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Da produção local à cooperação internacional em saúde mental: construção de redes de cuidado e aprendizagem entre Brasil e Itália* * Este texto é resultado parcial da dissertação de mestrado da primeira autora sob orientação da última autora, no Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional da Universidade Federal de São Carlos (PPGTO/UFSCar), intitulada “A saúde mental brasileira sob o olhar decolonial: contribuições para o debate da saúde mental global a partir de uma experiência de cooperação internacional com a Itália”, sob financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) Edital Universal 01/2016 – Financiamento 404752/2016-0; da Pró-Reitoria de Extensão da UFSCar – Financiamento 23112.001493/2018-71; e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) – Brasil – Financiamento 001.

From local production to international mental healthcare cooperation: building care and learning networks between Brazil and Italy

De la producción local a la cooperación internacional en salud mental: construcción de redes de cuidado y aprendizaje entre Brasil e Italia

Resumos

Desafios da cooperação internacional em saúde mental abarcam a superação de propostas colonizadoras por meio de práticas horizontais e localmente situadas. O conceito decolonial do terceiro espaço fomenta a construção de entendimentos híbridos, aprendizagens situadas e transformações recíprocas entre países. Buscamos relatar uma experiência de cooperação internacional entre Brasil e Itália, no âmbito da saúde mental, decorrente de uma pesquisa qualitativa, colaborativa e etnográfica, por meio de uma comunidade virtual de prática. Interações entre gestores, profissionais, usuários, familiares e membros da comunidade, brasileiros e italianos, foram analisadas no software NVIVO e explicitaram imaginários, contradições e potências do cuidado em saúde mental nas duas localidades. As transformações ocorridas nas trocas possibilitaram des/re/fazer identidades cristalizadas sobre o outro país, identificar singularidades e similaridades, assim como criar e reafirmar caminhos que valorizem os princípios da reforma psiquiátrica.

Cooperação internacional; Saúde mental; Comunidade de prática; Conhecimentos, atitudes e prática em saúde; Aprendizagem situada


The challenges faced in international mental healthcare cooperation include overcoming colonizing proposals through situated and horizontal practices. The Third Space Theory’s decolonial concept fosters the construction of hybrid notions, situated learning, and mutual transformations between countries. The objective was to report an international mental healthcare cooperation experience between Brazil and Italy through a qualitative, cooperative, and ethnographic research of a virtual community of practice. Interactions among Brazilian and Italian managers, professionals, users, family members, and community members were analyzed on NVivo, resulting in imageries, contradictions, and powers of mental healthcare in both countries. The transformations that occurred in the exchanges enabled to build, rebuild, and break rooted identities about the other country; identify singularities and similarities; and create and reaffirm paths that value the psychiatric reform’s principles.

International cooperation; Mental health; Community of practice; Knowledge, attitudes, and practice in health; Situated learning


Los desafíos de la cooperación internacional en salud mental abarcan la superación de propuestas colonizadoras por medio de prácticas horizontales y localmente situadas. El concepto decolonial del tercer espacio fomenta la construcción de entendimientos híbridos, aprendizajes situados y transformaciones recíprocas entre países. Buscamos relatar una experiencia de cooperación internacional entre Brasil e Italia en el ámbito de la salud mental, proveniente de un estudio cualitativo, colaborativo y etnográfico, por medio de una comunidad virtual de práctica. Se analizaron interacciones entre gestores, profesionales, usuarios, familiares y miembros de la comunidad, brasileños e italianos, en el software NVIVO y se explicitaron imaginarios, contradicciones y potencias del cuidado en salud mental en las dos localidades. Las transformaciones ocurridas en los intercambios posibilitaron des/re/hacer identidades cristalizadas sobre el otro país, identificar singularidades y semejanzas, así como crear y reafirmar caminos que valoricen los principios de la reforma psiquiátrica.

Cooperación internacional; Salud mental; Comunidad de práctica; Conocimientos, Actitudes y práctica en salud; Aprendizaje situado


Introdução

A reforma psiquiátrica italiana foi referência fundamental para a reforma psiquiátrica brasileira, movida por intercâmbios, em diferentes momentos históricos, de expoentes do movimento da desinstitucionalização ao Brasil, e de profissionais brasileiros para a Itália. Tal movimento contribuiu para o desenvolvimento de práticas, formulações teóricas e propostas legislativas no Brasil, com ressonâncias crescentes nos anos 1990 e 2000, inclusive como política de Estado, incorporando a atenção psicossocial comunitária como ação indutora do Ministério da Saúde11. Basaglia F. Conferenze brasiliane. Milano: Raffaello Cortina; 2000.

2. Saraceno B. Discorso globale, sofferenze locali: analisi critica del movimento di salute mentale globale. Milano: Il saggiatore; 2014.

3. Ortega F, Wenceslau LD. Dilemas e desafios para a implementação de políticas de saúde mental global no Brasil. Cad Saude Publica. 2015; 31(11):2255-7. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00145315.
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4. Yasui S, Luzio CA, Amarante P. From manicomial logic to territorial logic: Impasses and challenges of psychosocial care. J Health Psychol. 2016; 21(3):400-8. Doi: http://dx.doi.org/10.1177/1359105316628754.
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-55. Morato GG, Lussi IAO. Contribuições da perspectiva de reabilitação psicossocial para a terapia ocupacional no campo da saúde mental. Cad Bras Ter Ocup. 2018; 26(4):943-51. Doi: http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoARF1608.
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Desenvolver uma pesquisa entre Brasil e Itália atualmente favorece não apenas resgatar aspectos históricos, mas também alimentar um espaço internacional de trocas de experiências e saberes, em uma perspectiva de transformação e aprendizagem recíprocas, com ressonâncias para além das fronteiras binacionais. Internacionalmente, discussões sobre o cuidado em saúde mental vêm sendo pautadas pela Saúde Mental Global, campo de intervenção, pesquisa e ensino que propõe compreender o impacto dos transtornos mentais nas diferentes populações do globo, avaliar iniquidades no acesso e qualidade dos tratamentos22. Saraceno B. Discorso globale, sofferenze locali: analisi critica del movimento di salute mentale globale. Milano: Il saggiatore; 2014.,33. Ortega F, Wenceslau LD. Dilemas e desafios para a implementação de políticas de saúde mental global no Brasil. Cad Saude Publica. 2015; 31(11):2255-7. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00145315.
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,66. Wenceslau LD, Ortega F. Saúde mental na atenção primária e Saúde Mental Global: perspectivas internacionais e cenário brasileiro. Interface (Botucatu). 2015; 19(55):1121-32. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622014.1152.
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Entretanto, tal movimento recebe críticas por seu caráter colonizador, ao defender “pacotes” de procedimentos padronizados, elaborados por países de alta renda e propostos aos países de média e baixa renda. Fato que resulta majoritariamente na globalização do modelo biomédico, subtraindo a dimensão sociocultural do sofrimento, arriscando-se transformar em sintoma aquilo que extravasa das fronteiras normativas definidas pela hegemonia geopolítica financeirizada e fragilizando sistemas de saúde locais ao não incluir a participação social em processos decisórios22. Saraceno B. Discorso globale, sofferenze locali: analisi critica del movimento di salute mentale globale. Milano: Il saggiatore; 2014.,77. Biehl J. Antropologia no campo da saúde global. Horiz Antropol. 2011; 17(35):227-56. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832011000100009.
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,88. Mills C. Decolonizing global mental health: the psychiatrization of the majority world. New York: Routledge; 2014..

Para lidar com os desafios da cooperação internacional, Mills88. Mills C. Decolonizing global mental health: the psychiatrization of the majority world. New York: Routledge; 2014., sob a ótica decolonial, sugere a abertura do terceiro espaço, “um lugar de entendimentos híbridos, que possibilita que outras formas de respostas ao sofrimento sejam encontradas, formas que podem perturbar a psiquiatria”88. Mills C. Decolonizing global mental health: the psychiatrization of the majority world. New York: Routledge; 2014. (p. 138). O terceiro espaço defende que as diferenças entre as culturas não sejam niveladas, nem hierarquizadas, mas consideradas em suas singularidades, a fim de defender a diversidade de compreensões e práticas.

Essa compreensão é central para a produção de formação e cuidado em saúde mental, pois uma concepção de educação e aprendizagem situada, e relevante para a prática, parte de um conjunto de relações em constante transformação em determinado contexto social. Em tais relações, o que se apresenta como não canônico deflagra processos de reflexão e move a construção de novos conhecimentos, que implicam em ações subsequentes99. Wenger E. Communities of practice learning, meaning and identity. Cambridge: Cambridge University Press; 1998.. Mills88. Mills C. Decolonizing global mental health: the psychiatrization of the majority world. New York: Routledge; 2014. discute que é justamente a legitimação do vão no qual se explicitam contradições, impasses e paradoxos que se pode forjar – sem universalizações e consensos – novas metáforas, conceitos e relações calcadas na ética.

Assim, a premissa para realização de pesquisas de cooperação internacional no campo da saúde mental implica no planejamento compartilhado, horizontal e centrado na realidade local, além da incorporação de metodologias que fomentem a produção de diferentes tipos de evidência e que considerem a complexidade das experiências77. Biehl J. Antropologia no campo da saúde global. Horiz Antropol. 2011; 17(35):227-56. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832011000100009.
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,88. Mills C. Decolonizing global mental health: the psychiatrization of the majority world. New York: Routledge; 2014.,1010. Ferla AA, Guimarães CF. La salute globale in Brasile. In: Ferla AA, Stefanini A, Martino A. Salute globale in una prospettiva comparata tra Brasile e Italia. Porto Alegre, Bologna: Rede Unida, CSI/Unibo; 2016. p. 101-29.,1111. Franco TB, Ceccim RB. Prassi in salute globale: azioni condivise tra Brasile e Italia. Porto Alegre, Bologna: Rede Unida, CSI/Unibo; 2016..

Ao situar as reformas italiana e brasileira em sua potencial contribuição para a construção de políticas internacionais de saúde mental, que garantam movimentos de singularização e participação comunitária, desde 2011, um grupo de antropólogos italianos, da Università degli Studi di Perugia, em parceria com profissionais da saúde e pesquisadoras da Universidade Federal de São Carlos, vem realizando pesquisas sobre a temática da saúde mental comunitária. Busca-se apreender como se dão as experiências cotidianas de cuidado e como o intercâmbio cultural pode contribuir para identificar fragilidades e recursos de cada contexto.

Em 2017, deu-se início uma nova etapa dessa cooperação, com a implementação de uma comunidade virtual de prática entre gestores, trabalhadores, usuários e familiares do campo da saúde mental, brasileiros e italianos. Este artigo apresenta parte dos resultados desta pesquisa, destacando o processo vivenciado pelos atores e suas transformações quando, ao se deparar com a realidade apresentada pelo outro país, puderam identificar e refletir sobre as contradições em torno do cuidado.

Metodologia

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, colaborativa e de abordagem etnográfica, inserida em uma pesquisa maior iniciada em 2017, fruto de um projeto de cooperação internacional entre Brasil e Itália. A colaboração na pesquisa ancorou-se no referencial da Comunidade de Prática (CoP), que preconiza o engajamento mútuo de pessoas para o qual negociar sentidos, compartilhar e produzir repertórios – conhecimentos, modos de fazer, instrumentos, histórias – são eixos condutores, encorajando os participantes a refletirem, pesquisarem e analisarem coletivamente suas próprias ações, valores e conhecimentos99. Wenger E. Communities of practice learning, meaning and identity. Cambridge: Cambridge University Press; 1998.. Comunidades Virtuais de Práticas ampliam as possibilidades de participação, não limitando a interação a limites geográficos1212. Marcolino TQ, Fantinatti EN, Gozzi APNF. Comunidade de prática e cuidado em saúde mental: uma revisão sistemática. Trab Educ Saude. 2018; 16(2):643-58. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/1981-7746-sol00112.
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A etnografia favorece uma abordagem situada e relacional para a pesquisa, com atenção microscópica para práticas, discursos e objetos. Permite transitar por perspectivas diversas, contribuindo para deslocar o olhar e construir compreensões plurais sobre os fenômenos1313. Hammersley M, Atkinson P. Ethnography: principles in practices. London; New York: Routledge; 1995.. Em uma pesquisa que envolve dois países, tal abordagem oferece aportes para trabalhar com imaginários, idealizações e exoticidades, de modo a buscar polifonia, alteridade e problematização daquilo que parece óbvio e encontrando linhas de fuga para ampliar possíveis composições.

Desenho da pesquisa

O planejamento da pesquisa deu-se de forma compartilhada entre pesquisadores e trabalhadores brasileiros de serviços de saúde mental, para definir eixos teórico-metodológicos e o posicionamento ético-político da pesquisa. Primou-se por construir um espaço de escuta, reflexão e trocas, comprometido em identificar recursos pessoais e coletivos dos participantes e respeitar limites e formas de participação.

Visando fomentar as trocas entre os participantes do mesmo país (inside) e entre um país e o outro (between), a pesquisa foi organizada como um curso de atualização em saúde mental comunitária, com duração de quatro meses (setembro a dezembro de 2018). O curso foi organizado em três fases, com encontros presenciais, atividades de campo e atividades virtuais (quadro 1).

Quadro 1
Desenho da pesquisa

Os encontros presenciais possibilitaram a interação entre participantes do mesmo país, fomentando a negociação de sentidos em torno de temáticas decorrentes das trocas. As atividades de campo foram desenvolvidas nos contextos dos participantes, visando dar maior visibilidade às especificidades de cada realidade, por meio de múltiplas metodologias (filmagem, reflexões coletivas no ambiente de trabalho e produção de textos).

Foram compartilhados 15 materiais audiovisuais pelos participantes italianos, sendo oito vídeos, dois textos narrativos, dois registros fotográficos e três folhetos de divulgação de eventos locais sobre saúde mental comunitária nos quais os participantes estavam envolvidos. No Brasil, foram compartilhados dois documentos informativos de serviços e dez vídeos.

As atividades virtuais foram realizadas assincronamente nos diferentes ambientes virtuais para partilha de materiais e discussões. Buscou-se por uma estrutura flexível para sustentar as interações, assumindo-se o desafio de decidir processualmente sobre alterações nas ações formativas e investigativas1414. Rinaldi RP, Reali AMMR. Educação online e desenvolvimento profissional de formadores: reflexões e apontamentos. Rev Eletronica Educ. 2013; 7(2):173-94. Doi: http://dx.doi.org/10.14244/19827199755.
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. A escolha das ferramentas pautou-se em aplicativos simples e intuitivos que, preferencialmente, fossem de uso cotidiano de muitas pessoas.

Algumas atividades favoreceram trocas between, como (1) seguir o conteúdo do curso em ambiente virtual de aprendizagem; (2) postar, assistir e comentar produções narrativas e audiovisuais, em grupo fechado de mídia social, utilizando tradutor on-line para postagens em português e em italiano. Além disso, houve atividades virtuais inside, como (3) ler e comentar os relatórios dos encontros presenciais, escritos pela equipe de pesquisa, por meio de editor de texto on-line; e (4) utilizar aplicativo de mensagens para otimizar a comunicação entre participantes e equipe de pesquisa.

Participantes da pesquisa

Participaram da pesquisa gestores, trabalhadores da saúde mental, usuários, familiares e membros da comunidade de duas cidades de médio porte do interior do estado de São Paulo (Brasil), e de duas cidades da região da Úmbria (Itália), uma de médio e uma de pequeno porte.

No Brasil, os convites aos trabalhadores realizaram-se em reuniões de equipe e por meio de convites virtuais em aplicativo de comunicação. Usuários e familiares foram convidados em reunião de coletivo de saúde mental de um dos municípios brasileiros e, de modo indireto, por meio da divulgação do curso pelas equipes. Na Itália, o convite aos participantes foi realizado por contato telefônico e via e-mail com gestores, profissionais das instituições de saúde e saúde mental, e membros de associações e cooperativas de saúde mental comunitária.

Foram requisitos para participação: (a) interesse pelo tema do curso, (b) disponibilidade de participar das atividades do curso e (c) disposição para refletir sobre sua própria prática de cuidado.

Produção e análise dos dados

Os dados foram produzidos com os seguintes instrumentos: formulário de inscrição no curso; materiais narrativos e audiovisuais produzidos pelos participantes; relatórios dos encontros presenciais, produzidos pelas pesquisadoras e analisados pelos participantes – imprimindo uma primeira camada de análise colaborativa1515. Marcolino TQ, Reali AMMR. Crônicas do grupo: ferramenta para análise colaborativa e melhoria da reflexão na pesquisa-ação. Interface (Botucatu). 2015; 20(56):65-76. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622015.0257.
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; e diário de campo da pesquisadora (primeira autora).

Os dados foram organizados e analisados no software NVIVO, cujo uso é indicado para pesquisas que envolvem numerosos e variados tipos de dados, possibilitando criar um mapa no qual os materiais podem ser facilmente acessados e integrados1616. Guizzo BS, Krziminski CO, Oliveira DLLC. O software QSR Nvivo 2.0 na análise qualitativa de dados: ferramenta para a pesquisa em ciências humanas e da saúde. Rev Gauch Enferm. 2003; 24(1):53-60.. Tal software favoreceu agregar conteúdos em categorias e traçar pontos de convergência e divergência entre eles.

Aspectos éticos

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Universidade Federal de São Carlos, sob o número de parecer 2.538.858. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Resultados

Caracterização dos participantes

A pesquisa contou com 29 participantes no Brasil, sendo 23 do gênero feminino e seis do gênero masculino, divididos em dois grupos. Participaram: uma senhora que possuía familiares em sofrimento mental (que não eram necessariamente usuários dos serviços de saúde mental), 22 profissionais e seis gestores, sendo duas gestoras da coordenação de saúde mental dos municípios e quatro supervisoras de serviços. Entre profissionais e gestores tivemos 12 psicólogos, oito terapeutas ocupacionais, quatro assistentes sociais, uma agente comunitária de saúde (ACS), uma psiquiatra, uma enfermeira e uma técnica de enfermagem.

As instituições participantes foram: Centros de Atenção Psicossocial(e e Os territórios investigados não contam com serviços territoriais comunitários de hospitalidade integral para crise (Caps-III), o que se traduz como limite da pesquisa. ) (tipo II; álcool e drogas; e infantojuvenil), Ambulatório de Saúde Mental, Ambulatório Médico de Especialidades, Consultório na Rua, Unidade de Saúde da Família, setor de saúde do trabalhador de empresa privada, clínica de internação involuntária, empreendimento econômico solidário, projeto de apoio à educação e setores de assistência à saúde de duas universidades públicas.

Na Itália, formou-se um grupo com 31 participantes, sendo vinte do gênero feminino e 11 do gênero masculino. Participaram: um familiar, uma pessoa da comunidade; quatro estudantes de psicologia (sendo que três destas seis pessoas mencionadas eram voluntários de associações); quatro integrantes do Grupo Ouvidores de Vozes; e 21 profissionais, sendo cinco gestores (duas gestoras municipais de saúde mental e três supervisores de serviço). Entre as profissões representadas, tivemos cinco operadores sociais, duas educadoras, quatro enfermeiros, uma psicóloga, duas assistentes sociais, dois médicos generalistas e cinco psiquiatras.

Os participantes pertenciam às seguintes instituições: universidade, serviços de saúde mental adulto e serviço psicológico para jovens (os quais funcionam na estrutura do Centro di Salute Mentale); estruturas residenciais e propostas habitativas (Comunità Terapeutico Riabilitativa, gruppo famiglia, gruppo appartamento); serviços semirresidenciais (Centro di Accoglienza Diurno e Unità di Convivenza); serviço de pronto atendimento (guarda medica); serviço de saúde da atenção básica (Centro di Salute e Medico di Base); serviço para tratamento de dependência química (Servizi per le Tossicodipendenze); projetos de inserção social de pessoas com sofrimento mental (associações de usuários e familiares experts e cooperativas); e grupo Ouvidores de Vozes.

Imaginários dos brasileiros sobre a Itália

Em um primeiro momento, havia grande curiosidade dos participantes brasileiros sobre o cotidiano do cuidado na Itália, fomentada inclusive pelos relatos dos participantes que tinham vivenciado intercâmbio na Itália (decorrente de projeto anterior). Nos encontros presenciais brasileiros, com frequência surgiam comentários sobre como a Itália “é evoluída” em relação ao Brasil.

Eu tinha a imagem de algo ideal: quando tem crise, tem carro na porta e médico o tempo todo. O trabalho territorial mesmo, meio que tudo já pronto! (Participante brasileira)

A admiração dos brasileiros foi reforçada pela interação com os materiais audiovisuais e narrativos produzidos e compartilhados pelo grupo italiano, especialmente os vídeos, tanto pelo conteúdo expresso das práticas de cuidado quanto pela linguagem artística, com alto padrão de edição tecnológica.

— O que te faz pensar que eles estão mais avançados? — Porque pelo que eu já sabia e vendo os vídeos… até a produção dos vídeos foi diferente! [...] Eles abriram o hospital psiquiátrico e colocaram a cidade dentro! […] Me parece que eles entendem a saúde mental não como a gente. A gente foca muito na doença [...] (Diálogo entre duas participantes brasileiras)

A percepção inicial construída pelos brasileiros a partir das trocas foi a de que a Itália contava com uma rede abundante de recursos e uma política de saúde mental bastante consolidada, cujos princípios estavam interiorizados nos profissionais e na sociedade, o que resultava em práticas mais comunitárias, com maior protagonismo dos usuários e familiares e menor estigmatização do louco.

Já no Brasil, os participantes compreenderam que a reforma psiquiátrica decorreu após grande intervalo do período de mobilização social que conquistou o Sistema Único de Saúde (SUS), com dificuldades para construir práticas de empoderamento de usuários e familiares e manutenção da noção de periculosidade do louco, mesmo entre os profissionais da saúde.

A comunidade respeita mais o usuário na Itália. [...] eles lidam com o outro com mais igualdade, se você vê uma pessoa surtando na rua o tratamento é diferente, aqui já vai no porrete, aqui já vai direto pro Caps, pro hospital psiquiátrico, chama a polícia. (Participante brasileira)

A quantidade de recursos humanos é muito maior! [...] dois pacientes internados para uns sete, oito médicos! […] enquanto um está acompanhando a pessoa no território, o outro está atendendo no serviço. (Participante brasileiro)

Outros fatores que geraram entusiasmo foram as propostas de cuidado utilizarem a arte em seu potencial socializante, e o fato das mesmas estarem infiltradas no território, de modo que as pessoas pudessem participar de vários espaços de convívio não situadas no âmbito da saúde. Em comparação, discutiu-se que, no Brasil, o foco da atenção está em fomentar o acesso das pessoas aos serviços em vez de fortalecer vínculos comunitários, e cuidar da doença mais do que da saúde mental.

Por que a gente fica querendo trazer a arte para dentro do serviço em vez de ir aonde a arte acontece? (Participante brasileira)

O associativismo italiano – iniciativa de cidadãos organizarem-se voluntariamente em associações sem fins lucrativos – e o operador social – profissional sem formação técnica que realiza trabalho de articulação entre território e serviços especializados – foram compreendidos como particularidades italianas importantes para fomentar práticas desinstitucionalizadas e próximas às necessidades dos usuários.

Eu lembro que quando eu fiquei uma temporada trabalhando na Itália com eles na comunidade, era muito estranho, eu olhava para aquilo [trabalho do operador social] e achava muito maluco você não ter o respaldo de uma equipe técnica, eram todos profissionais que não tinham formação! Para desconstruir isso foi muito difícil, porque nós construímos essa questão da doença, que você tem que resolver aquele problema naquela hora, porque você também é cobrado, é toda uma lógica. (Participante brasileira)

Olhar para os produtos que caracterizaram a realidade italiana gerou um movimento nos participantes brasileiros de identificarem as contradições e fragilidades que permeiam suas práticas de cuidado: o fato de o trabalho estar centrado no espaço físico das instituições de saúde e nos cuidados ofertados pelos especialistas; experiências restritas no âmbito do habitar; intervenções que tutelam os pacientes; existência de rede pouco articulada (quando comparada ao imaginário da experiência italiana) implicando no aumento de medicação dos usuários como forma de lidar com a ausência de suporte social; e presença de protocolos e processos burocratizantes que desestimulam a participação de usuários e familiares e geram sobrecarga, solidão e adoecimento entre os profissionais.

Quando tem isso [suporte social da comunidade ou de residências terapêuticas] a gente consegue medicar menos. Se eu tenho um paciente que está na casa de uma família disfuncional ou está sozinho, e eu não tenho como fazer esse suporte, eu preciso medicar mais para não colocá-lo em risco. [...] mas quando tem esse suporte a gente trabalha com muito mais mobilidade [...] você fortalece o lado não medicamentoso. (Participante brasileira)

— [...] nós não abrimos mão do usuário, de dar autonomia do cuidado. A gente faz questão de manter as pessoas dentro dos espaços, se o paciente não está comparecendo, ele precisa voltar para cá. — E tem uma coisa que é a questão de poder do profissional também, esse lugar especial de quem consegue ouvir, dar respostas... é sedutor esse poder… (Diálogo entre duas participantes brasileiras)

Nas experiências que eu tive, por mais que tivesse o dispositivo de reunião de equipe, as pessoas trabalham de uma forma solitária dentro da sua prática, dentro das suas angústias [...] eu fico pensando que a gente tem que se aproximar e construir isso de um jeito coletivo para um compreender o outro, senão fica esse embate [...] e eu vejo o quanto a gente que trabalha na saúde está adoecendo, porque a gente não consegue construir um diálogo que flui. (Participante brasileira)

Um dos aspectos mais expressivos que emergiram das trocas, na opinião de ambos os grupos, brasileiros e italiano, foi o quanto a representação do cuidado em saúde mental nas localidades brasileiras ficou centrada na estrutura física dos serviços, pouco capturando a participação de usuários e a dinâmica das atividades que se desenvolvem nesses espaços. Já nas localidades italianas, o cuidado foi apresentado no território e nos espaços comunitários, contemplando o percurso e a interação das pessoas nos espaços urbanos e habitativos, em eventos externos e nas oficinas terapêuticas.

Um depoimento, dito em tom de confissão por uma participante, ao revelar os pensamentos e sentimentos implícitos referente ao processo de comparação, contribuiu para problematizarmos a idealização construída sobre a Itália. E, principalmente, ajudou-nos a refletir que o processo de aprendizagem não é imune a desconfortos, pois é no contato com o outro que construímos novas referências sobre como nos enxergamos.

Deixa eu contar uma coisa narcisista. Eu me senti tão mal quando vi aqueles vídeos da Itália... Eu me senti tão idiota! [...] Os recursos, como eles fazem?! Que bonito! Como eles comunicam! Será que a gente comunicou assim também? (Participante brasileira)

Portanto, a troca dos materiais produzidos pelas duas localidades serviu de substrato importante para as discussões. Destacamos três questões centrais emersas das problematizações levantadas para si pelos participantes brasileiros acerca do cuidado em saúde mental: Qual tem sido a real articulação dos serviços com a comunidade? Qual o espaço para o protagonismo dos usuários e familiares? Afinal, estamos cuidando da saúde mental ou da doença mental?

Imaginários dos italianos sobre o Brasil

Por sua vez, o grupo italiano também criou seu imaginário sobre a realidade brasileira. Surgiram indagações sobre a coexistência do hospital psiquiátrico com a rede de atenção psicossocial; as relações da saúde mental com a diversidade religiosa e modos espirituais de lidar com transtornos psíquicos; o funcionamento dos grupos nos serviços e seus embasamentos teóricos; e a resistência da política de Atenção Básica em Saúde (ABS) frente às investidas do atual governo.

Eles ficaram bastante impressionados, a partir do material produzido pela ACS, com a mobilidade dela pelo território, mas também questionaram se havia ambiguidade no seu papel, no sentido de que, em vez de atuar como ponte entre comunidade e equipe, ela poderia agir como “delatora” do que acontece no bairro.

A figura do agente comunitário de saúde é muito estimulante: não é o serviço territorial que espera os usuários ao interno dos seus espaços, mas o contrário, ele se locomove, se transfere, está atento a monitorar aquilo que acontece ao interno da própria comunidade na qual pertence. (Participante italiano)

Um outro ponto de admiração foi o caráter coletivo da saúde pública brasileira, tanto pela ABS e ações voltadas para a família, comunidade e escola; quanto pelo uso de grupos como ferramenta de cuidado.

A presença de poucos psiquiatras na rede, com carga horária de trabalho significativamente inferior aos outros profissionais, foi compreendida pelos italianos como uma potência brasileira. Segundo eles, isso significava que o psiquiatra possuía um papel marginal nos serviços, sugerindo práticas menos médico-centradas. Outro fator que alimentou essa percepção foi o fato de que, na Itália, os cargos de gestão são ocupados necessariamente por médicos.

Por exemplo, no Caps, em uma equipe com 16 profissionais, tem só um psiquiatra que cumpre somente vinte horas semanais. O psiquiatra com certeza tem um papel central no hospital psiquiátrico, mas parece que as figuras de referência no que podemos chamar de psiquiatria comunitária brasileira são outras: o cuidado diz respeito a uma articulação de profissionais da saúde e da assistência social que possuem papéis e intervenções diversas. Na Itália, o sistema é ainda médico-centrado, ou melhor, psiquiátrico-centrado. (Participante italiano)

Por fim, foi apontado que a estrutura da rede de saúde mental brasileira parecia ser mais coesa e articulada, envolvendo adultos, crianças e adolescentes, e a integração das questões do sofrimento psíquico e da dependência química.

As problemáticas são trabalhadas juntas. No nosso contexto, ao contrário, existe uma grande dificuldade de juntar os vários pedaços. […] Os serviços parecem não ter a mesma facilidade de contato e comunicação, que em muitos casos seria essencial. (Participante italiano)

A partir dessas reflexões, os participantes italianos colocaram para si duas questões essenciais: Como ressignificar a atenção básica na Itália de modo a construir percursos menos individuais e voltados para a promoção e prevenção da saúde? Como responder à necessidade de construir/fortalecer o trabalho interdisciplinar e as redes entre os serviços?

O aprofundamento das trocas em relação à prática

Com o aprofundamento das trocas, foi possível iniciarmos um processo de desconstrução de imaginários e construção de saberes, reflexões críticas e práticas. Sobre a admiração dos brasileiros pelos vídeos, os participantes italianos esclareceram que a maioria dos materiais foi produzida pelos operadores sociais, cujo campo de atuação é o território, mas que não totaliza as práticas de cuidado. Ficaram ocultas aquelas que se dão intramuros, como exemplifica a fala de uma gestora italiana:

Ninguém de nós achou interessante representar uma consulta psiquiátrica ou um atendimento de psicoterapia. Teve esse interesse de representar experiências e vivências [do território], que não são marginais, mas que ficam no limite… enquanto permaneceu encoberto para os brasileiros o aspecto mais comum da saúde mental, que é também o mais problemático neste momento atual. (Participante italiana)

No que tange à política de saúde mental italiana, o grupo italiano referiu que está diante de um novo cenário no qual rachaduras no estado de bem-estar social estão cada vez mais visíveis, redimensionando recursos econômicos e profissionais. A privatização das Unidades Sanitárias Locais em 1990, que passaram a Empresas Sanitárias Locais, faz parte desse processo. Os participantes italianos concluem que a saúde mental já não possui a mesma relevância e reconhecimento de quarenta anos atrás.

Em relação ao protagonismo dos usuários, uma gestora esclarece que, apesar de este ser um dos pilares da política, nem sempre é operacionalizado. Um participante do grupo de Ouvidores de Vozes complementa dizendo que, apesar da sua experiência no curso ter sido interessante, foi também difícil. Explica que o medo de ser julgado pela sua condição requer que se estabeleçam relações de confiança entre o grupo para que expressão seja possível e confortável. Por fim, declara que sentiu que os usuários tiveram um papel secundário, revelando os desafios presentes no processo de incluir familiares e usuários na mesa em que se debate e constrói o cuidado.

O grupo concorda que o processo de construção e implantação da lei 180 [Lei Basaglia] não está concluído, já que muitas questões ainda precisam ser resolvidas. Em primeiro lugar, a atual situação sociopolítica e cultural é muito diferente daquela em que a lei da reforma sanitária foi aprovada (havia uma grande ebulição social e política que favoreceu a mudança) e isso dificulta dar continuidade aos conceitos e princípios da lei em questão. [...] Além disso, persistem o preconceito e o estigma em relação aos usuários de saúde mental na sociedade e entre os próprios profissionais de saúde. “Somos todos iguais ou ainda há loucos?” Ocorre que, nos serviços públicos, é negado aos usuários de saúde mental o acesso à assistência à saúde de forma geral, pois a dificuldade em se relacionar aumenta o risco das suas necessidades de saúde, decorrentes de possíveis disfunções orgânicas, não serem reconhecidas e, consequentemente, não receberem tratamento médico [um problema também mencionado pela OMS como um dos mais persistentes e urgentes no campo da saúde mental]. Os usuários também estão frequentemente ausentes dos lugares onde a saúde mental é discutida e dos processos de tomada de decisão. (Resposta coletiva dos participantes italianos às perguntas brasileiras)

Quando compartilhamos com o grupo brasileiro a admiração dos italianos pelas fotos apresentadas pela ACS, que retratam o trabalho de ressocialização de um usuário de um bairro periférico da cidade, realizado em parceria com residentes e estagiários de uma universidade pública, a ACS responde descontraidamente que isso aconteceu porque o usuário não ia até a unidade; se ele fosse, seria atendido no serviço!

A percepção italiana de que nosso trabalho é mais multidisciplinar por possuir menos médicos foi confrontada pelos participantes brasileiros que ressaltaram a diferença entre não ter médico por opção, porque faz parte do projeto terapêutico, ou porque há poucos médicos na rede. Essa escassez teve como efeito a ampliação das práticas interdisciplinares e a ocupação dos espaços de gestão por profissionais não médicos, mas não se trata de uma escolha.

— A gente fica clamando por médico. Nós não temos, mas queremos. — Nenhum médico quer se formar para trabalhar no SUS. (Participantes brasileiros)

Ao fim do curso, alguns profissionais fizeram uma autoavaliação de que, diante das poucas oportunidades de formação, os espaços como a CoP acabam servindo, em um primeiro momento, como oportunidade de “chorar carência” e lamentar as fragilidades, justificando a frequência de falas marcadas pela ideia de que “a grama do vizinho é mais verde”.

No entanto, várias outras falas também explicitaram as desconstruções e construções, sobre si e sobre o outro, durante as trocas e que conduziram à identificação das próprias fragilidades, assim como das singularidades de cada contexto e das similaridades entre eles.

A gente [...] teve um outro desenho, a partir das nossas próprias condições de precariedade. Não sei se é melhor ou pior, é um outro desenho. (Participante brasileira)

No filme Cinema Paradiso [filme italiano] que mostra o louco da praça, parece que ele é tão integrado, parece que a Itália ama o louco! “Deixa ele ser o dono da praça!” Eu acho tão legal, mas não é bem assim, né… (Participante brasileira, referente ao fato de terem transferido um serviço de acolhimento a usuários de drogas do centro para a periferia da cidade italiana, por razão de “incômodo público”)

Levo comigo deste curso o quanto a Itália tem dificuldades parecidas com as nossas, apesar de eu achar que eles estavam há anos-luz de nós. (Participante brasileira)

[...] acredito que o confronto com realidades diversas seja sempre enriquecedor, seja para alimentar o pensamento e “roubar” ideias, seja para conseguir olhar com olhos diferentes a própria realidade e se dar conta dos seus grandes recursos. (Participante italiana)

Discussão

Na medida em que as interações foram se aprofundando, foi possível trabalhar a questão dos imaginários (construindo-os e desconstruindo-os), buscando desromantizar a realidade oposta, de modo que fosse possível reconhecer, em si e no outro, os desafios e as potências – comuns e particulares – de cada localidade. Como sinalizado, a pesquisa não vislumbrava generalizar afirmações sobre os países ou buscar equivalências diretas, mas construir deslocamentos de perspectivas que auxiliassem capturar a complexidade dos contextos em questão. Foram-se construindo compreensões sobre as trocas que não chegaram, e nem se pretendia que chegassem, a um consenso.

Tais compreensões amadureceram-se no percurso, desfolhando camadas mais superficiais e criando identificações/diferenças entre os grupos. O trabalho sobre os imaginários também foi feito sobre nós, pesquisadoras, cujos imaginários também compuseram o campo de estudo, e cujo processo de compreensão e dissolução se deu na companhia dos participantes da pesquisa e sob afetação destes.

Portanto, avaliamos que a troca intercultural e afetiva possibilitou trazer para o alcance dos olhos e das sensibilidades questões que só emergem a partir do encontro com o outro. Quando temos a oportunidade de expor nossa realidade e fazer novas leituras sobre ela, permite-se agregar percepções externas e transformar-se, assim como reconhecer nossos recursos. Esse processo possibilitou questionar uma assimilação colonial da cultura do outro, assim como uma defesa ou desmerecimento acrítico da própria realidade, de modo a acordar um sentido para a experiência de cooperação que não fosse imune à contradição.

Retomando o conceito de Mills88. Mills C. Decolonizing global mental health: the psychiatrization of the majority world. New York: Routledge; 2014. sobre o terceiro espaço, a experiência de cooperação se forjou como um espaço também de desconforto, mal-entendido, constrangimento, vergonha, mas, sobretudo, de aprendizado e produção de desvios na compreensão das práticas cotidianas. Os conteúdos das trocas são cotidianamente produzidos e ocupam territórios da vida diária, em sua trajetória histórica, mas não estão aprisionados em seus grilhões. Trata-se de criar conscientemente um espaço para que esses conteúdos sejam vistos, expressados e reinventados para além dos muros institucionais ou das fronteiras geográficas.

Nesta pesquisa, abriu-se uma dobra entre brasileiros e italianos e o terceiro espaço ficou visível quando a palavra não pôde ser traduzida imediatamente, precisando de aproximação, deslocamento, tempo e negociação sobre seu sentido. O que definiu a cooperação internacional não como a soma de dois países, mas como “mescolância” (mistura + mescolanza), na qual criaram-se sentidos e novas palavras.

O conceito de Mills encontra ressonância no discurso de Basaglia, que defende a criação de um estado de tensão no qual é possível enfraquecer papéis e identidades; aceitar a contestação e a propositividade da crise; suspender o julgamento; e construir a dialética para poder criar algo para além do que se conhece11. Basaglia F. Conferenze brasiliane. Milano: Raffaello Cortina; 2000.. Portanto, para além das determinações supostamente dadas pelas distintas posições continentais que ocupamos geográfica-historicamente como colonizados ou colônias.

Ou, como defende Pelbart1717. Pelbart PP. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. 2a ed. São Paulo: N-1 edições; 2016., no exercício de combater os clichês e as impressões caricatas e identitárias sobre o outro:

Trata-se de se instalar nos entremodos, nos entremundos, [...] reviravoltas de perspectiva, até mesmo nas “negociações” entre modos e mundos. […] é no entrecruzamento com tais modos de existência diversos, nos entremundos, que algo pode ser gestado ou cuidado1717. Pelbart PP. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. 2a ed. São Paulo: N-1 edições; 2016.. (p. 401)

Assim, o terceiro espaço pode/precisa ser aberto nas experiências de cooperação internacional, mas também nas diversas instâncias de interação nas quais imaginários e identidades pré-fixadas fazem-se presentes, como nas relações usuário-profissional, profissional-profissional, participante-pesquisador.

Em termos de produção de subjetividade e, mais radicalmente, de saúde mental – no âmbito das políticas públicas ou da clínica – compor zonas de identificação e diferenças significa criar um espaço comum no qual a premissa a ser globalmente compartilhada é a da afirmação das singularidades (de núcleos profissionais, culturas e políticas nacionais/internacionais). Criar esse espaço “entre” é tão complexo entre duas pessoas de uma equipe em posições diferentes quanto entre dois países, especialmente quando essa criação se dá como composição, não como imposição ou colonização globalizante.

Nesse sentido, retomamos Basaglia11. Basaglia F. Conferenze brasiliane. Milano: Raffaello Cortina; 2000., durante as Conferências Brasileiras em 1979:

Eu digo que o modelo italiano, se é que existe um modelo italiano, ele não é exportável. A alternativa deve nascer da população, dos técnicos [...]. Só assim eu penso que será criada uma verdadeira alternativa à situação [...] Nós não queremos modelos de psiquiatria italiana ou americana, não desejamos uma situação de imperialismo. Ao contrário, pensamos que o problema psiquiátrico possa ser resolvido “brasilianamente”. E brasilianamente quer dizer internacionalmente11. Basaglia F. Conferenze brasiliane. Milano: Raffaello Cortina; 2000..

Considerações finais

Esta pesquisa buscou fomentar processos colaborativos de produção de conhecimento, trocas de experiências e transformações de práticas situadas, em uma cooperação entre Brasil e Itália, por meio de uma comunidade virtual de práticas. Mediados por um processo de formação, foram abordadas, inicialmente, construções imaginárias sobre os diferentes países, atravessadas pelo pensamento colonial nas relações geopolíticas, bem como pelo pensamento de valorização do outro em detrimento de si.

No movimento posterior, as trocas aprofundaram-se mobilizando participantes italianos a refletirem sobre a realidade brasileira, com atenção para a ABS brasileira, multiprofissional e coletiva – dado que, nas localidades italianas, a atenção básica é exercida por médicos, tem caráter curativista e é individualizada. Os participantes brasileiros mobilizaram-se pela capilaridade comunitária da saúde mental especializada italiana, pela força da arte e sua presença nos espaços da cidade. Nos dois contextos, evidenciou-se um deslumbramento pelo trabalho realizado no território e por seus protagonistas: o ACS, no Brasil, e o operador social, na Itália, ambos os profissionais sem formação técnica especializada.

Esse processo nos dá pistas sobre a importância da Atenção Primária e da intersetorialidade na produção de políticas de saúde mental em diferentes contextos socioculturais e sobre a necessidade de evidenciar globalmente estratégias locais de cuidado que partem de outros agenciamentos coletivos para além da clínica.

Mudanças no modo de produção do cuidado, local ou globalmente, requerem a produção de novas subjetividades, imaginários e composições, nunca definitivas. Ao mesmo tempo que se retira a estabilidade das relações (profissional-usuário, profissional-profissional, países de baixa/média renda-países de alta renda), agrega-se complexidade a elas. A emergência de se construir e fortalecer redes de colaboração parece ser um caminho estratégico e incontornável se quisermos produzir políticas de saúde mental que façam sentido e produzam eficácia situada.

Portanto, é tempo de manifestar uma necessidade de produção de relações de cuidado que desmanchem conformações institucionais ou globalizantes, que tendem a aprisionar pessoas em identidades rígidas do ponto de vista individual (paciente ou profissional) e reduzir nações a posições artificiais de produtores ou receptores de conhecimentos e práticas. A possibilidade de exercer uma prática inventiva e colaborativa que comporte a composição de nossas potencialidades, habilidades e desejos, bem como nossos limites e fragilidades, faz-se urgente, seja no plano das relações de cuidado, seja no plano dos múltiplos arranjos possíveis na produção sempre inacabada de uma saúde mental global.

Agradecimentos

Às gestoras de saúde mental, brasileiras e italianas, que apoiaram a divulgação da pesquisa em seus municípios, e à pesquisadora italiana, Dalila Ingrande, que contribuiu nas questões operacionais de cooperação com a Itália (tradução e articulação com os participantes), assim como nas reflexões decorrentes destas.

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  • *
    Este texto é resultado parcial da dissertação de mestrado da primeira autora sob orientação da última autora, no Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional da Universidade Federal de São Carlos (PPGTO/UFSCar), intitulada “A saúde mental brasileira sob o olhar decolonial: contribuições para o debate da saúde mental global a partir de uma experiência de cooperação internacional com a Itália”, sob financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) Edital Universal 01/2016 – Financiamento 404752/2016-0; da Pró-Reitoria de Extensão da UFSCar – Financiamento 23112.001493/2018-71; e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) – Brasil – Financiamento 001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Out 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2020
  • Aceito
    11 Ago 2020
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