Resumos
Objetivou-se investigar as relações de gênero e poder no contexto das vulnerabilidades de mulheres às infecções sexualmente transmissíveis. Trata-se de um estudo de natureza qualitativa, desenvolvido com oito mulheres em fase reprodutiva e com histórico de contaminação por infecção sexualmente transmissível. Os dados produzidos por entrevistas estruturadas foram submetidos à análise temática proposta por Bardin. As mulheres são retraídas em posição de submissão, refletindo a forte influência de gênero nas relações afetivas conjugais, situação que dificulta o diálogo e a negociação de uma relação sexual segura, além de contribuir para que a mulher não se reconheça como um sujeito de direitos sexuais e reprodutivos. Portanto, elas devem ser sensibilizadas por meio de intervenções que estimulem o empoderamento para a negociação do sexo seguro, o protagonismo e o reconhecimento de si como um sujeito de direitos sexuais e reprodutivos.
Palavras-chave
Vulnerabilidade em saúde; Infecções sexualmente transmissíveis; Gênero e saúde; Relações interpessoais; Saúde da mulher
This study investigated gender and power relations in the context of the vulnerability of women to sexually transmitted diseases. We conducted a qualitative study with eight women of reproductive age with a history of sexually transmitted disease. The data were collected using structured interviews, which were analyzed using a method of thematic analysis proposed by Bardin. The women are drawn into a position of submission, reflecting the strong influence of gender on affective marital relationships, hampering dialogue and the negotiation of safe sex and contributing to lack of self-recognition as subjects of sexual and reproductive rights. It is therefore important to raise awareness among women using interventions that promote empowerment for the negotiation of safe sex, protagonism, and self-recognition as a subject sexual and reproductive rights.
Keywords
Health vulnerability; Sexually transmitted diseases; Gender and health; Interpersonal relations; Women’s health
El objetivo fue investigar las relaciones de género y de poder en el contexto de las vulnerabilidades de las mujeres antes las infecciones de transmisión sexual. Estudio de naturaleza cualitativa, desarrollado con mujeres en fase de reproducción e historial de contaminación por infección de transmisión sexual. Los datos producidos a partir de entrevistas estructuradas se sometieron al análisis temático propuesto por Bardin. Las mujeres son retraídas para la posición de sumisión, reflejando la fuerte influencia de género en las relaciones afectivas conyugales, situación que dificulta el diálogo, la negociación de una relación sexual segura, además de contribuir para que la mujer no se reconozca como un sujeto de derechos sexuales y reproductivos. Por lo tanto, las mujeres deben ser sensibilizadas por medio de intervenciones que incentiven el empoderamiento para la negociación del sexo seguro, el protagonismo y el reconocimiento de sí como un sujeto de derechos sexuales y reproductivos.
Palabras clave
Vulnerabilidad en salud; Infecciones de transmisión sexual; Género y salud; Relaciones interpersonales; Salud de la mujer
Introdução
As infecções sexualmente transmissíveis (IST) constituem um grave problema de saúde pública mundial, com importantes consequências na qualidade de vida das pessoas e nas relações pessoais, familiares e sociais. Embora existam evidências de progressos no âmbito da prevenção e cura, com tratamentos eficazes e de baixo custo, as IST permanecem como um dos maiores desafios que se apresentam para os órgãos governamentais e o campo das investigações científicas e tecnológicas, em virtude da magnitude de suas incidências e prevalências, bem como da dificuldade de acesso, adesão e manutenção do tratamento adequado11 Pinto VM, Basso CR, Barros CRDS, Gutierrez EB. Fatores associados às infecções sexualmente transmissíveis: inquérito populacional no município de São Paulo, Brasil. Cienc Saude Colet. 2018; 23(7):2423-32. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018237.20602016.
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2 World Health Organization. Progress report on HIV, viral hepatitis and sexually transmitted infections [Internet]. Genebra: WHO; 2019 [citado 16 Ago 2020]. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/324797/WHO-CDSHIV-19.7-eng.pdf
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-33 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para atenção integral às pessoas com infecções sexualmente transmissíveis. Brasília: Ministério da Saúde; 2020..
Estima-se que mais de um milhão de pessoas adquirem uma IST diariamente, e que, a cada ano, quinhentos milhões se infectam por uma das IST curáveis; dados preocupantes, haja vista que essas infecções são capazes de tornar o organismo humano mais vulnerável a outras doenças, com risco aumentado em até 18 vezes de contaminação pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), além de apresentar complicações mais graves em mulheres, tais como infertilidade, abortamento espontâneo, prematuridade, malformações congênitas e até a morte fetal, caso não sejam tratadas11 Pinto VM, Basso CR, Barros CRDS, Gutierrez EB. Fatores associados às infecções sexualmente transmissíveis: inquérito populacional no município de São Paulo, Brasil. Cienc Saude Colet. 2018; 23(7):2423-32. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018237.20602016.
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,22 World Health Organization. Progress report on HIV, viral hepatitis and sexually transmitted infections [Internet]. Genebra: WHO; 2019 [citado 16 Ago 2020]. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/324797/WHO-CDSHIV-19.7-eng.pdf
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As mulheres são notadamente mais vulneráveis às IST devido às questões biológicas, como a extensa exposição da mucosa vaginal ao sêmen, somada às questões sociais e de gênero que lhes impõem condições de submissão e inferioridade em relação aos homens, privando-as, inclusive, do poder de decisão acerca da atividade sexual com proteção44 Chivers ML. The specificity of women’s sexual response and its relationship with sexual orientations: a review and ten hypotheses. Arch Sex Behav. 2017; 46(5):1161-79. doi: https://doi.org/10.1007/s10508-016-0897-x.
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,55 World Health Organization. Report on global sexually transmitted infection surveillance [Internet]. Genebra: WHO; 2018 [citado 16 Ago 2020]. Disponível em: https://www.who.int/reproductivehealth/publications/stis-surveillance-2018/en/
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. Apesar dos esforços empreendidos no controle das IST, as mulheres, perante as questões de gênero, ainda esbarram na luta de prevenção e tratamento dessas infecções, o que favorece a maior vulnerabilidade delas para aquisição de IST66 Leocádio AF, Assis DA, Guimarães TMM. Sexually transmitted infections: vulnerability of women deprived of freedom. Res Soc Dev. 2020; 9(10):e7609109021..
O direito sexual e reprodutivo feminino atualmente é reconhecido e compreendido como parte integrante do movimento dialético que baliza a democracia; no entanto, as mulheres ainda enfrentam lutas para apagar o histórico cultural de subordinação ao qual estão inseridas, em especial no uso do próprio corpo, uma vez que todas as regras e os tabus, que controlaram e reprimiram suas vivências corporais na sexualidade e na reprodução, foram historicamente determinados pelos homens77 Patton GC, Sawyer SM, Santelli JS, Ross DA, Afifi R, Allen NB, et al. Our future: a Lancet commission on adolescent health and wellbeing. Lancet. 2016; 387(10036):2423-78. doi: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(16)00579-1.
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. É nesse cenário que as relações desiguais de gênero e poder tornam as mulheres ainda mais vulneráveis.
As relações de desigualdade entre os sexos, permeadas pelas construções culturais estereotipadas de dominação, inferioridade e descaso com as mulheres, favorecem e naturalizam as desigualdades de poder nas relações, que vão desde o sexo praticado sem proteção à violência de gênero exercida pelos parceiros, negando à mulher o direito do livre exercício da sua sexualidade88 Torrone EA, Morrison CS, Chen P-L, Kwok C, Francis SC, Hayes RJ, et al. Prevalence of sexually transmitted infections and bacterial vaginosis among women in sub-Saharan Africa: an individual participant data meta-analysis of 18 HIV prevention studies. PLoS Med. 2018; 15(2):e1002511. doi: https://doi.org/10.1371/journal.pmed.1002511.
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,99 Souza SO, Paula AC, Silva CA, Carvalho PMRS, Souza MM, Matos MM. Iniquidades de gênero e vulnerabilidade às IST/HIV/AIDS em adolescentes de assentamento urbano: um estudo exploratório. Cienc Enferm [Internet]. 2020 [citado 10 Out 2020]; 26(12):1-10. Disponível em: https://scielo.conicyt.cl/pdf/cienf/v26/0717-9553-cienf-26-12.pdf
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. Quando o sujeito vivencia uma relação abusiva e dificuldades sociais relacionadas às questões de gênero, estamos diante de uma variação harmônica da potencialização da vulnerabilidade em saúde1010 Florêncio RS. Vulnerabilidade em saúde: uma clarificação conceitual [tese]. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará; 2018..
A vulnerabilidade objetiva proporcionar situações para a avaliação concreta das mais variadas possibilidades de infecção que qualquer pessoa apresenta, por meio do conjunto formado por particularidades individuais, sociais e programáticas, consideradas imprescindíveis para a proteção da maior ou menor exposição diante do problema, e não diferenciar as pessoas que possuem alguma chance de exposição1111 Ayres JRCM. Vulnerabilidade, direitos humanos e cuidado: aportes conceituais. In: Barros S, Campos PFS, Fernandes JJS, organizadores. Atenção à saúde de populações vulneráveis. Barueri: Manole; 2014..
À vista disso, realça-se que as práticas de saúde devem identificar primeiramente comportamentos de vulnerabilidade, para então atuar em lacunas vinculadas à inadequação de hábitos de vida saudáveis por meio de ações que possibilitem a apropriação de conhecimento, o fortalecimento de atitudes positivas e a adoção de uma assistência humanizada, resolutiva, que impactem positivamente nos aspectos biopsicossociais da população em geral e sobre os segmentos mais vulneráveis1212 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) - Atenção integral às pessoas com Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST). Brasília: Ministério da Saúde; 2015.
13 Brasil. Ministério da Saúde. Brasil reafirma compromisso pelo fim de epidemias até 2030. Brasília: Ministério da Saúde; 2015.-1414 Oliveira TMF, Andrade SSC, Matos SDO, Oliveira SHS. Risk behavior and self-perceived vulnerability to STIs and AIDS among women. Rev Enferm UFPE. 2016; 10(1):137-42..
O conhecimento das situações de vulnerabilidade ancorados nas questões de gênero, e do que essas situações podem ocasionar na vida das mulheres nos âmbitos sexual e reprodutivo, poderá permitir o desvelar da visão êmica feminina sobre a doença e o adoecer de IST, como também o protagonismo da mulher em sua saúde e, desse modo, os efeitos de uma relação abusiva e dominadora sejam minimizados, como a exemplo da contaminação por IST.
Acredita-se que as evidências científicas identificadas neste estudo nortearão gestores e equipe de saúde no planejamento do cuidado integral à saúde da mulher, tornando as ações de saúde mais direcionadas e possivelmente mais eficazes, qualificadas e transformadoras, contribuindo para a atenuação do número de casos de mulheres com IST.
Nessa perspectiva, questiona-se: de que maneira as relações de gênero e poder podem induzir a vulnerabilidade de mulheres às IST? Assim sendo, a pesquisa teve como objetivo investigar as relações de gênero e poder no contexto das vulnerabilidades de mulheres às IST.
Método
Trata-se de estudo de natureza qualitativa, desenvolvido entre os meses de agosto de 2018 e outubro de 2019, em uma Unidade Básica de Saúde (UBS), de um município do Ceará - BR, por estar localizada em um território que apresenta maior índice de casos de IST, conforme a análise da base de dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan/NET)1515 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2018 [citado 15 Set 2019]. Disponível em: http://www.saude.gov.br/sinan_net
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Participaram do estudo oito mulheres na faixa etária de 21 a 44 anos, selecionadas de forma intencional, de acordo com os seguintes critérios de inclusão: mulheres em fase reprodutiva, união estável e com histórico de contaminação por IST, abordadas de forma aleatória, independentemente do nível de escolaridade, raça e religião e capacidade autodeclarada que demonstrasse condições para responder e compreender as perguntas do roteiro de entrevista. Já os critérios de exclusão foram: mulheres adolescentes, solteiras e inexistência de registros que comprovassem a aquisição dessas infecções.
A amostra da coleta de informação foi construída por meio do critério de saturação, que cessou quando não surgiram novas informações e o objetivo da pesquisa foi atingido. Foram 26 selecionadas e somente oito entrevistadas, haja vista que a amostra atingiu a saturação. Amostragem por saturação é utilizada para estabelecer ou fechar o tamanho final de uma amostra em estudo, interrompendo a captação de novos componentes, baseada no fato de que o acréscimo de novas observações leva à redundância ou à repetição das informações1616 olit DF, Beck CT, Hungler BP, Thorell A. Fundamentos de pesquisa em enfermagem: métodos, avaliação e utilização. 5a ed. Porto Alegre: Artmed; 2004..
A coleta de informações ocorreu nos meses de junho e julho de 2019 por meio da aplicação de um roteiro de entrevista estruturada, cuja elaboração foi embasada em quatro marcadores de vulnerabilidade extraídos do instrumento de pesquisa intitulado “Marcadores de Vulnerabilidades de Mulheres a IST/HIV”: 1) Não abertura no relacionamento para discutir aspectos relacionados à prevenção das IST/HIV; 2) Não percepção da vulnerabilidade à IST/ HIV; 3) Desconsideração da vulnerabilidade às IST/HIV; e 4) Não reconhecimento de si próprio como sujeito de direitos sexuais e reprodutivos1717 Guanilo MCTU, Takahashi RF, Bertolozzi MR. Assessing the vulnerability of women to sexually transmitted diseases STDS/HIV: construction and validation of markers. Rev Esc Enferm USP. 2014; 48 Esp:152-9..
Para que o estudo contivesse elementos que atendessem satisfatoriamente aos critérios científicos e potencializasse o aperfeiçoamento da apresentação dos resultados, utilizou-se, como parâmetro de confiabilidade para elaboração e avaliação de pesquisas em saúde, o guideline internacional Critérios Consolidados para Relatar Pesquisa Qualitativa (Coreq)1818 Tong A, Sainsbury P, Craig J. Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ): a 32-item checklist for interviews and focus groups. Int J Qual Health Care. 2007; 19(6):349-57..
As entrevistas foram aplicadas na UBS, por sugestão das mulheres, em um local reservado livre de interferências, o que garantiu confidencialidade e ininterrupção do processo. Tiveram duração de sessenta minutos com perguntas mediadas pelo pesquisador responsável, gravadas em aparelho digital com prévia autorização das participantes e, posteriormente, transcritas, o que assegurou dados na íntegra e a essência das falas.
Adotou-se, como técnica de análise e tratamento das informações, a categorização temática proposta por Bardin1919 Bardin L. Análise de conteúdo. Tradução: Reto LA, Pinheiro A. São Paulo: Edições 70; 2016. e, como referencial teórico, o modelo conceitual de Vulnerabilidade em Saúde elaborado por Florêncio1010 Florêncio RS. Vulnerabilidade em saúde: uma clarificação conceitual [tese]. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará; 2018., que define a VS como uma “condição humana, construída na interação entre o sujeito e o social, caracterizada por uma relação de poder que se movimenta em direção a uma condição de precariedade quando o empoderamento não é vivenciado pelo sujeito ou coletivo”.
O processo de formação das categorias concretizou-se pela codificação, que foi realizada segundo o critério semântico por ser o mais adequado à análise temática que, uma vez triangulada com os resultados observados, foi se constituindo em unidades de registro, para então se efetuar a categorização progressiva. Resultaram desse processo 18 categorias iniciais, que se configuram como as primeiras impressões sobre a realidade organizacional estudada; sete categorias intermediárias, que emergiram dos agrupamentos das categorias iniciais; e duas categorias finais, que representam a síntese do aparato das significações nas categorias anteriores, construídas com o intuito de respaldar as interpretações e inferir os resultados.
Asseguraram-se as normatizações éticas e legais, conforme a Resolução do Conselho Nacional de Saúde de n. 466/122020 Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de Dezembro de 2012. Brasília: CNS; 2012.. O projeto foi aprovado em 8 de junho de 2019, pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sob o parecer de n. 3.378.814/ CAEE - 13897819.2.0000.5053. Como garantia de confidencialidade e anonimato, utilizaram-se nomes de flores para identificação das participantes da pesquisa.
Resultados
Abordaram-se elementos relacionados à participação da mulher na sua sexualidade, baseados em normas de gênero que limitam a capacidade dela na tomada de decisão sobre sua vida sexual e reprodutiva e promovem situações de vulnerabilidade às IST. Mediante questões indutoras da análise, os resultados foram agrupados em duas categorias, a saber: Reconhecimento da mulher como sujeito de direitos sexuais e reprodutivos: sou livre?; e Barreiras comunicacionais no relacionamento para dialogar sobre as IST.
Reconhecimento da mulher como sujeito de direitos sexuais e reprodutivos: sou livre?
Com os depoimentos das mulheres, depreendeu-se que há limitações de uma vivência democrática na relação conjugal enraizada por uma relação de poder e impetrada pela figura masculina. A mulher não consegue viver com plenitude seu direito sexual e reprodutivo, já que a prática sexual continua sendo vivenciada de maneira desigual para ambos os sexos, permanecendo em uma posição na qual apenas realiza os desejos de seu parceiro, situação fortalecedora da vulnerabilidade às IST:
eu me acho livre, mas os homens dizem que não sou. Eles dizem que quem manda são eles [...]
(Áster)
Não tenho de jeito nenhum, porque depende do parceiro [...], não porque assim eu acho, em minha opinião, no caso eu quero uma coisa e ele não quer.
(Camélia)
Os argumentos de algumas mulheres estão entranhados em pensamentos simplistas sobre a influência de gênero na sua relação conjugal, que centralizam no homem as dinâmicas relacionais e os significados dos contextos afetivo-sexuais, robustecendo as relações de poder exercidas pelo sexo masculino. Revelaram a tácita passividade em que se posicionam, haja vista que não percebem a responsabilidade do parceiro em exercer o seu papel sob a ótica do cuidado e não reconhecem a si próprias como sujeitos de direitos sexuais e reprodutivos:
[...] eu acho que o meu erro foi por isso, eu peguei essa doença porque eu não perguntei ele né [...]
(Yasmim)
Outra situação marcante da submissão feminina nas relações afetivas, sinalizada pelas mulheres, diz respeito à dependência financeira e afetiva do parceiro. A opção em permanecer com o companheiro mesmo reconhecendo que é uma condição que a deixa vulnerável às IST, passa a ser prioridade, considerando se a garantia de apoio financeiro, já que, às vezes, é o único meio de amparo de que dispõe:
[...] aí eu não sabia como ficar na vida, porque ele que ajudava a colocar as coisas dentro de casa.
(Yasmim)
Percebe-se uma vivência delineada pelas iniquidades de gênero, com uma relação alicerçada pela subordinação ao parceiro e muitas vezes vitimizada pela violência familiar, tendo, como fatores determinantes para o uso inconsistente do preservativo, o medo de rejeição, da insatisfação do parceiro, de comprometer o relacionamento e ainda se tornar vítima de violência:
Ele é violento, se a gente fala coisa que ele não se agrada, se a gente não tiver cuidado ele bate.
(Dália)
Identificou-se uma fragilidade explícita na relação conjugal de inexistência de compromisso do parceiro, que se isenta de qualquer responsabilidade com a saúde sexual e reprodutiva do casal, tornando as mulheres mais susceptíveis e predispondo o aumento da cadeia de transmissão.
Uma vez eu até mandei ele marcar uma consulta, para saber se ele tinha algum tipo de doença, aí ele se zangou.
(Yasmim)
Ele não liga de querer ir no médico [...], ele está até com problema nas partes dele, mas ele não quer ir.
(Magnólia)
As mulheres afirmam que vivenciam uma relação marcada pela falta de amorosidade do parceiro, assumindo ares de desabafo ao longo da narrativa. Apontam dificuldades em manifestar suas necessidades de atenção e afeto, implicando um fio condutor para insatisfação na relação conjugal,
Ele é muito zangado, não me entende, dá pouco carinho, é mais é naquela hora e pronto, e às vezes nem naquela hora [...]. Não sou satisfeita não com ele em nada.
(Yasmim)
Ele me atende com ignorância. Ele diz na minha cara que não tem amor a ninguém, nem gosta de ninguém, só faz se acostumar [...]
(Áster)
No entanto, revelaram-se algumas contradições nos discursos, pois algumas mulheres se reconhecem como livres, embora compreendam que vivem em condição de “opressão”, que se distancia de um relacionamento aberto e espontâneo com os próprios desejos. Há também aquelas que não se julgam livres, entretanto se sentem satisfeitas na relação com o parceiro:
Me sinto liberta, quando eu quero assim, quando eu não quero, se insistir e eu não quero e não quero mesmo não.
(Yasmim)
Ele é carinhoso demais, [...] ele tem amor demais por mim, arre Maria [...]. Eu me sinto satisfeita, eu me sinto bem de esta com ele [...]
(Dália)
As mulheres desvelaram a vivência de tensões e silêncios conjugais, com medo de dialogar com o parceiro sobre as IST. Elas referiram medo da reação do parceiro e de comportamentos antiéticos de exposição e falta de sigilo dele.
[...] eu não gosto de falar não, porque ele gosta de falar para os outros [...], porque ele sai espalhando, eu não digo nada a ele não.
(Hortência)
Sei lá, eu sinto que ele vai achar ruim, aí eu não comento muito com ele [...]. Às vezes eu tenho medo de falar e ele se zangar.
(Yasmim)
Foram apontadas dificuldades de diálogo entre os casais, mediante as reações manifestadas dos parceiros que, segundo elas, há uma interpretação deturpada deles que entendem como acusação quando a mulher fala sobre o assunto. Existem também aqueles que revelam uma atitude intransigente de culpabilizar as mulheres, impossibilitando um diálogo.
Aí ele reagiu mal, pensando que eu tipo, tava dizendo que ele tem doença. [...] ele se reagiu mal, entendeu mal a pergunta que eu mandei.
(Yasmim)
Às vezes eu vou falar com ele, aí ele não num sei que, não é de mim é de tu, [...] porque tudo ele joga pra riba de mim.
(Áster)
[...] ele sempre diz que o problema estava em mim.
(Camélia)
Outra situação que aparece como tensão se refere ao fato de as mulheres não encontrarem abertura suficiente para discutir com os seus parceiros, mesmo após o diagnóstico de IST. Elas afirmam que os parceiros não gostam de falar sobre o assunto e alguns são obstinados (“cabeça-dura”).
[...] aí eu fico com dificuldade até de falar com ele, porque justamente ele tem a cabeça muito dura, para essas coisas. [...] mas falar abertamente com ele sobre essas doenças não [...]
(Camélia)
Ainda foram realçadas pelas mulheres as barreiras no processo de negociação do uso do preservativo com os parceiros, que cerceiam seu poder de decisão e comprometem a possibilidade de adotar medidas preventivas.
Cheguei a pedir muitas vezes para usar o preservativo, e ele disse que não gostava de usar porque não sentia prazer.
(Yasmim)
Discussão
Denotou-se um cenário repressivo e moralizador, com bloqueio à liberdade sexual e reprodutiva das mulheres, na medida em que diariamente estão submetidas às variadas formas de violência, seja física, psicológica, moral, seja institucional, funcionando como mecanismo ideológico de manutenção da dominação de variados aspectos da vida feminina.
As relações vivenciadas por algumas mulheres às vezes são marcadas por situações de dependência afetiva, conformismo, permissividade, ocultamento que as fragilizam, impondo a elas o não controle de seu corpo nem domínio da própria sexualidade. Como resultado dessa relação desigual e abusiva, as mulheres estão mais vulneráveis a contrair infecções sexualmente transmissíveis de seus parceiros sexuais.
Mulheres que vivenciam um relacionamento de subordinação ao parceiro apresentam maior risco de adversidades à saúde sexual, incluindo serem contaminadas por uma IST, tendo em vista que contrair uma infecção sexual nesse contexto aumenta potencialmente a vulnerabilidade da mulher nos relacionamentos atuais e futuros, por meio da perda de sua autoconfiança e capacidade percebida de ter um relacionamento amoroso confiável2121 East L, Peters K, Jackson D. Violated and vulnerable: women’s experiences of contracting a sexually transmitted infection from a male partner. J Clin Nurs. 2017; 26(15-16):2342-52. doi: https://doi.org/10.1111/jocn.13723.
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Os papéis tradicionais aprendidos por mulheres e homens, vistos socialmente como naturais e inquestionáveis, permanecem condicionando as práticas em saúde sexual e reprodutiva. Em comparação ao sexo masculino, têm menor autonomia em sua vida sexual e, consequentemente, menos poder de decisão acerca do sexo com proteção. Compreende-se que seja reflexo dos determinantes históricos e sociais imbricados na manutenção das relações de poder entre os sexos e da ausência de proteção da mulher diante das vulnerabilidades2222 Hankivsky O. Women’s health, men’s health, and gender and health: implications of intersectionality. Soc Sci Med. 2012; 74(11):1712-20. doi: http://dx.doi:10.1016/j.socscimed.2011.11.029.
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,2323 Medeiros TFR, Santos SMP, Xavier AG, Gonçalves RL, Mariz SR, Sousa FLP. Women’s experience with contraception from the perspective of gender. Rev Gauch Enferm. 2016; 37(2):e57350. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1983-1447.2016.02.57350.
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Essas percepções contribuem para a ocorrência de sentimento de passividade das mulheres diante dos desejos masculinos, traduzindo o comportamento ativo e viril dos homens, e passivo das mulheres que não percebem e não conseguem transcender alguns espaços, pois são cativas por estereótipos de gênero, não possuem o pertencimento de si e, consequentemente, se violentam em prol dos desejos de seus parceiros e não se empoderam nas relações2424 Martins DC, Teston EF, Dobiesz BA, Fernandes CAM, Marcon SS. Sexual and health behavior among women of convicts: an exploratory study. Online Braz J Nurs [Internet]. 2018 [citado 10 Out 2020]; 17(1):43. Disponível em: http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/5864/html
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,2525 Muhlen BKV, Saldanha M, Strey MN. Mulheres e o HIV/AIDS: intersecções entre gênero, feminismo, psicologia e saúde pública. Rev Colomb Psicol [Internet]. 2014 [citado 10 Out 2020]; 23(2):285-96. Disponível em: http://www.scielo.org.co/pdf/rcps/v23n2/v23n2a04.pdf
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. Sabe-se que o autocuidado é individual, mas envolve uma responsabilidade que deve ser compartilhada.
Destarte, é relevante reforçar que os atores envolvidos no cuidado integral à saúde da mulher devem reconhecer os direitos sexuais e reprodutivos dela, baseados na premissa de que ela pode tomar decisões com liberdade e autonomia sobre sua sexualidade e reprodução, para que esses direitos possam ser garantidos e efetivados em uma perspectiva de transformação social, humana e emancipatória.
Em um estudo realizado em Uganda, foi constatado que o empoderamento sexual feminino não protege de IST as mulheres que têm parceiros sexualmente violentos e controladores e com relatos de mais de um parceiro. Os relatos de IST entre as mulheres foi negativamente associado à sua participação na tomada de decisão com relação à própria saúde e positivamente associado a experiências de violência sexual, comportamento controlador do parceiro e número de parceiros ao longo da vida2626 Nankinga O, Misinde C, Kwagala B. Gender relations, sexual behaviour, and risk of contractig sexually transmitted infections among women in union in Uganda. BMC Public Health. 2016; 16(440):1-11..
Nos processos de vulnerabilidade em saúde, a relação de poder entre o sujeito e o social pode resultar em condições de precariedade e empoderamento. A precariedade envolve situações que podem configurar-se em uma esfera de iniquidades sociais e, por sua vez, reforçarem as situações de vulnerabilidade em saúde. De outro modo, o sujeito pode obter recursos para enfrentar e minimizar as situações de vulnerabilidade em saúde por meio da vivência do empoderamento1010 Florêncio RS. Vulnerabilidade em saúde: uma clarificação conceitual [tese]. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará; 2018..
Nesse contexto, julga-se necessário refletir sobre a instrumentalização do discurso preventivo de saúde, no que concerne aos direitos sexual e reprodutivo, que sejam alinhados por estratégias inovadoras e viáveis a fortalecer as abordagens sobre esse tema, ao passo que, muitas vezes, são estruturadas por ações que não permitem um espaço para uma escuta qualificada das mulheres2727 Diuana V, Ventura M, Simas L, Larouzé B, Correa M. Women’s reproductive rights in the penitentiary system: tensions and challenges in the transformation of reality. Cienc Saude Colet. 2016; 21(7):2041-50.. É importante desmistificar as práticas restritivas ao estabelecimento de laços afetivos e sexuais, que desconsideram as mulheres como protagonistas de sua vida, capazes de tomar suas decisões sobre sua sexualidade e vida reprodutiva, livres de constrangimentos, coerção e violência.
A violência dos homens contra as mulheres é baseada em gênero, construída por processos históricos, culturais, institucionais e psicossociais em que a sociedade define padrões de gênero que reproduzem a ideia de que homens são naturalmente agressivos. Portanto, existe uma zona de interseção entre as questões da sexualidade e da violência, que inclui assédio, abuso e exploração sexual, ou até mesmo o “forçar a barra” que não é percebido pelos homens como forma de abordagem violenta, trazendo implicações desastrosas para o bem-estar biopsicossocial da mulher, como práticas sexuais inseguras e o aumento da incidência de IST2828 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das IST, do HIV/Aids e das Hepatites Virais e IST. Boletim Epidemiológico - Sífilis [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2018 [citado 10 Out 2020]. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2017/boletim-epidemiologico-de-sifilis-2017
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As concepções sobre masculinidade e saúde são barreiras socioculturais que modelam tanto os entendimentos sobre a saúde e a doença, quanto as escolhas e trajetórias percorridas pelos homens na busca de cuidado, e podem dificultar a iniciativa de alguns a buscar algum serviço de saúde por meio da ideia, ainda que controversa, de que homem não gosta ou não valoriza o cuidado com sua saúde2929 Silva NEK. Imaginário social sobre o SUS e vulnerabilidade de homens ao acesso a diagnóstico e tratamento de infecções sexualmente transmissíveis. RECIIS. 2016; 10(1):1-12. doi: http://dx.doi.org/10.29397/reciis.v10i1.1041.
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A habilidade de se comunicar claramente e discutir problemas com o parceiro ou a parceira diminui a influência negativa das questões associadas a relacionamentos disfuncionais, ligadas a medo de rejeição, além de maior necessidade de aprovação, aceitação e amor. Em outras palavras, famílias que funcionam de maneira positiva produzem níveis altos de satisfação e estabilidade em parceiros, que estão relacionados com quão felizes os cônjuges estão com várias dimensões de seu relacionamento, como intimidade, conflito e divisão de poder, incluindo uma avaliação global da qualidade da relação3030 Pace GT, Shafer K, Jensen TM, Larson JH. Stepparenting issues and relationship quality: the role of clear communication. J Soc Work. 2015; 15(1):24-44. doi: https://doi.org/10.1177/1468017313504508.
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Entretanto, a maioria dos casais tem dificuldade de reconhecer quando eles se comportam de maneira a instigar conflito. Aceitar o ponto de vista do outro, seus sentimentos e comportamentos, escutar com a mente aberta e atitude positiva, além do uso do humor (não sarcástico) são fatores que favorecem a satisfação na relação conjugal3131 Black MP, Katsamanis A, Baucom BR, Lee C-C, Lammert AC, Christensen A, et al. Toward automating a human behavioral coding system for married couples’ interactions using speech acoustic features. Speech Commun. 2013; 55(1):1-21. doi: https://doi.org/10.1016/j.specom.2011.12.003.
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Acredita-se que o não reconhecimento das mulheres como um sujeito de direitos e as contradições reveladas por aquelas que se reconhecem como livres podem estar relacionados com as respostas cognitivas, emocionais, culturais, sociais e comportamentais de cada um, pois cada parceiro desenvolve um esquema específico para a relação3232 Dattilio FM. Manual de terapia cognitivo-comportamental para casais e famílias. Porto Alegre: Artmed; 2011., como também com o nível educacional delas, já que a maioria tem poucos anos de estudo.
Quando se tem um conhecimento prejudicado, seja pelo déficit na aprendizagem seja por dificuldades cognitivas, influenciadas principalmente pela baixa escolaridade, o sujeito é submetido a um letramento funcional inadequado e esse elemento é uma característica da vulnerabilidade em saúde, que pode favorecer a precarização do sujeito, respectivamente1010 Florêncio RS. Vulnerabilidade em saúde: uma clarificação conceitual [tese]. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará; 2018..
Esse comportamento limita sobremaneira a capacidade da mulher em tomar uma decisão sobre sua vida sexual e reprodutiva, cabendo ao homem, considerado sexo forte, a sua propriedade. Dessa forma, as questões de gênero atribuem aos homens a ilusória certeza de poderem desfrutar de uma sexualidade irreprimível, com ampla variabilidade de parceiras que vai muito além do mundo dos prazeres, afetos e intimidade, mas pode ser vista por eles como a afirmação da identidade.
As mulheres estão sujeitas a vulnerabilidades que não dependem exclusivamente de sua vontade, porém se acentuam diante do poder assimétrico de decisão nas relações afetivo-sexuais, decorrentes das questões de gênero. Isso faz que tenham dificuldades de falar sobre o assunto, impossibilitando que o casal atinja certo grau de intimidade, responsabilidade e compromisso, necessário para a adoção de práticas sexuais seguras e adequadas.
Entendem que dialogar sobre o assunto pode ser algo constrangedor, considerado como depor contra uma imagem social ideal, pois muitas vezes o pudor impede o pensamento livre e sem preconceitos. Além disso, a falta de conhecimento sobre o tema também contribui para definições reducionistas3333 Paranhos RFB, Paiva MS, Carvalho ESS. Sexual and emotional experiences of women with urinary incontinence secondary to HTLV. Acta Paul Enferm. 2016; 29(1):47-52. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1982-0194201600007.
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A sexualidade masculina engloba um modelo de masculinidade hegemônica que valoriza o homem nos âmbitos históricos, sociais, culturais e políticos, diferentemente da mulher. Assim, os homens aprendem que falar sobre assunto envolvendo a sexualidade se reporta exclusivamente à penetração sexual, como forma de confirmação da virilidade masculina; portanto, torna-se uma dificuldade, já que para eles “sexo” não se fala, se faz2828 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das IST, do HIV/Aids e das Hepatites Virais e IST. Boletim Epidemiológico - Sífilis [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2018 [citado 10 Out 2020]. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2017/boletim-epidemiologico-de-sifilis-2017
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A intenção de conversar com os parceiros representa um desafio a ser superado pelo estigma associado às IST, cuja falha ou sucesso podem ser influenciados por fatores como a existência de relações sexuais extraconjugais, a estrutura de poder e o tipo de vínculo afetivo-sexual3434 Cavalcante EGF, Miranda MCC, Carvalho AZFHT, Lima ICV, Galvão MTG. Partner notification for sexually transmitted infections and perception of notified partners. Rev Esc Enferm USP. 2016; 50(3):450-7. doi: https://doi.org/10.1590/S0080-623420160000400011.
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. Detalhes do passado podem ser relidos e subtraídos pelo casal, como uma área de tensão, com possíveis acusações entre os parceiros3535 Maksud I. Silêncios e segredos: aspectos (não falados) da conjugalidade face à sorodiscordância para o HIV/AIDS. Cad Saude Publica. 2012; 28(6):1196-204. doi: https://doi.org/10.1590/S0102-311X2012000600018.
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Corrobora com os resultados aqui expostos o estudo realizado na África em que mulheres encontraram dificuldades de discutir métodos de prevenção com o parceiro devido às diferenças de gênero e poder3636 Logie CH, Okumu M, Ryan S, Yehdego DM, Lee-Foon N. Adapting and pilot testing the Healthy Love HIV and sexually transmitted infection prevention intervention with African, Caribbean and Black women in community-based settings in Toronto, Canada. Int J STD AIDS. 2018; 29(8):751-9. doi: https://dx.doi.org/10.1177/0956462418754971.
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. Nessa perspectiva, o diálogo possibilita o compartilhamento de responsabilidades sobre a saúde sexual do casal, retirando do homem a exclusividade das decisões.
Outro estudo destacou que um dos fatores associados ao uso consistente do preservativo foi o diálogo com o parceiro. Logo, a manutenção da comunicação é considerada um elemento fundamental para a negociação na prevenção da transmissão sexual das IST3737 Silva TCF, Sousa LRM, Jesus GJ, Argolo JGM, Gir E, Reis RK. Factors associated with the consistent use of the male condom among women living with HIV/AIDS. Texto Contexto Enferm. 2019; 28:e20180124. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1980-265x-tce-2018-0124.
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. O uso inconsistente do preservativo durante o ato sexual se apresenta como um grande problema e ao mesmo tempo um desafio, uma vez que as mulheres sentem dificuldade em dialogar com seus parceiros, muitas vezes relacionada a relações abusivas, com consequente aumento das chances de exposição às IST3838 Soares JP, Silva ACO, Silva DM, Freire MEM, Nogueira JA. Prevalência e fatores de risco para o HIV/AIDS em populações vulneráveis: uma revisão integrativa de literatura. ACM Arq Catarin Med. [Internet]. 2017 [citado 10 Out 2020]; 46(4):182-94. Disponível em: http://www.acm.org.br/acm/seer/index.php/arquivos/article/viewFile/126/216
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,3939 Chaves ACP, Sousa CSP, Almeida PC, Bezerra EO, Sousa GJB, Pereira MLD. Vulnerability to Human Immunodeficiency Virus infection among women of childbearing age. Rev Rene. 2019; 20(1):e40274..
Pesquisas apontam que mulheres apresentam dificuldades na negociação do preservativo devido à resistência dos homens, os quais são irredutíveis quando o assunto é relação sexual com proteção, indicando desconsideração da vulnerabilidade às IST relacionada a atitudes do parceiro e como resultado de práticas sexuais desprotegidas e de risco4040 Jesus GJ, Oliveira LB, Caliari JS, Queiroz AAFL, Gir E, Reis RK. Difficulties of living with HIV/Aids: obstacles to quality of life. Acta Paul Enferm. 2017; 30(3):301-7.,4141 Moura SLO, Silva MAM, Moreira ACA, Freitas CASL, Pinheiro AKB. Women’s perception of their vulnerability to Sexually Transmitted Infections. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2021; 25(1):e2019032.. Entre mulheres afro-americanas, o uso consistente do preservativo foi predito pelas seguintes variáveis: ter maior percepção da relevância da negociação do preservativo, menor medo de negociar o uso do preservativo e ter conversado com parceiros sexuais sobre prevenção4242 Crosby RA, DiClemente RJ, Salazar LF, Wingood GM, McDermott-Sales J, Young AM, et al. Predictors of consistent condom use among young African American women. AIDS Behav. 2013; 17(3):865-71. doi: https://dx.doi.org/10.1007/s10461-011-9998-7.
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Muitas mulheres que mantêm relação de inferioridade com o parceiro, geralmente apresentam baixo poder de escolha nas suas relações amorosas e dificuldade de negociação no que se refere à prevenção, aumentando, dessa forma, sua situação de vulnerabilidade. Essa subalternidade de gênero é descrita como um fator determinante para a vulnerabilidade feminina3939 Chaves ACP, Sousa CSP, Almeida PC, Bezerra EO, Sousa GJB, Pereira MLD. Vulnerability to Human Immunodeficiency Virus infection among women of childbearing age. Rev Rene. 2019; 20(1):e40274.,4343 Santos NJS. Mulher e negra: dupla vulnerabilidade às DST/HIV/Aids. Saude Soc. 2016; 25(3):602-18. doi: https://doi.org/10.1590/s0104-129020162627.
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Normalmente, as mulheres têm receio de propor o uso do preservativo, pois pode remeter ao incentivo às traições ou multiplicidade de parceiros, desconfiança do parceiro, infidelidade ou ainda insubordinação por parte delas, além do medo de serem responsabilizadas e recriminadas por terem a doença, podendo culminar em situações de violência ou ruptura da relação, já que o tabu está em torno da fidelidade exigida dentro dos vínculos amorosos estabelecidos entre os parceiros4444 Costa FM, Mendes ACF, Maria DC, Santos JAD, Costa GM, Carneiro JA. A percepção feminina quanto à vulnerabilidade de se contrair DST/AIDS. Rev Univ Vale Rio Verde. 2014; 12(2):879-89. doi: http://dx.doi.org/10.5892/ruvrd.v12i2.1744.
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Torna-se evidente que essas barreiras comunicacionais dificultam o fortalecimento dos vínculos afetivo-sexuais, suscitam um ressentimento em relação ao parceiro, produzem mágoa e, posteriormente, o desencontro, afetando o relacionamento. As mulheres deste estudo vivenciam um emaranhado de situações vulneráveis às doenças sexuais, pois demonstram uma postura de submissão e inferiorização ao sexo masculino, perpetuando, assim, uma relação de gênero desigual pela dificuldade de dialogar e negociar com seu parceiro uma relação sexual segura.
Conclusão
A pesquisa permitiu constatar que a hegemonia masculina retrai as mulheres em posição de submissão, refletindo a forte influência de gênero nas relações afetivas conjugais, não dando a elas o direito de livre escolha sobre sua vida sexual e reprodutiva, situação que dificulta o diálogo, a negociação de uma relação sexual segura, além de contribuir para que a mulher não se reconheça como um sujeito de direitos sexuais e reprodutivos, predispondo o aumento da vulnerabilidade às IST.
A naturalização desse modelo de gênero pode causar impacto à saúde, pois, para cumprir os padrões do que é ser mulher, é preciso desempenhar uma prática sexual que, por vezes, lhe é nociva do ponto de vista da vulnerabilidade à saúde e à própria vida. Acredita-se que as estratégias de prevenção e os desafios da redução da vulnerabilidade em mulheres devem levar em consideração as relações sociais de gênero, visto que, quando associado ao feminino, automaticamente se constrói um sinônimo de submissão e opressão, enraizado desde os primórdios da civilização.
Cabe destacar como limitação desse estudo o fato de não ter adentrado nos aspectos da vulnerabilidade social relacionados à situação programática, que corresponde às características e aos processos das instituições que ofertam serviços à população, principalmente aquele pertinente à saúde1010 Florêncio RS. Vulnerabilidade em saúde: uma clarificação conceitual [tese]. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará; 2018..
Agradecimentos
À Rede Nordeste de Formação em Saúde da Família (Renasf) e seus docentes, pela contribuição ao desenvolvimento desta pesquisa.
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Moura SLO, Silva MAM, Moreira ACA, Pinheiro AKB. Relações de gênero e poder no contexto das vulnerabilidades de mulheres às infecções sexualmente transmissíveis. Interface (Botucatu). 2022; 26 (Supl. 1): e210546https://doi.org/10.1590/interface.210546
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Editado por
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
04 Nov 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
-
Recebido
09 Ago 2021 -
Aceito
10 Ago 2022