Acessibilidade / Reportar erro

A institucionalização da atenção psicossocial: o efeito Mühlmann nas práticas profissionais de um Centro de Atenção Psicossocial

La institucionalización de la atención psicosocial: el efecto Mühlmann en las prácticas profesionales de un Centro de Atención Psicosocial

Resumos

Cientes de que as práticas profissionais nos serviços de saúde mental podem refletir a institucionalização da atenção psicossocial no âmbito técnico-assistencial, o objetivo da pesquisa foi analisar esse processo de institucionalização por meio das práticas profissionais de um Centro de Atenção Psicossocial. Trata-se de um estudo descritivo e qualitativo, parte de uma pesquisa-intervenção. Os dados foram analisados sob à luz do referencial teórico da Análise Institucional e do modelo de atenção psicossocial. Embora o movimento instituinte da Reforma Psiquiátrica brasileira (RPb) tensione o manicômio instituído, os profissionais tendem a reproduzi-lo na prática. Apesar da fragilidade teórico-prática, alguns percebem a necessidade de promover a autonomia do sujeito; porém, observa-se o efeito Mühlmann em suas práticas, que, nesse caso, significa uma falsificação/distorção dos princípios da RPb. Faz-se necessária a criação de dispositivos de reflexão e transformação do cuidado em saúde mental para enfrentar esse efeito institucional.

Palavras-chave
Saúde mental; Atenção psicossocial; Trabalho; Equipe multiprofissional; Análise institucional


Conscientes de que las prácticas profesionales en los servicios de salud mental pueden reflejar la institucionalización de la atención psicosocial en el ámbito técnico-asistencial, el objetivo fue analizar el proceso de institucionalización por medio de las prácticas profesionales de un Centro de Atención Psicosocial. Es un estudio descriptivo y cualitativo, parte de una investigación-intervención. Los datos se analizaron a la luz del referencial teórico del análisis institucional y del modelo de atención psicosocial. Aunque el movimiento instituyente de la Reforma Psiquiátrica brasileña (RPb) tensione el manicomio instituido, los profesionales tienden a reproducirlo en la práctica. A pesar de la fragilidad teórico-práctica, algunos perciben la necesidad de promover la autonomía del sujeto, pero se observa el Efecto Mühlmann en sus prácticas que, en este caso, significa falsificación- distorsión de los principios de la RPb. Es necesaria la creación de dispositivos de reflexión y transformación del cuidado en salud mental para enfrentar ese efecto institucional.

Palabras clave
Salud mental; Atención psicosocial; Trabajo; Equipo multiprofesional; Análisis institucional


Under the assumption that professional practices in mental health services can reflect the institutionalization of psychosocial care in the technical-assistance context, the objective was to analyze the institutionalization process through the professional practices of a Psychosocial Care Center. It is a descriptive and qualitative study, part of intervention research. The data were analyzed in light of the theoretical framework of Institutional Analysis and the psychosocial care model. Although the founding movement of the Brazilian Psychiatric Reform puts tension on the established asylum, professionals tend to reproduce it in practice. Despite the theoretical-practical fragility, some perceive the need to promote the subject's autonomy, but the Mühlmann Effect is observed in their practices, which, in this case, means falsification-distortion of the principles of the Brazilian Psychiatric Reform. It is necessary to create devices for reflection and transformation of mental health care to face this institutional effect.

Keywords
Mental health; Psychosocial care; Work; Multidisciplinary team; Institutional Analysis


Introdução

O movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira (RPb) possibilitou diversos avanços no cuidado à saúde mental, com a reestruturação de serviços e processos de trabalho para que a assistência estivesse direcionada à humanização, à integralidade e ao respeito às pessoas em sofrimento psíquico, sendo, portanto, direcionada pelo modo/modelo de atenção psicossocial, que prioriza o cuidado territorializado em serviços comunitários de saúde11 Oliveira LMS, Chaves MCAC. Condenados pela loucura: o impacto das diretrizes das políticas públicas para a saúde mental na dignidade da pessoa humana. Cad Grad Cienc Hum Soc Unit. 2020; 4(3):113-35.,22 Sampaio ML, Bispo JP Jr. Entre o enclausuramento e a desinstitucionalização: a trajetória da saúde mental no Brasil. Trab Educ Saude. 2021; 19:e00313145.. Ele tem como diretriz o respeito aos direitos humanos; a garantia da autonomia, liberdade e cidadania do paciente; e o cuidado equânime, que considera o contexto psicossocial da pessoa em sofrimento psíquico11 Oliveira LMS, Chaves MCAC. Condenados pela loucura: o impacto das diretrizes das políticas públicas para a saúde mental na dignidade da pessoa humana. Cad Grad Cienc Hum Soc Unit. 2020; 4(3):113-35.,22 Sampaio ML, Bispo JP Jr. Entre o enclausuramento e a desinstitucionalização: a trajetória da saúde mental no Brasil. Trab Educ Saude. 2021; 19:e00313145..

Contrariamente ao modelo de atenção psicossocial, o modo manicomial considera a doença (o sujeito doente), em seu aspecto orgânico, como objeto do trabalho/cuidado e tem por finalidade a supressão dos sintomas, utilizando o medicamento como principal meio de trabalho, sem considerar a subjetividade e a capacidade de decisão e participação do sujeito nesse processo. As relações de trabalho são pautadas na hierarquização e, portanto, mesmo que haja outras possibilidades e ferramentas de cuidado, prevalece o modelo da divisão do trabalho correspondente à “linha de montagem”, equivalente à produção comum de mercadorias na mecanização, sem que haja discussão compartilhada, o que, por muitas vezes, restringe a comunicação entre os membros somente ao prontuário33 Costa-Rosa A. O modo psicossocial: um paradigma das práticas substitutivas ao modo asilar. In: Amarante P. Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2000. p. 141-68..

Mesmo com os avanços da RPb, percebe-se que o modelo de atenção psicossocial segue como um movimento instituinte, ou seja, uma força de mudança que confronta o que está posto como norma – o instituído – negando-o, tensionando-o e buscando transformá-lo44 Lourau R. A análise institucional. Rio de Janeiro: Editora Vozes; 2014.. Como consequência desse movimento instituinte, foram criados estratégias e pontos de atenção à saúde mental que devem se articular por meio da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), com o objetivo de serem substitutivas aos manicômios e ao modelo manicomial instituído11 Oliveira LMS, Chaves MCAC. Condenados pela loucura: o impacto das diretrizes das políticas públicas para a saúde mental na dignidade da pessoa humana. Cad Grad Cienc Hum Soc Unit. 2020; 4(3):113-35.,22 Sampaio ML, Bispo JP Jr. Entre o enclausuramento e a desinstitucionalização: a trajetória da saúde mental no Brasil. Trab Educ Saude. 2021; 19:e00313145., ou seja, àquilo que já é conhecido, a regra/ordem já instalada44 Lourau R. A análise institucional. Rio de Janeiro: Editora Vozes; 2014.. A esse processo dá-se o nome de institucionalização – um movimento dialético que promove uma união-tensão capaz de transformar o instituinte em instituído; não havendo nesse processo um lado necessariamente bom ou ruim44 Lourau R. A análise institucional. Rio de Janeiro: Editora Vozes; 2014..

Contudo, apesar de a atenção psicossocial ter se tornado uma instituição concreta no que diz respeito ao âmbito jurídico-político, sendo materializada por meio dos estabelecimentos comunitários de cuidado à saúde mental – como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) – e na reorganização da RAPS como um todo, é preciso compreender que a RPb é um movimento social complexo, composto por quatro dimensões. Além da dimensão jurídico-política, há também a dimensão sociocultural, a teórico-conceitual e a técnico-assistencial, que se entrelaçam e que são codependentes dentro de um processo de transformação55 Amarante P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2017., abrangendo aspectos da formação básica e em serviço; o cotidiano de práticas; e o olhar histórico direcionado à pessoa em sofrimento psíquico, que pode ser carregado de estigma.

Os CAPS foram criados como serviços de substituição aos manicômios, uma vez que deveriam prestar um cuidado segundo as prerrogativas e diretrizes da atenção psicossocial66 Brasil. Ministério da Saúde. Centros de Atenção Psicossociais e Unidades de Acolhimento como lugares de atenção psicossocial no território: orientações para elaboração de projetos de construção, reforma e ampliação de CAPS e de UA. Brasília: Biblioteca Virtual de Saúde; 2015.. Contudo, percebe-se uma inclinação à perpetuação/manutenção do cuidado manicomial em estabelecimentos/serviços com princípios de substituição ao manicômio77 Cusinato C. Reforma psiquiátrica: avanços e desafios das práticas dos profissionais de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) [dissertação]. Botucatu: Faculdade de Medicina, Universidade Estadual Paulista; 2016.. Ademais, por serem um dos principais serviços da RAPS, o cotidiano dos CAPS pode nos revelar, por meio das práticas profissionais e do processo de trabalho, detalhes sobre essa dialética contínua entre instituinte e instituído. Apesar disso, existem apenas estudos que problematizam as fragilidades e dificuldades para o cuidado psicossocial, mas que não discutem diretamente o processo de institucionalização da atenção psicossocial a partir da análise institucional88 Severo AK, L’abbate S. Uma supervisão clínico-institucional na reforma psiquiátrica na perspectiva da análise institucional. Trab Educ Saude. 2019; 17(3):e0021646.,99 Mesquita-Lago LP, Matumoto S, Silva SS, Mestriner SF, Mishima SM. Analysis of professional practices as a multiprofessional residency education tool. Interface (Botucatu). 2018; 22(2):1625-34. doi: 10.1590/1807-57622017.0687.
https://doi.org/10.1590/1807-57622017.06...
.

Diante disso, buscamos com este estudo analisar o processo de institucionalização da atenção psicossocial por meio das práticas profissionais de um CAPS, uma vez que, diante da complexidade desse processo, torna-se pertinente a discussão acerca dos seus efeitos e repercussões sobre a assistência em saúde mental e a materialização das políticas de saúde mental propostas pela RPb.

Metodologia

Trata-se de um estudo descritivo e qualitativo; e parte da etapa exploratória de uma pesquisa-intervenção intitulada “Interprofissionalidade e o cuidado em saúde mental”, que foi dividida em três etapas: entrada em campo, momento exploratório e momento de intervenção com análise de dados. A pesquisa matricial, que se iniciou durante a pandemia da Covid-19, objetiva analisar o cuidado interprofissional no cuidado em saúde mental – que abrange o CAPS – e duas Unidades de Saúde da Família do mesmo município. Participaram da pesquisa professores e estudantes do programa de pós-graduação e da graduação em Enfermagem de uma universidade pública, todos vinculados a um grupo de pesquisa em saúde mental, além dos profissionais de saúde dos serviços, que optaram livremente por contribuir com a pesquisa enquanto participantes do estudo.

A pesquisa-intervenção assume seu caráter político de busca das transformações a partir da interrogação dos diversos sentidos cristalizados nas instituições1010 Galvão EFC, Galvão JB. Pesquisa intervenção e análise institucional: alguns apontamentos no âmbito da pesquisa qualitativa. Rev Cienc Soc. 2017; 1(1):54-67.. O método qualitativo propõe uma análise subjetiva, na qual motivação, aspirações, crenças e valores devem ser entendidos como parte da realidade social, observando situações por meio de diferentes interpretações, considerando a individualidade dos sujeitos1111 Minayo MCS, Deslandes SF, Gomes R. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. São Paulo: Vozes; 2011..

O cenário deste estudo foi um CAPS tipo I de uma capital do Brasil. Foram incluídos no estudo todos os profissionais de saúde do CAPS e excluídos os profissionais inativos por adoecimento, férias ou outro tipo de licença. Dos 24 profissionais do serviço, somente 11 estavam ativos e apenas nove – duas enfermeiras, dois psicólogos, três assistentes sociais, uma farmacêutica e um jornalista, que atuava como gerente do serviço – aceitaram participar.

A coleta de dados ocorreu entre junho e setembro de 2020 a partir da observação participante – em que foram observados atendimentos individuais, discussões de casos e situações cotidianas, fenômenos registrados em um diário do pesquisador – e de entrevistas individuais semiestruturadas, com questões referentes à rotina do trabalho e ao cuidado em saúde mental, que foram realizadas no próprio serviço durante o período de trabalho e registradas com gravador eletrônico, sendo que cada entrevista durou aproximadamente cinquenta minutos. Os participantes foram identificados pela letra P, referente à “profissional”, seguida de números cardinais, escolhidos de forma aleatória, para garantir o anonimato destes.

Os dados foram estudados segundo a análise de conteúdo temática de Bardin1212 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2016., composta por três etapas cronológicas: pré-análise – na qual foi realizada a leitura flutuante e, em seguida, a leitura exaustiva dos dados colhidos –, exploração do material – etapa em que são definidas as unidades de codificação, classificação e a categorização dos dados – e tratamento dos resultados – em que são feitas as inferências e interpretações desses dados à luz do referencial teórico da análise institucional e da atenção psicossocial44 Lourau R. A análise institucional. Rio de Janeiro: Editora Vozes; 2014.,55 Amarante P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2017.. A partir da análise de conteúdo temática das falas dos participantes e do diário do pesquisador, foram formadas duas categorias: 1) Práticas instituídas na organização do trabalho e no cuidado em saúde mental do CAPS e 2) Formação, gestão e condições de trabalho: aspectos que tensionam a institucionalização da atenção psicossocial.

Este estudo se iniciou somente após registro na Plataforma Brasil e a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa sob parecer n. 4.199.950/2020, e as entrevistas e observações só foram realizadas após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) pelos participantes.

Resultados

Práticas instituídas na organização do trabalho e o cuidado em saúde mental do CAPS

Ao direcionar o trabalho/cuidado à pessoa em sofrimento psíquico, alguns profissionais trazem termos vinculados à infantilização ou reduzem o cuidado em saúde mental à tarefa empírica da maternidade, tratando-o como algo sentimental e distanciando-se do saber científico. Além disso, um dos participantes mencionou a necessidade de estar próximo ao usuário mais para tutelá-lo do que para fortalecer o vínculo.

E eu sei que os pacientes sentem falta também, porque eles ligam e falam: “Tia, quando que vai voltar?” [...] outros falam que nem tia, é: “Mamãe! Que saudade!”. Isso é muito gratificante, a gente sente muita falta, né? (P3)

O afastamento [causado pela pandemia] dá um prejuízo principalmente em prática de saúde mental, porque a gente precisa estar mais próximo, por toda a questão do comportamento [referindo à periculosidade]. (P9)

Por outro lado, a maioria dos profissionais demonstra possuir um olhar ampliado ao sujeito para além do diagnóstico apresentado, no qual o objetivo do trabalho também é impedir a internação hospitalar; acolher o paciente; e garantir sua autonomia e reinserção social. Apenas um dos profissionais pesquisados mencionou a cura como finalidade do trabalho.

Ressalta-se que as concepções e práticas manicomiais e psicossociais na relação instituído-instituinte compõem movimentos contínuos/articulados e não polarizados.

No CAPS, a nossa missão é não deixar que o paciente chegue à internação. [...] Então, na realidade, quando a gente tá na saúde mental, a gente busca ver o paciente de uma forma global, que a gente fala holisticamente, [...] não só voltada pro transtorno mental. (P1)

Não existe uma forma mágica capaz de curar quem tá em transtorno. Então são várias possibilidades que existem pra ter esse cuidado com a saúde mental. (P2)

No fim das contas eu acho que o objetivo é sempre poder oferecer o melhor tratamento para o paciente, né?! Essa ideia toda de saúde mental, [...] [do cuidado] ser territorializado, de a pessoa aumentar a sua autonomia. (P8)

No cuidado em saúde mental, a gente tem que ver o paciente como um todo, não só a questão do transtorno em si [...]. O paciente não é somente o transtorno [...] você tem que considerar todos os âmbitos, o âmbito particular, o âmbito social [...]. (P5)

Precisamos construir [o cuidado] junto com os usuários, né? Entender o que ele vê e acha que é melhor para ele. (P9)

Com relação aos instrumentos de trabalho instituídos na rotina do serviço, as visitas domiciliares, os matriciamentos, os grupos e os atendimentos individuais foram os que mais se repetiram nas respostas dos profissionais, mesmo considerando que a maior parte dessas atividades estava suspensa durante a coleta de dados, que se deu no contexto da pandemia de Covid-19. A inclusão de atividades de lazer também foi apontada pelos participantes como um instrumento de trabalho a ser adotado pelo serviço.

A gente faz busca ativa, atendimento de Enfermagem, psicológico, de serviço social também. (P3)

Aqui nós temos os matriciamentos, os encaminhamentos sociais que vêm do CREAS [Centro de Referência de Assistência Social] e da Secretaria de Assistência Social. (P7)

Porque antes eu fazia visita domiciliar tinha consulta de matriciamento [...] com a pandemia diminuiu ou cessou todas essas atividades. (P8)

A gente tinha previsto para acrescentar nas atividades a questão do lazer no planejamento do próximo ano. (P9)

Por outro lado, o Projeto Terapêutico Singular (PTS) é pouco empregado no cotidiano de trabalho e, quando utilizado, é conduzido de forma fragmentada pela equipe. Além disso, não houve referência nos dados acerca da participação do usuário na construção do PTS.

Eu acho que pode mudar alguma coisa ou outra no sentido de talvez fazer um PTS, que os pacientes ficavam livres para escolher seus grupos. (P2)

Se evidenciou a pactuação de PTS com o usuário e de forma segmentada. São marcados atendimentos individuais com os serviços de Psicologia, de Assistência Social e Enfermagem.

(Diário do pesquisador, 22/07/2020)

Essa fragmentação do trabalho não se limita à realização/construção do PTS e está presente, de modo mais intenso, no processo de trabalho e na má utilização das oportunidades de atuação interprofissional, como na condução das reuniões de estudo de caso. Percebe-se que a segmentação do trabalho, por vezes, é reconhecida e criticada pelos próprios profissionais da equipe.

O que a gente faz aqui é o trabalho multiprofissional [...] o paciente passa pelo acolhimento, aí se ele tem algum problema clínico, vai para o pessoal da Enfermagem. Está em grande sofrimento e tem que fazer terapia? Passa para o psicólogo. [...] Às vezes um fala uma coisa, aí o outro fala outra coisa e o paciente fica sem saber o que que ele tem de seguir. (P4)

Teria que ser feito dessa forma integrada, mas às vezes não é feito, cada um faz a sua parte, o que acha que lhe convém. (P5)

Em situações de atendimento a pacientes em crise, os profissionais não se articulam para melhorar o acolhimento e as condutas terapêuticas a serem realizadas.

(Diário do pesquisador, 21/08/2020)

Outro aspecto relevante é a sobreposição da Medicina em relação às demais profissões. Os profissionais referem que muitos usuários buscam a medicação como tratamento e o profissional da Medicina como primeira escolha, em detrimento da atuação de outras categorias, o que favorece a centralização do cuidado a partir do modelo biomédico. Contudo, essa postura não é unilateral, uma vez que a equipe também naturaliza a hierarquia médica dentro do serviço e trabalha nessa perspectiva.

Na saúde mental essa questão da patologia é muito forte, né?! De diagnóstico e medicalização. As pessoas estão mais acostumadas e procuram isso. Elas ficam menos disponíveis para vir para um atendimento de Enfermagem, de serviço social. Tem uma série de questões de [o usuário] não entender a importância ou não conhecer, ou de supervalorizar o atendimento médico e medicamentoso. (P8)

A gente tenta ofertar no trabalho, nem que seja ali aquela parte medicamentosa. (P9)

[...] quando há atendimento médico no serviço, todos os profissionais trabalham em função deste atendimento, deixando de lado suas responsabilidades, inerentes a cada profissão.

(Diário do pesquisador, 06/19/2020)

Apesar da fragmentação evidente, há algumas práticas interprofissionais instituídas no cotidiano do serviço, como a discussão de condutas e alguns atendimentos compartilhados, que direcionam para a institucionalização da interprofissionalidade, além de demonstrar o reconhecimento dos benefícios desse tipo de trabalho.

A gente sempre procura trazer alguma dificuldade em um caso para equipe nesse estudo de caso [...] quando queremos resolver mais rápido, geralmente a gente conversa com o profissional que esteja ali na hora para ver a opinião dele também. (P1)

Os pontos positivos [do trabalho interprofissional] é que, além de todos os profissionais saberem de cada caso [...], é uma forma de comunicar melhor aqui interno, e também ajuda melhor os pacientes. (P7)

Hoje foi realizado um atendimento de dois profissionais de diferentes categorias a um usuário.

(Diário do pesquisador, 02/07/2020)

Formação, gestão e condições de trabalho: aspectos que tensionam a institucionalização da atenção psicossocial

Este estudo também identificou que a maioria dos profissionais, apesar do discurso de olhar ampliado ao sujeito, apresentam fragilidade em alguns conceitos e conhecimentos teórico-práticos intimamente ligados ao cuidado em saúde mental, bem como em leis, portarias e normatizações que direcionam o trabalho na atenção psicossocial.

Trabalho interprofissional? Se for um sinônimo para trabalho multiprofissional... (P2)

A rede de atenção psicossocial? São os CAPS, né? (P5)

[Sofrimento psíquico] é a enganação da mente. (P7)

É perceptível que um dos profissionais demonstra não conhecer leis, portarias e normatizações que são norteadores básicos ao cuidado em saúde mental no modelo de atenção psicossocial.

(Diário do pesquisador, 14/08/2020)

Identificaram-se também condições precárias de trabalho, como a falta de materiais e estrutura, contratos temporários e disparidade salarial. Além disso, há insatisfação com a gestão local, especificamente com a coordenação de saúde mental municipal, devido ao distanciamento e pouco suporte para desenvolvimento de ações que vão além do atendimento individual.

A gente não tem uma estrutura adequada. Não tem material, não tem salas suficientes pra os atendimentos, salas para atendimentos em grupo. Não temos apoio do gestor. Não disponibilizam carro nenhuma vez na semana para as visitas e matriciamento. (P1)

O CAPS é cobrado para, conforme preconiza seu funcionamento, atender pacientes em crise, mas não possui suporte e a estrutura necessária para isso. Além disso, os profissionais reclamam da disparidade de salário entre as formas de contratação e dos contratos de trabalho por indicação, ao invés de seleção por capacidade técnica.

(Diário do pesquisador, 17/08/2020)

[...] um ponto que fragiliza a institucionalização da atenção psicossocial é a desarticulação entre a gestão local e os profissionais. Pude observar que o gerente do serviço se atém a responsabilidades somente organizacionais, e a gestão local tem estado distante do serviço.

(Diário do pesquisador, 03/07/2020)

Mesmo centralizando o cuidado na figura médica, os profissionais também denunciam precariedade nos recursos humanos, alta rotatividade de trabalhadores, pouco ou nenhum espaço de Educação Permanente em Saúde (EPS)/formação em serviço e ausência de supervisão e/ou apoio clínico e institucional.

Porque só tem um médico, e com o atendimento reduzido essa lista de espera vai crescendo [...] aí você tem que ver os que estão mais graves entre os graves para agendar com o médico. [...] Não temos a Educação Permanente, e a rotatividade dos profissionais é muito grande. Não temos suporte para ficar indo todo mês no PSF [Posto de Saúde da Família], orientando as equipes. (P1)

[...] eu caí nesse CAPS de paraquedas, eu nunca tinha ouvido falar em CAPS. (P4)

Acho que precisa no CAPS uma supervisão clínica porque as coisas vão ficando muito no automático, e a gente precisa do olhar de um outro profissional experiente. (P6)

Apesar de práticas instituídas que tensionam o processo de institucionalização da atenção psicossocial, é válido destacar que há profissionais com conhecimento e engajamento na luta antimanicomial e que estes reconhecem as fragilidades e problemáticas do serviço e da gestão local – como a fragmentação do trabalho, a centralização do cuidado a partir do saber médico e a formação teórica insuficiente – e, desse modo, trazem luz às práticas instituintes da atenção psicossocial dentro do CAPS.

Não sei sobre a RAPS de forma completa, deveria conhecer mais. (P2)

O ideal é a gente trabalhar sempre em equipe, porque muitas vezes meu conhecimento vai até X, mas aí outro profissional tem conhecimento além. (P5)

Cuidado no território é essa ideia toda de saúde mental ser territorializada. Para a pessoa aumentar a sua autonomia, e ela não ter um lugar só de referência. Territorialidade tem a ver com isso. (P8)

Discussão

A RPb tem possibilitado movimentos no campo teórico e prático que tensionam a mudança de paradigma no âmbito do cuidado em saúde mental por meio de práticas e serviços substitutivos ao modelo médico-psiquiátrico/manicômio1313 Trindade JNR. A emergência do acompanhamento terapêutico como dispositivo clínico-político no processo da reforma psiquiátrica [trabalho de conclusão de curso]. São Paulo: Faculdade em Ciências da Saúde, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2020.. No entanto, este estudo revela que os profissionais também são atravessados pela instituição “manicômio” à medida que reproduzem práticas manicomiais/médicas-psiquiátricas ao ter o cuidado pautado na infantilização, reduzindo-o à tarefa empírica da maternidade e à tutela dos usuários. Ou seja, reproduzem atitudes que buscam conservar o que já está instituído e, portanto, prejudicam não só a institucionalização da atenção psicossocial, mas também o processo de análise e autorreflexão1414 Jacinto ABM, Assis DAD, MacDowell PL, Mota TD. Índios e loucos: sobre tutela, reconhecimento de direitos e desafios para a efetivação da cidadania no campo da saúde mental. Rev Dir Sanit. 2018; 19(2):14-35..

A infantilização do sujeito em sofrimento psíquico está extremamente ligada ao processo de institucionalização do paciente dentro dos serviços manicomiais. Nesses ambientes, ela é um método para retirar a autonomia civil, a liberdade e a capacidade de tomada de decisão sobre si mesmo; a tutela, advinda dessa infantilização, é tida como inevitável e vista como uma forma de proteção1515 Amaral RB, Silva SAH. O direito à moradia de pessoas com sofrimento psíquico. Braz J Health Rev. 2020; 3(3):6309-29.. Nesse sentido, a ligação da tutela dos usuários com a maternidade pode ser uma forma de minimizar os maus efeitos dessa postura, reforçando-a como um ato de carinho, o que dificulta a percepção dos profissionais e da própria sociedade sobre os malefícios1616 Amorim RG, Lavrador MCC. A perspectiva da produção de cuidado pelos trabalhadores de saúde mental. Psicol Cienc. 2017; 37(2):273-88. e a violência dessa tutela castradora1616 Amorim RG, Lavrador MCC. A perspectiva da produção de cuidado pelos trabalhadores de saúde mental. Psicol Cienc. 2017; 37(2):273-88. de desejos e movimentos, que produzem percursos de investimento no mundo para tomá-lo e torná-lo seu, além de cercear direitos e autonomia da pessoa em sofrimento psíquico1616 Amorim RG, Lavrador MCC. A perspectiva da produção de cuidado pelos trabalhadores de saúde mental. Psicol Cienc. 2017; 37(2):273-88.. Esse processo se dá ao contrário da paradoxal tutela autonomizadora, que provoca um movimento de produção de autonomia e possibilidade de vida, no qual, a partir da dependência, procura-se estimular a liberdade e corresponsabilização do sujeito por meio do agenciamento de instrumentos que ampliam o grau de governabilidade e possibilitam que ele passe a gerir suas decisões, em que o agir vivo de um dispare a produção de vida no outro1616 Amorim RG, Lavrador MCC. A perspectiva da produção de cuidado pelos trabalhadores de saúde mental. Psicol Cienc. 2017; 37(2):273-88..

A tutela castradora vincula-se ao modo/modelo asilar, anulando qualquer existência de subjetividade desejante, o que resulta em não mobilização do sujeito como participante do seu tratamento, sendo o corpo/organismo o objeto destinatário de ações e, assim, o indivíduo continua sendo visto como doente e com poucas possibilidades de participação ativa, exercendo papel de mercadoria, na qual não só as tarefas são fragmentadas, mas também o próprio sujeito. A tutela castradora é intensificada mesmo em um trabalho composto por diversos profissionais quando há determinação fundamentada nos problemas de ordem biológica e, portanto, espera-se que a eficácia venha da química, sendo o medicamento o principal meio/instrumento de cuidado33 Costa-Rosa A. O modo psicossocial: um paradigma das práticas substitutivas ao modo asilar. In: Amarante P. Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2000. p. 141-68.,1616 Amorim RG, Lavrador MCC. A perspectiva da produção de cuidado pelos trabalhadores de saúde mental. Psicol Cienc. 2017; 37(2):273-88.,1717 Merhy EE. Cuidado com o cuidado em saúde. Saiba explorar seus paradoxos para defender a vida. O ato de cuidar é um ato paradoxal: pode aprisionar ou liberar [Internet]. Campinas: [place unknown]; 2004 [citado 18 Jan 2024]. Disponível em: https://docplayer.com.br/20994959-Cuidado-com-o-cuidado-em-saude-saiba-explorar-seus-paradoxos-para-defender-a-vida-o-ato-de-cuidar-e-um-ato-paradoxal-pode-aprisionar-ou-liberar.htmlHess R. Do efeito Mühlmann ao princípio de falsificação: instituinte, instituído, institucionalização. Mnemosine. 2007; 3(2):148-63..

A reprodução de práticas manicomiais em serviços substitutivos, como os CAPS, revela a contradição inevitável para a análise institucional, em que as práticas instituídas pelos profissionais falsificam os princípios iniciais do espírito fundador da instituição “atenção psicossocial”, em que os trabalhadores esquecem, frequentemente, o porquê do trabalho1818 Hess R. Do efeito Mühlmann ao princípio de falsificação: instituinte, instituído, institucionalização. Mnemosine. 2007; 3(2):148-63.. Nesse caso, o instituído é representado por práticas vinculadas à tutela, à infantilização, à hipermedicalização, entre outras que são reproduzidas no cotidiano de trabalho do CAPS, recobrindo e negando os objetivos iniciais na fundação daquele serviço, que são a (re)construção da autonomia, a reinserção social, a cogestão e a coparticipação das pessoas em sofrimento, o que possibilita a reabilitação psicossocial. Nota-se, desse modo, o que chamamos de “princípio da falsificação”1818 Hess R. Do efeito Mühlmann ao princípio de falsificação: instituinte, instituído, institucionalização. Mnemosine. 2007; 3(2):148-63., uma vez que o serviço é implementado para colocar em prática os princípios da atenção psicossocial, mas o seu agir é manicomial.

Nesse sentido, podemos notar a visão infantilizada sobre a pessoa em sofrimento psíquico e a hierarquização da prática biomédico-psiquiátrica sobre as demais como uma manifestação desse princípio no cotidiano de trabalho desses serviços substitutivos. A compreensão dos fatores políticos e biopsicossociais como determinantes, bem como o investimento na mobilização do sujeito como participante principal do tratamento, com ênfase ao indivíduo e ao grupo social e familiar no processo de cuidado e de compreensão do sofrimento mental, são características do modelo de atenção psicossocial, que deveria ser praticado em serviços substitutivos como os CAPS33 Costa-Rosa A. O modo psicossocial: um paradigma das práticas substitutivas ao modo asilar. In: Amarante P. Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2000. p. 141-68.. Contudo, esses equipamentos criados e planejados para substituir o manicômio, por vezes funcionam sob a perspectiva do modelo manicomial instituído, no que diz respeito à percepção dos profissionais sobre o objeto e os instrumentos de trabalho22 Sampaio ML, Bispo JP Jr. Entre o enclausuramento e a desinstitucionalização: a trajetória da saúde mental no Brasil. Trab Educ Saude. 2021; 19:e00313145..

A soberania do médico psiquiatra e de suas práticas diante do saber e da autonomia de outros profissionais – como enfermeiros e psicólogos – é também historicamente sustentada pela cultura que está, no que se refere à saúde mental, intimamente relacionada ao fortalecimento da lógica manicomial, na qual o louco precisa ter o comportamento controlado, por métodos físicos e químicos, ao invés de ser compreendido como sujeito com necessidades humanas básicas ou de ser buscado para ele a promoção de um cuidado que proporcione mais segurança e menor risco orgânico, garanta essas necessidades de maneira integral e humanizada22 Sampaio ML, Bispo JP Jr. Entre o enclausuramento e a desinstitucionalização: a trajetória da saúde mental no Brasil. Trab Educ Saude. 2021; 19:e00313145..

Essas práticas instituídas no CAPS demonstram um efeito do processo institucionalizador que chamamos de efeito Mühlmann, no qual a instituição tende a ser formada a partir da negação da profecia inicial1818 Hess R. Do efeito Mühlmann ao princípio de falsificação: instituinte, instituído, institucionalização. Mnemosine. 2007; 3(2):148-63.. O termo “profecia”, nesse sentido da análise institucional, distancia-se do conceito religioso, sendo compreendida a partir dos objetivos iniciais do movimento instituinte. Neste estudo, ela é caracterizada pela Reforma Psiquiátrica/luta antimanicomial, que tem como princípio a reorientação do modelo de cuidado em saúde mental e construção de um novo lugar social para a loucura, visando ao cuidado integral do sujeito, a fim de promover sua autonomia e reintegração social22 Sampaio ML, Bispo JP Jr. Entre o enclausuramento e a desinstitucionalização: a trajetória da saúde mental no Brasil. Trab Educ Saude. 2021; 19:e00313145.,1818 Hess R. Do efeito Mühlmann ao princípio de falsificação: instituinte, instituído, institucionalização. Mnemosine. 2007; 3(2):148-63..

Essa contradição é inevitável e resulta da ação do princípio de equivalência, em que o instituído só “aceita” o movimento instituinte na medida em que ele se torna equivalente à norma já estabelecida1818 Hess R. Do efeito Mühlmann ao princípio de falsificação: instituinte, instituído, institucionalização. Mnemosine. 2007; 3(2):148-63., ou seja, a instituição saúde mental/atenção psicossocial pode utilizar instrumentos de trabalho inicialmente criados com a finalidade de serem substitutíveis às práticas manicomiais, porém, em benefício do instituído. Os instrumentos não devem ser usados assim, mas acabam sendo. Ou seja, a finalidade deles é distorcida. São feitos para substituírem o manicômio mas são utilizados a favor da manutenção do manicômio instituído.

Nesse sentido, a manifestação do princípio da falsificação, vinculada ao efeito Mühlmann, também é identificada neste estudo quando outras práticas instituídas no CAPS se relacionam aos aspectos dialéticos da instituição e aos efeitos do processo institucionalizador. A utilização de instrumentos próprios do modelo de atenção psicossocial – como grupos, visitas domiciliares e o PTS – em um serviço de cuidado territorial e livre só é possível graças à força do movimento instituinte da RPb. Contudo, os dados demonstram que, em muitos momentos, os profissionais aplicam os instrumentos próprios do modelo psicossocial, mas distorcem as suas finalidades e os utilizam em prol da manutenção do instituído22 Sampaio ML, Bispo JP Jr. Entre o enclausuramento e a desinstitucionalização: a trajetória da saúde mental no Brasil. Trab Educ Saude. 2021; 19:e00313145.,1818 Hess R. Do efeito Mühlmann ao princípio de falsificação: instituinte, instituído, institucionalização. Mnemosine. 2007; 3(2):148-63., com o cuidado sendo reduzido à finalidade de controle, tutela e, até mesmo, cura.

Dessa forma, a profecia inicial é negada pelo instituído por meio das práticas dos profissionais1818 Hess R. Do efeito Mühlmann ao princípio de falsificação: instituinte, instituído, institucionalização. Mnemosine. 2007; 3(2):148-63.. Isso acontece, por exemplo, quando o PTS – que fundamentalmente é um instrumento de trabalho interprofissional, pautado na construção coletiva e com participação ativa do usuário na promoção de sua autonomia sobre seu processo saúde-doença – é utilizado pelos profissionais sem incluir de fato os usuários/pessoa em sofrimento psíquico no planejamento terapêutico e sem incentivar a autonomia destes sobre as suas decisões de saúde1919 Lima LVC, Andrade FCB. O projeto terapêutico singular como estratégia de cuidado na atenção básica em saúde: uma proposta de implementação no município de São Pedro do Piauí [trabalho de conclusão de curso]. Teresina: Universidade Aberta do SUS; 2020..

Essa falsificação também pode ocorrer nas reuniões do estudo de caso – quando estas se limitam apenas a encaminhamentos ou alta, com pouca ou nenhuma discussão entre a equipe e sem que haja uma decisão compartilhada – ou mesmo quando as atividades terapêuticas são restringidas ao ambiente interno do CAPS, não valorizando a integração dos usuários com a sociedade e com o território em que vivem; e não promovendo a reinserção e a autonomia social das pessoas em sofrimento psíquico, objetivos professados inicialmente pelo movimento instituinte da RPb.

Cabe ressaltar que práticas vinculadas ao modelo de atenção psicossocial só são efetivamente substitutivas ao modelo médico-psiquiátrico se forem realizadas considerando a finalidade de (re)construção de autonomia, reinserção social e cuidado em liberdade, com o usuário como centro do cuidado. Caso contrário, há apenas novas roupagens e denominações para práticas já instituídas e atravessadas pelo modelo manicomial2020 Campos DB, Bezerra IC, Jorge MSB. Produção do cuidado em saúde mental: práticas territoriais na rede psicossocial. Trab Educ Saude. 2020; 18(1):e0023167..

Apesar das práticas instituídas citadas, há movimentos instituintes que tensionam para a institucionalização da atenção psicossocial tendo em vista que muitos profissionais que mencionam o cuidado humanizado – que promove protagonismo da pessoa em sofrimento – e que consideram o sujeito integralmente se posicionam criticamente em relação à centralização do cuidado no médico e no medicamento, assim como nas relações verticalizadas e hierarquizadas. Quando os profissionais apontam a importância e necessidade do trabalho interprofissional, reconhecendo que ainda reproduzem um modo de trabalho fragmentado e que prejudica a institucionalização da atenção psicossocial, há um tensionamento em relação ao instituído e, portanto, uma possibilidade de mudança.

O âmbito teórico-conceitual do processo social complexo da reforma psiquiátrica, que abarca a formação universitária e em serviço, tem papel fundamental na mudança de paradigma e, portanto, no modo de trabalho em equipe que direciona para a interprofissionalidade (âmbito técnico-assistencial). O trabalho interprofissional pode favorecer a institucionalização da atenção psicossocial e promover práticas profissionais eficientes e respeitosas entre as categorias da saúde2121 Cervo EB, Caumo MA, Cerdótes ALP, Jaeger FP. Interprofissionalidade e saúde mental: uma revisão integrativa. Rev Psicol Saude Deb. 2020; 6(2):260-72.. Por conseguinte, a formação universitária, as residências e a EPS são caminhos para a superação da uniprofissionalidade e possibilidades de promover discussão sobre o tema e melhor preparo dos profissionais que atuam no cuidado às pessoas em sofrimento mental.

O distanciamento do profissional em relação à Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS) e a ausência de espaços de formação em serviço podem fortalecer práticas instituídas e tensionar o processo de institucionalização da atenção psicossocial. Os espaços de EPS geram reflexão sobre as práticas profissionais instituídas, possibilitando a mobilização coletiva para mudanças e superação dos entraves para o cuidado psicossocial2222 Santos ACP, Cortez EA, Valente GSC, Assad SGB. Educação permanente visando à integralidade do cuidado na rede de saúde mental. Res Soc Dev. 2021; 10(1):e23810111648..

É importante destacar que a reprodução do modelo manicomial pelos profissionais e o distanciamento em relação à EPS também são resultado de retrocessos políticos, a exemplo do fortalecimento de instrumentos e estabelecimentos de caráter manicomial por meio de recomendações e financiamentos advindos do governo federal e da Política Nacional de Saúde Mental de 2017, que prevê o aumento de leitos em hospitais psiquiátricos, incluindo-os como componentes da RAPS, e da Nota Técnica 87 CGMAD/DAPES/SAS/MS n. 11/2019, que redirecionou recursos para a compra de equipamentos de eletroconvulsoterapia e defendia internação psiquiátrica e comunidades terapêuticas para usuários de álcool e drogas2323 Brasil. Ministério da Saúde. Resolução nº 32, de 14 de Dezembro de 2017. Estabelece as diretrizes para o fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Diário Oficial da União. 22 Dez. 2017.,2424 Brasil. Ministério da Saúde. Nota Técnica Nº 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS. Brasília: Ministério da Saúde; 2019..

Esse retrocesso político é acompanhado pela precarização das condições de trabalho, que inviabilizam e/ou dificultam a realização de um cuidado pautado na atenção psicossocial e, consequentemente, tensionam e enfraquecem o movimento instituinte de transformação das práticas22 Sampaio ML, Bispo JP Jr. Entre o enclausuramento e a desinstitucionalização: a trajetória da saúde mental no Brasil. Trab Educ Saude. 2021; 19:e00313145.,2525 Nóbrega MPSS, Mantovani GS, Domingos AM. Recursos, objetivos e diretrizes na estrutura de uma Rede de Atenção Psicossocial. Rev Bras Enf. 2020; 73(1):e20170864..

À medida que os profissionais utilizam instrumentos de trabalho criados a partir da RPb/atenção psicossocial com finalidades manicomiais, identifica-se uma contradição e tensão entre instituído e instituinte, fortalecendo o modus operandi instituído, ou seja, o efeito Mühlmann e o princípio da falsificação1818 Hess R. Do efeito Mühlmann ao princípio de falsificação: instituinte, instituído, institucionalização. Mnemosine. 2007; 3(2):148-63.. Porém, se a transformação das práticas instituídas no cotidiano dos serviços de saúde mental é o objetivo do movimento social da RPb, é natural que, diante desses princípios, haja o seguinte questionamento: é possível resistir à falsificação da profecia e ao princípio da equivalência?

Segundo Hess, é possível a formação de micronúcleos de resistência à falsificação da profecia para a transformação das práticas instituídas1818 Hess R. Do efeito Mühlmann ao princípio de falsificação: instituinte, instituído, institucionalização. Mnemosine. 2007; 3(2):148-63.. Ainda sobre isso, é lógico concluir que, se consideramos a RPb como um movimento complexo e multifacetado, assim também precisam ser essas ações de resistência55 Amarante P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2017..

Portanto, para além da área jurídico-política, é relevante fortalecer e incentivar pesquisas, especialmente a pesquisa-intervenção, pois, para os profissionais que estão imersos na lógica instituída do serviço, esse tipo de estudo os desafia a olhar para o contexto e produzir novos conhecimentos e instrumentos de trabalho, ao passo que transforma o cotidiano de práticas, conhecendo-as. O princípio da análise institucional – transformar para conhecer – direciona o sujeito para participação na dinâmica institucional44 Lourau R. A análise institucional. Rio de Janeiro: Editora Vozes; 2014. e, portanto, há a possibilidade de olhar criticamente para os processos instituídos, favorecendo o fortalecimento da institucionalização da atenção psicossocial. Além disso, projetos de extensão; formação em serviço baseada na EPS; espaços de cogestão e coparticipação para usuários e profissionais; e implementação de residências e internatos interprofissionais nas universidades também são algumas das opções para impulsionar a modificação das práticas e de posturas sociais, assistenciais e educacionais a respeito do cuidado em saúde mental no Brasil22 Sampaio ML, Bispo JP Jr. Entre o enclausuramento e a desinstitucionalização: a trajetória da saúde mental no Brasil. Trab Educ Saude. 2021; 19:e00313145.,2626 Radke MB, Ceccim RB. Educação em saúde mental: ação da reforma psiquiátrica no Brasil. Saude Redes. 2018; 4(2):19-36.,2727 Nunes JMS, Guimarães JMX, Sampaio JJC. A produção do cuidado em saúde mental: avanços e desafios à implantação do modelo de atenção psicossocial territorial. Rev Saude Colet. 2016; 26(4):1213-32..

Diante de diversas ferramentas que fortalecem o instituído e a negação da profecia inicial da institucionalização da atenção psicossocial – como a formação profissional deficitária, o atravessamento do modelo manicomial nas práticas dos profissionais do CAPS, as condições precárias de trabalho e, principalmente, os ainda recentes retrocessos na política de saúde mental –, compreende-se que a RPb é e deve ser um movimento permanente de resistência e, portanto, pode promover a transformação das práticas.

Conclusões

O estudo permitiu analisar o processo de institucionalização da atenção psicossocial por meio das práticas profissionais do CAPS, revelando a realidade dialética de tensões entre o manicômio instituído e o movimento instituinte da RPb, que produz o efeito Mühlmann no cotidiano do serviço e, portanto, a falsificação da profecia do modelo de atenção psicossocial e do próprio CAPS, uma vez que se identificaram práticas manicomiais fortemente instituídas e a distorção da finalidade de instrumentos de trabalho inicialmente pensados para atender ao propósito da atenção psicossocial.

A pesquisa-intervenção em que este estudo está inserido também tem produzido, a partir da restituição da etapa exploratória e da articulação com as necessidades atuais do serviço, encontros quinzenais para formação em serviço, com participação ativa de seis profissionais do serviço, com duração de aproximadamente duas horas, o que possibilita o fortalecimento de práticas instituintes pautadas na atenção psicossocial. Nesse sentido, é importante a valorização da abertura da equipe para o olhar direcionado ao cotidiano de trabalho com possibilidade de criação e resistência diante do efeito Mühlmann.

Apesar das limitações do estudo causadas pela pandemia e pela redução do número de profissionais no momento da coleta, foi possível refletir, por meio dos resultados, sobre as práticas de fortalecimento do manicômio instituído dentro do CAPS; sobre as estratégias de precarização e enfraquecimento da institucionalização da atenção psicossocial nos quatro âmbitos do processo social complexo da RPb; e sobre a necessidade de promover e fortalecer dispositivos de reflexão e transformação de práticas, seja por meio de pesquisas que tragam contribuições para os serviços, por meio da formação em serviço, ou de projetos de extensão universitária, de audiências públicas com participação popular, entre outras formas de resistência contínua à falsificação da profecia.

Agradecimentos

Aos revisores, pelo tempo dedicado à análise e sugestões de melhoria para o nosso trabalho, e à equipe editorial, pelo profissionalismo, dedicação e atenção durante o processo de publicação. Aos amigos e companheiros de trabalho que nos ajudaram durante a realização da pesquisa e, em especial, agradecemos à Dra. Marina Nolli Bittencourt, à Dra. Luana Pinho de Mesquita Lago e à Dra. Valéria de Carvalho Araújo Siqueira, pelas orientações durante o processo de escrita

  • Silvano AD, Rézio LA, Murça JC, Borges FA, Dóbies DV. A institucionalização da atenção psicossocial: o efeito Mühlmann nas práticas profissionais de um Centro de Atenção Psicossocial. Interface (Botucatu). 2024; 28:e23050 https://doi.org/10.1590/interface.230500

Referências

  • 1
    Oliveira LMS, Chaves MCAC. Condenados pela loucura: o impacto das diretrizes das políticas públicas para a saúde mental na dignidade da pessoa humana. Cad Grad Cienc Hum Soc Unit. 2020; 4(3):113-35.
  • 2
    Sampaio ML, Bispo JP Jr. Entre o enclausuramento e a desinstitucionalização: a trajetória da saúde mental no Brasil. Trab Educ Saude. 2021; 19:e00313145.
  • 3
    Costa-Rosa A. O modo psicossocial: um paradigma das práticas substitutivas ao modo asilar. In: Amarante P. Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2000. p. 141-68.
  • 4
    Lourau R. A análise institucional. Rio de Janeiro: Editora Vozes; 2014.
  • 5
    Amarante P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2017.
  • 6
    Brasil. Ministério da Saúde. Centros de Atenção Psicossociais e Unidades de Acolhimento como lugares de atenção psicossocial no território: orientações para elaboração de projetos de construção, reforma e ampliação de CAPS e de UA. Brasília: Biblioteca Virtual de Saúde; 2015.
  • 7
    Cusinato C. Reforma psiquiátrica: avanços e desafios das práticas dos profissionais de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) [dissertação]. Botucatu: Faculdade de Medicina, Universidade Estadual Paulista; 2016.
  • 8
    Severo AK, L’abbate S. Uma supervisão clínico-institucional na reforma psiquiátrica na perspectiva da análise institucional. Trab Educ Saude. 2019; 17(3):e0021646.
  • 9
    Mesquita-Lago LP, Matumoto S, Silva SS, Mestriner SF, Mishima SM. Analysis of professional practices as a multiprofessional residency education tool. Interface (Botucatu). 2018; 22(2):1625-34. doi: 10.1590/1807-57622017.0687.
    » https://doi.org/10.1590/1807-57622017.0687
  • 10
    Galvão EFC, Galvão JB. Pesquisa intervenção e análise institucional: alguns apontamentos no âmbito da pesquisa qualitativa. Rev Cienc Soc. 2017; 1(1):54-67.
  • 11
    Minayo MCS, Deslandes SF, Gomes R. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. São Paulo: Vozes; 2011.
  • 12
    Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2016.
  • 13
    Trindade JNR. A emergência do acompanhamento terapêutico como dispositivo clínico-político no processo da reforma psiquiátrica [trabalho de conclusão de curso]. São Paulo: Faculdade em Ciências da Saúde, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2020.
  • 14
    Jacinto ABM, Assis DAD, MacDowell PL, Mota TD. Índios e loucos: sobre tutela, reconhecimento de direitos e desafios para a efetivação da cidadania no campo da saúde mental. Rev Dir Sanit. 2018; 19(2):14-35.
  • 15
    Amaral RB, Silva SAH. O direito à moradia de pessoas com sofrimento psíquico. Braz J Health Rev. 2020; 3(3):6309-29.
  • 16
    Amorim RG, Lavrador MCC. A perspectiva da produção de cuidado pelos trabalhadores de saúde mental. Psicol Cienc. 2017; 37(2):273-88.
  • 17
    Merhy EE. Cuidado com o cuidado em saúde. Saiba explorar seus paradoxos para defender a vida. O ato de cuidar é um ato paradoxal: pode aprisionar ou liberar [Internet]. Campinas: [place unknown]; 2004 [citado 18 Jan 2024]. Disponível em: https://docplayer.com.br/20994959-Cuidado-com-o-cuidado-em-saude-saiba-explorar-seus-paradoxos-para-defender-a-vida-o-ato-de-cuidar-e-um-ato-paradoxal-pode-aprisionar-ou-liberar.htmlHess R. Do efeito Mühlmann ao princípio de falsificação: instituinte, instituído, institucionalização. Mnemosine. 2007; 3(2):148-63.
  • 18
    Hess R. Do efeito Mühlmann ao princípio de falsificação: instituinte, instituído, institucionalização. Mnemosine. 2007; 3(2):148-63.
  • 19
    Lima LVC, Andrade FCB. O projeto terapêutico singular como estratégia de cuidado na atenção básica em saúde: uma proposta de implementação no município de São Pedro do Piauí [trabalho de conclusão de curso]. Teresina: Universidade Aberta do SUS; 2020.
  • 20
    Campos DB, Bezerra IC, Jorge MSB. Produção do cuidado em saúde mental: práticas territoriais na rede psicossocial. Trab Educ Saude. 2020; 18(1):e0023167.
  • 21
    Cervo EB, Caumo MA, Cerdótes ALP, Jaeger FP. Interprofissionalidade e saúde mental: uma revisão integrativa. Rev Psicol Saude Deb. 2020; 6(2):260-72.
  • 22
    Santos ACP, Cortez EA, Valente GSC, Assad SGB. Educação permanente visando à integralidade do cuidado na rede de saúde mental. Res Soc Dev. 2021; 10(1):e23810111648.
  • 23
    Brasil. Ministério da Saúde. Resolução nº 32, de 14 de Dezembro de 2017. Estabelece as diretrizes para o fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Diário Oficial da União. 22 Dez. 2017.
  • 24
    Brasil. Ministério da Saúde. Nota Técnica Nº 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS. Brasília: Ministério da Saúde; 2019.
  • 25
    Nóbrega MPSS, Mantovani GS, Domingos AM. Recursos, objetivos e diretrizes na estrutura de uma Rede de Atenção Psicossocial. Rev Bras Enf. 2020; 73(1):e20170864.
  • 26
    Radke MB, Ceccim RB. Educação em saúde mental: ação da reforma psiquiátrica no Brasil. Saude Redes. 2018; 4(2):19-36.
  • 27
    Nunes JMS, Guimarães JMX, Sampaio JJC. A produção do cuidado em saúde mental: avanços e desafios à implantação do modelo de atenção psicossocial territorial. Rev Saude Colet. 2016; 26(4):1213-32.

Editado por

Editor
Tiago Rocha Pinto
Editor associado
Moisés Romanini

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    22 Out 2023
  • Aceito
    04 Mar 2024
UNESP Distrito de Rubião Jr, s/nº, 18618-000 Campus da UNESP- Botucatu - SP - Brasil, Caixa Postal 592, Tel.: (55 14) 3880-1927 - Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br