Resumo
Este artigo apresenta os impactos da pandemia nos sistemas de saúde e as repercussões nas condições de trabalho e saúde mental dos profissionais de saúde e trabalhadores invisíveis da saúde no contexto da COVID-19. Apresenta a mortalidade entre os profissionais da saúde destacando a necessidade de melhores condições de trabalho e de segurança para os trabalhadores da saúde e melhora da gestão pública. Enfatiza as recomendações da OMS/OPAS, a necessidade de vacinação equânime, incluindo os países mais pobres e as populações mais vulneráveis. Relata os impactos da interrupção dos serviços essenciais em saúde, como para as doenças crônicas e infecciosas, e os prejuízos causados pela disseminação de informações falsas pela rede social, e lembra da necessidade de veiculação de informações corretas e seguras na saúde.
Palavras-chave:
Pandemia; COVID-19; Saúde; Profissional da saúde; Morte; Infodemia
Abstract
This article discusses the impacts of the COVID-19 pandemic on health systems and its effects on the working conditions and mental health of health professionals and invisible health workers. It presents data on deaths among health professionals, highlighting the need for better and safer working conditions and improvements in public management. We emphasize WHO/PAHO recommendations and the need for equitable vaccine distribution, including poor countries and vulnerable populations. We also highlight the impacts of interrupting essential health services, such as the treatment of chronic conditions and infectious disease prevention, and the damage caused by the dissemination of fake news, stressing the need to improve access to correct and safe health information.
Key words:
Pandemic; COVID-19; Health; Health professional; Death; Infodemic
Introdução
Para desenvolver a reflexão proposta neste artigo, convém, preliminarmente, fazer uma retrospectiva sucinta de episódios que definiram o curso da emergência de saúde pública provocada pela pandemia. O novo coronavírus (SARS-CoV-2) foi reportado à Organização Mundial da Saúde (OMS) pela primeira vez em 31 de dezembro de 2019, poucas semanas após o primeiro paciente ter sido diagnosticado e internado no Hospital Central de Wuhan, província de Hubei, na China, em 26 de dezembro de 201911 Wu F, Zhao S, Yu B, Chen YM, Wang W, Song ZG, Hu Y, Tao ZW, Tian JH, Pei YY, Yuan ML, Zhang YL, Dai FH, Liu Y, Wang QM, Zheng JJ, Xu L, Holmes EC, Zhang YZ. A new coronavirus associated with human respiratory disease in China. Nature 2020; 579(7798):265-269..
Em 10 de janeiro de 2020, foi realizada a primeira sequência do genoma (WH- Human1) do Wuhan CoV. Em 30 de janeiro de 2020, a OMS declara o advento do novo coronavírus uma emergência de saúde pública internacional e, em 11 de março de 2020, classificou a situação como pandemia, com mais de 110 mil casos da infecção em 114 países.
No Brasil, o Centro de Informações Estratégicas em Vigilância em Saúde (CIEVS) do Ministério da Saúde (MS), que integra a Rede Nacional de Alerta e Resposta às Emergências em Saúde Pública, foi notificado dos primeiros casos suspeitos de COVID-19 em janeiro de 2020. A Portaria no 188, de 3 de fevereiro de 2020, do MS declarou a COVID-19 como Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN)22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 188, de 3 de fevereiro de 2020. Declara Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV). Saúde Legis 2020; 3 fev., e a Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, dispõe sobre as medidas para enfrentamento da ESPIN decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 201933 Brasil. Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Diário Oficial da União 2020; 6 fev..
Até agora foram identificados sete coronavírus humanos (HCoVs): HCoVs-229-E, OC43, NL63, HKV1, SARS-CoV (síndrome respiratória aguda grave), MERS-CoV (síndrome respiratória do Oriente Médio) e SARS-CoV-2 (novo coronavírus). O amplo conhecimento sobre a família dos coronavírus acumulado ao longo de anos foi extremamente valioso para o melhor entendimento e enfrentamento da pandemia. Entretanto, a falta de preparo dos sistemas de saúde foi determinante para o desfecho da situação pandêmica
Em 26 de fevereiro de 2020, pesquisadores brasileiros completaram o sequenciamento genômico do primeiro caso de coronavírus da América Latina. Esse sequenciamento foi de suma importância, fornecendo dados para monitorar a pandemia, detectar mutações e influenciar na fabricação de vacinas44 Genoma do SARS-CoV-2 do primeiro caso de COVID-19 da América Latina sequenciado em 48 horas no Instituto Adolfo Lutz [Internet]. Faculdade de Medicina da USP 2020. [acessado 2022 fev 8]. Disponível em: https://www.fm.usp.br/fmusp/noticias/-genoma-do-sars-cov-2-do-primeiro-caso-de-covid-19-da-america-latina-sequenciado-em-48-horas-no-instituto-adolfo-lutz
https://www.fm.usp.br/fmusp/noticias/-ge...
. Por outro lado, a desinformação e a proliferação em escala de notícias falsas sobre o assunto criou terreno fértil para o surgimento de curas milagrosas e para a falta de adesão às medidas sanitárias eficientes.
Não obstante o cenário adverso, a OMS e a Organização Pan-americana da Saúde (OPAS) atuaram prestando apoio técnico, recomendando manter o sistema de vigilância em alerta constante e identificar e isolar pacientes infectados o mais precocemente. Não houve um planejamento sanitário prévio para o enfrentamento da COVID-19, tudo foi novo e abrupto. Hoje tem-se uma visão mais clara das complexas manifestações clínicas da COVID-19 e das melhores opções de conduta clínica. A pandemia de COVID-19 configurou-se numa calamidade sem precedentes, cujos danos e efeitos ainda estão sendo estimados.
O presente estudo explora as repercussões da pandemia de COVID-19 nos sistemas de saúde do Brasil e do mundo, bem como as repercussões nas condições de trabalho e de saúde mental dos trabalhadores da saúde expostos na linha de frente. Por fim, propõe-se uma análise dos desdobramentos sociais e laborais decorrentes da disseminação em escala de notícias falsas (fake news) sobre o assunto (infodemia).
Metodologia
Estudo exploratório, descritivo e reflexivo, realizado a partir de pesquisa bibliográfica nas plataformas PubMed, Lilacs, Ebscohost, SciELO, Bireme, Scopus, BVS, Google Acadêmico e nos websites DATASUS, MS, OPAS e OMS, e análise de informações coletadas em sites de notícias, telejornais e imprensa escrita. As informações obtidas foram sistematizadas e escrutinadas com base no referencial da análise de conteúdo e dos dados das pesquisas “Condições de trabalho dos profissionais de saúde no contexto da COVID-19 no Brasil” e “Trabalhadores invisíveis da saúde: condições de trabalho e saúde mental no contexto da COVID-19 no Brasil”, coordenadas pela professora Maria Helena Machado, do Centro Estudos Estratégicos - ENSP/Fiocruz.
Cenários no enfrentamento da pandemia de COVID-19
Cenário mundial
A infecção causada pelo SARS CoV-2 surgiu como a primeira grande pandemia do século XXI. Desde a sua identificação no final de 2019 na China até o momento atual, mais de 755 milhões de pessoas foram diagnosticadas com a doença e cerca de 6,8 milhões de mortes foram registradas em 231 países e territórios55 COVID-19 Excess Mortality Collaborators. Estimating excess mortality due to the COVID-19 pandemic: a systematic analysis of COVID-19-related mortality, 2020-21. Lancet 2022; 399(10334):1513-1536.. Nem mesmo regiões remotas e pouco populosas como pequenas ilhas da região do Pacífico Ocidental ou a Antártida foram poupadas. Estima-se que os números reais da pandemia sejam de três a quatro vezes maiores que os oficiais66 Gill I, Schellekens P. COVID-19 is a developing country pandemic [Internet]. 2021. [cited 2022 maio 27]. Available from: https://pandem-ic.com/blog-covid-19-is-a-developing-country-pandemic/
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. Aproximadamente 90% das mortes globais atribuídas à COVID-19 ocorreram em países de baixa e média renda (de três a seis vezes maior do que nos países de alta renda), e com um aumento significativo na proporção de óbitos pela doença nos grupos etários mais jovens e sem comorbidades88 Crook H, Raza S, Nowell J, Young M, Edison P. Long covid-mechanisms, risk factors, and management BMJ 2021; 374:n1648. (Gráfico 1).
Além de idosos e indivíduos portadores de imunodeficiências ou múltiplas comorbidades, crianças e gestantes foram incluídas e devem ser prontamente imunizadas.
A COVID-19 mostrou ser uma doença muito mais complexa com o avançar da pandemia, apresentando frequentemente manifestações hiperinflamatórias, multissistemicas e que pode ser seguida de complicações crônicas graves, mesmo em pessoas mais jovens e sem comorbidades. Essas complicações crônicas têm sido descritas como “síndrome da COVID longa”, um conjunto de mais de 20 sintomas que persistem mesmo após a fase aguda da doença e que podem perdurar por mais de um ano99 Desai AD, Lavelle M, Boursiquot BC, Wan EY. Long-term complications of COVID-19. Am J Physiol Cell Physiol 2022; 322(1):C1-C11.,1010 Davis HE, Assaf GS, McCorkell L, Wei H, Baixo RJ, Re'em Y, Redfield S, Austin JP, Akrami A. Characterizing long COVID in an international cohort: 7 months of symptoms and their impact. EClinicalMedicine 2021; 38:101019.. Estudos longitudinais estimam que essa síndrome pós-infecção pode afetar, de forma variável, até 50% dos pacientes, e em alguns casos interferem de forma significativa na qualidade de vida das pessoas acometidas, necessitando de uma abordagem multidisciplinar1010 Davis HE, Assaf GS, McCorkell L, Wei H, Baixo RJ, Re'em Y, Redfield S, Austin JP, Akrami A. Characterizing long COVID in an international cohort: 7 months of symptoms and their impact. EClinicalMedicine 2021; 38:101019..
Estudo epidemiológico global mostrou que o risco de hospitalização e morte por COVID- 19 é cerca de 50 vezes menor entre pessoas completamente vacinadas, quando comparado com o de pessoas não vacinadas, e a chance de infecção pelo SARS-CoV 2 é reduzida em quase 15 vezes mediante imunização1111 Johnson AG, Amin AB, Ali AR, Hoots B, Cadwell BL, Arora S, Avoundjian T, Awofeso AO, Barnes J, Bayoumi NS, Busen K, Chang C, Cima M, Crockett M, Cronquist A, Davidson S, Davis E, Delgadillo J, Dorabawila V, Drenzek C, Eisenstein L, Fast HE, Gent A, Hand J, Hoefer D, Holtzman C, Jara A, Jones A, Kamal-Ahmed I, Kangas S, Kanishka F, Kaur R, Khan S, King J, Kirkendall S, Klioueva A, Kocharian A, Kwon FY, Logan J, Lyons BC, Lyons S, May A, McCormick D; MSHI; Mendoza E, Milroy L, O'Donnell A, Pike M, Pogosjans S, Saupe A, Sell J, Smith E, Sosin DM, Stanislawski E, Steele MK, Stephenson M, Stout A, Strand K, Tilakaratne BP, Turner K, Vest H, Warner S, Wiedeman C, Zaldivar A, Silk BJ, Scobie HM. COVID-19 incidence and death rates among unvaccinated and fully vaccinated adults with and without booster doses during periods of delta and omicron variant emergence - 25 U.S. jurisdictions April 4-December 25, 2021. MMWR Morb Mortal Wkly Rep 2022; 71(4):132-138.. Apesar do acesso desigual em diferentes regiões do planeta, sobretudo na região africana, avalia-se que a vacinação global em massa contra a COVID-19 tenha evitado mais de 20 milhões de mortes pela pandemia1212 Watson OJ, Barnsley G, Toor J, Hogan AB, Wisnkill P, Ghani AC. Global impact of the first year of COVID-19 vaccination: a mathematical modelling study. Lancet Inf Dis 2022; 22(9):1293-302.. Porém, estima-se que mais de um milhão de vidas adicionais poderiam ter sido salvas se o acesso às vacinas tivesse sido mais equitativo para os países de baixa e média renda1313 Moore S, Hill EM, Dyson L, Tildesley M.J, Keeling MJ. Retrospectively modeling the effects of increased global vaccine sharing on the COVID-19 pandemic. Nature Med 2022; 28(11):2416-2423.. Assim, a pandemia teve impacto mais deletério quanto maior a vulnerabilidade social econômica de indivíduos e comunidades. A Figura 1 demonstra claramente a iniquidade na distribuição e no início de vacinação no mundo.
A pandemia não terminou. Em novembro de 2022 a COVID-19 ainda era a 4ª maior causa de morte globalmente, com 5,1 milhões de pessoas mortas nos últimos 12 meses (49% na metade mais pobre do mundo), 2,4 bilhões de pessoas não vacinadas (70% na metade mais pobre do mundo) e taxa de 33% de cobertura de reforço global (15% na metade mais pobre do mundo), ou seja, a pandemia continua afetando as nações mais pobres77 Schellekens P. The demographics of excess mortality [Internet]. 2022. [cited 2022 ago 9]. Available at: https://pandem-ic.com/the-demographics-of-excess-mortality/
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,88 Crook H, Raza S, Nowell J, Young M, Edison P. Long covid-mechanisms, risk factors, and management BMJ 2021; 374:n1648. (Figura 2).
Evolução do número de casos confirmados e mortes por COVID-19 no mundo entre janeiro de 2020 e janeiro de 2023.
A pandemia gerou grande impacto, direto e indireto, nos serviços de saúde de todo o mundo1414 Omboni S, Padwal RS, Alessa T, Benczúr B, Green BB, Hubbard I, Kario K, Khan NA, Konradi A, Logan AG, Lu Y, Mars M, McManus RJ, Melville S, Neumann CL, Parati G, Renna NF, Ryvlin P, Saner H, Schutte AE, Wang J. Connect Health 2022; 1:7-35.. O aumento rápido na demanda por atendimentos clínicos e internações hospitalares durante a fase aguda da pandemia sobrecarregaram de forma exponencial os profissionais e serviços de atenção à saúde. Para evitar um colapso agudo do sistema, houve a necessidade de se reduzir o atendimento de outros serviços, bem como os procedimentos de diagnóstico e rastreio rotineiros para doenças como tuberculose, diabetes, hipertensão arterial e certas neoplasias, prejudicando a prevenção e o tratamento dessas doenças. Programas de imunizações e cuidado materno- infantil também foram muito afetados. Como consequência, houve um crescimento de complicações dessas doenças e o aumento na ocorrência de doenças imunizáveis é esperada no curto e médio prazos1414 Omboni S, Padwal RS, Alessa T, Benczúr B, Green BB, Hubbard I, Kario K, Khan NA, Konradi A, Logan AG, Lu Y, Mars M, McManus RJ, Melville S, Neumann CL, Parati G, Renna NF, Ryvlin P, Saner H, Schutte AE, Wang J. Connect Health 2022; 1:7-35..
Com base nas evidências disponíveis, é possível observar que o distanciamento social trouxe impacto na saúde mental e aumento da incidência de obesidade, sedentarismo, uso abusivo de álcool e drogas durante a fase aguda da pandemia. Por outro lado, houve uma expansão do uso de estratégias inovadoras na área de saúde digital, como a telemedicina, que deverá ser cada vez mais utilizada no período pós-pandemia1515 United Nations Children's Fund (UNICEF), United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO), World Bank. Where are we on education recovery? New York: UNICEF; 2022..
Cenário nacional
No caso brasileiro, a princípio, ter um sistema universal, referência em rede assistencial e vasta experiência no enfrentamento de epidemias deveria conferir uma vantagem no combate à COVID-191616 Croda J, Oliveira WK, Frutuoso RL, Mandetta LH, Silva DCB, Sousa JDB, Monteiro WM, Lacerda MVG. COVID-19 in Brazil: advantages of a socialized unified health systemand preparation to contain cases. Rev Soc Bras de Med Trop 2020; 53: e20200167.,1717 Wakimoto MD, Menezes RC, Pereira SA, Nery T, Castro-Alves J, Penetra SLS, Ruckert A, Labonté R, Veloso VG. COVID-19 and zoonoses in Brazil: environmental scan of one health preparedness and response. One Health 2022; 14:100400.. Sendo o Brasil um país continental, com importante disparidade social e geográfica, onde aproximadamente 80% da população depende exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS). A pandemia reproduziu desigualdades sociais tão presentes no contexto brasileiro ao atingir com maior impacto a população mais vulnerável.
Perante a omissão do governo federal e sua péssima gestão durante a pandemia, gestores estaduais e municipais tiveram que construir estratégias para conter a alta transmissibilidade do vírus. Destaca-se o estabelecimento de um comitê de enfrentamento da pandemia, com reuniões regulares para orientar gestores municipais, de serviços e a população de forma oportuna, precisa e transparente1818 Tasca R, Carrera MBM, Malik AM, Schiesari LMC, Bigoni A, Costa CF, Massuda A. Gerenciando o SUS no nível municipal ante a COVID-19: uma análise preliminar. Saude Debate 2022; 46(esp. 1):15-32.. As parcerias com profissionais de saúde e instituições educacionais foram de suma importância para a tomada de decisões baseadas em dados epidemiológicos consistentes1717 Wakimoto MD, Menezes RC, Pereira SA, Nery T, Castro-Alves J, Penetra SLS, Ruckert A, Labonté R, Veloso VG. COVID-19 and zoonoses in Brazil: environmental scan of one health preparedness and response. One Health 2022; 14:100400..
Iniciativas externas à gestão federal do SUS, como o MonitoraCovid-19-ICICT-Fiocruz1919 Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT) [Internet]. MonitoraCovid-19. 2020. [acessado 2023 jan 26] Disponível em: https://bigdata- covid19.icict.fiocruz.br/
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e o consórcio de órgãos de imprensa disponibilizaram informação unificada e confiável sobre o comportamento da COVID-19. Foram criados e revisados indicadores para vigilância dos casos e óbitos, mas a dificuldade de rastreio, principalmente dos casos assintomáticos, impactou o estabelecimento de um plano de contingência rápido e eficaz2020 Massuda A, Malik AM, Vecina G, Tasca R, Ferreira-Júnior WC. A resiliência do Sistema Único de Saúde frente à COVID-19. Cad EBAPE.BR 2021; 19(esp.):735-744..
Em 2022, Brizzi et al.2121 Brizzi A, Whittaker C, Servo LMS, Hawryluk I, Prete Jr CA, Souza WM, Aguiar RS, Araujo LJT, Bastos LS, Blenkinsop A, Buss LF, Candido D, Castro MC, Costa SF, Croda J, de Souza Santos AA, Dye C, Flaxman S, Fonseca PLC, Geddes VEV, Gutierrez B, Lemey P, Levin AS, Mellan T, Bonfim DM, Miscouridou X, Mishra S, Monod M, Moreira FRR, Nelson B, Pereira RHM, Ranzani O, Schnekenberg RP, Semenova E, Sonabend R, Souza RP, Xi X, Sabino EC, Faria NR, Bhatt S, Ratmann O. Spatial and temporal fluctuations in COVID-19 fatality rates in Brazilian hospitals. Nat Med 2022; 28(7):1476-1485. analisaram as taxas de mortalidade hospitalar por COVID-19 em 14 capitais brasileiras durante a segunda onda da pandemia. Os resultados mostram um padrão heterogêneo entre as cidades, marcado pelas desigualdades geográficas, socioeconômicas e na distribuição de recursos do sistema de saúde durante e na pré- pandemia. Capitais com melhor estrutura hospitalar e maior disponibilidade de leitos apresentaram menos óbitos, o que reforça a importância da atenção à saúde e do preparo adequado no enfrentamento de crises. O estudo estimou que aproximadamente metade dos óbitos hospitalares por COVID-19 nessas capitais poderiam ter sido evitados se o país tivesse a mesma estrutura de enfrentamento, sem desigualdades geográficas pré-pandêmicas, com estruturação contínua do SUS em todos os níveis de complexidade e uma forte determinação de regulação e gestão.
A necessidade de restrição de mobilidade implicou a reorganização de todo o fluxo de atendimento à saúde da população, nas portas de entrada e na retaguarda hospitalar e de urgência. Para atendimento presencial, as mais de 40 mil Unidades Básicas de Saúde (UBBs) do país precisaram repensar o espaço físico, na maioria das vezes em condições físicas e estruturais precárias, a fim de evitar o contágio, separando os atendimentos para COVID-19 dos atendimentos “não-COVID”2222 Lavras C. Atuação das equipes de APS durante o período de enfrentamento da COVID-19. In: Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS). Profissionais de saúde e cuidados primários. Brasília: CONASS; p. 13-24. Nesse contexto, o vínculo de confiança que as equipes de saúde da família têm com as comunidades foi um importante aliado na disseminação de informação correta e na adesão às medidas de proteção. O conhecimento do território permitiu a identificação de indivíduos de grupos vulneráveis ou com comorbidades, favorecendo o planejamento de estratégias de atendimento e até mesmo de isolamento social. Contudo, a infraestrutura inadequada e a precariedade das informações disponíveis nessa fase foram empecilhos substanciais para o cuidado da população.
O emprego de tecnologias na oferta de assistência à saúde a distância, como a telessaúde, ganhou espaço, aumentando o acesso qualificado no rastreio de casos leves, com maior segurança para o profissional e para a população geral2323 Caetano R, Silva AB, Guedes ACCM, Paiva CCN, Ribeiro GR, Santos DL, Silva RM. Desafios e oportunidades para telessaúde em tempos da pandemia pela COVID-19: uma reflexão sobre os espaços e iniciativas no contexto brasileiro. Cad Saude Publica 2020; 36(5):e00088920.. Entretanto, esse processo foi influenciado por restrições na cultura organizacional, falta de capacitação das equipes, inseguranças jurídicas e debilidades de acesso à tecnologia2020 Massuda A, Malik AM, Vecina G, Tasca R, Ferreira-Júnior WC. A resiliência do Sistema Único de Saúde frente à COVID-19. Cad EBAPE.BR 2021; 19(esp.):735-744.. Dada essas dificuldades, o enfrentamento à pandemia reforçou a necessidade de articular todos os níveis de atenção à saúde como forma de fortalecimento do SUS.
Em janeiro de 2020, o Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública para o novo Coronavírus (COE-nCoV) foi ativado e a técnica de RT-PCR em tempo real para a detecção de SARS-CoV-2 foi padronizada de acordo com protocolos da OMS1515 United Nations Children's Fund (UNICEF), United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO), World Bank. Where are we on education recovery? New York: UNICEF; 2022.. Inicialmente, os testes eram ofertados por poucos laboratórios, por meio de uma parceria público-privada, priorizando pacientes hospitalizados1616 Croda J, Oliveira WK, Frutuoso RL, Mandetta LH, Silva DCB, Sousa JDB, Monteiro WM, Lacerda MVG. COVID-19 in Brazil: advantages of a socialized unified health systemand preparation to contain cases. Rev Soc Bras de Med Trop 2020; 53: e20200167. e depois pacientes sintomáticos, ou seja, com síndrome gripal ou síndrome respiratória aguda grave2222 Lavras C. Atuação das equipes de APS durante o período de enfrentamento da COVID-19. In: Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS). Profissionais de saúde e cuidados primários. Brasília: CONASS; p. 13-24,2424 Kameda K, Barbeitas MM, Caetano R, Löwy I, Oliveira ACD, Corrêa MCDV, Cassier M. Testing COVID-19 in Brazil: fragmented efforts and challenges to expand diagnostic capacity at the Brazilian Unified National Health System. Cad Saude Publica 2021; 37(3):e00277420..
A pandemia de COVID-19 trouxe pressão e estresse sem precedentes para a estrutura e o funcionamento do sistema de saúde. A quantidade de hospitais equipados com unidades de terapia intensiva (UTI) e respiradores, bem como de profissionais capacitados, não era suficiente para o atendimento da população em todas as regiões, especialmente no Norte e no Nordeste2525 Cotrim Júnior DF, Cabral LMS. Crescimento dos leitos de UTI no país durante a pandemia de COVID-19: desigualdades entre o público X privado e iniquidades regionais. Physis 2020; 30(3):e300317.,2626 Passos VMA, Brant LCC, Pinheiro PC, Correa PRL, Machado IE, Santos MR, et al. Higher mortality during COVID-19 pandemic in socially vulnerable areas in Belo Horizonte: implications for vaccination priority. Rev Bras Epidemiol 2021; 24:e210025..
No início da pandemia, observou-se uma proliferação de tratamentos sem nenhuma evidência científica apoiada pelo governo federal e parte das entidades médicas. A prescrição da hidroxicloroquina para casos iniciais/leves de COVID-19 foi autorizada em abril de 2020 pelo Conselho Federal de Medicina (Processo Consulta CFM nº 8/2020 -Parecer CFM nº 4/2020)2727 Conselho Federal de Medicina (CFM). Processo-consulta CFM nº 8/2020 - Parecer CFM nº 4/2020. Considerar o uso da cloroquina e hidroxicloroquina, em condições excepcionais, para o tratamento da COVID-19 [Internet]. 2020. Disponível em: https://saude.mppr.mp.br/arquivos/File/Corona/CFM/6.pdf
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, baseando-se na autonomia do médico e no consenso entre médico e paciente, algo completamente questionável do ponto de vista das evidências científicas.
Diversos estudos evidenciaram ausência de benefícios profiláticos e clínicos que justifiquem o uso dos medicamentos do “kit-COVID”, seja individualmente ou em combinação2828 Cavalcanti AB, Zampieri FG, Rosa RG, Azevedo LCP, Veiga VC, Avezum A, Damiani LP, Marcadenti A, Kawano-Dourado L, Lisboa T, Junqueira DLM, de Barros E Silva PGM, Tramujas L, Abreu-Silva EO, Laranjeira LN, Soares AT, Echenique LS, Pereira AJ, Freitas FGR, Gebara OCE, Dantas VCS, Furtado RHM, Milan EP, Golin NA, Cardoso FF, Maia IS, Hoffmann Filho CR, Kormann APM, Amazonas RB, Bocchi de Oliveira MF, Serpa-Neto A, Falavigna M, Lopes RD, Machado FR, Berwanger O; Coalition Covid-19 Brazil I Investigators. Hydroxychloroquine with or without Azithromycin in Mild-to-Moderate COVID-19. N Engl J Med 2020; 383(21):2042-2052.
29 Horby P, Mafham M, Linsell L, Bell JL, Staplin N, Emberson JR, Wiselka M, Ustianowski A, Elmahi E, Prudon B, Whitehouse T, Felton T, Williams J, Faccenda J, Underwood J, Baillie JK, Chappell LC, Faust SN, Jaki T, Jeffery K, Lim WS, Montgomery A, Rowan K, Tarning J, Watson JA, White NJ, Juszczak E, Haynes R, Landray MJ. Effect of hydroxychloroquine in hospitalized patients with Covid-19. N Engl J Med 2020; 383(21):2030-2040.
30 Siemieniuk RA, Bartoszko JJ, Zeraatkar D, Kum E, Qasim A, Martinez JPD, Izcovich A, Lamontagne F, Han MA, Agarwal A, Agoritsas T, Azab M, Bravo G, Chu DK, Couban R, Devji T, Escamilla Z, Foroutan F, Gao Y, Ge L, Ghadimi M, Heels-Ansdell D, Honarmand K, Hou L, Ibrahim Q, Khamis A, Lam B, Mansilla C, Loeb M, Miroshnychenko A, Marcucci M, McLeod SL, Motaghi S, Murthy S, Mustafa RA, Pardo-Hernandez H, Rada G, Rizwan Y, Saadat P, Switzer C, Thabane L, Tomlinson G, Vandvik PO, Vernooij RW, Viteri-García A, Wang Y, Yao L, Zhao Y, Guyatt GH, Brignardello-Petersen R. Drug treatments for covid-19 living systematic review and metanalysis. BMJ 2020; 370:m2980.-3131 Furtado RHM, Berwanger O, Fonseca HA, Corrêa TD, Ferraz LR, Lapa MG, Zampieri FG, Veiga VC, Azevedo LCP, Rosa RG, Lopes RD, Avezum A, Manoel ALO, Piza FMT, Martins PA, Lisboa TC, Pereira AJ, Olivato GB, Dantas VCS, Milan EP, Gebara OCE, Amazonas RB, Oliveira MB, Soares RVP, Moia DDF, Piano LPA, Castilho K, Momesso RGRAP, Schettino GPP, Rizzo LV, Neto AS, Machado FR, Cavalcanti AB; COALITION COVID-19 Brazil II Investigators. Azithromycin in addition to standard of care versus standard of care alone in the treatment of patients admitted to the hospital with severe COVID-19 in Brazil (COALITION II): a randomized clinical trial. Lancet 2020; 396(10256):959-967.. O uso exagerado de alguns fármacos pode aumentar a incidência de efeitos adversos, sendo que alguns deles poderiam ser fatais3030 Siemieniuk RA, Bartoszko JJ, Zeraatkar D, Kum E, Qasim A, Martinez JPD, Izcovich A, Lamontagne F, Han MA, Agarwal A, Agoritsas T, Azab M, Bravo G, Chu DK, Couban R, Devji T, Escamilla Z, Foroutan F, Gao Y, Ge L, Ghadimi M, Heels-Ansdell D, Honarmand K, Hou L, Ibrahim Q, Khamis A, Lam B, Mansilla C, Loeb M, Miroshnychenko A, Marcucci M, McLeod SL, Motaghi S, Murthy S, Mustafa RA, Pardo-Hernandez H, Rada G, Rizwan Y, Saadat P, Switzer C, Thabane L, Tomlinson G, Vandvik PO, Vernooij RW, Viteri-García A, Wang Y, Yao L, Zhao Y, Guyatt GH, Brignardello-Petersen R. Drug treatments for covid-19 living systematic review and metanalysis. BMJ 2020; 370:m2980.,3232 Mitjà O, Corbacho-Monné M, Ubals M, Alemany A, Suñer C, Tebé C, Tobias A, Peñafiel J, Ballana E, Pérez CA, Admella P, Riera-Martí N, Laporte P, Mitjà J, Clua M, Bertran L, Sarquella M, Gavilán S, Ara J, Argimon JM, Cuatrecasas G, Cañadas P, Elizalde-Torrent A, Fabregat R, Farré M, Forcada A, Flores-Mateo G, López C, Muntada E, Nadal N, Narejos S, Nieto A, Prat N, Puig J, Quiñones C, Ramírez-Viaplana F, Reyes-Urueña J, Riveira-Muñoz E, Ruiz L, Sanz S, Sentís A, Sierra A, Velasco C, Vivanco-Hidalgo RM, Zamora J, Casabona J, Vall-Mayans M, González-Beiras C, Clotet B; BCN-PEP-CoV2 Research Group. A cluster- randomized trial of hydroxychloroquine for prevention of Covid-19. N Engl J Med 2021; 384(5):417-427..
Em novembro de 2021, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (CONITEC), tardiamente e após muita pressão de entidades científicas e órgãos de comunicação pública, elaborou um documento afirmando que não recomendava o uso do “kit-COVID”3333 Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde. Relatório de recomendação: protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas [Internet]. 2021. [acessado 2022 set 29]. Disponível em: https://www.gov.br/conitec/pt-br/midias/relatorios/diretrizesbrasileiras_tratamentohospitalarpaciente_capii.pdf.
https://www.gov.br/conitec/pt-br/midias/...
. O grande estrago do ponto de vista da saúde pública já estava feito, com consequências difíceis de serem mensuradas, como a escassez de medicamento e a interrupção de tratamentos em andamento2020 Massuda A, Malik AM, Vecina G, Tasca R, Ferreira-Júnior WC. A resiliência do Sistema Único de Saúde frente à COVID-19. Cad EBAPE.BR 2021; 19(esp.):735-744..
A imunização por vacina é uma das maneiras mais efetivas de prevenção e mitigação da pandemia. O Brasil tem um dos maiores e mais completos programas de vacinação do mundo, o Programa Nacional de Imunizações (PNI)3434 Cruz A. A queda da Imunização no Brasil [Internet]. 2017. [acessado 2022 mar 3] Disponível em: https://portal.fiocruz.br/sites/portal.fiocruz.br/files/documentos/revistaconsensus_25_a_ queda_da_imunizacao.pdf
https://portal.fiocruz.br/sites/portal.f...
,3535 Sato APS. Qual a importância da hesitação vacinal na queda das coberturas vacinais no Brasil? Rev de Saude Publica 2018; 52:96.. A hesitação inicial do governo brasileiro na aquisição das vacinas com autorização de uso em outros países, bem como a demora e desorganização na sua distribuição, contribuíram para a duração das elevadas taxas de internação e mortalidade pela pandemia3434 Cruz A. A queda da Imunização no Brasil [Internet]. 2017. [acessado 2022 mar 3] Disponível em: https://portal.fiocruz.br/sites/portal.fiocruz.br/files/documentos/revistaconsensus_25_a_ queda_da_imunizacao.pdf
https://portal.fiocruz.br/sites/portal.f...
,3535 Sato APS. Qual a importância da hesitação vacinal na queda das coberturas vacinais no Brasil? Rev de Saude Publica 2018; 52:96..
Em 2020, pesquisa com os profissionais de saúde pública no Brasil mostrou que apenas 69,5% e 64,1% dos profissionais de enfermagem e médicos, respectivamente, afirmavam ter recebido equipamento de proteção individual (EPI) de forma contínua durante a pandemia, enquanto somente 34,1% dos agentes comunitários em saúde e agentes de combate a endemia afirmaram o mesmo. A disponibilidade e o treinamento para o uso adequado dos EPIs estavam presentes para cerca de 65,0% dos trabalhadores invisíveis da saúde (TIS)3636 Machado MH, coordenadora. Pesquisa: condições de trabalho dos profissionais de saúde no contexto da covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: ENSP/CEE-Fiocruz; 2020/2021.,3737 Machado MH, coordenadora. Pesquisa: os trabalhadores invisíveis da saúde: condições de trabalho e saúde mental no contexto da covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: ENSP/CEE-Fiocruz; 2021/2022. (Quadro 1).
A orientação inicial de que apenas indivíduos com sintomas graves deveriam buscar os serviços de saúde repercutiu no atendimento de outras condições crônicas2020 Massuda A, Malik AM, Vecina G, Tasca R, Ferreira-Júnior WC. A resiliência do Sistema Único de Saúde frente à COVID-19. Cad EBAPE.BR 2021; 19(esp.):735-744.. Essa demanda já vinha se reprimindo mesmo antes da pandemia, com redução no quantitativo de consultas médicas da atenção primária, das visitas domiciliares e da cobertura vacinal3838 Oliveira MLA, Abreu AL, Siqueira MM. A organização da vigilância laboratorial e a rede de laboratórios de Saúde Pública no contexto da pandemia de COVID-19. In: Profissionais de saúde e cuidados primários. Brasília: CONASS; 2021. [acessado 2022 ago 3]. Disponível em: https:// www.conass.org.br/biblioteca/volume-4-profissionais-de-saude-e-cuidados-primarios/.
Repercussões nas condições de trabalho dos trabalhadores da saúde
A essência do trabalho em saúde é cuidar da vida, do ser humano e da sociedade. Para desenvolver e realizar este cuidar da vida, necessitamos de um imensa e complexa força de trabalho em saúde (FTS) com configuração, volume de ocupações, grande diversidade de qualificações específicas e que demandam capacitações permanentes e regulamentação profissional específica. Segundo Machado a saúde vive em um estágio de pré-cidadania profissional3636 Machado MH, coordenadora. Pesquisa: condições de trabalho dos profissionais de saúde no contexto da covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: ENSP/CEE-Fiocruz; 2020/2021.,3737 Machado MH, coordenadora. Pesquisa: os trabalhadores invisíveis da saúde: condições de trabalho e saúde mental no contexto da covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: ENSP/CEE-Fiocruz; 2021/2022..
A desigualdade entre os profissionais é grande, entre aqueles de formação superior, os visíveis, e por outro lado um grande contingente de profissionais de nível técnico invisíveis e periféricos aos olhos da chefia, de gestores e da população usuária dos serviços de saúde. Os TIS têm vínculos precários, salários insuficientes e aviltantes e são submetidos ao processo de terceirização3636 Machado MH, coordenadora. Pesquisa: condições de trabalho dos profissionais de saúde no contexto da covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: ENSP/CEE-Fiocruz; 2020/2021.,3737 Machado MH, coordenadora. Pesquisa: os trabalhadores invisíveis da saúde: condições de trabalho e saúde mental no contexto da covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: ENSP/CEE-Fiocruz; 2021/2022.. O trabalho dos TIS está inserido nas atividades de apoio que sustentam a assistência e o cuidado da vida. Mundos distintos e desiguais convivendo no mesmo lugar de promoção do cuidado à vida.
Nessas duas pesquisas nacionais realizadas pela Fiocruz, foram analisadas as respostas de 15.132 profissionais da saúde (PS) e 21.480 TIS sobre as condições de trabalho e saúde mental no contexto da COVID-19. A maior parte desse contingente é formado por mulheres, 77,6% (PS) e 72,5% (TIS) (Quadro 1). Considerando a cor/raça, 57,7% dos PS são brancos e 39,9% pardos-pretos, e entre os TIS, 36,6% são brancos e 59% pardos-pretos. Quanto à distribuição geográfica da FTS, a maior concentração encontra-se nas regiões Sudeste e Nordeste, e a menor no Centro-Oeste e no Norte (Quadro 1).
No quesito trabalho extenuante, 47,4% dos PS e 50,9% dos TIS confirmaram essa situação. Em torno de 43,2% dos PS e 52,9% dos TIS afirmaram que não se sentem protegidos no trabalho, e 27,6% dos PS e 37,3% dos TIS não receberam treinamento para uso adequado dos EPIs (Quadro 1).
A pandemia trouxe alterações significativas no bem-estar pessoal e profissional dos trabalhadores da saúde, pelo contato diário com a doença, a morte, as péssimas condições de trabalho, carga de trabalho exaustiva e mudança da rotina profissional. Entre as alterações na vida cotidiana, perturbação do sono, irritabilidade/choro/distúrbios gerais e incapacidade de relaxar/estresse foram as mais prevalentes na FTS (Quadro 1).
Na análise dos dados da saúde mental, os sintomas foram divididos em dois grupos: sofrimento mental de tom depressivo e transtorno de ansiedade. O sofrimento mental de tom depressivo, retratado pela perda de satisfação na carreira/vida (9,1% PS e 7,2% TIS) e sensação negativa do futuro/vida (8,3% PS e 6,8% TIS). O sofrimento mental com transtorno de ansiedade manifestado pela alteração no apetite/no peso (8,1% e 7,2% TIS), irritabilidade, choro frequente, distúrbios em geral (13,6% PS e 9,8% TIS), dificuldade de concentração ou pensamento lento (9,2% PS e 7,2% TIS), incapacidade de relaxar/estresse (11,7% PS e 9,7% TIS), ansiedade, cefaleia e dores em geral (0,5% PS e 9,7% TIS).
A perturbação do sono, entendida como insônia e hipersonia, foi a mais frequente (15,8% PS e 13% TIS). Também foi relatado o aumento expressivo no consumo de medicações, álcool, bebidas energéticas e cigarro durante a pandemia (6% PS e 3,6% TIS), o que pode afetar a saúde desses trabalhadores.
Ao serem questionados sobre o sentimento em relação à vida profissional durante a pandemia, em torno de 30,4% dos PS e 35,5% dos TIS experimentaram violência/discriminação. Na indicação do local dessa violência/discriminação, observamos: no trabalho (38,7% PS e 36,2% TIS), no trajeto trabalho/casa (27,6% PS e 31,5% TIS) ou dos vizinhos (33,7% PS e 32,4%TIS).
Sobre a valorização profissional, 16,7% dos PS e 23,8% dos TIS perceberam menor valorização pela população em geral, e 21% dos PS e 25,6% dos TIS se sentem menos acolhidos pela gestão/chefia. Já 22% dos PS relataram se sentir mais acolhidos pelos usuários do serviço de saúde, cerca de 10% se sentiram mais acolhidos pela chefia/gestores dos serviços e mais respeitados pelos colegas. Em relação aos TIS, somente 22% se sentiram mais acolhidos pela população usuária, enquanto 8% têm esse mesmo sentimento sobre a chefia/gestores dos serviços e 7,1% perceberam ser mais respeitados por seus colegas de trabalho.
Cerca de 43,2% dos PS e 52,9% dos TIS têm sentimento de desproteção, insegurança, e medo de morrer expostos a jornadas longas e exaustivas e clima organizacional hostil (Quadro 1).
A pandemia de COVID-19 ameaçou a vida das pessoas e impôs transformações ao mundo do trabalho em geral. Impactou sobremaneira o mundo do trabalho da saúde, alterando o processo de atenção à saúde, a vida, o bem-estar dos trabalhadores e a segurança no trabalho.
Uma revisão sistemática conduzida por Saragih et al.3939 Saragih ID, Tonapa SI, Saragih IS, Advani S, Batubara SO, Suarilah I, Lin CJ. Global prevalence of mental health problems among healthcare workers during the Covid-19 pandemic: a systematic review and meta-analysis. Int J Nurs Stud 2021; 121:104002. analisou a prevalência de problemas de saúde mental entre profissionais de saúde durante a pandemia de COVID-19. O trabalho incluiu enfermeiros (43,7%), médicos (29,7%) e outros profissionais de saúde (7%), e encontrou uma elevada prevalência de problemas de saúde mental, como transtorno de estresse pós-traumático (49%), ansiedade (40%), depressão (37%) e angústia (37%).
Li et al.4040 Li Y, Scherer N, Felix L, Kupe H. Prevalence of depression, anxiety and posttraumatic stress disorder in health care workers during the COVID-19 pandemic: a systematic review and meta-analysis. PLoS One 2021; 16(3):e0246454., em uma revisão sistemática de 65 estudos sobre a prevalência de depressão, ansiedade e transtornos de estresse pós-traumático (TEPT) em profissionais de saúde durante a pandemia de COVID-19, mostraram uma prevalência combinada de depressão de 21,7%, de ansiedade de 22,1% e de TEPT de 21,5%.
O relatório COVID-19 Health Care Workers Study (HEROES), de 2022, entrevistou 14.502 trabalhadores de saúde de 11 países latino-americanos, evidenciando que a pandemia aumentou as taxas de estresse, ansiedade, depressão, ideação suicida e sofrimento psicológico entre eles. Expôs de forma clara a falta de políticas específicas para proteger a saúde mental desses profissionais4141 Organização Panamericana da Saúde (OPAS). O Covid-19 Health Care Workers Study (HEROES): Relatório Regional das Américas [Internet]. 2022. [acessado 2022 maio 9]. Disponível em: https://iris.paho.org/handle/10665.2/55972
https://iris.paho.org/handle/10665.2/559...
.
O diretor do Departamento de Força de Trabalho da Saúde da OMS, James Campbell, disse que “a COVID-19 expôs o custo dessa falta sistêmica de salvaguardas para a saúde, segurança e bem-estar dos profissionais de saúde” ao revelar que cerca de 115 mil profissionais de saúde morreram por COVID-19 nos primeiros 18 meses de pandemia. No mesmo sentido, a diretora do Departamento de Políticas Setoriais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Alerte van Ler, afirmou: “Os trabalhadores da saúde, como todos os outros trabalhadores, devem gozar de seu direito a um trabalho decente, ambientes de trabalho seguros, saudáveis e com proteção social para cuidados de saúde, faltas por doenças e lesões ocupacionais”4242 Organização Mundia da Saúde (OMS), Organização Internacional do Trabalho (OIT). Guia de orientações para garantir a segurança no trabalho para os profissionais de saúde da OMS e da OIT. Lisboa: OMS/OIT; 2020..
A OMS, em 22 de outubro de 2021, estimou que, entre janeiro de 2020 e maio de 2021, de 80 mil a 180 mil profissionais da saúde morreram no mundo em decorrência da COVID-19, sem contar com o sofrimento dos profissionais com o esgotamento físico e mental, estresse, ansiedade, fadiga e condições ruins de trabalho. Proporcionalmente, o Brasil registrou o maior índice de mortes entre esse grupo.
Segundo a Internacional de Serviços Públicos, mais de 4.500 profissionais de saúde faleceram durante a pandemia no Brasil4343 Organização Mundial da Saúde (OMS). Ano Internacional dos Trabalhadores de Saúde e Cuidadores [Internet]. 2020. [acessado 2022 jul 23]. Disponível em: https://www.paho.org/pt/campanhas/ano- internacional-dos-trabalhadores-saude-e-cuidadores2021#:~: text=2021%20foi%20designado%20como%20o,na%20 capacidade%20da%20s ociedade%20de
https://www.paho.org/pt/campanhas/ano- i...
. Machado et al.4444 Machado MH, Teixeira EG, Freire NP, Pereira EJ, Minayo MCS. Óbitos de médicos e da equipe de enfermagem por COVID-19 no Brasil: uma abordagem sociológica. Cien Saude Colet 2023; 28(2):405-419. analisaram dados de março de 2020 a março de 2021 e constataram a alta mortalidade de médicos, enfermeiros e técnicos/auxiliares de enfermagem em decorrência da COVID-19 no Brasil. Segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), morreram 622 médicos, e segundo o Conselho Federal de Enfermagem (COFEN), 100 enfermeiros e 470 técnicos/auxiliares de enfermagem faleceram até março de 2023. Considerando o gênero, entre os médicos houve predominância absoluta de homens (87,6%). Entre os enfermeiros ocorreu uma aproximação dos gêneros: 59,5% de mulheres e 40,5% de homens, e entre os técnicos/auxiliares de enfermagem há predominância de óbitos femininos (69,1%) (Tabela 1).
A fala do diretor-geral da OMS, dr. Tedros Adhanom Ghebreyesus, é emblemática: “Nenhum país, hospital ou instituição de saúde pode manter seus pacientes seguros a menos que preserve a segurança de seus profissionais de saúde.” A Carta de Segurança dos Trabalhadores da Saúde da OMS é um passo para garantir que esses trabalhadores tenham condições de trabalho seguras, o treinamento, a remuneração e o respeito que merecem. A proteção dos profissionais de saúde é fundamental para garantir o funcionamento do sistema de saúde e da sociedade4545 Organização Mundial da Saúde (OMS). Até 180 mil profissionais de saúde morreram de Covid-19, informa OMS [Internet]. 2021. [acessado 2022 out 7]. Disponível em: https://brasil.un.org/pt- br/152760-ate-180-mil-profissionais-de-saude-morreram-de-covid-19-informa-oms
https://brasil.un.org/pt- br/152760-ate-...
. Os sistemas de saúde estão ameaçados pela falta e o êxodo de pofissionais experientes na atenção a saúde.
Infodemia e disseminação de notícias falsas (“fake news”)
A OMS cunhou o termo infodemia paralelamente à pandemia de COVID-19, para designar uma superabundância de informações, algumas precisas, outras não, em meio a um surto sanitário.
Teorias conspiratórias, relato de falsas curas, o uso de alimentos milagrosos e outras notícias duvidosas caracterizam as fake news na área da saúde, agravando ainda mais a propagação do SARS-CoV-2 no mundo, confundindo e incentivando os cidadãos a ignorarem as recomendações cientificamente fundamentadas pelos órgãos oficiais de saúde.
Insuflada pelas redes sociais e pelos aplicativos de mensagens (Twitter, WhatsApp, Telegram, Facebook, YouTube, TikTok, LinkedIn, Viber, VK, Kwai), o fenômeno passou a demandar uma resposta integrada e coordenada em âmbito global por autoridades governamentais, instituições e especialistas.
Combater esse fenômeno tornou-se fundamental para reduzir os danos que a infodemia segue perpetuando, influenciando a confiança nos sistemas de saúde, nos TS, na adesão e no apoio a tratamentos, diagnósticos e vacinas.
A resposta está na infodemiologia4646 Freire NP, Cunha ICKO, Ximenes Neto FRG, Machado MH, Minayo CS. A infodemia transcende a pandemia. Cien Saude Colet 2021; 26(09):4065-4068., ramo da comunicação que se dedica a mergulhar na internet à procura de conteúdos relacionados à saúde pública, fornecidos por usuários comuns, com o objetivo de monitorar informações, incentivar o aprimoramento das notícias, traduzir o conhecimento científico e fazer checagens sistemáticas.
Diante desse cenário global, a OMS hoje recomenda cinco maneiras de combater o estigma4747 World Health Organization (WHO). How to report misinformation online [Internet]. 2022. [cited 2023 jan 7]. Available from: https://www.who.int/campaigns/connecting-the-world-to-combat- coronavirus/how-to-report-misinformation-online
https://www.who.int/campaigns/connecting...
causado pela infodemia: 1) usar a escuta social para entender sobre quem e o que está sendo falado e como isso os afeta; 2) usar a linguagem com cuidado para evitar estigmatizar grupos específicos e perpetuar desigualdades sociais ou de saúde; 3) envolver pessoas de comunidades em risco de serem estigmatizadas na concepção de intervenções destinadas a elas; 4) disponibilizar conteúdo gratuito que promova a equidade em saúde; e 5) promover maneiras pelas quais indivíduos e comunidades que sofrem estigma, assédio e abuso podem se proteger online e denunciar informações erradas.
O ponto-chave da gestão infodêmica4848 World Health Organization (WHO). WHO policy brief: COVID-19 infodemic management [Internet]. 2022. [cited 2022 set 14]. Available from: WHO/2019- nCoV/Policy_Brief/Infodemic/2022.1 implica treinar os profissionais de saúde, como fontes confiáveis, para identificar e lidar com a desinformação. Consiste também em adaptar as iniciativas de saúde, informação e alfabetização digital a populações específicas, além de desmascarar a desinformação antes que ela seja amplamente divulgada.
Importante iniciativa da Fiocruz no combate à divulgação de informações falsas, desinformações e manipulação maliciosa dessas informações realizou uma oficina para a capacitação de jornalistas cujo objetivo principal foi levar informações científicas e de qualidade para os representantes dos principais veículos de informação do país acerca da emergência sanitária que acabara de ser decretada4949 Valverde R. Oficina sobre coronavírus para jornalistas [Internet]. 2020. [acessado ano mês dia]. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/fiocruz-oferece-oficina-sobre-coronavirus-para-jornalistas
https://portal.fiocruz.br/noticia/fiocru...
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Nas duas pesquisas da Fiocruz, apontou-se que 91,6% da FTS concordaram que as fake news em saúde são um obstáculo no combate ao novo coronavírus. Cerca de 76,1% atenderam pacientes que expressaram crença em fake news sobre a COVID-19 e 68,5% discordam dos posicionamentos das autoridades sanitárias do país3636 Machado MH, coordenadora. Pesquisa: condições de trabalho dos profissionais de saúde no contexto da covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: ENSP/CEE-Fiocruz; 2020/2021.,3737 Machado MH, coordenadora. Pesquisa: os trabalhadores invisíveis da saúde: condições de trabalho e saúde mental no contexto da covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: ENSP/CEE-Fiocruz; 2021/2022..
Considerações finais
A pandemia de COVID-19 causou maior impacto nos países de baixa renda e nas populações marginalizadas. A doença realçou as fragilidades de financiamento, gestão e estruturação dos serviços de saúde do país. A interrupção dos serviços essenciais em saúde, como consultas e cirurgias eletivas, levaram ao agravamento das comorbidades e à ocorrência de óbito por condições evitáveis, bem como uma diminuição de testagem em infectologia. É imperativo uma ação de proteção do trabalho e dos trabalhadores da saúde, que há muito convivem em ambientes inóspitos e vivem o conflito de preservar sua própria vida e salvar vidas. A infodemia, as notícias falsas e o negacionismo das vacinas devem ser combatidos de forma sistemática e efetiva. É preciso assegurar acesso a informações corretas e verdadeiras.
Ao ver a correlação entre os fatores postos, todas essas variantes citadas podem levar ao esgotamento, ao estresse crônico, a transtornos de ansiedade e depressão nos profissionais de saúde. Portanto, é crucial fornecer um ambiente de trabalho adequado e suporte emocional para proteger a saúde mental desses profissionais durante o processo de enfrentamento a desafios sanitários. Outras pandemias virão e a preparação deve ser contínua.
Agradecimentos
À Feluma, pelo apoio e incentivo durante a pesquisa e elaboração deste trabalho científico, e à Geralda Oliveira, pelo apoio.
Referências
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2Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 188, de 3 de fevereiro de 2020. Declara Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV). Saúde Legis 2020; 3 fev.
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3Brasil. Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Diário Oficial da União 2020; 6 fev.
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Editores-chefes:
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Out 2023 -
Data do Fascículo
Out 2023
Histórico
-
Recebido
20 Out 2022 -
Aceito
01 Jun 2023 -
Publicado
28 Jun 2023