ESPAÇO ABERTO
A educação superior no século XXI: comentários sobre o documento da Unesco
Sérgio Castanho
Professor de História da Educação da Universidade Estadual de Campinas. <castanho@correionet.com.br>
Palavras-chave: Ensino superior; educação; universidades; declaração da Unesco.
Key words: Higher education; ed
Como deverá ser a universidade no século XXI? Uma das formas de pensar o tema é comentar a Declaração mundial sobre a educação superior no século XXI: visão e ação (UNESCO, 1998) que, excluindo o documento complementar, indicativo de ações a serem implementadas (p.15-22), compõe-se de quatro partes: Preâmbulo; Missões e funções da educação superior; Uma nova visão da educação superior; e Da visão à ação.
Por "educação superior" o documento entende: "todos os tipos de estudos, de formação ou de preparação para a pesquisa, num nível pós-secundário, oferecidos por uma universidade ou outros estabelecimentos de ensino acreditados pelas autoridades competentes do Estado como centros de ensino superior". Pela definição, há uma certa precedência da universidade sobre outras formas de organização do ensino superior, sendo estas, no entanto, admitidas, à condição de se credenciarem perante as autoridades governamentais. Há, pois, o princípio da publicidade (caráter público), se não na forma jurídica das instituições, pelo menos no seu controle pelo Estado. Outro ponto que aí vemos é o da concomitância entre o ensino ("formação") e a pesquisa ("preparação para a pesquisa"), apesar de o conectivo "ou" poder confundir. No Preâmbulo, ressalta a procura sem precedentes pela educação superior, acompanhada de sua enorme diversificação e da consciência do seu papel para o desenvolvimento sociocultural e econômico. O dado numérico apresentado é impressionante: de 1960 a 1995 as matrículas no ensino superior cresceram de 13 para 82 milhões, acusando uma expansão de seis vezes, quer dizer, mais de 500%. No entanto, o próprio documento ressalta que esses números não são tão róseos quanto aparentam, pois ocultam a dramática realidade das diferenças entre países ricos e pobres e, no interior de cada país, entre as elites e as classes populares. Apesar de sofrer, como instituição, as conseqüências desse desnivelamento, a educação superior tem a tarefa de superá-lo: "... a própria educação superior há de empreender a transformação e a renovação mais radicais que jamais tenha tido..." (p.2).
Na segunda parte, Missões e funções da educação superior, há uma nítida separação entre "missões", ligadas à promoção de "valores fundamentais", e "funções", vinculadas a tarefas historicamente relevantes. As missões básicas são as de "educar, formar e realizar pesquisas". Por "educar" entende o documento tanto a capacitação profissional quanto a preparação para a cidadania, envolvendo "conhecimentos teóricos e práticos de alto nível". Por "formar", entende o abrir-se para a participação ativa na sociedade e no mundo. Por "realizar pesquisas", entende a promoção, a geração e a difusão de conhecimentos, tanto na área das ciências naturais e da tecnologia quanto "no campo das ciências sociais, humanidades e artes criativas". São missões articuladas a essas fundamentais a de integração cultural, "num contexto de pluralismo e diversidade cultural"; a de proteção e consolidação dos "valores da sociedade", a primeira em que percebi um ranço conservador num documento geralmente aberto, mas, assim mesmo, contraditório, pois no mesmo parágrafo alude ao seu contrário, a saber, a missão de proporcionar "perspectivas críticas e objetivas a fim de propiciar o debate sobre as opções estratégicas e o fortalecimento de enfoques humanistas"; e, enfim, a de contribuir para o aperfeiçoamento educacional "em todos os níveis", numa referência à formação inicial e continuada de docentes para os níveis anteriores e também para o superior. No que respeita às funções da educação superior, o documento aponta para quatro: ética, autonomia, responsabilidade e prospectiva. A função de autonomia é vista sob um duplo ângulo, a de liberdade de pensamento por ter a universidade "uma espécie de autoridade intelectual" em relação à sociedade, e a de autonomia stricto sensu, tal como a entendemos correntemente quando nos referimos à "autonomia universitária". Apesar disso, o caráter corporativo presente na idéia de autonomia é restringido pela Declaração ao exigir prestação de contas da universidade à sociedade. A função ética representa uma espécie de contraprestação à sociedade pelo prestígio que adquiriu em função de sua presumida capacidade intelectual. Para desempenhar essa função, a universidade há de se pautar pelos valores "universalmente aceitos", em particular a paz, a justiça, a liberdade, a igualdade e a solidariedade. Quanto à função de responsabilidade, o documento da UNESCO alerta para o contrapeso da "liberdade acadêmica" que é o conjunto de deveres sociais da universidade. Por último, a universidade cumpre sua "função prospectiva" (tive a tentação de denominá-la "oracular") quando funciona como um "centro de previsão, alerta e prevenção". Não é demais recordar que "saber é prever". Jamais me esquecerei de certa ocasião, no Chile, em que um dirigente universitário dizia que a sua instituição estava perfeitamente apta para captar os sinais de erupção dos vulcões que a circundavam e, assim, poder alertar a tempo a população para desocupar a área. Um oposicionista, sentado perto de mim, comentou: "Eles só não enxergam os sinais de erupção dos vulcões sociais".
Na terceira parte, Para uma nova visão da educação superior, o primeiro ponto é a igualdade de acesso. Para ser igualitário, o acesso deve repousar exclusivamente nos méritos dos candidatos. Embora o documento passe ao largo da questão da formação desse "mérito" numa sociedade de classes, num dos seus tópicos pede uma espécie de "reserva de vagas" (sem usar esta expressão) para "minorias culturais e lingüísticas" e também para "grupos desfavorecidos". Realmente o mérito não depende apenas das condições personalíssimas do indivíduo, biológicas e psicológicas, mas das oportunidades educativas que teve ao longo da vida, desde o ambiente cultural na família até à qualidade da escola que freqüentou nos níveis pré-universitários. Um outro ponto é o da oportunidade de acesso "em qualquer idade". O documento repisa, nas diversas partes que o compõem, a educação superior como um "sistema aberto", ao qual se entra, do qual se sai e ao qual se retorna em diversos momentos e com diversas idades.
Um tópico especial (artigo 4º, p. 6) é dedicado às oportunidades de acesso e de participação abertas às mulheres. Além de proclamações por uma política igualitária, este tópico pede que a universidade fomente "os estudos sobre o gênero", considerando-os estratégicos para a transformação da própria educação superior e da sociedade, tópico especialmente válido do ponto de vista crítico-cultural-popular.
O artigo 5º (p. 7) é dedicado à pesquisa. Ela é considerada como "função essencial de todos os sistemas de educação superior". Estes têm a obrigação de promover estudos de pós-graduação. A universidade orientada para a pesquisa assenta suas bases na inovação, na interdisciplinaridade e na transdisciplinaridade. Na alínea "c" deste artigo são arroladas todas as áreas que devem ser objeto de pesquisa, creio que para marcar com força o afastamento do documento de qualquer compromisso com o tecnicismo: "... incrementar a investigação em todas as disciplinas, compreendidas as ciências sociais e humanas, as ciências da educação (incluída a pesquisa sobre a educação superior), a engenharia, as ciências naturais, as matemáticas, a informática e as artes ...". Já na alínea "a" o documento pedia um "equilíbrio adequado entre a pesquisa fundamental e a orientada para objetivos específicos". A universidade, trabalhando conjuntamente o ensino e a pesquisa, potencializa a sua qualidade.
O ponto seguinte nesta terceira parte é dedicado à "pertinência". De uso menos corrente em estudos educacionais entre nós, a pertinência diz respeito à adequação entre a instituição educacional e a sociedade. Já que a instituição "pertence" à sociedade, é justo esperar que sua ação seja conforme às necessidades e aspirações sociais. A pesquisa universitária deve orientar-se para as necessidades da sociedade, o respeito às culturas e a proteção do meio ambiente. Também o serviço à sociedade deve ser incrementado. Além disso, a universidade deve contribuir para o desenvolvimento do conjunto do sistema educativo. Para encerrar, "a educação superior deveria apontar para a criação de uma nova sociedade não violenta e de que esteja excluída a exploração, uma sociedade formada por pessoas muito cultas, motivadas e integradas, movidas pelo amor à humanidade e guiadas pela sabedoria" (art.6º, d, p.8).
O artigo 7º coincide com reflexões recorrentes no ambiente acadêmico brasileiro, dizendo respeito à cooperação especificamente com o mundo do trabalho e genericamente com a sociedade. Num lance bastante progressista o documento pede a participação de representantes do mundo laboral em órgãos da administração superior da universidade. Pede também que se encontrem possibilidades de combinar estudos e trabalho. Reivindica que a educação superior seja "fonte permanente de formação, aperfeiçoamento e reciclagem profissionais".
É muito comum, em documentos "amplos" como soem ser as "declarações universais", que se dê um golpe de martelo no cravo, outro na ferradura. Desse modo, o artigo 8º abandona a linha geralmente progressista de seu discurso e abre espaço para a "diversificação como meio de reforçar a igualdade de oportunidades" (p. 9). Ora, a diversificação, inclusive nos termos propostos aqui, nada mais é do que o plurimodalismo do modelo neoliberal. As modalidades incluem: "títulos tradicionais, cursos rápidos, estudos em tempo parcial, horários flexíveis, cursos em módulos, ensino à distância com ajuda etc.". Creio que não podemos aferrar-nos à titulação tradicional. Nem às modalidades clássicas de cursos. Os novos tempos exigem respostas institucionais novas. Mas receio que a abertura incondicionada provoque uma perda de qualidade que acabará atingindo justamente os que mais necessitam de uma educação superior qualitativamente forte, isto é, os estudantes trabalhadores, provindos das classes populares. Os cursos rápidos, como as licenciaturas curtas da reforma universitária da ditadura militar no Brasil (lei 5.540/68), agora reeditadas na lei 9.394/96, trazem más recordações e alimentam sombrios presságios. Da mesma maneira, os institutos superiores de educação - uma "nova modalidade" prevista na recente LDB - irão aligeirar a formação de professores, mas talvez também banalizá-la, ao separar a produção de conhecimentos do seu ensino. Que dizer dos cursos seqüenciais, que, embora não se apresentem como forma alternativa de graduação, fatalmente funcionarão como tal, dando acesso a profissões mais "leves", leia-se, mal remuneradas, "exigidas pelo mercado"? E os "mestrados profissionalizantes", instituindo a confusão aviltadora entre um título de prestígio (mestre) e um conteúdo curricular de mera especialização?
A parte metodológica está contemplada no art. 9º. A aparência deste artigo é progressista, mas pode esconder, sob a capa do reformismo formal, um sério conservadorismo de fundo, além de ocultar armadilhas, como esta que considero assustadora: "Esta reestruturação dos planos de estudo deveria tomar em consideração as questões relacionadas com as diferenças entre homens e mulheres ...".
A quarta e última parte da Declaração, denominada Da visão à ação, é uma plataforma, um programa de ação. O primeiro ponto diz respeito à avaliação da qualidade universitária e trai uma certa similaridade com o discurso empresarial da qualidade total. O segundo ponto diz respeito à tecnologia na educação superior e abrange desde aspectos consensuais como o da formação de redes de apoio à pesquisa e ao ensino até temas como educação à distância, que, como se sabe, quanto ao nível superior, é polêmica. O terceiro ponto pede o reforçamento da gestão e do financiamento da educação superior, enquanto o quarto enfatiza o caráter de serviço público desse financiamento. Já o art. 15 repisa um ponto que é muito caro à UNESCO, a saber, a comunicação dos conhecimentos teóricos e práticos entre os países e os continentes, a internacionalização do saber superior, a globalização cultural. O sexto e o sétimo pontos, contidos nos artigos 16 e 17 (p.14-15), dizem respeito à cooperação internacional.
A Declaração é um documento que, do ponto de vista dos modelos que apresentei em trabalho anterior (Castanho, 2000), pouquíssimo tem a ver com o tradicional corporativo, pouco com os clássicos modernos e muito com os contemporâneos. Na verdade, trata-se de um documento de compromisso entre os modelos contemporâneos, incorporando parcialmente o modelo emergente, ou seja, o neoliberal-globalista-plurimodal, também parcialmente o modelo estabelecido e em crise de hegemonia, o democrático-nacional-participativo, tendo mesmo, em certas passagens, um tom que o aproxima do referencial crítico-cultural-popular. Este último, por definição, é a voz da resistência à exclusão, da promoção da inclusão, é o discurso do não, um grito que sobe dos subterrâneos da liberdade. O modelo estabelecido e em crise de hegemonia é o discurso do talvez, que esconde o sim ao proclamar o não. E o modelo emergente, o neoliberal, é o discurso do sim sem disfarces, da promoção ativa da exclusão em nome da eficiência capitalista.
Referências bibliográficas
- CASTANHO, S. A universidade entre o sim, o não e o talvez. In: VEIGA, I. P. A., CASTANHO, M. E. L. M. (Orgs.). Pedagogia universitária: a aula em foco. Campinas: Papirus, 2000.
- UNESCO. Declaración mundial sobre la educación superior en el siglo XXI: visión y acción. Paris: UNESCO, 1998.
- UNESCO. Marco de acción prioritaria para el cambio y el desarrollo de la educación superior Paris: UNESCO, 1998.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
23 Jun 2009 -
Data do Fascículo
Ago 2000