O ano era 1979. O autor de A Instituição Negada, Franco Basaglia, estava no Brasil. Visitara manicômios, hospitais psiquiátricos que estavam ainda em pleno funcionamento, com milhares de pessoas internadas, realidade que Basaglia expressou ser um campo de extermínio: o Holocausto Brasileiro. Diferentemente, no ano anterior – 1978 –, era aprovada na Itália a Lei 180, que determinava o fechamento de todos os manicômios no país.
O Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) no Brasil realizava seu primeiro Encontro Nacional também em 1979, um ano após seu nascimento. Isso aconteceu quando Paulo Amarante e outros profissionais de hospitais do Rio de Janeiro denunciaram os maus-tratos e as condições extremamente precárias nos hospitais psiquiátricos públicos. Foram demitidos 263 profissionais por fazerem coro com as denúncias. Muitos destes começaram a fazer reuniões e assembleias e expandir o alcance das denúncias contra a cronificação do manicômio, o eletrochoque e as precárias condições de higiene e trabalho. Era o marco inicial da luta antimanicomial no Brasil1 .
Dez anos depois, em 1989, iniciava-se o processo de fechamento do hospital psiquiátrico privado de Santos, a Casa de Saúde Anchieta, após inúmeras denúncias de violência e constatação de violação dos direitos humanos2 . Em substituição, foi criada uma rede territorial de atenção, na qual o dispositivo principal era o Núcleo de Atenção Psicossocial (Naps), que foi considerado o marco concreto da Reforma Psiquiátrica brasileira. Ainda em 1989, dois marcos no campo da saúde mental ocorreram: foi realizada a primeira política pública com base na redução de danos (RD) para pessoas que fazem uso abusivo de drogas3 ; e foi apresentada a primeira versão da icônica Lei da Reforma Psiquiátrica 10.216/2001, que foi aprovada com modificações somente 12 anos depois4 .
O ano é 2019. Quarenta anos após as primeiras denúncias do MTSM e tantas lutas para transformar a atenção à saúde mental brasileira, a instituição psiquiátrica não fora negada; pelo contrário: está sendo reinventada. Não, entretanto, no sentido pretendido por Rotelli5 , isto é, uma instituição diferente da manicomial, que revolucionasse e permitisse um novo local social para as pessoas em sofrimento.
A instituição psiquiátrica ascende atualmente por meio de legislações que adotam medidas que vão na direção contrária às ações desses últimos quarenta anos. São elas: Resolução nº 32/2017 da Comissão Intergestores Tripartite, Resolução nº 1/2018 do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas e o Decreto Presidencial nº 9.761/2019. A Coordenação Geral de Saúde Mental divulgou no início de 2019 a nota técnica nº 11, que traz em um só documento a síntese de várias legislações e redefine toda política de saúde mental; porém, esta não foi publicada em Diário Oficial.
O conjunto dessas legislações, entre muitas imposições, definem: o retorno e ampliação dos hospitais psiquiátricos como elementos da Rede de Atenção Psicossocial (Raps); a intensificação da utilização das Comunidades Terapêuticas (CTs) como dispositivos da Raps; a retirada da RD como estratégia de atenção, sendo substituída pela abstinência total; e a permissão à internação de crianças e adolescentes em dispositivos hospitalares, inclusive hospitais psiquiátricos.
Seria possível dizer que cedo ou tarde a instituição psiquiátrica se sobressairia em relação ao modelo da atenção psicossocial, afinal, ficara latente devido à não extinção dos hospitais psiquiátricos – ou permeada entre a própria rede substitutiva. Porém, a intensidade das mudanças impostas pelos decretos governamentais não só interrompe antigos processos de transformação, mas também os fazem retroceder em décadas.
A título de exemplo, os leitos de hospitais psiquiátricos foram reduzidos de 51.393 (2003) para 25.126 (2015) e o número de hospitais psiquiátricos passou de 228 (2006) para 159 (2015)6 . O número de Centros de Atenção Psicossocial (Caps) aumentou de 424 (2003) para 2328 (2015)6 . Com as novas legislações, entretanto, cessa-se o fechamento de leitos e hospitais psiquiátricos, priorizando-se também o tratamento em CTs em detrimento dos Caps.
Porém, ao olharmos para o passado, constatamos ainda mais a profundidade dos retrocessos. Na década de 1960, por exemplo, o extremo aumento de internações em hospitais privados fizera com que o período fosse denominado como a Indústria da Loucura7 . Os leitos psiquiátricos privados saltaram de aproximadamente 14 mil no início da ditadura militar para mais de setenta mil em 1970. Por que isso acontecia? O chamado milagre econômico escondeu a um só tempo a precarização das condições e a intensificação do trabalho, tendo como consequência um maior adoecimento da classe trabalhadora; e esconde a política de privatização da época (enriquecendo empresários donos das instituições, financiadas com dinheiro público)1 , 7 .
Desviat8 proporciona base teórica para a compreensão do fenômeno, expressando que há determinações econômico-políticas relacionadas ao enclausuramento da loucura. Em momentos de crise econômica, a psiquiatria é acionada para controlar desordens, excluir os que incomodam e manter a ordem produtiva, além de geralmente ser acompanhada de outras leis repressivas. Fora assim na “Grande Internação”, na passagem do feudalismo à sociedade capitalista, como traz Foucault em A História da Loucura; foi assim no Brasil, na passagem da Colônia ao Império, bem como no aprofundamento liberal da ditadura militar7 .
Rotelli5 desenvolve essa concepção sobre a psiquiatria, expressando que não adianta a criação de serviços substitutivos – ou desospitalizar o cuidado – sem acabar com a lógica do controle e da reclusão. Mesmo em serviços substitutivos, pode-se oferecer maior espaço no qual a loucura é reclusa, perpetuando a mesma lógica cronificante da instituição total5 . Enquanto houver serviços nos quais a loucura possa ficar reclusa, não será criada uma sociedade que receba e construa junto com o considerado louco condições nas quais possa reconstituir sua vida. Se isso não acontecer, haverá o processo de revolving-door, ou carreira de internamento, pois a reclusão é historicamente o local social da loucura5 , 9 .
Mas, para além das práticas de tratamento, as conjunturas passadas também detêm semelhanças com o atual momento da instituição psiquiátrica? Utiliza-se do papel histórico dessa instituição?
Enquanto as instituições manicomiais são restabelecidas, há uma tendência na modificação e retirada de direitos sociais com diminuição de recursos nas áreas de saúde e educação, com a aprovação da reforma trabalhista e a extinção do ministério do trabalho; ainda, havia em 2012 106.491 pessoas privadas de liberdade devido a drogas, representando 26% do total10 . Ou seja, vive-se em um período em que há grande número de reclusos e no qual as instituições de controle fazem-se presentes.
Ainda, as CTs receberam largos investimentos em 2018 provenientes de três ministérios, e houve o cancelamento de repasse de verbas à Raps, afetando sobretudo os Caps. Uma realidade que relembra o período da Indústria da Loucura da ditadura militar. O relatório da Inspeção Nacional em CTs11 , de 2018, revela que estas são locais de privação de liberdade; uso de trabalhos forçados sem remuneração; violação à liberdade religiosa e à diversidade sexual; e internação irregular de adolescentes, sem contar que a maioria delas não tem projetos terapêuticos adequados11 .
Portanto, vive-se uma realidade de fortalecimento de instituições privadas que recebem dinheiro público para “tratar” em reclusão pessoas em sofrimento psíquico, por meio de ações violadoras dos direitos humanos, em um momento de alto desemprego e retirada de direitos, sem adentrarmos no financiamento público de aparelhos de eletrochoque em hospitais privados e na internação de crianças e adolescentes. Portanto, afirmar que há necessidade de expansão do Hospital Psiquiátrico e de CTs ao mesmo tempo em que se afirma o compromisso de humanização da atenção é no mínimo uma contradição demasiado ingênua para ser cometida – ou cirurgicamente planejada.
Definida a ressuscitação da instituição psiquiátrica, o que esperar para o futuro? Para os usuários dos serviços, um aumento da estigmatização, visto o provável aumento das internações. Internações forçadas, inclusive, como traz o relatório acerca das CTs já citado. Assim, em vez de um processo terapêutico com o respeito e promoção de autonomia, dá-se poder a dispositivos que efetuam tratamentos impositivos, além do fato de que muitos usuários da Raps podem ser presos devido ao aumento da criminalização das drogas, aumentando ainda mais a população carcerária.
Em relação aos serviços, os Caps ficarão desprotegidos de financiamentos, o que acarretará dificuldades no seu funcionamento. Ainda, nossa história mostra que serviços de saúde mental que realizam longas internações e recebem por isso podem estendê-las na ânsia de captarem mais recursos.
Enfim, acreditamos que esse retrocesso na área de saúde mental do Brasil possa “repetir a história” ou criar muitas dificuldades para o enfrentamento da sociedade manicomial e discriminatória para pessoas em sofrimento psíquico e/ou com problemas decorrentes do uso abusivo de drogas.
Entretanto, se foi necessário ocorrer a Industrialização da Loucura para que os movimentos como o antimanicomial florescessem e caminhassem no seio do processo da Reforma Sanitária e de redemocratização, hoje o conjunto de profissionais da RAPS, de associações de usuários e de familiares e todos aqueles que almejam uma sociedade sem manicômios podem se adiantar a um provável período de Grande Internação e resistirem juntos pela continuidade da democracia e pelo avançar da desinstitucionalização social.
Referências
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1 Amarante P. Rumo ao fim dos manicômios. Sci Am Mente Cerebro [Internet]. 2006 [citado 15 Abr 2019]:30-5. Disponível em: http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/rumo_ao_fim_dos_manicomios.html
» http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/rumo_ao_fim_dos_manicomios.html - 2 Kinoshita R. Saúde mental e a antipsiquiatria em Santos: vinte anos depois. Cad Bras Saude Ment. 2009; 1(1):223-31.
- 3 Passos E, Souza T. Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de “guerra às drogas”. Psicol Soc. 2011; 23(1):154-62
- 4 Delgado P. Saúde mental e direitos humanos: 10 anos da Lei 10.216/2001. Arq Bras Psicol. 2011; 63(2):114-21.
- 5 Rotteli F. A instituição inventada. In: Nicácio MF, organizador. Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec; 1990. p. 89-100.
- 6 Brasil. Ministério da Saúde. Saúde mental no SUS: cuidado em liberdade, defesa de direitos e rede de atenção psicossocial. Brasília: Ministério da Saúde; 2016.
- 7 Resende H. Política de saúde mental no Brasil: uma visão histórica. In: Tundis S, Costa N, organizadores. Cidadania e loucura: políticas de saúde mental no Brasil. Petrópolis: Vozes; 1990. p. 15-73.
- 8 Desviat M. A reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1999.
- 9 Basaglia F. A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. Rio de Janeiro: Graal; 1985.
- 10 Campos M. As percepções dos brasileiros sobre drogas, justiça e saúde. In: Bokany V, organizador. Drogas no Brasil: entre a saúde e a justiça. Proximidades e opiniões. São Paulo: Perseu Abramo; 2015.
- 11 Conselho Federal Psicologia. Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas – 2017. Brasília: Conselho Federal Psicologia, Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Ministério Público Federal; 2018.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
16 Set 2019 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
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Recebido
03 Jun 2019 -
Aceito
31 Jul 2019