pareceres nº 4.586.652, 4.623.542, 5.050.400 e 5.006.513.
Resultados e discussão
O corpus foi constituído por 12 textos, separados em 795 segmentos de texto (ST), e foram utilizados 665 desses, correspondendo a um aproveitamento de 83,65% do total de ST analisados pela CHD. Tal aproveitamento atende aos critérios de eficiência da análise CHD proposta pelo software, que recomenda padrões de retenção mínima entre 70% e 75% dos ST1212 Camargo BV, Justo AM. Iramuteq: um software gratuito para análise de dados textuais. Temas Psicol 2013; 21(2):513-518.. A análise resultou em 27.913 ocorrências de palavras, 3.845 formas de palavras diferentes e 1.343 palavras de ocorrência única (4,81%) (Tabela 1).
A análise CHD dividiu o corpus em duas partições e cada partição gerou duas classes de palavras. A primeira, denominada Trabalho de VISA na pandemia de COVID-19, gerou a Classe 3 (39,9%) - Características do trabalho de VISA na pandemia - e a Classe 2 (12,3%) - Organização e condições de trabalho de VISA na pandemia. A segunda partição, nomeada Efeitos da pandemia de COVID-19 sobre a VISA, também resultou em duas classes: Classe 1 (34,4%) - Efeitos da pandemia sobre o trabalho - e Classe 4 (13,4%) - Proteção da saúde de trabalhadores e da população (Figura 1).
Dendograma da Classificação Hierárquica Descendente (CHD) do corpus de gestores de VISA de capitais das regiões Norte, Nordeste e Sudeste acerca dos efeitos da pandemia de Covid-19 sobre o trabalho de Vigilância Sanitária. Brasil, 2022.
Características do trabalho de VISA na pandemia
A Classe 3, responsável por 39,9 % dos ST analisados, expressou as concepções dos gestores entrevistados sobre as características do trabalho de VISA no contexto da pandemia. Destacam-se as palavras verificar, inspeção, estabelecimentos, fiscalização, pandemia e denúncia. A variável significativa demonstrou que gestores das três regiões do estudo tiveram importância na construção do sentido dessa classe (p > 0,001).
A emergência da pandemia alterou as rotinas de trabalho da VISA. Passaram a ser priorizadas atividades que tinham relação direta com o controle da pandemia. Observou-se que a inspeção, prática central na atuação da VISA, antes voltada à concessão da licença sanitária para outros objetivos, passou à fiscalização do cumprimento de normativas e protocolos estabelecidos para o controle da pandemia e à orientação para estabelecimentos de interesse da saúde.
As inspeções passaram a ocorrer sobre outros objetos e atividades não usuais, a exemplo de locais para eventos festivos, estabelecimentos escolares, presídios, serviços funerários, entre outros.
Observou-se intensificação da atuação da vigilância sanitária em locais de rotina, como drogarias, inicialmente a fim de verificar os cuidados para evitar aglomeração, observar o uso de máscaras e a disponibilização de álcool 70%, e posteriormente para inspecionar as condições de realização dos testes rápidos de COVID-19.
Não teve um protocolo específico para a drogaria, mas se cumprisse o protocolo geral e a questão do ordenamento das filas, tinha a maquininha do cartão se ela estava protegida, se tinha distanciamento (Gestor Nordeste).
Antes da pandemia não era permitido a realização de testes rápido em drogarias, com a pandemia a Anvisa foi lá e permitiu a realização de teste rápido. Isso já traz uma mudança no processo de trabalho (Gestor Nordeste).
As instituições de longa permanência para idosos (ILPI) são estabelecimentos que abrigam populações de alto risco de adoecimento e agravamento por COVID-19 pela elevada faixa etária e a alta prevalência de doenças crônicas que as tornam mais vulneráveis1313 Moraes EM, Viana LG, Resende LMH, Vasconcellos LS, Moura AS, Menezes A, Mansano NH, Rabelo, R. COVID-19 nas instituições de longa permanência para idosos: estratégias de rastreamento laboratorial e prevenção da propagação da doença. Cien Saude Colet 2020; 25(9):3445-3458.. A Anvisa emitiu nota técnica1414 Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Nota Técnica nº 5 de 2020 GVIMS/GGTES/ANVISA. Orientações para a prevenção e o controle de infecções pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2) em instituições de longa permanência para idosos (ILPI). 2020., com foco nessas instituições, com informações sobre o uso de máscaras, distanciamento, higienização, procedimentos para visita segura aos residentes, bem como procedimentos para a recepção de idosos.
Além disso, foram intensificadas as inspeções nas unidades de pronto atendimento e hospitais, em função da necessidade de verificação dos equipamentos e do uso de EPI pelos trabalhadores da saúde.
Fizemos uma ação conjunta com o Ministério da Saúde, para verificar os equipamentos hospitalares nos hospitais que estavam atendendo Covid. Aí nós fiscalizamos, os ventiladores pulmonares e a quantidade de leitos de UTI (Gestor Norte).
A VISA atuou em consonância com a dinâmica da pandemia, intensificando atividades nos serviços de saúde, fiscalizando o cumprimento de medidas restritivas para proteção da saúde da população, acompanhando o fechamento e a reabertura de estabelecimentos de interesse da saúde, tais como escolas, que requereram uma ação mais intensa da VISA nesse sentido. E também academias, restaurantes, consultórios médico-odontológicos etc., que foram acompanhados nesse movimento de fechamento e reabertura.
Foi referida a atuação relevante da VISA em relação à saúde do trabalhador, competência em geral não atribuída à VISA. Foram destacadas fiscalizações das condições de trabalho visando reduzir o risco de contaminação, a disponibilização regular de EPI, o cumprimento das medidas de vigilância para casos suspeitos e o afastamento para casos positivos, e respeito aos decretos para situações de trabalho remoto. Essas ações se estenderam aos trabalhadores de VISA, da saúde em geral, de delivery de alimentos e àqueles envolvidos na coleta de resíduos de serviços de saúde.
Mas aqui no nosso município tem uma equipe técnica que trabalha com a saúde do trabalhador e a gente é mais um apoio para aplicar alguma medida de poder de polícia, mas nesse enfrentamento da COVID realmente tinham muitas denúncias, a maioria tinha a ver com a saúde do trabalhador (Gestor Sudeste).
Chama a atenção a intensificação de denúncias oriundas da população e do Ministério Público por descumprimento de normativas relacionadas à COVID. Foram abertos canais para recebimento de denúncias em secretarias de saúde dos municípios e serviços de VISA, que foram se reduzindo à medida que ocorreu a flexibilização das atividades econômicas.
Ressalte-se a busca de agilidade no atendimento às denúncias, com um esforço para estabelecer critérios técnicos na tomada de decisão:
Nós elegemos como prioridade atender às demandas relacionadas ao contingenciamento e combate à COVID-19 no município. Todas as reclamações relacionadas à COVID nós estipulamos o prazo máximo de cinco dias, baseado em critérios técnicos, cinco dias é o período de multiplicação viral, conseguimos intervir no ciclo de multiplicação viral (Gestor Sudeste).
A parte mais expressiva do trabalho da VISA constitui o atendimento às demandas dos segmentos regulados. Destaca-se, entre os desafios para a VISA, a necessidade de um modelo de identificação dos principais riscos à saúde, regional e localmente, com trabalho direcionado às prioridades, uma vez que existe escassez de recursos, devendo sua ação ser dirigida pela situação de saúde da população, de modo articulado com as outras vigilâncias e instâncias que atuam com avaliações de riscos à saúde1515 Silva JAA, Costa EA, Lucchese G. SUS 30 anos: Vigilância Sanitária. Cien Saude Colet 2018; 23(6):1953-1961..
O federalismo cooperativo que caracteriza o SUS e o SNVS foi importante no enfrentamento da pandemia. A Anvisa, coordenadora do SNVS, teve intensa atividade nas orientações para o controle sanitário, mediante emissão de notas técnicas e resoluções a serem observadas pelos serviços de saúde, pelas vigilâncias e segmentos regulados, contribuindo para harmonizar as ações de enfrentamento nos estados e municípios, em que pesem as diferentes capacidades de resposta entre eles. Para tanto, contou com a existência de um corpo técnico qualificado e especializado1616 Salinas NSC, Sampaio PRP, Parente AT. A produção normativa das agências reguladoras: Limites para eventual controle da atuação regulatória da Anvisa em resposta à Covid-19. RIL Brasília 2021; 58(230):55-83..
Apesar do papel estratégico da Anvisa e a visibilidade que alcançou a VISA na pandemia, esses fatos não superaram certo isolamento da área em relação às demais ações de saúde, além da dificuldade da agência reguladora em exercer uma coordenação interfederativa e concretizar uma organização sistêmica efetiva1717 Costa EA, Souto AC. Área Temática de Vigilância Sanitária. In: Paim JS, Almeida Filho N, organizadores. Saúde coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: Medbook; 2014; p. 327-341.,1818 De Seta MH, Dain S. Construção do Sistema Brasileiro de Vigilância Sanitária: argumentos para debate. Cien Saude Colet 2010; 15(Supl. 3):3307-3317.. Essa coordenação sistêmica insuficiente foi sinalizada pelos entrevistados, que indicaram uma falta de coordenação local e nacional que articulasse as ações de VISA com demais ações de saúde.
Nós sentimos falta da coordenação local e nacional, a gente não teve, nós não fomos inseridos na coordenação para tratamento da COVID (Gestor Norte).
Além de isolamento, foi referida a insuficiência de capacitação, a não inclusão da VISA, ou a inclusão tardia, nos processos de planejamento, na elaboração de planos de contingência e em comitês de crise.
Souza et al.1919 Souza GS, Souza MKB, Costa EA, Costa EAM, Souto AC, Araújo OS, Paz BMS, Lima YOR. Impactos e desafios para a Vigilância Sanitária diante da pandemia de Covid-19 no Brasil. Boletim ObservaCOVID. Ano 2, ed 4. 2021., analisando os impactos e desafios para a VISA diante da pandemia, constatam a necessidade de fortalecimento do caráter estratégico da Anvisa, com autonomia no exercício de sua função regulatória, estabilidade de seus gestores e corpo técnico e coordenação da gestão sistêmica do SNVS.
Organização e condições de trabalho da vigilância sanitária na pandemia
A Classe 2 (12,3%) abrange aspectos da organização e das condições de trabalho, proteção da saúde do trabalhador e arranjos para superação das dificuldades no enfrentamento da pandemia. As palavras fiscalização integrada, relação, atuação, guarda municipal e veículo foram importantes para expressar o sentido da classe; a variável significativa demostrou que gestores do Sudeste se destacaram na construção do sentido (p > 0,001) (Figura 1).
Na percepção dos entrevistados, com a emergência da pandemia tornou-se necessária a reorganização do trabalho, a rearrumação do espaço físico no serviço e a introdução do trabalho remoto para evitar aglomeração.
Desde o início da pandemia, os países implementaram intervenções para conter o avanço da infecção, como o isolamento de casos, o uso de EPI, o distanciamento social, o fechamento de instituições de ensino e a proibição de eventos, entre outras2020 Aquino EML, Silveira IH, Pescarini JM, Aquino R, Souza-Filho JA, Rocha AS, Ferreira A, Victor A, Teixeira C, Machado DB, Paixão E, Alves FJO, Pilecco F, Menezes G, Gabrielli L, Leite L, Almeida MCC, Ortelan N, Fernandes QHRF, Ortiz RJF, Palmeira RN, Junior EPP, Aragão E, Souza LEPF, Netto MB, Teixeira MG, Barreto ML, Ichihara MY, Lima RTRS. Social distancing measures to control the COVID-19 pandemic: potential impacts and challenges in Brazil. Cien Saude Colet 2020; 25(Suppl. 1):2423-2446.. Tais estratégias influenciaram o trabalho da VISA no que diz respeito à adoção de medidas para proteção dos trabalhadores, pois o trabalho foi mantido e intensificado.
Para atender à demanda, aumentada principalmente por denúncias e solicitações do Ministério Público, criou-se turnos de trabalho adicionais, introduziu-se o trabalho noturno e plantões nos fins de semana, o que resultou em sobrecarga de trabalho.
No início, fizemos plantões noturnos e fins de semana para coibir o funcionamento clandestino de alguns tipos de estabelecimentos, isso foi direto, 2020, 2021 (Gestor Sudeste).
Para realizar certas atividades que emergiram na pandemia, foi necessário elaborar protocolos e roteiros de inspeção específicos e promover capacitações que não ocorreram ou se deram com limitações, ocasionando insegurança dos profissionais frente a atividades não usuais na VISA municipal.
Capacitação para o meu setor de VISA? Não teve! Teve muita capacitação com a assistência. A gente teve discussão, reuniões, mas assim uma capacitação, “olha vamos chamar todos os fiscais para fazer um treinamento pra trabalhar no enfrentamento da COVID?”, não tivemos! Nós fomos atuando de acordo com protocolos, discutindo, elaborando (Gestor Sudeste).
Desafios antigos persistem e evidenciaram-se na pandemia. A questão das carreiras para a força de trabalho da VISA nos estados e municípios, assim como a ampliação e o reforço da qualificação dos trabalhadores com foco nos riscos à saúde nos territórios, permanecem um desafio para o SNVS e para o SUS2020 Aquino EML, Silveira IH, Pescarini JM, Aquino R, Souza-Filho JA, Rocha AS, Ferreira A, Victor A, Teixeira C, Machado DB, Paixão E, Alves FJO, Pilecco F, Menezes G, Gabrielli L, Leite L, Almeida MCC, Ortelan N, Fernandes QHRF, Ortiz RJF, Palmeira RN, Junior EPP, Aragão E, Souza LEPF, Netto MB, Teixeira MG, Barreto ML, Ichihara MY, Lima RTRS. Social distancing measures to control the COVID-19 pandemic: potential impacts and challenges in Brazil. Cien Saude Colet 2020; 25(Suppl. 1):2423-2446..
As dificuldades quanto à insuficiência de veículos para o trabalho de inspeção/fiscalização de estabelecimentos e atividades requereram a redução do tamanho das equipes, de modo a preservar algum distanciamento dos trabalhadores nesses transportes.
A gente tinha dificuldade em relação a veículos, em relação até a profissionais mesmo, pra dar conta de atender esses plantões (Gestor Sudeste).
Entrevistados referiram algum avanço na informatização de processos de licença sanitária de estabelecimentos classificados como de baixo risco, o que facilitou o trabalho remoto; contudo, alguns sinalizaram limites devido a deficiências na infraestrutura do serviço por causa da insuficiência de computadores.
A única mudança significativa que eu percebi foi um movimento para que se tornassem os processos de trabalho mais virtuais. Eu acho que deu, de certa forma, uma celeridade a alguns assuntos que eram feitos de forma às vezes muito burocráticas. Porém, eu acho que ainda foi precário. Nós temos uma estrutura física muito precária. Como é que você pode trazer para o mundo digital um setor que não tem a ferramenta necessária para que isso se concretize? (Gestor Nordeste).
No curso da pandemia identificou-se uma atuação articulada da VISA com outros componentes do âmbito da saúde - vigilância epidemiológica, controle de zoonoses, saúde do trabalhador - e de outros segmentos institucionais, tais como Secretaria de Desenvolvimento Urbano, Guarda Municipal e Polícia Militar.
Nota-se que a escassez de pessoal impulsionou a cooperação entre as vigilâncias, em especial a sanitária e a epidemiológica. O poder de polícia, atributo da VISA, foi relevante em atuações conjuntas com a vigilância em saúde do trabalhador, pois esta não detém essa prerrogativa legal.
Quem atua na vigilância de saúde do trabalhador não tem poder de polícia como nós temos, acaba recaindo sobre a gente uma responsabilidade muito grande de ter que também olhar questões de saúde do trabalhador. Hoje a gente tem uma articulação muito forte com a vigilância em saúde e a vigilância epidemiológica, temos feito inspeções regularmente em ações conjuntas (Gestor Nordeste).
A articulação entre as vigilâncias tem sido preconizada em um modelo de vigilância em saúde, com potencial para intervenção conjunta e integrada sobre os fatores de risco à saúde, com medidas de proteção e controle2121 Oliveira CMC, Marly M. Sistema de Vigilância em Saúde no Brasil: avanços e desafios. Saude Debate 2015; 39(104):255-267.. Na pandemia essa necessidade ficou mais evidente.
Na pandemia de COVID-19, a priorização de recursos foi direcionada para a assistência, em especial a hospitalar. A atenção básica teve sua relevância minimizada2222 Smallwood N, Pascoe A, Karimi L, Bismark M, Willis K. Occupational disruptions during the COVID-19 pandemic and their association with healthcare workers' mental health. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(17):9263.. No estágio inicial da pandemia, os formuladores de políticas, em sua maioria, não informaram e não prepararam os serviços para a prestação de cuidados e a proteção de equipes e usuários2323 Rawaf S, Allen LN, Stigler FL, Kringos D, Quezada Yamamoto H, van Weel C, Global Forum on Universal Health Coverage and Primary Health Care. Lessons on the COVID-19 pandemic, for and by primary care professionals worldwide. Eur J Gen Pract 2020; 26(1):129-133.. No caso da VISA, a não contratação de recursos humanos adicionais obrigou os serviços a enfrentarem o aumento das demandas com equipes já historicamente reduzidas99 Costa EA, Souza GSC, Souza MKB, Araújo PS, Paz BMS, Costa EAM, Lima YOR. A pandemia da COVID-19 sob a perspectiva da vigilância sanitária. Boletim ObservaCovid-19. Ano 3, ed. 14. 2022..
A insuficiência de recursos humanos não se limitou à VISA e até funcionou como estímulo à cooperação intra e intersetorial. Apesar de ter poder de polícia no exercício de sua função, a VISA, segundo os entrevistados, precisou acionar a Guarda Municipal e ou a Polícia Militar para garantir a segurança de seus trabalhadores frente a ameaças à sua integridade física, em especial nas fiscalizações de eventos e denúncias de aglomerações festivas com descumprimento de restrições legalmente impostas em função da pandemia.
Eu acho que nenhuma VISA do Brasil tinha uma estrutura suficiente para fazer isso, nós precisamos da ajuda da Prefeitura, ela teve que locar microônibus ou então vans pra que a gente pudesse sair com a equipe, porque havia risco até de agressão, pessoas querendo funcionar, aí saía uma equipe multidisciplinar, Guarda Municipal, cada um fazia sua parte (Gestor Sudeste).
Efeitos da pandemia sobre o trabalho da vigilância sanitária
A Classe 1 (34,4%) reuniu os sentidos relacionados aos efeitos da pandemia sobre o trabalho da VISA na percepção dos entrevistados.
Segundo os gestores, a pandemia produziu um aumento da demanda pelo trabalho da VISA e afetou a saúde de trabalhadores, especialmente a saúde mental, devido ao medo de contrair o cooronavírus e à sobrecarga de trabalho.
Chega um momento que há sobrecarga dos profissionais, que está tendo, porque quando começa a melhorar um pouquinho a situação, se recruta para vacinação. A atividade está acontecendo o tempo inteiro. Se observa um cansaço realmente físico e mental da equipe (Gestor Nordeste).
O suporte organizacional e a comunicação foram úteis e oportunos para mitigar os impactos da pandemia na saúde mental. Pesquisadores identificaram que a maioria das intervenções para prevenir ou aliviar problemas de saúde mental não se concentravam nos fatores organizacionais, mas principalmente em ações relacionadas à provisão de serviços individuais de saúde mental aos profissionais de saúde2323 Rawaf S, Allen LN, Stigler FL, Kringos D, Quezada Yamamoto H, van Weel C, Global Forum on Universal Health Coverage and Primary Health Care. Lessons on the COVID-19 pandemic, for and by primary care professionals worldwide. Eur J Gen Pract 2020; 26(1):129-133..
Alguns efeitos sobre a organização do trabalho dizem respeito à escassez de recursos de infraestrutura e ao risco de contágio pelo Sars-Cov-2. Segundo os entrevistados, percebeu-se maior necessidade de proteção da saúde do trabalhador, de disponibilidade e uso adequado dos EPI e de reorganização do ambiente de trabalho.
Um estudo destacou que o número insuficiente ou a inadequação de medidas de prevenção e proteção coletiva e individual contribuiu para a propagação do risco nos ambientes laborais2424 Ingram C, Downey V, Roe M, Chen Y, Archibald M, Kallas KA, Kumar J, Naughton P, Uteh CO, Rojas-Chaves A, Shrestha S, Syed S, Cléirigh Büttner F, Buggy C, Perrotta C. COVID-19 prevention and control measures in workplace settings: a rapid review and meta-analysis. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(15):7847.. Sobre o risco de exposição ao vírus no ambiente e/ou trajeto de trabalho, acrescentam que isso pode indicar necessidade de inspeção sanitária de ambientes e processos de trabalho, além de justificar a realização de ações de vigilância e atenção à saúde dos trabalhadores2525 Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Entenda a infodemia e a desinformação na luta contra a COVID-19. Evidence and Intelligence for Action in Health (EIH). Washington, DC: OPAS; 2020..
Além de reiterarem que o aumento da demanda não foi acompanhado por aporte adicional de recursos, os entrevistados alegaram a persistência de um desconhecimento de gestores quanto à realidade enfrentada pela VISA em sua atuação.
Eu queria tanto que um secretário de saúde saísse para fazer uma inspeção. Eu gostaria muito, para ele compreender a nossa realidade, para eles entenderem que o nosso processo de trabalho merece recursos (Gestor Nordeste).
Outro efeito da pandemia se refere à necessidade de inclusão da VISA nos espaços de gestão no enfrentamento à pandemia, algo que se expressou de formas variadas tardiamente no curso da pandemia ou não ocorreu, de acordo com os entrevistados.
E aos poucos a VISA foi sendo incluída na construção da gestão da pandemia, mas no início a gente não estava sendo incluída como deveria, com a importância do papel da VISA nesse cenário (Gestor Nordeste).
A gente não participou do comitê de enfrentamento à crise, a gente não tinha assento e nossas ações foram muito independentes, não participamos dessa coordenação e não tivemos apoio. Não fomos acolhidos (Gestor Norte).
Formávamos vários grupos para fazer junto com o comitê, aqui tem um comitê que assessora Prefeitura, um comitê de gestão que a gente dá assessoria para Prefeitura (Gestor Sudeste).
Além da insuficiente articulação da gestão municipal com a gestão local dos distritos sanitários, também foi mencionado haver pouca qualificação dos gestores, como se observa na fala a seguir:
[...] o grande problema da gestão é que nós temos muitas vezes pessoas que elas não têm perfil para ser gestor (Gestor Nordeste).
O processo de descentralização da VISA tem ocorrido sob o prisma das diferenças e desigualdades que marcam os municípios brasileiros, tanto nos aspectos socioeconômicos quanto na capacidade de respostas aos problemas sanitários. Destacam-se as dificuldades de estrutura e equipes capacitadas, e a rotatividade de gestores, muitas vezes sem o preparo para gestão dos serviços de vigilância, além das ingerências políticas no trabalho2626 Barreto RL, Guimarães MCL. Um estudo sobre a descentralização das ações de Vigilância Sanitária nos municípios baianos: fatores intervenientes. Cad Saude Colet 2011; 19(3):305-311.
Proteção da saúde de trabalhadores e da população
A Classe 4 incluiu (13,4%) e reuniu os sentidos referentes aos efeitos da pandemia sobre questões relativas à proteção da saúde de trabalhadores em geral e da VISA, e denotou um sentido de proteção da saúde da população. As palavras máscara, saneantes, disponibilizar, assistência e EPI se destacaram na construção dos sentidos. Os discursos de gestores das regiões Nordeste e Sudeste apresentaram significância estatística (p > 0,001).
Os resultados indicaram redirecionamento do processo de trabalho para objetos de importância na pandemia, visando a proteção da saúde da população, dos trabalhadores da saúde em geral e da VISA. Os entrevistados expressaram preocupação com a garantia da disponibilidade dos insumos de proteção individual, bem como de sua qualidade e uso adequado.
Desde o surgimento dos primeiros casos de COVID-19, especialistas ressaltam a importância de assegurar acesso e uso adequado aos EPI para os profissionais da saúde, com priorização daqueles com maior risco de contágio pelo vírus, entre os quais se destacam os profissionais da assistência. Chamam a atenção para que programas de vigilância em saúde ocupacional sejam estruturados para monitorar a saúde mental dos trabalhadores da saúde que vivenciavam ansiedade, depressão, esgotamento, resultantes da intensa carga emocional causada por essa emergência em saúde2727 Chirico F, Magnavita N. The crucial role of occupational health surveillance for health-care workers during the COVID-19 pandemic. Workplace Health Saf 2021; 69(1):5-6..
Na opinião dos entrevistados, a mudança de atitude da população e dos estabelecimentos fiscalizados pela VISA em relação às medidas de proteção da saúde ocorreu gradativamente.
Alguns casos, são poucos, que eram resistentes às orientações, às determinações. A gente teve que agir com um pouquinho mais de rigor. Atualmente a cidade vem cumprindo de forma até exemplar todos os protocolos de COVID (Gestor Sudeste).
Os estudos em geral mostram o mascaramento universal como principal iniciativa empregada para a proteção da saúde da população. Mas o uso dessa medida provou ser inadequado na redução da transmissão do vírus quando implementado isoladamente2424 Ingram C, Downey V, Roe M, Chen Y, Archibald M, Kallas KA, Kumar J, Naughton P, Uteh CO, Rojas-Chaves A, Shrestha S, Syed S, Cléirigh Büttner F, Buggy C, Perrotta C. COVID-19 prevention and control measures in workplace settings: a rapid review and meta-analysis. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(15):7847.. Apesar das dificuldades e da abrangência limitada, a implantação de medidas de proteção da saúde empregadas pela VISA incluiu enfoque nos trabalhadores, nos estabelecimentos e na população em geral.
A quantidade de informações veiculadas pela imprensa e redes sociais resultou num aumento de demandas para a VISA, como denúncias e dúvidas relacionadas à pandemia. Essa situação foi agravada pelas informações originadas do Ministério da Saúde, referidas pelos entrevistados como desencontradas. Os excertos abaixo são ilustrativos:
A população estava muito confusa com tantas informações que chegavam da mídia, das redes sociais, não conseguia fazer a triagem da questão do conhecimento científico (Gestor Nordeste).
Dentro do desencontro das informações que vinham do Ministério da Saúde, eu acho que nós tivemos uma postura até eficiente no início (Gestor Nordeste).
As respostas à pandemia foram influenciadas pela infodemia e a desinformação. De acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde2525 Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Entenda a infodemia e a desinformação na luta contra a COVID-19. Evidence and Intelligence for Action in Health (EIH). Washington, DC: OPAS; 2020., o aumento de acesso global aos celulares conectados à internet, juntamente com o alcance das redes sociais, favoreceu o compartilhamento exponencial de informações, resultando em uma epidemia de informações, muitas vezes falsas ou imprecisas2424 Ingram C, Downey V, Roe M, Chen Y, Archibald M, Kallas KA, Kumar J, Naughton P, Uteh CO, Rojas-Chaves A, Shrestha S, Syed S, Cléirigh Büttner F, Buggy C, Perrotta C. COVID-19 prevention and control measures in workplace settings: a rapid review and meta-analysis. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(15):7847..
No Brasil, a politização da pandemia, demarcada pela postura negacionista e a omissão no combate à COVID-19 pelo presidente da república, teve efeito sobre o trabalho em VISA, afirmaram alguns gestores. O negacionismo da ciência buscou invalidar, substituir, relativizar e desaconselhar recomendações de organizações de saúde e até mesmo medidas de proteção da saúde e tratamento da doença, em função de interesses políticos e econômicos ilegítimos2828 Monari A, Bertolli Filho C. Saúde sem fake news: estudo e caracterização das informações falsas divulgadas no canal de informação e checagem de fake news do Ministério da Saúde. RMC 2019; 13(1):160-183..
Entrevistados afirmaram que no início da pandemia se preocuparam com o medo de infecção pelo Sars-Cov-2 que os trabalhadores expressavam em sua atividade de fiscalização/inspeção, bem como com a saúde mental deles. Isso em um cenário com informações e evidências científicas ainda insuficientes para esclarecer as questões da pandemia, sentindo-se mais seguros depois da vacina.
Tem alguns profissionais que tinham um pânico muito grande da possibilidade de pegar COVID, num dado momento não queria sair para inspeção A pandemia afeta não só as ações de vigilância. Quando pensamos em infraestrutura, isso inclui o pessoal, tem esses aspectos também (Gestor Nordeste).
Para Smallwood, as políticas e práticas baseadas em evidências, quando utilizadas pelas organizações, contribuem para proteger a força de trabalho da saúde durante a pandemia em andamento e em crises futuras2222 Smallwood N, Pascoe A, Karimi L, Bismark M, Willis K. Occupational disruptions during the COVID-19 pandemic and their association with healthcare workers' mental health. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(17):9263..
Com relação à proteção da saúde da população, a VISA exigiu dos estabelecimentos fiscalizados EPI para seus trabalhadores e disponibilização de álcool 70%, obrigatoriedade do uso de máscara e evitar aglomerações. Quanto ao segmento produtivo de insumos para a saúde, atentava para a verificação do cumprimento dos requisitos para a produção e comercialização desses produtos.
Considerações finais
O trabalho de VISA durante a pandemia, na visão de gestores de três capitais brasileiras, reitera antigas dificuldades de estrutura, déficit de pessoal e capacitação insuficiente de equipes e gestores frente aos desafios para o controle de riscos à saúde. Entretanto, observou-se certa resiliência do SNVS no âmbito municipal, especialmente na busca por adequação às demandas surgidas durante a pandemia. Destaca-se o aumento da informatização e a organização do trabalho remoto para o acompanhamento dos processos administrativos e os esforços de ações articuladas com outros setores da administração pública para superação da carência de pessoal. Ressaltaram-se ações conjuntas de fiscalização, vigilância epidemiológica e vigilância em saúde do trabalhador.
Entretanto, durante a pandemia predominou uma atuação centrada na prática de fiscalização/inspeção, porém com atividade de comunicação de risco e orientação à população insuficientes, o que denota dificuldade de avanço para um modelo ampliado, com intervenções mais preventivas sobre os fatores de risco e o uso de tecnologias sociais para o envolvimento ativo da população.
Chama atenção, na fala dos gestores, a ausência de temas que foram objeto de grande preocupação do sistema de saúde para o controle da pandemia, a exemplo de vacinas e medicamentos. Apesar da ação destacada da Anvisa no processo de registro das vacinas anti-COVID-19, os gestores das vigilâncias sanitárias dos municípios estudados não referiram nenhuma ação relacionada às vacinas, a exemplo das condições sanitárias dos locais de vacinação, das condições de transporte e armazenamento e do acompanhamento de notificação de eventos adversos e queixas técnicas de vacinas e medicamentos.
Outra questão que passou ao largo da atenção da VISA foi a automedicação durante a pandemia, que envolveu um consumo irracional de medicamentos sem eficácia comprovada para COVID-19, a exemplo da cloroquina-hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina, o famoso “kit COVID”. Não foi citada nenhuma ação de restrição ao uso indiscriminado dessas drogas, que foram objeto de muitas controvérsias regulatórias e de pesquisas que reiteraram a ineficácia para o controle da pandemia. Ressalte-se que os medicamentos mais envolvidos com reações adversas em pacientes com COVID foram hidroxicloroquina (59,5%), azitromicina (9,8%) e cloroquina (5,2%), conforme notificações espontâneas do sistema de farmacovigilância brasileiro2222 Smallwood N, Pascoe A, Karimi L, Bismark M, Willis K. Occupational disruptions during the COVID-19 pandemic and their association with healthcare workers' mental health. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(17):9263..
Outro destaque remete à necessidade de fortalecimento da coordenação interfederativa para uma atuação rápida e coordenada do SNVS nas três esferas de gestão, a fim de oferecer respostas ao enfrentamento da COVID-19 com ações que abarquem as dimensões regulatória/normativa, fiscalizatória e comunicativa99 Costa EA, Souza GSC, Souza MKB, Araújo PS, Paz BMS, Costa EAM, Lima YOR. A pandemia da COVID-19 sob a perspectiva da vigilância sanitária. Boletim ObservaCovid-19. Ano 3, ed. 14. 2022..
Os resultados apresentados estimulam reflexões sobre a situação sanitária enfrentada pelos municípios das cinco regiões do país e indicam a necessidade de aprofundar estudos sobre esse componente do SUS de relevância crucial para a proteção e defesa da saúde da população.
Referências
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Financiamento
Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - CNPQ401744/2020-5.
Editores-chefes:
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
12 Maio 2023 -
Data do Fascículo
Maio 2023
Histórico
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Recebido
10 Jul 2022 -
Aceito
03 Nov 2022 -
Publicado
05 Nov 2022