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Fronteiras “visíveis” e deslocamentos: ensaio por meio da pichação e do funk

“Visible” borders and displacements: essay through graffiti and funk

Resumo:

Este artigo busca contribuir para embarcar no tema fronteiras "visíveis" e deslocamentos forçados. Realiza-se um ensaio à luz da Análise Discursiva como ferramenta analítica, por meio, e na articulação, de três elementos principais de estudo: a) as expressões das pichações; b) a manifestação de funks; c) a utilização do suporte de estudo bibliográfico. A partir desse exercício de articulação, busca-se entender a formação discursiva que possibilita o resgate de debates teóricos. Os sentidos vinculados às condições de produção voltam-se às facções no Rio de Janeiro, que utilizam diferentes elementos em meio à disputa do domínio territorial/econômico. É debatida a questão do “pichador do tráfico”, concomitante à manifestação de funks, e o reforço do pré-construído em torno de hábitos e costumes que fundamentam ideários que permeiam situações de poder. Tem-se aí a produção de fronteiras “visíveis” e, como possível resultado, a produção de deslocamentos forçados de forma coercitiva, se os sujeitos não “aderem” à demarcação inscrita no campo do poder. As contradições irremediáveis à sociabilidade capitalista conduzem a uma relação de objetividade que é expressa em produções de experiências atreladas às violências. Percebe-se a facção como um grupo com “status” empresarial que possui uma estrutura simbólica e normativa atrelada à violência.

Palavras-chave:
fronteiras visíveis; pichações; Rio de Janeiro; análise de discurso; violência

Abstract:

This article seeks to contribute to embarking on the theme of "visible" borders and forced displacements. An essay is carried out in the light of Discursive Analysis as an analytical tool, through, and in the articulation, of three main elements of study: a) the expressions of the graffiti; b) the manifestation of funks; c) the use of bibliographic study support. From this exercise of articulation, we seek to understand the discursive formation that makes possible the rescue of theoretical debates. The meanings linked to production conditions turn to the factions in Rio de Janeiro, which use different elements in the midst of the territorial/economic domain dispute. The issue of the “trafficking tagger” is debated, concomitant with the manifestation of funks, and the reinforcement of the pre-built around habits and customs that underlie ideas that permeate situations of power. There is the production of “visible” borders and, as a possible result, the production of forced displacements in a coercive way: if subjects do not “adhere” to the demarcation inscribed in the field of power. The irremediable contradictions of capitalist sociability lead to a relation of objectivity that is expressed in productions of experiences linked to violence. The faction is perceived as a group with business “status” that has a symbolic and normative structure linked to violence.

Keywords:
visible borders; graffiti; Rio de Janeiro; discourse analysis; violence

Introdução

Este artigo busca contribuir brevemente para embarcar no tema Fronteiras visíveis, realizando um modesto ensaio à luz da Análise Discursiva. Realiza-se um exercício analítico por meio, e na articulação, de três elementos principais de estudo: a) as expressões das pichações; b) a manifestação de funks; c) a utilização do suporte de estudo bibliográfico. Defende-se que, por meio dessa articulação, é possível extrair narrativas de representações que estão no campo da produção e reprodução das relações sociais no que se refere ao objeto em questão, e com isso “fazer emergir” um sentido que é produzido acerca desse objeto.

No que se refere à Análise de Discurso (AD), deve-se lembrar de que este estudo trabalha com o sentido e não com o conteúdo do texto, um sentido que não é traduzido, mas produzido (CARAGNATO; MUTTI, 2006, p. 680-681). Portanto, levam-se em consideração as condições de produção do discurso, as posições de sujeitos e os efeitos de sentidos, aspectos referentes ao funcionamento do discurso. Procura-se ir ao encontro de elementos da Análise de Discurso introduzida por Michel Pêcheux, que se aproxima do marxismo, em que para ele a ideologia é a matriz do sentido, pois as palavras, expressões, proposições mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a essas posições, isto é, em relação às formações ideológicas. (PÊCHEUX, 1995, pPÊCHEUX, M. ([1975]1995). Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad.: Eni Puccinelli Orlandi et al. Campinas: Unicamp. 2 a ed.. 160).

Como expõe Maria Cristina Leandro Ferreira (2022, pFERREIRA, M. C. L. O acontecimento discursivo como gesto de interpretação na história. In: GUIMARÃES, G. T. D.; FERREIRA, M. C. L.; PAULA, M. C. de. (org.). Teorias da Análise do Discurso: contribuições de Michel Pêcheux e Teun van Dijk à pesquisa social. São Paulo: Alexa Cultural; Manaus: Edua, 2022. p. 27-36.. 28, grifo nosso):

Ao pensarmos em sentido no âmbito discursivo é preciso considerá-lo em sua relação com a historicidade [...] o sentido tem seu processo de constituição como algo fundamentalmente histórico, vinculado a um trabalho da rede de memória; assim como ocorre com o sujeito, o sentido nunca é individual, nem tampouco surge como já produzido. A Análise do Discurso vai deter-se precisamente no processo de produção dos sentidos, através de procedimentos que desvendam a historicidade contida na linguagem em seus mecanismos imaginários. Esta determinação histórica, tanto do sentido quanto do sujeito, faz com que eles não sejam entendidos como naturais, transparentes, mas sejam pensados em sua contradição.

Busca-se, portanto, por meio deste ensaio e exercício analítico, como procedimento, resgatar a constituição fundamentalmente histórica onde os sujeitos estão imersos, constituídos em meio ao caráter material de condições de produção. No que se refere aos três elementos principais pelos quais este artigo se pauta (as pichações; a manifestação de funks; e a utilização do suporte de estudo bibliográfico), vale destacar algumas questões.

Sobre as pichações, algumas teorizações obtêm destaque, em especial no que se refere ao espaço urbano, que leva em conta que a pichação tem o propósito de primeiramente ser expressão livre e sem autorização, que vai além de um simples rabisco no muro, pois tem uma natureza crítica, onde o pichador reivindica o local, transforma-o a seu ver (MACIEL, 2015, pMACIEL, P. F. V. O muro como elemento de mediação do grafite e a pichação em Foz do Iguaçu. UNILA. Foz do Iguaçu, 2015. Disponível em: https://dspace.unila.edu.br/bitstream/handle/123456789/543/TCC%20Pedro%20Vazquez.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 18 nov. 2021.
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. 14-49). Em meio ao modo de produção capitalista, o pichador não tem interesse em vender seu trabalho, pois quer provocar sensações de incômodo, e alguns buscam, através de sua arte como forma de resistência, questionar o sistema, seja ele político, econômico ou social (FERNANDES; BARBOSA, 2014, pFERNANDES, L. D.; BARBOSA, J. G. M. Pichação como manifestação cultural: arte ou vandalismo? In: Anais do I Simpósio Mineiro De Geografia. Alfenas, 2014.. 383). No entanto, ao longo desse exercício analítico, se percebe que a pichação é, também, uma prática de determinação com o objetivo de reforçar uma legitimidade. Carrega, enquanto ação que se volta a ser “marcador territorial”, uma imbricação em torno de questões mais complexas, contudo na dimensão do “poder”.

O funk possibilita extrair narrativas de representações que estão no campo da produção e organização social (por meio da música que também constitui e é constituída por esse fenômeno que é a facção). Ou seja, o funk “fala por ele de forma ampla e coletiva”, tendo em vista que uma música popular de uma região expressa, nas estrofes, valores, indignações, representações, estigmas que são socialmente veiculados, diferentes modos de apreender contextos e fenômenos que compõem estas realidades” (PRATES, 2007, pPRATES, J. C. A arte como matéria-prima e instrumento de trabalho para o assistente social. Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6n. 2p. 221-232. jul./dez. 2007. Link: revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fass/article/view/2313/3244..224).

Por sua vez, o estudo bibliográfico dá condição para o embasamento científico, pois faz emergir e vincula o objeto à seleção e fichamento de informações extraídas de livros, revistas científicas, teses e dissertações e anais de eventos sobre o assunto.

O discurso que retifica as fronteiras visíveis: sentidos materializados por meio das pichações e dos funks

A Figura 1, à primeira vista, anuncia algo simples: uma pichação. Normalmente, é propício ir ao encontro a entendê-la no âmbito dos debates “contemporâneos” e/ou teóricos sobre as expressões gráficas de indivíduos e/ou grupos marginalizados, em que se debate sobre uma manifestação que exterioriza algo à “paisagem” urbana — ora é vandalismo (delito, infração etc.), ora é manifestação cultural (resistência, apropriação etc.). Sem desconsiderar essas questões, deve-se resgatar que o objetivo deste artigo, através do exercício analítico à luz da Análise Discursiva, é tratar da questão das fronteiras visíveis na cidade do Rio de Janeiro.

Figura 1
- Fotografia tirada em 16 de outubro de 2021, Morro do Catumbi, Bairro Santa Teresa, Rio de Janeiro

Parte-se do pressuposto que as expressões das pichações têm/possuem condições de produção — neste caso, a materialidade significante se trata de uma pichação (texto) que está carregada de discursos, tendo em vista que, de alguma forma, mostram o propósito de estabelecer um diálogo social (FERNANDES, 2011, pFERNANDES, E. M. da F. Pichações: discursos de resistência conforme Foucault. Acta Scientiarum: Language and Culture, Maringá, v. 33, n. 2, p. 241-249, 2011. DOI https://doi.org/10.4025/actascilangcult.v33i2.13864
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. 242). A pichação se determina através de um sentido que é produzido e se forma por meio de uma síntese de várias coisas, e não cabe aqui codificá-lo e/ou categorizá-lo, mas perceber algo a respeito da discursividade que é atravessada pelas condições materiais de produção dos sujeitos e dos seus produtos — no caso deste, a pichação (aliada ao funk e ambos apoiados no estudo bibliográfico) é o produto (síntese de várias coisas que produzem um sentido que pode/deve ser refletido).

A pichação expressa na Figura 1, exteriormente, algo de fácil entendimento: ao mesmo tempo em que se apaga a alusão a uma Facção (Amigos dos Amigos - ADA), faz-se referência a outro grupo (Comando Vermelho - CV). O local em que a pichação está localizada é uma área de conflito, fica nos acessos do Morro da Coroa, comunidade localizada entre os bairros Catumbi e Santa Teresa, região central do Rio de Janeiro. Os conflitos armados pelo domínio desse território são conhecidos e comumente estão sendo mostrados pela cobertura das grandes mídias televisiva e/ou digital. As recentes guerras nessa região — a partir do ano de 2015 — intensificaram o cenário de violência em torno do mercado das drogas ilícitas. A Facção ADA, após uma intensa guerra envolvendo os três principais grupos faccionais do Estado, perdeu o domínio territorial/econômico do Morro da Coroa para o grupo do CV que comanda as comunidades do Fallet, Fogueteiro e Prazeres, também em Santa Teresa. Com o passar do tempo, as pichações do ADA foram sendo riscadas/apagadas e cobertas, e surgem as pichações do CV.

Sem dúvidas, as pichações são práticas afirmativas para reforçar legitimidade, são funcionais como marcadores territoriais que expressam diretrizes impostas (GOMES; JESKE, 2021, pGOMES, S. da S. R; JESKE, H. Inscrições corporais e nas ruas: uma análise sobre os marcadores de facções no Brasil contemporâneo. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS: Mercados ilícitos e dinâmicas criminais, 45., 2021.. 5-6) e são também, certas vezes, formas de transmissão de informações por meio de ameaças (ARAUJO, 2018, p. 18-19). No entanto, é importante analisar o discurso além do contexto do domínio das palavras (em seus sentidos morfológicos), para além da “colagem” aparente entre “linguagem” e mundo — procurando estabelecer o sentido que é produzido1 1 Para Michel Pêcheux, o sujeito do discurso não se pertence, ele se constitui pelo esquecimento daquilo que o determina, o indivíduo é interpelado em sujeito pela identificação com uma formação discursiva dominante, já que o sujeito é sobre determinado pelo pré construídos (BRASIL, 2011, p. 173). .

Retornando à pichação retratada na Figura 1, consideramos que ela extrapola o âmbito de uma manifestação que expressa um vandalismo (algo imoral) e/ou uma manifestação cultural (de resistência), como ecoam os principais debates acerca dessa questão.

Nesse sentido, vale concluir que, o que se tem é o desenvolvimento da constituição do sujeito moderno. Entende-se, portanto, que há demarcação em torno de um sujeito (“o pichador do tráfico”) que trabalha para tornar fronteiras, já existentes, visíveis. Percebe-se a marcação de uma fronteira no ato de pichar. Tem-se o ato de dar maior visibilidade a uma situação/relação atrelada a um determinado poder, e com isso se percebe a diferença entre “o pichador comum/usual” e o “pichador do tráfico” — esse último, que no ato de pichar subjetiva uma produção discursiva atrelada ao “poder-dizer” típico da sociedade moderna burguesa.

Esse ato e atividade do “pichador do tráfico”, diferentemente do caráter usual estabelecido (e estereotipado) em torno do “pichador comum” — em que se expressa um vandalismo, algo imoral, e/ou uma manifestação cultural, resistência (consequentemente uma prática de oposição à ordem estabelecida), reforça o pré-construído da modernidade. Ou seja, há a produção e a demarcação de valores, hábitos e costumes que são elementos que constituem a modernidade-mundo (do capitalismo), fundamentando-se em ideários como do poder, dos padrões de comportamento tidos como universais, principalmente simbólicos (TRINDADE, 2005, pTRINDADE, E. A publicidade e a modernidade-mundo: as representações de pessoa, espaço e tempo. In: BARBOSA, I. S. (org.). Os sentidos da publicidade: estudos interdisciplinares. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005. p. 71-95.. 83-84)2 2 Eneus Trindade (2005, p. 86) estuda e pesquisa a publicidade e a modernidade-mundo, chegando ao entendimento que “o discurso do estímulo ao consumo é, por excelência, o discurso que traz em si valores da modernidade mundo”. Esse exemplo pode ser “colocado” nos termos da discussão desse artigo, ao se levantar o debate sobre a redução do sujeito pichador do tráfico a uma determinada discursividade. . Isso contribui para a especificidade da imagem no processo discursivo de produção dos sentidos, em outros termos, faz constituir e circular um discurso enquanto objeto socio-histórico ideológico — nesse caso, a disputa e a suposta hegemonia de poder (econômico, territorial etc.), vinculado à produção da violência.

Os funks citados a seguir possibilitam reflexões que dão materialidade ao debate.

“O confronto é intenso, um Morro do lado que separa as gangues, polícia não se mete não que é guerra de traficante” (2ADOTREMBALA, 2020, 01:16 min).

“Brota Coroa ou aguarda nós na Mineira aí mais tarde, tu vai ver o que que é Guerra. [...] Na Coroa já tá 2, tá brabo deles tentar. Na Itapiru não passa nada, se brotar é muito tiro[...] chefe me dá o meu Meiota cheio de pente para eu acabar com ADA” (MC DESCONHECIDO, 2020, 00:29 min).

“Para estar na Nova tem que estar ligado, para não pisar em lugar errado. Até então o bagulho aqui tem divisão, nós aqui tudo vermelho e do outro lado os Alemão” (MC RODSON, 2013, 01:00 min.).

As letras de funk demonstram íntima relação com o sentido que é produzido/atravessado, expresso na imagem da pichação (Figura 1), sentido esse que evoca um marcador que expressa uma realidade: as fronteiras visíveis.

O segundo elemento, que se articula com a expressão da pichação exposta, são as manifestações de funks. As duas letras demonstram relação com as condições de produção do discurso que emerge em meio à pichação no que tange à situação das fronteiras visíveis. Em uma das estrofes, aponta-se que há um “confronto” e o que separa as facções é “um Morro”, e outra estrofe se refere diretamente ao território no qual é produzida a pichação. Aponta-se que “na Itapiru (importante Rua que liga a região do Centro do Rio de Janeiro ao Rio Comprido) não passa nada, se brotar [se aparecer] é muito tiro” — essa é uma mensagem passada pelo recém grupo faccional que assumiu o controle do Morro da Coroa. Por fim, a última estrofe trazida refere que para se estar na Nova Holanda (comunidade do Complexo da Maré) tem que estar “ligado para não pisar em lugar errado”, pois há uma divisão territorial e do outro lado (na outra comunidade) há uma facção rival.

Usualmente, entende-se a fronteira como o limite que demarca um país e o separa de outro(s) e/ou a linha que divide ou delimita, separando países (DICIO, 2022)3 3 Significado extraído do Dicio, dicionário on-line: dicio.com.br/fronteira/. Acesso em: 2 abr. 2022. . Ou seja, seu sentido morfológico está marcado como substantivo que remete, contudo, àquilo que é limite. Conceitualmente, muitos debates giram em torno da questão da fronteira, em especial no que remete às linhas físicas que separam áreas geográficas de poderes administrativos e políticos. Essa atribuição está nos debates teóricos da geografia, ou mais especificamente, à geopolítica e das Relações Internacionais.

O conceito de fronteira é derivado de outros conceitos-chave da disciplina, como Estado, território, soberania, sistema internacional e anarquia características intrínsecas das teorias mais utilizadas nas relações internacionais — o realismo/neorrealismo (onde as fronteiras não possuem especificidade merecedora de atenção analítica especial) e o liberalismo/neoliberalismo (onde se dá atenção aos atores do sistema internacional e se debatem os “interesse nacionais” dos Estados) (SCHERMA, 2012, pSCHERMA, M. A. As fronteiras nas relações internacionais. Revista Monções, v. 1, n. 1, 2012. Disponível em: https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/moncoes/article/view/2075. Acesso em: 28 nov. 2021.
https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/moncoe...
. 126-127).

No entanto, conforme se percebe no debate que emerge neste exercício analítico, há outras dimensões que estão “para além” desses entendimentos, tanto no que se refere ao domínio das palavras no quesito morfológico (o “sentido” específico atribuído ao seu significado do dicionário) como frente ao quesito do que se elava no debate teórico contemporâneo (da ordem da fronteira física — do visível).4 4 Contudo, deve-se lembrar e salientar a importância dos debates que evocam a questão da fronteira em seus múltiplos significados, pois ela é abordada/questionada de diferentes formas: numa linha visível ou imaginária de fronteira, um Estado termina e outro começa. Fronteira é também o fim do mundo para quem deixa o seu Estado de pertença; ou o início do mundo para quem volta ao seu Estado de pertença. Fronteira é também o fato social, no sentido empregado por Durkheim em As Regras do Método Sociológico (1895). Fronteira é também uma coisa criada (feita) pelos seres humanos. A fronteira ordenada, segura, também se refere ao fortalecimento do Estado e sua população. Fronteira é também mecanismo de proteção social nas bordas do Estado, em benefício das bordas e do miolo do Estado (BENTO, 2012). Como se vê, há o estabelecimento de fronteiras visíveis, cujas representações estão imbricadas em múltiplas dimensões do cotidiano (territoriais, culturais, de experiências e necessidades, de tensões provocadas pela violência). Parte-se desse pressuposto para refletir a seguir, pois tanto a imagem da pichação (Figura 1) quanto as estrofes extraídas dos funks demonstram que se erguem fronteiras que não se apresentam “diretamente” como “físicas”. Como aponta Gustavo Villela Lima da Costa (2013, pCOSTA, G. V. L. da. O muro invisível A nacionalidade como discurso reificado na fronteira Brasil-Bolívia. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, v. 25, n. 2, 2013.. 153), ao estudar a vida nas regiões fronteiriças, se há certamente, na fronteira, espaços sociais de circulação, de fluxos e trocas além da economia, “existe também a construção de muros visíveis que, por sua presença difusa e às vezes encoberta, são muito mais difíceis de serem localizados e demolidos”.

Explicou-se, grosso modo, a situação que envolve o contexto da imagem da pichação aqui apresentada. De forma objetiva, trata-se da mudança de controle territorial/econômico de uma facção na cidade do Rio de Janeiro para outra, e com isso ocorre a pichação no muro na entrada do Morro da Coroa. Há, portanto, a prática de uma definição, ou seja, firma-se um conteúdo expresso no apagamento da sigla de uma Facção e na identificação de outra, conforme explica Knetsche (2019, p. 33), ao estudar a análise do discurso “revolucionário” em pichações:

[...] essas definições não implicam apenas uma regulação epistêmica, mas também na ordem dos saberes/poderes. Não uma regulação de poder necessariamente atrelada ao poder estatal, hierarquizado, mas aos micropoderes. O universo das pichações, por exemplo, é construído à margem de um poder hierarquicamente superior na sociedade brasileira, mas nem por isso é insignificante nos dizeres[...].

Tanto no ato de apagar a sigla da Facção rival como pichar a sigla do seu grupo faccional, há uma ação que, para além de ser individual (o ato de pichar), é coletiva e está na ordem do saber/poder, na relação atrelada a um “poder-dizer”, onde os sujeitos conseguem se metaforizar, se subjetivar de outras maneiras, e não permanecer naquelas que os excluem. São narrativas urbanas que se estampam (se imprimem) (ORLANDI, 2001, pORLANDI, E. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas: Pontes, 2001.. 194)5 5 Tem-se aí a produção discursiva de grafites e pichações que estão atravessadas por esses “gestos feitos de violência”, em “aparições fugidias” (na iminência de serem apagadas, encobertas, rasuradas, esquecidas...). Constituem-se como “ruído das práticas cotidianas” (CERTEAU, 1998, p. 308 apud LACERCA, 2020, p. 16), deslocando sentidos estabilizados para o que significa estar na cidade. .

Entende-se que a música Funk é elemento que expressa narrativas de representações que estão no campo da produção e da organização social, e, portanto, deve ser analisado através do caráter de seriedade, pois é uma prática que é parte de um determinado grupo subalternizado historicamente, e ao mesmo tempo é compreensão e experiência desses sujeitos (BITENCOURT, 2021, pBITENCOURT, João Vitor. Ensaio sobre os sentidos de uma facção: o caso da facção carioca amigos dos amigos (ADA). X JOINPP. 2021. Disponível em: www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2021/images/trabalhos/trabalho_submissaoId_191_19160fafbb27941e.pdf. Acesso em: 20 nov. 2021.. 5). Conforme demonstram Rodriguez, Ferreira e Arruda (2011, p. 430, grifo nosso), em estudo sobre representações sociais e território nas letras de funk proibido de facção, os funks proibidos de facção:

[...] trazem elementos que nos levam a entender o lugar dos territórios[...] essas fronteiras (in)visíveis necessitam ser respeitadas por trabalhadores e não trabalhadores do tráfico que aí se encontram. As sanções e violências contra aqueles que não as respeitam chegam, na maior parte das vezes, à morte[...] O território parece ganhar status de personagem da vida cotidiana. Ele é regulamentado e regulamenta essa vida. Simbólica e fisicamente, está nas pessoas como as pessoas estão nele.

O que nos mostram os autores acima mencionados, e está expresso também nas letras citadas anteriormente, é que há a delimitação de fronteiras, onde força e coação são impostas a fim de determinar marcações (dar “visibilidade” ao “invisível”). Uma letra de funk e/ou uma pichação denotam poder que é subjetividade presente no ato de cantar e/ou pichar. Ou seja, apesar de se entender como fronteiras visíveis, vê-se que há uma existência real. A explicitação de fronteiras físicas e simbólicas que os grupos do tráfico estabelecem entre si é um elemento presente, a territorialização de áreas pelo tráfico envolve processos de apropriação e controle inscritos num campo de poder, além de laços de identidade com a facção que tenta, de alguma forma, homogeneizar e demarcar o território com uma fronteira definidora de alteridade (RODRIGUEZ; FERREIRA; ARRUDA, 2011, pRODRIGUEZ, A; FERREIRA, R. S.; ARRUDA, A. Representações sociais e território nas letras de funk proibido de facção. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 17, n. 3, 2011. p. 414-432. Disponível em: pepsic.bvsalud.org/pdf/per/v17n3/v17n3a06.pdf. Acesso em: 18 nov. 2021.. 416-419).

Sobre a questão da subjetividade, vale lembrar que neste debate do artigo, fala-se de relações de poder que estão imbricadas à reprodução das relações sociais no capitalismo. Subjetividade não é empreendida, portanto, como algo tão remetido ao “eu” e/ou ao “indivíduo singular” em termos psicanalíticos. Considera-se que a contradição irremediável entre as necessidades históricas do homem e as restrições impostas pela sociedade capitalista conduz a reflexões de dimensões diversas, mas não excludentes, que se assentam na relação indissociável da objetividade com a subjetividade (AMARAL, 2022, p. 64).

Até este momento se viu, através desse exercício analítico por meio, e na articulação, de três elementos principais de estudo (as expressões das pichações, a manifestação de funks e a utilização do suporte de estudo bibliográfico), que o marcador expresso na realidade que é tema do debate (as fronteiras visíveis), é produzido e se forma por meio de uma “síntese de várias coisas”.

A pichação e os funks demonstram que, nos territórios do Rio de Janeiro, se expressam diretrizes impostas, e que possuem um “véu” de sentidos produzidos que devem ser explorados e entendidos. Os sujeitos que picham e/ou cantam letras, que demonstram que há o estabelecimento de fronteiras visíveis cujas representações estão imbricadas em múltiplas dimensões do cotidiano, estão interpelados pela identificação com uma formação discursiva. Nesse caso, se percebe que há a construção de muros visíveis difíceis de serem localizados, e se constroem imbricados à ordem dos saberes/poderes não usuais e comuns como se costuma ver/ouvir/perceber — não se trata de atribuições de sentidos regulados, por exemplo, pelo poder estatal, mas sim atrelado a um “poder-dizer” de sujeitos que se “subjetivam” junto às facções. Sobre os sentidos de facções, vale salientar que se considera que uma facção deve ser percebida através de diferentes elementos:

Primeiro, o “status” de grupo empresarial. As facções se assemelham às empresas na questão da estrutura organizacional das atividades e na relação de compra e venda da força de trabalho [na sociabilidade capitalista]. Segundo, a sua estrutura simbólica e normativa atrelada à violência (o “ethos guerreiro”). Há uma forte presença da representação de significados e valores ligados a essa posição cultural. Terceiro, a transversalidade para (e com) o Estado. Vivencia-se um ciclo violento que abarca as ações de intervenção policial de narrativas “clássicas” e, ao mesmo tempo, a permanência da corrupção em torno de atividades de milícias e polícias corruptas, onde se promove o abuso do monopólio da violência. (BITENCOURT, 2021, pBITENCOURT, João Vitor. Ensaio sobre os sentidos de uma facção: o caso da facção carioca amigos dos amigos (ADA). X JOINPP. 2021. Disponível em: www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2021/images/trabalhos/trabalho_submissaoId_191_19160fafbb27941e.pdf. Acesso em: 20 nov. 2021.. 12).

As imagens de pichações apresentadas nesta seção despontam no fenômeno do deslocamento interno e forçado no Rio de Janeiro. As pichações em muros de casas em territórios dessa cidade podem ter diferentes significados, mas no que se refere ao tema deste exercício analítico, o que se ressalta é a representação atrelada à questão da disputa entre facções (que por meio de siglas, dizeres de ameaças etc., expressam um “poder-dizer”). Se na pichação apresentada acima há o apagamento da sigla de uma facção para se reforçar a legitimidade de outro grupo, nesse caso essa ação é ligada a múltiplas dimensões do cotidiano — nesses casos, a ameaça e a intimidação.

Nas Figuras 1 e 2 tem-se dizeres que nada mais são que propósitos comunicativos, que mostram que a facção desse território em questão (Complexo da Penha, na Zona Norte do Rio de Janeiro), não permite que os(as) moradores(as) aluguem as suas casas sem comunicar a facção, com o risco de perderem as suas residências caso não seguirem essas ordens. A prática da pichação, nesses casos, longe de estar ligada àquela ideia de uma ação “idealizada”, de ser tão somente uma expressão livre e/ou de natureza crítica, tal como longe de estar relacionada ao interesse social-coletivo de ser forma de resistência e questionamento do sistema social e/ou político, reflete a função de ser instrumento de normatização dos comportamentos.

Figura 2
- A questão das “fronteiras invisíveis” e os deslocamentos forçados no município do Rio de Janeiro

Se picha para que se produza sentidos para o grupo social que ali vive, para que um dos grupos ou classes de um determinado território “apreenda” uma determinação simbólica. Trata-se do território se caracterizando por seu valor de uso, em meio às ações de uma facção que é ator — constituída por sujeitos desses mesmos grupos e frações de classes, mas particularizados pela formação ideológica conforme a posição social ocupada. Como refere Lefebvre (2013, pLEFEBVRE, H. O Direito à Cidade. São Paulo: Centauro, 2013.. 121), o valor de uso dos lugares escapa às exigências da troca, do valor de troca, pois ao mesmo tempo em que é lugar de encontros, convergência de comunicações e das informações, “o urbano se torna aquilo que sempre foi: lugar do desejo, desequilíbrio permanente, sede da dissolução das normalidades e coações, momento do lúdico e do imprevisível (LEFEBVRE, 2013, pLEFEBVRE, H. O Direito à Cidade. São Paulo: Centauro, 2013.. 121). As pichações demonstram que se tem normas a se adotar, sem que isso represente uma adesão automática dos sujeitos, mas a sujeição e aceitação às normas de conduta instituídas com base na dinâmica de funcionamento das atividades do tráfico, tendo em vista que a facção, ao se apropriar de um território e fazer uso dele, normatiza regras de convívio para aqueles que aí residem, deixando a sua marca contingência de se adotar os códigos da facção (RODRIGUEZ; FERREIRA; ARRUDA, 2011, pRODRIGUEZ, A; FERREIRA, R. S.; ARRUDA, A. Representações sociais e território nas letras de funk proibido de facção. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 17, n. 3, 2011. p. 414-432. Disponível em: pepsic.bvsalud.org/pdf/per/v17n3/v17n3a06.pdf. Acesso em: 18 nov. 2021.. 416).

Nesse contexto, onde os fenômenos aqui debatidos (as pichações e os funks) mobilizam uma estrutura discursiva, tem-se uma “síntese de materializações” expressas no cotidiano que mostram o seguinte: diante das disputas territoriais entre facções criminosas se disputa internamente, também, as fronteiras físicas e simbólicas que os grupos do tráfico estabelecem entre si. Em meio a isso, as experiências vividas nos territórios e os sentidos atribuídos para (e pelos) sujeitos que adquirem forma e conteúdo — é o caso de possíveis expulsões de moradores e/ou de alterações nas rotinas comunitárias. Conforme a letra extraída do funk citado a seguir, percebe-se que essas experiências vividas estão à mercê de colher resultados de diferentes formas, caso não se adira e/ou se tenha consentimento às normas estabelecidas: “Se tem uma coisa que me deixa bolado, é ver o morador fechando com o errado. Se tem uma coisa que eu não admito é ver o morador “caguetar” bandido[...] Vai cair, saia da janela, pega seus panos e rala da favela” (CONEXÃO DAS ANTIGAS, 2020CONEXÃO DAS ANTIGAS. Mc Mascote - Se tem uma coisa que me deixa bolado. 30 de set. de 2020. Disponível em: /www.youtube.com/watch?v=O0oH_Qk8kS4. Acesso em: 20 nov. 2021.
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).

Nesse caso, o fato de “fechar com o errado” (estar supostamente ao lado e/ou em diálogo com a polícia ou facções rivais), assim como “caguetar” (entregar informações e/ou denunciar práticas tidas como ilegais), pode resultar na expulsão desse sujeito daquele território. Como destacam Filho e Mariano (2020), em estudo sobre as fronteiras visíveis e os deslocamentos forçados na periferia de Fortaleza, apontam para a existência de casos de expulsões de moradores ou impedimentos ao livre trânsito, pelo fato de se ter “fronteiras visíveis” e “deslocamentos forçados” provocados pela violência armada:

O confronto armado e as disputas territoriais entre as organizações criminosas estabelecem “fronteiras invisíveis” que repercutem sobre a rotina dos moradores e frequentadores em geral. [...]. Em todas as falas, nas entrevistas, diálogos e escutas no campo, a percepção na mudança da criminalidade está acompanhada de alterações na rotina comunitária e na ideia de “entrar e sair”, “passar”, “ir e vir” pela comunidade [...] As disputas entre organizações criminosas geram um “faccionamento” dos territórios, estabelecendo fronteiras invisíveis e instáveis, onde moradores, independentemente de vínculos com grupos criminosos, são impedidos de passar livremente. Em situações extremas, moradores são expulsos de suas residências e proibidos de retornar, por ordem de organizações criminosas.

No que tange a essa problemática, é importante resgatar que essas situações, resguardando as devidas particularidades socioterritoriais, devem emergir e serem questionadas, ao mesmo tempo, ao se fazer o resgate das experiências em torno da definição e do tratamento sobre deslocados internos apresentada no direito internacional. A Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) refere como deslocados internos, àquelas pessoas (e/ou grupos) deslocadas dentro de seu próprio país, pelos mesmos motivos de um sujeito refugiado, mas que não atravessaram uma fronteira internacional para buscar proteção. No entanto, diferentemente dos refugiados, estes sujeitos não atravessaram uma fronteira internacional para buscar proteção (ONU, 2018). Mesmo tendo sido forçados a deixar seus lares por razões similares às dos refugiados (perseguições, conflitos armados, violência generalizada, entre outros), os deslocados internos permanecem legalmente sob “proteção” de seu próprio Estado (ACNUR, 2016ACNUR - Agência da ONU para refugiados. Brasil. Deslocados Internos. 2016. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/quem-ajudamos/deslocados-internos/#:~:text=Mesmo%20tendo%20sido%20for%C3%A7adas%20a,seja%20a%20causa%20de%20sua . Acesso em: 20 nov. 2021.
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).

Nesse sentido, para fins didáticos, vale ressaltar que esses sujeitos (expulsos de suas casas, comunidades e bairros, que fogem em função do risco e da insegurança etc.), não atravessaram uma fronteira reconhecida internacionalmente, e, portanto, esse debate pode e deve estar no âmbito da “categorização” de deslocados internos. Diferentemente de outros status legais devidamente reconhecidos (como é o caso do estatuto de refugiado ou de asilo), os deslocados internos, devido à sua condição supostamente ontológica, são frequentemente esquecidos nos âmbitos político e epistemológico das Relações Internacionais (JESUS, 2019, pJESUS, R. A. de. O deslocado interno como conceito: da formação de uma categoria às implicações do termo. Revista Neiba: Cadernos Argentina-Brasil, Rio de Janeiro, v. 8, 2019. DOI: https://doi.org/10.12957/neiba.2019.41867. Acesso em: 12 jan. 2022.
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. 2). De forma genérica, entende-se a situação de deslocamento interno como aquela onde se tem grupos que “se veem obrigados a fugir de maneira súbita e imprevista em consequência de conflitos armados, tensões internas e violações massivas dos direitos humanos” (LAVOYVER, 1995, p. 23-25).

Considerações finais

Este artigo traz o debate das fronteiras visíveis e desponta nos deslocamentos forçados. Tem-se como base (para o processo de análise em torno de uma “formação discursiva”) os seguintes elementos: as expressões das pichações, a manifestação de funks e o suporte de estudo bibliográfico. O debate gira em torno daquilo que é produzido pelas facções na cidade do Rio de Janeiro. As pichações e as letras de funks são de facções e fazem menção a um determinado grupo faccional.

Vale apontar, portanto, que se considera como uma facção um determinado segmento com “status” de grupo empresarial, que possui uma estrutura simbólica e normativa atrelada à violência, e, além disso, uma relação de transversalidade para (e com) o Estado, com base em experiências contraditórias e violentas.

Sobre as pichações, percebe-se que são expressões que reforçam uma legitimidade que “marcam” territorialmente algo. É um “poder-dizer” que é parte de diálogo social, ao mesmo tempo é força, é transmissão de informações produzida por sujeitos que se “subjetivam” em meio às experiências faccionais. Sobre o funk, ele é manifestação que possibilita extrair narrativas de representações que estão no campo da produção e organização social, permite apreender contextos e fenômenos que compõem realidades das experiências de sujeitos que vivem em territórios de influências das facções no Rio de Janeiro. Traz elementos que dão “luz” à vida cotidiana de forma específica no que tange aos aspectos de regulamentação simbólica e física em torno dos grupos faccionais e dos sujeitos não pertencentes a esses grupos. Esses fenômenos, articulados ao embasamento científico trazido para o exercício analítico, possibilitam emergir teoricamente o resgate de elementos — as fronteiras visíveis e a sua imbricação no fenômeno dos deslocamentos forçados.

Nota-se que a atividade do “pichador do tráfico” reforça o pré-construído da modernidade. Demarca valores e elementos que constituem, por meio de um processo discursivo de produção dos sentidos, que faz constituir e circular um discurso enquanto objeto sócio-histórico ideológico — nesse caso, a disputa e a suposta hegemonia de poder (econômico, territorial etc.), vinculado à produção da violência. Se sai da suposta “margem” que se entende usualmente em torno da atividade do pichador, e, portanto, essas narrativas urbanas se estampam de forma particular — contudo em torno da violência onde um grupo pertencente a uma classe social, em um determinado território, constitui uma determinação simbólica. As condutas instituídas, nesse caso, têm base na dinâmica de funcionamento das atividades do tráfico.

Ao debater e relacionar esses elementos, chega-se a guisa de uma breve reflexão final. Sem procurar reduzir esses fenômenos que são plurais e complexos, tanto a pichação como o funk e, como apontado neste artigo, a complementaridade entre ambos, mostram uma formação discursiva que identifica algo: as facções procuram, por meio de diferentes elementos (nesse caso as pichações e os funks), disputar o domínio territorial produzindo fronteiras físicas e simbólicas “visíveis” — ao mesmo tempo se produz a regulamentação física e simbólica em um determinado processo de apropriação e controle inscritos num campo de poder. As fronteiras invisíveis são, portanto, demarcação e controle — logo, poder (e poder é posição social assumida nas relações sociais vigentes).

A partir do processo deste exercício de articulação, busca-se “desvendar” uma formação discursiva que possibilita o resgate de alguns debates teóricos. Acerca das fronteiras visíveis (físicas e simbólicas) materializadas nos discursos das pichações e dos funks, percebe-se que as contradições irremediáveis à sociabilidade capitalista conduzem a uma relação de objetividade com a subjetividade que é atrelada às violências. Não pode se esquecer, contudo, que essa regulamentação (que está na sigla e/ou na mensagem no muro tal como na música) adquire sentido em referência às formações ideológicas — poder é, sendo assim, estrutura primordial de objetivação dos sujeitos, lugar/posição no modo de produção em capitalista vigência, que desenha as estruturas ou formações sociais. Trata-se do “universo” de práticas impositivas e/ou coercitivas de um grupo/poder que procura se reconhecer legitimamente. Ao levar isso em consideração, é importante ressaltar que há a necessidade de adensar com maior rigor reflexões de cunho teórico voltadas à questão das relações de produção que constituem a estrutura econômica no tocante às particularidades e posições sociais assumidas pelas facções.

Agradecimentos

Agradecemos ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e ao Grupo de Pesquisa do CNPq Estado, Sociedade, Políticas e Direitos Sociais - GESPD/PUC-Rio.

Agradecemos a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

  • 1
    Para Michel Pêcheux, o sujeito do discurso não se pertence, ele se constitui pelo esquecimento daquilo que o determina, o indivíduo é interpelado em sujeito pela identificação com uma formação discursiva dominante, já que o sujeito é sobre determinado pelo pré construídos (BRASIL, 2011, pBRASIL, L. L. Michel Pêcheux e a teoria da análise do discurso: desdobramentos importantes para a compreensão de uma tipologia discursiva. Ling.: Est. e Pesq., Catalão, GO, v. 15, n. 1, p. 171-182, jan./jun. 2011.. 173).
  • 2
    Eneus Trindade (2005, pTRINDADE, E. A publicidade e a modernidade-mundo: as representações de pessoa, espaço e tempo. In: BARBOSA, I. S. (org.). Os sentidos da publicidade: estudos interdisciplinares. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005. p. 71-95.. 86) estuda e pesquisa a publicidade e a modernidade-mundo, chegando ao entendimento que “o discurso do estímulo ao consumo é, por excelência, o discurso que traz em si valores da modernidade mundo”. Esse exemplo pode ser “colocado” nos termos da discussão desse artigo, ao se levantar o debate sobre a redução do sujeito pichador do tráfico a uma determinada discursividade.
  • 3
    Significado extraído do Dicio, dicionário on-line: dicio.com.br/fronteira/. Acesso em: 2 abr. 2022.
  • 4
    Contudo, deve-se lembrar e salientar a importância dos debates que evocam a questão da fronteira em seus múltiplos significados, pois ela é abordada/questionada de diferentes formas: numa linha visível ou imaginária de fronteira, um Estado termina e outro começa. Fronteira é também o fim do mundo para quem deixa o seu Estado de pertença; ou o início do mundo para quem volta ao seu Estado de pertença. Fronteira é também o fato social, no sentido empregado por Durkheim em As Regras do Método Sociológico (1895). Fronteira é também uma coisa criada (feita) pelos seres humanos. A fronteira ordenada, segura, também se refere ao fortalecimento do Estado e sua população. Fronteira é também mecanismo de proteção social nas bordas do Estado, em benefício das bordas e do miolo do Estado (BENTO, 2012BENTO, F. R. Fronteiras, significado e valor a partir do estudo da experiência das cidades-gêmeas de Rivera e Santana do Livramento. Revista Conjuntura Austral, v. 3, n. 12, jun./jul. 2012. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/332390988_Fronteiras_significado_e_valor_-_a_partir_do_estudo_da_experiencia_das_cidades-gemeas_de_Rivera_e_Santana_do_Livramento . Acesso em: 20 nov. 2021.
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    ).
  • 5
    Tem-se aí a produção discursiva de grafites e pichações que estão atravessadas por esses “gestos feitos de violência”, em “aparições fugidias” (na iminência de serem apagadas, encobertas, rasuradas, esquecidas...). Constituem-se como “ruído das práticas cotidianas” (CERTEAU, 1998, p. 308 apud LACERCA, 2020, p. 16), deslocando sentidos estabilizados para o que significa estar na cidade.
  • Agência financiadoraNão se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participaçãoNão se aplica.
    Consentimento para publicaçãoOs autores autorizam a publicação deste manuscrito.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    14 Jun 2022
  • Aceito
    07 Out 2022
  • Revisado
    29 Nov 2022
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