Resumos
Como egresso do curso de Saúde Coletiva, o sanitarista desenvolve competências para atuar no planejamento, na avaliação e na gestão em saúde. No entanto, sua formação acadêmica tem se distanciado de práticas formativas que o aproximariam das singularidades de indivíduos, das famílias e das comunidades, ou seja, do território vivo. Desenvolvida com alunos do 3° ano da graduação de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), uma proposta pedagógica que tenta reaproximar o aluno do território de práticas é o tema deste artigo, cuja ênfase recai em seu método de ensino e seus resultados ao longo de seis semestres de experiência. A discussão acerca das propostas de intervenção dos alunos com promoção e educação em saúde nos territórios levou à problematização do papel dos sanitaristas como agentes de cuidado integral e, especialmente, sobre suas possibilidades de práticas na atenção à saúde.
Palavras-chave
Promoção; Educação em saúde; Território; Sanitarista; Formação
Upon graduation in the public health physician have developed skills in planning, evaluation and management in the health sector. However, academic education has become distant from formative practices which bring the health professional closer to individuals and their particularities, as well as to families and communities, in other words to lived experience. The central theme of this paper focuses on a pedagogical proposal that seeks to bring medical students closer to the field of practices, and involved students from the third year of the graduate course in Collective Health and at the Rio Grande do Sul Federal University (UFRGS). The paper places an emphasis on teaching methods and their results over a period of six semesters. The discussion about the students’ proposals for interventions in health promotion and education in different territories leads to a reflection on the problematization of the role of public health physicians as agents of integrated care and, above all, the possibilities for different practices in healthcare.
Keywords
Promotion; Health education; Territory; Public health physician; Education
Como egresado del curso de Salud Colectiva, el sanitarista desarrolla competencias para actuar en la planificación, en la evaluación y en la gestión en salud. Sin embargo, su formación académica se ha distanciado de prácticas formativas que lo aproximarían de las singularidades de los individuos, de las familias y de las comunidades, es decir, del territorio vivo. Desarrollada con alumnos del 3er. año de la graduación de Salud Colectiva de la UFRGS, una propuesta pedagógica que trata de reaproximar al alumno del territorio de prácticas es el tema de este artículo, cuyo énfasis recae en su método de enseñanza y sus resultados en el transcurso de seis semestres de experiencia. La discusión sobre las propuestas de intervención de los alumnos con promoción y educación en salud en los territorios llevó a la problematización del papel de los sanitaristas como agentes de cuidado integral y, especialmente, sobre sus posibilidades de prácticas en la atención a la salud.
Palabras clave
Promoción; Educación en salud; Territorio; Sanitarista; Formación
A Saúde Coletiva (SC) como área de conhecimento e de práticas surgiu no compasso das mudanças promovidas no setor saúde ao longo de um processo reconhecido em nosso país como Reforma Sanitária. Em termos gerais, traduz, em seu escopo, a crítica do movimento social e acadêmico que problematizou, a partir dos anos 1950-1960 no Brasil, as práticas do campo da Saúde Pública. Por definição, a SC integra áreas do conhecimento da Saúde Pública, da Saúde Preventiva e Social, da Epidemiología Social e da inter-relação Saúde e Sociedade.
Na esteira das mudanças promovidas nesse processo histórico, reflexões importantes sobre a educação profissional e cidadã levaram a alterações curriculares nos cursos de graduação da área da saúde11. Ceccim RB, Ferla AA. Educação e saúde: ensino e cidadania como travessia de fronteiras. Trab Educ Saude. 2008; 6(3):443-56., bem como a criação de novas graduações, como a própria SC. São essas as mudanças estruturais necessárias, decorrentes das novas demandas e necessidades em saúde produzidas no seio de uma sociedade que retoma, paulatinamente, o exercício dos direitos básicos de cidadania após o regime militar.
O sanitarista, hoje certificado por diploma acadêmico de graduação e pós-graduação, deve constituir-se num profissional que saiba integrar criticamente os conhecimentos da atenção, gestão e planejamento para a produção de práticas, políticas e teorias que levem em consideração o processo saúde-doença-cuidado-qualidade de vida dos coletivos e indivíduos.
Como sói acontecer a tudo que se instaura no discurso social, sejam modos de vida ou instituições, há uma historicidade inexorável que os engendra e que mantém operantes, em alguma medida, os seus fundamentos. Fato que pode provocar, muitas vezes, alguns paradoxos. No caso da SC, a origem situada na Saúde Pública lhe trouxe a possibilidade da crítica dos paradigmas que organizavam, até então, o conceito restrito de saúde - como ausência de doenças e, estas, como condições de funcionamento anômalo do organismo humano, conhecidas em sua história natural e passíveis de tratamento -, assim como a consideração da importância da sua determinação social e de seu conceito amplo que inclui a qualidade de vida. Do ponto de vista profissional, a SC trouxe a possibilidade da crítica acerca da generalização epidemiológica do adoecimento, patrocinadora de práticas higienistas voltadas ao saneamento de cidades e territórios estratégicos para a gestão do Estado.
Entretanto, a atual formação acadêmica do sanitarista parece, ainda, preservar e privilegiar algumas características da lógica da Saúde Pública. A organização pedagógica e curricular privilegia uma formação crítica, técnica e analítica, cuja ênfase recai: na operação com recursos estatísticos e epidemiológicos, análise de situações de saúde, e capacidade para refletir a partir das contribuições das ciências sociais e humanas, para operar com a análise de políticas e de práticas em saúde. Embora a diferenciação crítica e ideológica, a ênfase da formação do sanitarista moderno se aproxima de elementos que caracterizam o sanitarista pré-Reforma Sanitária.
No campo do mercado de trabalho, a expectativa dos serviços que acolhem o sanitarista também mantém, no imaginário, aquele profissional que sabia proceder e planejar ações no campo da gestão e da vigilância em saúde a partir da sua tradicional faceta epidemiológica. É possível que, atualmente, o próprio aspirante ao diploma dessa área profissional assuma, como importante para sua sobrevivência no mercado de trabalho, o desenvolvimento do saber-fazer tradicional da gestão e avaliação de políticas, além do valorizado conhecimento epidemiológico e estatístico(b) (b) É o que pareceu indicar uma carta redigida e levada a público, em rede social, por um grupo de alunos do curso de Saúde Coletiva da UFGRS, no ano de 2014. No formato de carta aberta aos docentes, o documento ilustrou bem a condição citada acima, ao demandar, em seu 8°. item, ênfase no ensino da administração pública e da gestão. .
Um último exemplo da influência original da Saúde Pública talvez se encontre no fato de os serviços de saúde, que recebem alunos de SC como estagiários para realizarem prioritariamente práticas de promoção e educação em saúde, proporem atividades de estabelecimento e operação de sistemas de informação epidemiológicos. Em detrimento de atividades que coloquem os alunos em contato com os grupos, indivíduos, famílias e com o dilema de operar a partir das singulares e complexas necessidades em saúde com os recursos da escuta, da dinâmica de grupo, da educação e comunicação em saúde.
O jogo de alienação e separação em que se envolve a SC, simultaneidade dialética e essencial para a produção de sua diferenciação da Saúde Pública e do paradigma medicalizante, produz posições arejadas e amadurecidas em termos éticos, práticos e técnicos no campo da saúde. A integralidade do cuidado, a consideração das singularidades dos coletivos no processo de construção da autonomia no cuidado com a própria saúde, o envolvimento político e cidadão do profissional nas questões do setor, a humanização das práticas e horizontalização das decisões entre profissionais e usuários, a retomada da escuta do outro, o respeito aos diferentes modos de vida e formas de cuidado tradicionais com a saúde, são exemplos de efeitos discursivos da SC.
Ao mesmo tempo, é comum encontrar algum acirramento de certas posições no campo da SC, nem sempre essenciais a sua diferenciação do saber da Saúde Pública para constituir-se segundo a ideologia que a engendrou. Dois exemplos disso são corriqueiros: a perspectiva de que o sanitarista apenas deva se ocupar de grupos sociais e certa aversão à prática qualificada como clínica. O primeiro parece advir do próprio significante “coletivo”. O sentido de “agrupamento” que sugere - “grupo social”, visto que é a introdução do pensamento sócio histórico e antropológico que auxilia a estruturação da novidade em relação à Saúde Pública -, promove o entendimento restrito de que o sanitarista deva se ocupar apenas dos fenômenos saúde surgidos ou atribuídos à interação grupal. Na esteira dessa mesma concepção e amplificada pela crítica à hegemonia do paradigma médico nas práticas e organização de sistemas de saúde, encontra-se a aversão a tudo que se refira à clínica. A despeito do termo “clínica ampliada”, que, ao invés de negá-la, a redefine no contexto das mudanças do setor saúde22. Campos GWS. Equipes de referência e apoio especializado matricial: um ensaio sobre a reorganização do trabalho em saúde. Cienc Saude Colet. 1999; 4(2):393-403., é comum encontrar alguma resistência, entre alunos, professores e profissionais alinhados ao discurso da SC, a acolhê-la como recurso potente nesse campo.
A clínica é produção da prática médica organizada a partir do séc. XVIII que, acompanhando o desenvolvimento técnico-científico, sofreu o processo de especialização e refinamento em termos tecnológicos. Suas articulações com o complexo produtivo da saúde, em especial com a indústria farmacêutica, assim como sua ressonância com a cultura individualista da modernidade, trouxe o esvaziamento de seu propósito original - escuta, integralidade diagnóstica e respeito à experiência do doente com sua sintomatologia; o que parece justificar o mencionado rechaço pelos profissionais alinhados aos propósitos da SC e da Reforma Sanitária - e Psiquiátrica - no caso brasileiro33. Amarante P, Torre EHG. Medicalização e determinação social dos transtornos mentais: a questão da indústria de medicamentos na produção de saber e políticas. In: Nogueira RP, organizador. Determinação social da saúde e reforma sanitária. Rio de Janeiro: Cebes; 2010. p. 151-60.. A medicalização implícita na prática clínica tradicional, definindo o que é normal e propondo, como fim terapêutico, o reajuste a padrões determinados pelo próprio discurso médico-científico, seria suficiente para tal rechaço. Além dos efeitos limitados de práticas sustentadas apenas no entendimento biologicista das racionalidades médicas no campo da Saúde44. Luz MT. Racionalidades médicas e bioética. In: Palacios MA, Pegoraro AO, organizadores. Ética, ciência e saúde: desafios da bioética. Rio de Janeiro: Vozes; 2002. p. 76-85..
Há, entretanto, nuances de entendimentos nesses dois pontos que, possivelmente, têm implicado em certos efeitos, há pouco tangenciados, na formação e nas práticas da SC. O conceito de “coletivo” que lhe empresta sentido não diz respeito exclusivamente à reunião de mais de um indivíduo à qual se remetem as preocupações em termos de cuidado em saúde. É o que sustentam alguns teóricos do campo55. Escóssia L, Kastrup V. O conceito de coletivo como superação da dicotomia indivíduo/sociedade. Psicol Estud. 2005; 10(2):295-304. ao enfatizarem agenciamentos coletivos, entendidos como modos de subjetivação possíveis do indivíduo em relação com outros elementos, como objetos, políticas, modos de vida66. Deleuze G, Guattari F. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Rio de Janeiro: Editora 34; 1995. v. 2..
A clínica, por sua vez, não se resume na prática médica especializada e individual, mas pode ser a prática compartilhada de saberes afins ao campo da saúde em seu contexto amplo - Clínica Ampliada77. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS. Clínica ampliada e compartilhada. Brasília: Ministério da Saúde; 2009. - por uma equipe multiprofissional ou não, além de não ser limitada a procedimentos terapêuticos normatizantes, nem individuais. Alguma clínica psicanalítica é um exemplo disso, assim como certas práticas integrativas, que advogam em favor de outras lógicas da clínica e da racionalidade médica88. Luz MT, Barros FB. Racionalidades médicas e práticas integrativas em saúde: estudos teóricos e empíricos. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, UERJ/ABRASCO; 2012..
Neste artigo não serão aprofundadas as questões que envolvem conceitos de coletivo e da clínica no campo da SC. No entanto, será possível apresentar uma proposta inicial que problematize o afastamento aparente do sanitarista das práticas de atenção à saúde no campo acadêmico e profissional, o que será feito por meio da descrição e da análise de uma experiência pedagógica do curso de graduação em SC da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Um processo de aprendizagem fundado no território
Durante seis semestres - março de 2012 a dezembro de 2016 - a Promoção e Educação em Saúde V, Unidade de Produção Pedagógica (UPP)(c) (c) Conjunto de saberes desenvolvidos de modo articulado e longitudinal na proposta de um currículo integrado para o curso, no sentido do desenvolvimento e produção de um conhecimento interdisciplinar. do quinto semestre de graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), tem sido trabalhada com o propósito de integrar saberes acumulados pelos alunos e permitir uma experiência de contato direto com populações e territórios. O objetivo geral, segundo seu plano de ensino, é o estudo acerca da promoção e educação em saúde no contexto dos espaços e ambientes, envolvendo estratégias de intervenção em diferentes contextos socioculturais. Tal objetivo era atingido anteriormente a partir de leituras e exercícios sobre um cenário fictício, como, por exemplo, uma situação-problema planejada e descrita pelo professor, ou, mesmo, um local da cidade em que houvesse uma reunião permanente ou temporária de pessoas em torno de um evento que ocorresse durante o transcurso do semestre. Em ambos os casos, os alunos costumavam articular os conteúdos e discussões de sala de aula aos problemas sugeridos pela situação fictícia, ou visitavam os locais escolhidos para proporem ações de promoção em saúde de acordo com a percepção acerca dos problemas identificados naquele ambiente. No caso da situação-problema fictícia, era suficiente a elaboração de um projeto de intervenção.
A partir de março de 2012 começou a ser construída uma nova estrutura para a UPP que compreende noventa horas/aula do currículo do curso. A nova proposta sustentou-se em aspectos práticos da aprendizagem baseada em problemas e estruturou-se segundo a pedagogia da problematização. Nesse caso, ao longo do processo de construção do conhecimento, o aluno precisará valer-se do que aprendeu durante o curso em outras UPPs - planejamento, vigilância, gestão e políticas em saúde, bem como de reflexões sócio-históricas - além do que aprendera em outros semestres acerca da promoção e educação em saúde.
A dinâmica dos trabalhos, que se estendem ao longo de um semestre, costuma compreender as seguintes etapas: estudar o conceito amplo de território, ir à campo reconhecer um território escolhido como cenário de práticas, efetivar modos de conhecer e levantar situações-problema em saúde coletiva, utilizar o método do Planejamento Estratégico Situacional (PES) para escolha de um problema, estudar a fundo os nós críticos do problema escolhido, planejar uma ação de promoção e/ ou educação em saúde, e, finalmente, realizar a intervenção. O relatório de todo o processo constitui o trabalho escrito a ser entregue ao final do semestre, juntamente com a apresentação em sala de aula no momento da avaliação.
O início de todo o processo tem sido a sensibilização do graduando em Saúde Coletiva para a complexidade do conceito de território no campo da Saúde. Leituras e produções textuais buscam problematizar o conceito, que compreende não apenas seu aspecto geopolítico, mas a territorialidade e a consciência territorial. Logo nos primeiros encontros, os alunos fazem uma primeira observação não sistemática do território escolhido. Como se trata de um curso noturno, os espaços adequados para a tarefa - em termos de segurança e de acesso à população e aos serviços - não são numerosos. Até o momento, a prática tem sido desenvolvida em locais como a estação rodoviária ou algum recorte do centro ou de bairros da cidade de Porto Alegre, o que tem viabilizado a proposta satisfatoriamente.
Após a construção do conceito de território e as primeiras visitas, a turma é convidada a dividir-se em pequenos grupos de sete alunos em média. Cada grupo é acompanhado, em seus desenvolvimentos e aprendizagens, pelo professor e monitores, a exemplo do que é preconizado pela aprendizagem baseada em problemas99. Cantillon P. ABC of learning and teaching in medicine: teaching large groups. Br Med J. 2003; 326:437-39.,1010. Berbel NAN. A problematização e a aprendizagem baseada em problemas. Interface (Botucatu). 1998; 2(2):139-54.. Embora passem a operar independentemente, cada grupo participa de atividades voltadas para toda a turma, nas quais ocorrem: orientações gerais, instrumentalizações para as atividades práticas, leituras e discussões contextualizadas pela problematização das temáticas; procedimento que também permite o compartilhamento e acompanhamento dos trabalhos de cada grupo pelos demais colegas.
Na UPP de Promoção e Educação em Saúde V, o aluno enriquece sua caixa de ferramentas1111. Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo em ato. 4a ed. São Paulo: Hucitec; 2014. com conhecimentos, dinâmicas e instrumentos que lhe permitirão, no futuro, conduzir um processo de planejamento, vigilância e intervenção no território sob o prisma da SC. Pouco antes de retornar ao território de práticas, cada grupo planeja uma ação de reconhecimento e levantamento de situações de saúde baseada na técnica da Estimativa Rápida1212. Acúrcio FA, Santos MA, Ferreira SMG. Aplicação da técnica da estimativa rápida no processo de planejamento local. In: Mendes EV, organizador. A organização da saúde no nível local. São Paulo: Hucitec; 1998. p. 87-110.. Por meio da observação sistemática do local, das entrevistas com informantes-chave e da pesquisa em dados secundários, cada grupo passa a contar com informações suficientes para a análise e o levantamento de situações-problema daquele território.
Como forma de apresentação do resultado dessa etapa e do estabelecimento de uma lista de problemas, sugere-se que os alunos estudem e experimentem a dinâmica da construção de um Mapa Falante1313. Santos AA, Pekelman R. A escola, o território e o lugar: a promoção de espaços de saúde. OKARA: Geogr Debate. 2008; 2(1):3-11.. Atividade que permite, ao futuro sanitarista, dispor de recursos para a produção de dados de saúde por meio de técnicas participativas que levam em consideração experiências subjetivas de quem vive e se relaciona no território.
A apresentação, em grande grupo, dos mapas falantes tem o objetivo de compartilhamento das listas de problemas e situações de saúde. A posse de uma lista de problemas tão complexos e diversificados pode causar certa angústia ou desconcerto nos grupos que, frequentemente, passam pela sua primeira crise. A identificação com determinada causa ou a mobilização subjetiva que uma situação de vulnerabilidade encontrada possa provocar, costuma mobilizar o grupo em sua dinâmica inicial. É comum que o aluno se desmotive nesse momento do processo ou tente persuadir seu grupo para lidar com uma específica situação em detrimento de outras da lista. Nada tão diferente do que pode ocorrer, reservadas as proporções, na dinâmica do trabalho das equipes de saúde reais frente aos problemas da população a serem enfrentados.
É nesse ponto que os conhecimentos teóricos já adquiridos acerca do PES colaboram para a metódica categorização e priorização de problemas a serem enfrentados segundo critérios de exequibilidade, equidade e integralidade.
O PES possui algumas variações em termos de sua utilização. No caso em questão, parte-se de uma primeira categorização das listas de problemas em três tipos de situações: vida, saúde e serviços. As situações de “vida” correspondem aos problemas decorrentes do viver no território - falta de locais para lazer, presença de tráfico de drogas etc.; de “saúde” se referem a condições e agravos mais comuns do local estudado - hipertensão, asma, depressão, entre outras - e, por fim, de serviços dizem respeito aos problemas de acesso ou utilização de estabelecimentos de saúde, assistência ou outros, como bancos, transporte etc. Tal categorização permite avaliar o potencial de intervenção do grupo, na medida em que as situações de vida são multifatoriais, as de saúde dependem de conhecimentos e recursos para lidar com os agravos, e as de serviços demandam a presença ou a parceria da gestão.
Os momentos explicativo e normativo do PES são cumpridos por meio de um método de escolha que respeita os critérios de magnitude, transcendência, vulnerabilidade e custo das situações elencadas como problemas. Não há um único modo de proceder com esses critérios. A importância de sua utilização está na organização sistemática e criteriosa para a escolha de prioridades para a intervenção.
Em seguida, utiliza-se a técnica de construção de redes complexas para explicação e determinação dos “nós críticos” do problema priorizado, ou seja, certos determinantes que, ao serem trabalhados, impactam positivamente no sentido da resolução do problema. A rede complexa consiste de uma técnica participativa - que pode reunir alunos e população - em que o grupo procura listar, primeiramente, todos os determinantes possíveis do problema, segundo conhecimentos multidisciplinares. Na sequência, estabelecem categorias agrupando os determinantes e as relacionam. Esse processo estabelece a rede explicativa do problema em questão e permite a visualização dos seus nós críticos.
Nesse ponto, os grupos experimentam os momentos estratégico e tático-operacional do PES. É preciso estudar os nós críticos aprofundadamente e em contexto para proceder ao planejamento da intervenção. É aí que boa parte do conteúdo teórico do semestre se revela, na medida em que os grupos buscam referências e informações na literatura de várias fontes e áreas do conhecimento. Após esse estudo, os grupos planejam a intervenção no território, que devem realizar até o final do semestre.
Conforme a proposta da UPP os grupos devem situar sua intervenção no recorte da promoção e educação em saúde. Além de criarem as condições necessárias para sua intervenção com a população identificada, durante o processo de planejamento os grupos realizam uma discussão sobre os princípios da promoção e educação em saúde. Esse passo importante do semestre auxilia a retomada de conhecimentos já construídos e a crítica acerca daqueles conceitos no âmbito da SC.
Após os preparativos e agenciamentos, cada grupo marca os dias e horas de sua intervenção, que pode ser acompanhada pelo professor, monitores e, se possível, pelos demais colegas. Segundo princípios da avaliação emancipatória1414. Hoffmann JML. Avaliação: mito e desafio - uma perspectiva construtivista. 41a ed. Porto Alegre: Mediação; 2011., todos os alunos participam, durante o semestre, da construção coletiva da turma e da avaliação dos trabalhos. Além da atribuição do conceito acadêmico, essa avaliação tem por objetivos proporcionar espaço de construção coletiva e reflexões sobre o processo da aprendizagem, sobre conhecimentos adquiridos, e permitir o enriquecimento da experiência de cada grupo com as contribuições dos demais colegas, do professor e de um convidado externo, que auxilia com os comentários e impressões de um olhar terceiro sobre os trabalhos.
A seguir apontam-se alguns resultados obtidos ao longo de dez semestres e realiza-se uma discussão conceitual que procurará problematizar e encaminhar algumas questões que problematizem o aparente distanciamento do egresso da graduação em SC de competências para as práticas no registro da atenção à saúde em serviços da rede.
Resultados e perspectivas
A modificação da estrutura pedagógica no ensino de promoção e educação em saúde no quinto semestre do curso de graduação em SC da UFRGS e a proposta de trabalhar em ato com um território vivo1111. Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo em ato. 4a ed. São Paulo: Hucitec; 2014. lançaram muitos desafios ao professor e aos alunos envolvidos. O curso noturno traz algumas dificuldades que dizem respeito à pouca opção em termos de escolha de cenários de práticas. A solução encontrada foi utilizar espaços urbanos próximos do centro da cidade ou a estação rodoviária, locais que permanecem com seus serviços abertos à noite e circulação ininterrupta de pessoas. Porém, ambos constituem territórios peculiares. Seu perfil se caracteriza por população trabalhadora e flutuante, ao invés de moradora e fixa, como a de bairros residenciais, por exemplo.
Tomar o território em seu contexto amplo, que transcende acidentes geográficos e dados estatísticos, influencia diretamente o trabalho a ser realizado por qualquer equipe de saúde. Dessa mesma forma, os grupos de alunos são afetados pelas peculiaridades dos territórios propostos para sua aprendizagem. Alguns exemplos de problemas escolhidos pelos alunos parecem bem ilustrar o efeito que características de um território - e das territorialidades envolvidas - provocam na escolha e planejamento de prioridades em termos da vigilância em saúde por uma determinada equipe.
No período em que as práticas foram realizadas em uma estação rodoviária, foram enfrentados problemas como: ausência de espaços acessíveis de lazer, descanso ou culturais, para funcionários e usuários; alto consumo de tabaco pelos funcionários; doenças ocupacionais e danos causados à saúde dos trabalhadores pela exposição ao frio; alto risco de acidentes para deficientes físicos no acesso à rodoviária; inadequação do preparo dos alimentos comercializados; problemas ergonômicos nas cadeiras das vendedoras de passagens; risco de atropelamento por circulação indevida de pedestres; atrasos na partida dos ônibus por conta das despedidas em local supostamente inadequado, na visão dos motoristas.
A mudança de território de práticas para um local do centro da cidade trouxe problemas como: desconhecimento sobre o acesso a serviços de saúde por parte dos trabalhadores do comércio; falta de organização trabalhista de funcionários de um hortomercado; baixas capacitação e proteção para o trabalho dos garis; preparo inadequado dos alimentos por parte de vendedores ambulantes de cachorro-quente; descarte irregular de resíduos sólidos do comércio e dos consumidores locais;; problemas de saúde ocupacional de trabalhadores de lancherias e a presença de animais sinantrópicos nas dependências dos estabelecimentos do Mercado Público central.
Se, por um lado, as preocupações acerca da saúde dos trabalhadores ou qualidade dos serviços prestados possam responder ao perfil e às características dos territórios estudados, a pluralidade de enfoques dos problemas em saúde levantados - que vão de hábitos nocivos até o reforço de organização corporativa - representa bem o entendimento amplo e integral sobre a saúde advindo da lógica da SC. Parece possível admitir, em contraponto, que uma equipe atravessada pelo paradigma biomédico ou cuja preocupação seja a vigilância epidemiológica, nos moldes da Saúde Pública, teria seu olhar restrito às doenças e agravos, como os provocados pelo tabagismo ou pelas zoonoses.
A avaliação de todo o processo tem indicado potencialidades e alguns desafios a serem superados. Em todos os semestres, tem sido especialmente citada, como potencialidade, a oportunidade do sanitarista em formação de realizar um exercício prático no espaço urbano. Se, no início do semestre, a ideia da aproximação com pessoas reais, suas histórias de vida e impressões sobre o local em que vivem causa alguma apreensão, ao final dele, é percebida a importância do contato intensivo com o território e sua população para a aprendizagem de raciocínio, planejamento e intervenção em promoção de saúde.
É comum surgirem preocupações iniciais acerca: da ética em intervir pontualmente com a população, da viabilidade de entrevistar pessoas sem consentimento informado, além de questionamentos ao professor acerca da pertinência da proposta como um todo. Parece que esses supostos entraves ao processo, surgidos logo no início do semestre, sob a perspectiva do aluno, em parte revelam a reflexão sobre a ética do ato do profissional em saúde e questionamentos a respeito dos efeitos de uma abordagem. Por outro lado, revelam, também, alguma resistência do aluno frente à novidade de encarar situações reais em seu processo de aprendizagem no curso. Durante a primeira metade do semestre, os alunos são instrumentalizados para cada passo de sua construção de conhecimentos e de práticas no território, o que vai proporcionando segurança para suas abordagens no campo e compreensão acerca do processo em que estão envolvidos.
A avaliação do semestre não se resume ao aproveitamento de frequência, de conteúdo ou qualidade da intervenção, mas também é realizada a “avaliação de processo”, na qual o interesse é detectar se há entendimento, por parte do aluno, a respeito da proposta pedagógica de que é sujeito, e mostrar o seu esclarecimento sobre o processo complexo no qual se envolveu.
Por demandar muitos tipos de conhecimentos e habilidades, é um desafio pedagógico trabalhar a compreensão, por parte do aluno, acerca do processo em que está envolvido. Para tanto é lembrada, aos alunos, sua responsabilidade com seu grupo de trabalho; recomendado não faltar aos encontros, assim como é resgatado continuamente, em sala de aula, o caminho construído em cada fase do processo.
Desenvolver a atividade à noite é uma dificuldade, já referida, assinalada durante as avaliações. No entanto, além das questões de segurança ou de haver poucas opções de espaços urbanos adequados, outra dificuldade está no tempo exíguo para o desenvolvimento da atividade. O decurso de um semestre pode ser pouco, dada a complexidade do processo. O semestre precisa ser conduzido com cuidado para que os grupos não percam muito tempo no planejamento das ações e acabe faltando para efetivá-las. É preciso esclarecer, ao aluno, que a atividade, embora lide com situações da realidade, tem a dimensão de um ensaio. Não é esperado que a intervenção tenha impacto suficiente para resolver completamente o problema escolhido. Os alunos costumam elevar demasiadamente sua expectativa inicial, o que promove um conflito entre aquilo que é desejado e o que é possível efetivar. Embora haja esses limites, nas avaliações finais, os alunos conseguem visualizar avanços e efeitos positivos de suas ações.
O processo de trabalho que envolve a lógica da vigilância em saúde, do planejamento estratégico situacional e da promoção/educação, realizado por um profissional em formação cuja característica é a visão crítica da saúde e seus determinantes sociais, não deixa de ser rigoroso, metódico e relevante para a melhoria dos indicadores de saúde de uma população. O impacto em termos de incremento na qualidade de vida local se justifica pela consideração do conceito amplo de saúde, o que permite, ao sanitarista, estar atento a uma gama maior de eventos e determinantes de saúde da população em seu território geográfico, social, cultural e subjetivo.
Entre tantos aspectos envolvidos nessa proposta de aprendizagem na linha de promoção e educação em saúde para sanitaristas, ressalta-se, como elemento crítico, a suposição da primazia do território no trabalho em saúde. Embora possa parecer corriqueira, como por exemplo nas práticas da Estratégia da Saúde da Família, a consideração do fator “território” frequentemente se resume ao estudo do perfil epidemiológico - doenças e possibilidades de agravos mais frequentes - para o estabelecimento de programas de saúde. Assumir o conceito amplo de território como elemento fundamental para o planejamento de ações em SC parece constituir um processo pedagógico de muito potencial na formação do sanitarista para atuar junto a populações e equipes.
Destacam-se, ainda, discussões e problematizações preliminares sobre três aspectos importantes da experiência de formação: o processo pedagógico, a aprendizagem no campo de práticas e, por fim, um questionamento elementar sobre a possibilidade de pensá-la como estruturante de uma prática clínica em SC.
Discussão acerca da proposta pedagógica
Mudanças costumam partir de necessidades e requisitar algumas inovações. No contexto da formação acadêmica, a necessidade sempre é a tentativa de rompimento das supostas barreiras entre as realidades universitária e do mundo do trabalho. A reformulação da UPP de Promoção e Educação em Saúde V parece ter trazido uma inovação: a utilização da própria lógica da vigilância em saúde como estruturante de proposta pedagógica e estratégia de ensino.
A vigilância em saúde está fundamentada em diferentes disciplinas, da Epidemiología às Ciências Sociais. Pode também comportar diferentes noções no campo da Saúde. Ao sabor da reforma sanitária, a vigilância em saúde surge como proposta de reorganização dos processos de trabalhos no sentido do cuidado longitudinal, vigilante e integral em saúde. Neste caso, entende-se a vigilância em saúde como uma proposta de ação coordenada, cujas operações são direcionadas a territórios delimitados para enfrentar problemas da realidade que envolvem risco e vulnerabilidade, acompanhamento integral e articulação entre ações de promoção, educação, prevenção e cura1515. Paim JS, Almeida Filho N. A crise da saúde pública e a utopia da saúde coletiva. Salvador: Casa da Qualidade; 2000..
Associada ao trinômio informação, decisão e ação, a lógica da vigilância auxilia a compor os passos estruturantes da proposta de aprendizagem para sanitaristas. A primeira contribuição é trazer, como ponto de partida, o território em seu entendimento amplo. Há muita diferença em compreendê-lo como delimitação puramente geopolítica no espaço e considerar, por outro lado, os modos de vida, de relações subjetivas e culturais ali presentes, para o acompanhamento e cuidado em saúde de uma população.
Com esses recursos conceituais, foi montada a proposta de ensino e aprendizagem de promoção e educação em saúde, de modo que a teoria e a prática, o pensar e o agir, a abstração e a realização possam estar presentes na experiência acadêmica da SC.
O outro aspecto foi a utilização de elementos da pedagogia da problematização. A primazia do território, tanto na atividade acadêmica como no contexto do trabalho em saúde, proporciona uma série de situações reais que sugerem a utilização do raciocínio lógico, de um método de planejamento e de técnicas que servem como objetos de aprendizagem em ato para a sua solução. Como modo de operar pedagogicamente com a problematização, utilizam-se elementos da Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP). Este método propõe que a aprendizagem se construa a partir da definição de um problema, do seu estudo aprofundado que admite a complexidade da situação e da resolução do problema utilizando os meios conceituais e práticos à disposição1010. Berbel NAN. A problematização e a aprendizagem baseada em problemas. Interface (Botucatu). 1998; 2(2):139-54.. No caso da ABP a aprendizagem se dá em um processo organizado pela autonomia do estudo individual e coletivo por parte de alunos organizados em pequenos grupos e pelos facilitadores, cuja incumbência é acompanhar o processo de aprendizagem do grupo atuando sem, necessariamente, transmitir um conhecimento predeterminado, mas auxiliar sua construção99. Cantillon P. ABC of learning and teaching in medicine: teaching large groups. Br Med J. 2003; 326:437-39..
Se a proposta pedagógica está sustentada na problematização e construção do conhecimento - e estruturada pelo próprio processo de trabalho de equipes que atuem sob a lógica da vigilância em saúde -, o modo de avaliar o resultado da aprendizagem dos alunos deve ser coerente com isso. Optou-se pela utilização de um modo participativo de avaliação que implicasse o aluno na tarefa de refletir sobre os efeitos e resultados da sua aprendizagem e do seu grupo1616. Saul AM. Avaliação emancipatória: desafio à teoria e à prática de avaliação reformulação de currículo. São Paulo: Cortez/Autores Associados; 1988.,1717. Barros MEB. Avaliação e formação em saúde: como romper com uma imagem dogmática do pensamento? In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Gestão em redes: práticas de avaliação, formação e participação na saúde. Rio de Janeiro: IMS/UERJ-CEPESC-ABRASCO; 2006. p. 261-88.. Rodas de conversa1818. Campos GWS. Um método para análise e cogestão de coletivos. São Paulo: Hucitec; 2000. de caráter avaliativo têm revelado aspectos importantes para a aprendizagem de promoção e educação em saúde dos futuros sanitaristas. Após terem discutido, em semestres anteriores, os conceitos básicos da promoção em saúde segundo as noções da SC, a posição do sanitarista frente a populações em situação de vulnerabilidade e movimentos sociais; terem estudado as grandes conferências mundiais de promoção1919. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Políticas de Saúde. Projeto Promoção da Saúde. As cartas da promoção da saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2002. e se aproximado da educação popular em saúde; ter a oportunidade de colocar esses e outros conhecimentos à prova em situação de realidade é uma expectativa importante do graduando na reta final do curso.
Além do jogo entre o desejo pela prática e as resistências em encarar o território vivo e sujeitos de carne e osso, é clara a satisfação daquele aluno no momento em que sente ter dominado, em alguma escala, o processo que lhe permitirá constituir um saber para o trabalho com equipes e populações.
Existem outras ênfases possíveis para o trabalho do sanitarista do que o campo da gestão, da formação e educação em saúde ou do controle social, assim como seus derivados: análise de políticas e planejamento em saúde, epidemiología, crítica social e militância pelos avanços da reforma sanitária e pelo SUS, no caso brasileiro. No entanto, a linha de frente da atenção em saúde não lhe costuma ser um campo de trabalho corriqueiro.
Parece possível atribuir essa excentricidade da expectativa do fazer do sanitarista em relação à atenção a fatores como: o posicionamento crítico a respeito das práticas tradicionais do registro da atenção à saúde, a formação cuja ênfase está na gestão, na análise de políticas e na epidemiologia, além da ausência de algo da ordem de uma clínica específica da SC. Articulada a esses fatores está a posição do mercado de trabalho ou da previsão de vagas em equipes do setor público e privado, que também não contemplam o sanitarista em linhas de frente da rede de atenção à saúde. O mais próximo está na Portaria 256 do Ministério da Saúde2020. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Portaria n. 256, de 11 de março de 2013. Estabelece novas regras para o cadastramento das equipes que farão parte dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) Sistema de Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (SCNES). Brasília: Ministério da Saúde; 2013., que prevê a possibilidade de participação do sanitarista nas equipes do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), sob a lógica do matriciamento ou do apoio institucional.
A experiência relatada e discutida até aqui sugere a formulação de alguns questionamentos acerca da formação do sanitarista contemporâneo. Em que medida deve ele se manter relativamente afastado do fazer da atenção em saúde e na linha de frente dessa rede? Seria essa a posição que garantiria um lugar de onde seja possível o posicionamento analítico e crítico do sanitarista acerca da saúde, segundo os princípios da Reforma Sanitária? Auxiliaria a manter suposta pureza ética o distanciamento de onde ocorre a efetivação das políticas, técnicas e resultado de pesquisas, que, paradoxal e frequentemente, produzem práticas medicalizantes? E, por fim, em que medida negar a clínica é essencial para resistir a práticas especializada e reducionista ao biológico, individualizantes da experiência coletiva com o adoecimento, mercantilistas do setor saúde e terapêuticas no sentido da normalização de corpos e subjetividades?
Essas questões poderiam dar lugar a outras tantas acerca da problematização do perfil gestor e epidemiologista que os cursos de graduação em SC têm geralmente enfatizado para o sanitarista. A contribuição está, especialmente, no que diz respeito àquele aspecto que mais se aproxima do caráter da práxis, que o processo pedagógico analisado sugere: a peculiaridade acerca da atenção à saúde quando procedida pelo profissional atravessado pela lógica da SC. No entanto, parecem necessários mais estudos e debates acerca das diretrizes curriculares e das práticas de formação em SC, seja na graduação ou nos programas de pós-graduação. Este trabalho procura estimular essa conversa.
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(b)
É o que pareceu indicar uma carta redigida e levada a público, em rede social, por um grupo de alunos do curso de Saúde Coletiva da UFGRS, no ano de 2014. No formato de carta aberta aos docentes, o documento ilustrou bem a condição citada acima, ao demandar, em seu 8°. item, ênfase no ensino da administração pública e da gestão.
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(c)
Conjunto de saberes desenvolvidos de modo articulado e longitudinal na proposta de um currículo integrado para o curso, no sentido do desenvolvimento e produção de um conhecimento interdisciplinar.
Referências
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1Ceccim RB, Ferla AA. Educação e saúde: ensino e cidadania como travessia de fronteiras. Trab Educ Saude. 2008; 6(3):443-56.
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2Campos GWS. Equipes de referência e apoio especializado matricial: um ensaio sobre a reorganização do trabalho em saúde. Cienc Saude Colet. 1999; 4(2):393-403.
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3Amarante P, Torre EHG. Medicalização e determinação social dos transtornos mentais: a questão da indústria de medicamentos na produção de saber e políticas. In: Nogueira RP, organizador. Determinação social da saúde e reforma sanitária. Rio de Janeiro: Cebes; 2010. p. 151-60.
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4Luz MT. Racionalidades médicas e bioética. In: Palacios MA, Pegoraro AO, organizadores. Ética, ciência e saúde: desafios da bioética. Rio de Janeiro: Vozes; 2002. p. 76-85.
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5Escóssia L, Kastrup V. O conceito de coletivo como superação da dicotomia indivíduo/sociedade. Psicol Estud. 2005; 10(2):295-304.
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6Deleuze G, Guattari F. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Rio de Janeiro: Editora 34; 1995. v. 2.
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7Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS. Clínica ampliada e compartilhada. Brasília: Ministério da Saúde; 2009.
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8Luz MT, Barros FB. Racionalidades médicas e práticas integrativas em saúde: estudos teóricos e empíricos. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, UERJ/ABRASCO; 2012.
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9Cantillon P. ABC of learning and teaching in medicine: teaching large groups. Br Med J. 2003; 326:437-39.
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10Berbel NAN. A problematização e a aprendizagem baseada em problemas. Interface (Botucatu). 1998; 2(2):139-54.
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11Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo em ato. 4a ed. São Paulo: Hucitec; 2014.
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12Acúrcio FA, Santos MA, Ferreira SMG. Aplicação da técnica da estimativa rápida no processo de planejamento local. In: Mendes EV, organizador. A organização da saúde no nível local. São Paulo: Hucitec; 1998. p. 87-110.
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13Santos AA, Pekelman R. A escola, o território e o lugar: a promoção de espaços de saúde. OKARA: Geogr Debate. 2008; 2(1):3-11.
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14Hoffmann JML. Avaliação: mito e desafio - uma perspectiva construtivista. 41a ed. Porto Alegre: Mediação; 2011.
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15Paim JS, Almeida Filho N. A crise da saúde pública e a utopia da saúde coletiva. Salvador: Casa da Qualidade; 2000.
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16Saul AM. Avaliação emancipatória: desafio à teoria e à prática de avaliação reformulação de currículo. São Paulo: Cortez/Autores Associados; 1988.
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17Barros MEB. Avaliação e formação em saúde: como romper com uma imagem dogmática do pensamento? In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Gestão em redes: práticas de avaliação, formação e participação na saúde. Rio de Janeiro: IMS/UERJ-CEPESC-ABRASCO; 2006. p. 261-88.
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18Campos GWS. Um método para análise e cogestão de coletivos. São Paulo: Hucitec; 2000.
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19Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Políticas de Saúde. Projeto Promoção da Saúde. As cartas da promoção da saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2002.
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20Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Portaria n. 256, de 11 de março de 2013. Estabelece novas regras para o cadastramento das equipes que farão parte dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) Sistema de Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (SCNES). Brasília: Ministério da Saúde; 2013.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
2018
Histórico
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Recebido
18 Jan 2017 -
Aceito
04 Maio 2017