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Ressignificações de Sujeitos com Paraplegia Adquirida: Narrativas da Reconstrução da Imagem Corporal

Resignifications of Subjects with Acquired Paraplegia: Narratives of Body Image Reconstruction

Resignificaciones de Sujetos con Paraplejia Adquirida: Narrativas de Reconstrución de la Imagen Corporal

Resumo:

Os sujeitos com paraplegia adquirida são submergidos a diversas limitações presentes em um corpo até então representado como íntegro em suas funções, demonstrando o desamparo e a ruptura que a nova condição repercute. Diante disso, buscou-se compreender como ocorre a reconstrução da imagem corporal pelos sujeitos na paraplegia adquirida, bem como, os significados atribuídos a esta vivência. Foi realizada a pesquisa descritiva e exploratória, de cunho qualitativo, desenvolvida com oito pessoas que adquiriram a paraplegia na fase adulta, com base em entrevistas semiestruturadas e análise de conteúdo. Compreendeu-se que os entrevistados se defrontam com o desconhecido, perpassando conflitivas na vivência com o corpo antigo e atual. Dessa forma, sentimentos de revolta e angústia frente à nova condição figuram o difícil processo de luto na paraplegia e suas implicações psíquicas. Frente a isso, perpassa-se, em muitos casos, a reintegração da nova imagem, podendo construir sentidos e nova identidade ao sujeito, contudo, em alguns casos, esse processo é dificultado. Assim, entende-se que a vivência da paraplegia é singular e complexa, sentida como um abalo à identidade, sendo importante como auxiliador da reconstrução da imagem corporal, o amparo dos profissionais de saúde na criação de estratégias para lidar com os abalos e as angústias ante a nova condição.

Palavras-chave:
Imagem Corporal; Luto; Paraplegia; Reconstrução

Abstract:

Subjects with acquired paraplegia face different limitations in a body that, until then, was expressed intact in its functions, demonstrating the helplessness and the rupture that the new condition reverberates. Therefore, we sought to understand how subjects with acquired paraplegia reconstruct their body image, as well as to understand the meanings they attribute to this experience. This is a descriptive and exploratory qualitative study with eight people who acquired paraplegia in the adult phase, based on semi-structured interviews and content analysis. Interviewees are confronted with the unknown, passing through conflicts related to the experience with the previous and the current body. In this way, feelings of revolt and anguish in the face of the new condition include the difficult process of mourning in paraplegia and its psychic implications. Facing this, in many cases, the reintegration of the new image can build senses and new identity to the subject; however, in some cases, this process is difficult. Thus, the experience of paraplegia is singular and complex, felt as a shock to the identity, being important, as a helper for the reconstruction of the body image, the support of healthcare professionals in building strategies to deal with the shocks and anguish associated with facing this new condition.

Keywords:
Body image; Mourning; Paraplegia; Reconstruction

Resumen:

Los sujetos con paraplejia adquirida se sumergen a diferentes limitaciones en un cuerpo, hasta entonces, representado como íntegro en sus funciones, demostrando el desamparo y la rotura que la nueva condición repercute. Ante ello, se buscó comprender cómo ocurre la reconstrucción de la imagen corporal por sujetos en paraplejia adquirida, así como los significados atribuidos a esa vivencia. Se realizó una investigación descriptiva y exploratoria, de cuño cualitativo, desarrollada con ocho personas que adquirieron la paraplejia en la fase adulta, con base en entrevistas semiestructuradas y análisis de contenido. Se comprendió que los entrevistados se enfrentan a lo desconocido, atravesando conflictos en la experiencia con el cuerpo antiguo y el actual. De esa forma, sentimientos de revuelta y angustia frente esta nueva condición figuran el difícil proceso de luto en la paraplejia y sus implicaciones psíquicas. Frente a eso, se pasa, en muchos casos, a la reintegración de la nueva imagen, pudiendo construir sentidos y nueva identidad al sujeto, sin embargo, en algunos casos, ese proceso es dificultado. Así, se entiende que la vivencia de la paraplejia es singular y compleja, sentida como un golpe a la identidad, siendo importante como auxiliador de la reconstrucción de la imagen corporal, el amparo de los profesionales de salud en la creación de estrategias para lidiar con los sacudones y las angustias frente a la nueva condición.

Palabras clave:
Imagen Corporal; Luto; Paraplejia; Reconstrucción

Introdução

A paraplegia adquirida e toda sua gama de repercussões corporais e implicações psíquicas causam um abalo à constituição subjetiva do corpo. Incita-se assim, a refletir o quanto uma mudança corporal significativa como essa pode influenciar o sujeito e sua imagem.

No que se refere ao corpo, ele não se reduz ao conceito de organismo e às queixas puramente somáticas, mas é reconhecido também como subjetivo e condiz a uma unidade em funcionamento que perpassa a história do sujeito. Assim, o corpo é o palco das relações entre o somático e o psíquico, sendo também uma via de manifestação dos conteúdos inconscientes. Na consolidação do corpo, apresenta-se um investimento advindo do outro, como da figura materna, por meio do qual se transforma o corpo biológico do bebê, perpassado de sensações, em um corpo erógeno, habitado pela linguagem. Nessa linha, o outro interpreta os sinais desse corpo e investe libidinalmente nele, nomeando suas partes, sensações e funções, inserindo-o assim em uma história. Desse modo, permite-se ao sujeito em construção tomar o corpo como lugar do próprio Eu (Fernandes, 2005Fernandes, M. H. (2005) Corpo (2a ed.). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.).

Frente a isso, o sujeito se apropria dos significados atribuídos ao seu corpo e constrói um discurso sobre si. O suporte para essa ação de unificação do corpo ocorre por meio da construção da imagem corporal, a qual será o alicerce na constituição do Eu, identidade do sujeito (Fernandes, 2005Fernandes, M. H. (2005) Corpo (2a ed.). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.). Nessa ideia, o corpo, o Eu e a imagem corporal são processos indissociáveis, uma vez que, segundo Freud (1923/1996Freud, S. (1923/1996). O Ego e o Id. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 14) Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1923)., p. 238) o Eu “é, primeiro e acima de tudo, um Eu corporal; não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é ele próprio a projeção de uma superfície”.

O Eu é constituído por meio da forma do corpo total, reconhecendo-se em uma imagem e tomando a imagem como a si mesmo. Assim, funda-se uma estrutura baseada no desconhecimento inicial sobre si, sobre o corpo fragmentado que se habita. A imagem corporal presente nesta dinâmica de subjetivação confere uma unidade primeira ao sujeito, contudo não definitiva, podendo ser renovada através da soma de novos traços e vivências na sua história. Essa imagem é singular e diretamente relacionada ao Eu, sua história e relação com o mundo. Ela é a memória inconsciente das relações vividas e é, também, atual, dinâmica, narcísica e proveniente das relações interpessoais, sendo inconsciente, apesar de poder tornar-se em parte pré-consciente ao ligar-se à linguagem (Dolto, 1984Dolto, F. (1984). A imagem inconsciente do corpo. São Paulo, SP: Perspectiva). Ademais, conforme Mello Filho e Burd (2010)Mello Filho, J., & Burd, M. (2010). Psicossomática hoje. Porto Alegre, RS: Artmed, a imagem corporal (re)constitui-se por aquilo que o sujeito deseja ser, associado à representação de sua imagem pelos outros e o que ele mesmo reconhece ao se olhar e se sentir.

Nessa linha, as imagens que o sujeito faz do seu próprio corpo são a síntese das vivências de caráter emocional que o perpassam por meio das sensações, passadas ou presentes, constituindo a memória de toda sua vivência relacional (Ferreira, 2008Ferreira, F. R. (2008). A produção de sentidos sobre a imagem do corpo. Interface (Botucatu), 12(26), 471-483. https://doi.org/10.1590/S1414-32832008000300002
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). Em consonância a isso, Schilder (1999)Schilder, P. (1999). A imagem do corpo: As energias construtivas da psique. São Paulo, SP: Martins Fontes. denota que o reconhecimento do corpo próprio é estruturado de forma contínua pelas impressões antigas e atuais, bem como pelo conflito que pode ser travado entre elas.

Primordialmente, como constituintes importantes nesta subjetivação do corpo, encontram-se os movimentos do mesmo, como os dos pés e das pernas através do andar, o que permite uma interação com o mundo, sendo até mesmo considerado como uma conquista e marco no desenvolvimento da criança. Dessa forma, as extremidades do corpo como os pés e as pernas, possuem um papel de extrema relevância no psiquismo, visto que proporcionam um dos toques e contatos mais íntimos com o mundo externo (Schilder, 1999Schilder, P. (1999). A imagem do corpo: As energias construtivas da psique. São Paulo, SP: Martins Fontes.). A partir disso, na paraplegia, o cessar desses movimentos e sensações nessas partes do corpo produzem um abalo ao sujeito, visto que o mesmo se defronta com um corpo que carece de funções importantes e exige outra forma de se relacionar com o mundo e consigo.

Dessa maneira, o diagnóstico de algo que acometa o corpo no seu estado considerado “sadio” e “íntegro” traz a perda da antiga condição, inserindo esse corpo em algo totalmente novo. Portanto, a dor de perder a condição corporal anterior, defronta o sujeito com o risco eminente da angústia e da falta. Com isso, se coloca uma ameaça constante que representa um ataque ao corpo e ao psiquismo (Coelho, 2004Coelho, M. O. (2004). A dor da perda da saúde. In V. A. Angerami-Calmon (Org.), Psicossomática e a psicologia da dor (pp. 157-211). São Paulo, SP: Pioneira.).

Frente a esses aspectos, a fim de compreender o difícil processo e vivência na condição da paraplegia, destaca-se que, por mais que a fragilidade seja natural na constituição do ser humano, o discurso acentuado no contemporâneo é de um corpo que deve negar suas perdas e fraquezas e gerar apenas prazer. Apresenta-se assim, a busca infrutífera de tornar-se imune ao sofrimento, às perdas e à morte. Dessa forma, ter algo que denote ausência e vulnerabilidade na condição corporal faz despertar a ideia de fragmentação do corpo, colocando o sujeito frente a sua finitude (Le Breton, 2003Le Breton, D. (2003). Adeus ao corpo: Antropologia e sociedade. São Paulo, SP: Papirus.).

Sendo assim, a paraplegia produz um abalo à unificação até então existente do corpo e à identidade e biografia do sujeito, uma vez que o corpo é o palco onde esse se reconhece enquanto singular e vivencia emoções (Alves, & Duarte, 2010Alves, M. L. T., & Duarte, E. (2010). Relação entre a imagem corporal e deficiência física: Uma pesquisa bibliográfica. Efdeports.com, 15(143). Recuperado de http://www.efdeportes.com/efd143/relacao-entre-a-imagem-corporal-e-deficiencia-fisica.htm
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). Desse modo, a condição de mudança brusca no corpo não abala somente os limites do corpo anatômico, mas também ameaça os limites do Eu, uma vez que estes já foram estabelecidos durante a constituição da subjetividade (Friggi, 2015Friggi, P. F. (2015). Narcisismo e imagem corporal: Considerações sobre a vivência da amputação (dissertação). Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil.). Isso significa que a vivência de uma perda do corpo exigirá uma redefinição de suas fronteiras físicas, bem como identitárias.

Nessa lógica, o sujeito que adquire a paraplegia se vê, de um dia para o outro, com sua condição física completamente modificada, sendo que se figura um processo por meio de difíceis exigências, como integrar a cadeira de rodas à visão de si e lidar com a reconstrução de um corpo que difere do anterior (Alves, & Duarte, 2010Alves, M. L. T., & Duarte, E. (2010). Relação entre a imagem corporal e deficiência física: Uma pesquisa bibliográfica. Efdeports.com, 15(143). Recuperado de http://www.efdeportes.com/efd143/relacao-entre-a-imagem-corporal-e-deficiencia-fisica.htm
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). O cotidiano de quem adquire a paraplegia passa a ser envolto de diferentes cuidados com a saúde do corpo, por meio dos cuidados básicos, da reaprendizagem de várias funções devido ao impacto do acidente, como aprender a respirar, a obter novamente certa percepção de alguns órgãos, como, por exemplo, a bexiga. Tal cotidiano evidencia uma série de consequências, que aproximam o sujeito do olhar e cuidado do outro. Assim, este corpo debilitado em algumas funções impõe limitações em vista às várias perdas que se reproduzem abaixo do nível da lesão, como o movimento e sensibilidade dos membros (Rockenbach, & Carvalho, 2007Rockenbach, R. B., & Carvalho, T. G. M. L. (2007). A busca da integralidade na atenção fisioterapêutica em sujeito com diagnóstico de paraplegia. Revista Contexto & Saúde, 6(12), 63-70.).

Dessa maneira, quando adquire a paraplegia na fase adulta, o sujeito precisa substituir um repertório conhecido por algo novo, completamente desconhecido, uma vez que já havia estruturado a percepção sobre si e a sua identidade. Tal situação produz a procura por um significado e reconstrução deste corpo que se apresenta, uma vez que as limitações da paraplegia provocam uma ameaça e uma ruptura nas relações e percepções do sujeito sobre sua imagem, acarretando uma falta de sentido. Dessa forma, figura-se o difícil processo de luto de um corpo anterior a essa condição e à elaboração dessas perdas presentes.

Os casos da paraplegia, de modo singular, podem evidenciar diferentes etapas no processo de lidar com a morte simbólica deste corpo. Entre essas etapas, estão presentes: I) Negação, na qual se apresenta uma defesa temporária de percepção da perda, visto essa gerar angústia extrema; II) Raiva, em que sentimentos de revolta fazem-se presentes, sendo direcionados ao corpo ou as pessoas; III) Barganha, negociação, na tentativa de, através de um pacto, oferecer algo em troca de uma recompensa que poderá amenizar a angústia produzida pela perda; como por meio da intenção de remediar a situação ou reabilitar uma função perdida; IV) Depressão, em que o sujeito percebe que não há mais como negar sua perda e deixar de encará-la, emergindo também o temor do que virá a ocorrer no futuro; e V) Aceitação, adaptação, na qual se inicia a internalização da situação de modo a possibilitar conviver com esta última sem o sofrimento anterior (Lianza, & Sposito, 1994Lianza, S., & Sposito, M. M. M. (1994). Reabilitação: A locomoção em pacientes com lesão medular. São Paulo, SP: Sarvier.; Mattos, 2015Mattos, C.D.O. (2015). Processo de luto diante da deficiência física adquirida: Análise de um relato de caso. Psicologado. Recuperado de: https://psicologado.com/atuacao/psicologia-clinica/o-processo-de-luto-diante-da-deficiencia-fisica-adquirida-analise-de-um-relato-de-caso
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). Esses diferentes estágios, baseiam-se nos retratados por Kubler-Ross (2008)Kubler-Ross, E. (2008). Sobre a morte e o morrer (9a ed.). São Paulo, SP: WMF Martins Fontes. no livro “A morte e o morrer”, o qual aborda a temática do luto com pacientes terminais, através das cinco fases descritas: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Os autores referenciados destacam que a vivência dos estágios de luto depende da estrutura psíquica do sujeito, seu contexto social e suporte das pessoas do seu entorno, não sendo obrigatórios e fixos.

Com isso, entende-se que a presente pesquisa possa contribuir para o conhecimento mais aprofundado sobre como ocorre o processo de busca por significados e quais sentidos os sujeitos com paraplegia constroem para a sua imagem e vivência. Ademais, destaca-se sua importância para os profissionais de saúde, visto que o estudo poderá fornecer ferramentas essenciais para auxiliar os sujeitos no encontro de significações para o processo de luto e reconstrução de si.

Dessa maneira, a partir do universo complexo que se estabelece na vivência da paraplegia, surge o interesse de ouvir esses sujeitos e conhecer o modo como eles representam o processo de reconstrução da sua imagem corporal, a qual perpassa o luto sobre o corpo antigo, a apropriação deste novo corpo e a construção de uma nova identidade. Assim, a pesquisa objetiva compreender como tais sujeitos, frente a um conjunto de mudanças inesperadas, constroem um sentido para a vivência da sua nova condição e reconstroem sua imagem corporal.

Método

Desenho do estudo

A presente pesquisa trata-se de um estudo exploratório descritivo, de cunho qualitativo. Acredita-se que o método qualitativo se enquadra melhor para desenvolver e abordar a temática, já que objetiva explorar aspectos existenciais, como as significações e sentidos do fenômeno através da observação e escuta dos sujeitos da pesquisa (Turato, 2013Turato, E. R (2013). Tratado da metodologia da pesquisa clínico-qualitativa: Construção teórico-epistemológica discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas (6a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.). Ademais, conforme Minayo (2011)Minayo, M. C. S. (2011). Pesquisa social: Teoria, método e criatividade (31a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes. a pesquisa qualitativa aplica-se em níveis de realidade não quantificáveis, visto que engloba crenças, valores, significados e atitudes. Desse modo, segundo a mesma autora, o método qualitativo dá privilégio aos sujeitos sociais que possuem os atributos que o investigador busca conhecer, descobrindo-se os códigos e relações sociais. Essa investigação de ordem qualitativa requer ações fundamentais de flexibilidade, capacidade de observação e interação com os sujeitos sociais escolhidos (Minayo, 2011Minayo, M. C. S. (2011). Pesquisa social: Teoria, método e criatividade (31a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.).

O aspecto descritivo do estudo, de acordo com Gil (2002)Gil, A. C. (2002). Como elaborar projetos de pesquisa (4a ed.). São Paulo, SP: Atlas., objetiva a descrição de características de determinados fenômenos ou populações. Já a pesquisa exploratória, o autor retrata como aquela cujos objetivos concentram-se no melhor conhecimento e familiaridade com o objeto a ser investigado. Dessa forma, este tipo de pesquisa busca ter o aprimoramento de ideias e descoberta de diferentes compreensões de uma situação, indo ao encontro do descobrimento de significações e possibilitando a consideração de outros aspectos diferentes da situação-problema apresentada.

Participantes da pesquisa

Na presente pesquisa, participaram oito sujeitos com paraplegia adquirida na fase adulta. Da totalidade dos sujeitos, seis eram do sexo masculino e dois do sexo feminino. Foram incluídos como sujeitos de pesquisa aqueles que haviam adquirido a paraplegia no transcorrer da sua vida já adulta e que tinham vínculo com os serviços da Associação e/ou do Núcleo de esportes. Dentre esses sujeitos, quatro haviam adquirido a paraplegia em decorrência de acidentes automobilísticos, dois em função de queda e outros dois em vista de acidente com arma de fogo, sendo que o tempo da condição da paraplegia variou nos participantes de 1 ano a 30 anos. Entre os participantes, quatro faziam parte do núcleo de esportes, os demais pesquisados não participavam do esporte, apenas possuíam algum vínculo com o centro de reabilitação. Sendo que, entre todos participantes, apenas dois possuíram um amparo psicológico na reabilitação em um centro especializado. Com o intuito de preservar a identidade dos participantes, seus nomes serão trocados pelo seguinte código: letra “E” seguida de um número que identifica o entrevistado, na sequência a letra “M” ou “F” identificando o sexo, e finalmente um numérico referente às suas idades.

Os participantes da pesquisa foram recrutados em duas instituições: uma associação de prestação de serviços de reabilitação e um núcleo de esportes adaptados, ambos no interior do Rio Grande do Sul. Estes locais foram escolhidos apenas em função de serem os espaços em que os sujeitos do estudo se encontram e realizam atividades, sendo assim, o meio mais fácil de localizá-los. Turato (2013)Turato, E. R (2013). Tratado da metodologia da pesquisa clínico-qualitativa: Construção teórico-epistemológica discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas (6a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes. retrata que o lugar mais adequado é o ambiente natural em que o sujeito do estudo está imerso, onde se apresentam informações mais relevantes, visto que se conservam relações e características do sujeito da pesquisa. Assim, na pesquisa que possui sujeitos como objetos de estudo, o trabalho de campo possibilita maior riqueza, incorporando valores de autoridade e validade das informações. A relação estabelecida entre o pesquisador e o pesquisado permite uma compreensão de forma ampla dos fenômenos envolvidos no universo psíquico deste.

A fim de delimitar o número de entrevistados, foi definido o critério de saturação da amostra, sendo que as informações já se repetiam com os oito participantes. O critério de saturação da amostra consiste, conforme Minayo (2011)Minayo, M. C. S. (2011). Pesquisa social: Teoria, método e criatividade (31a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes., no conhecimento adquirido pelo pesquisador de que capturou a lógica interna do grupo pesquisado. Isto ocorre quando o pesquisador alcança a compreensão da homogeneidade, da intensidade e da diversidade das informações necessárias para a pesquisa. Corroborando, Turato (2013)Turato, E. R (2013). Tratado da metodologia da pesquisa clínico-qualitativa: Construção teórico-epistemológica discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas (6a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes. coloca que o pesquisador fecha o grupo da pesquisa depois de as informações coletadas repetirem-se com um número de participantes, sendo que novas entrevistas passam a não ter acréscimos significativos para o alcance e discussão dos objetivos propostos no projeto.

Coleta de dados

Para a coleta de dados, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, com questões que tornaram possível a ampliação da discussão, o que segundo Turato (2013)Turato, E. R (2013). Tratado da metodologia da pesquisa clínico-qualitativa: Construção teórico-epistemológica discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas (6a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes., ocorre em vista de que a direção é colocada pelos integrantes da relação da pesquisa e não restringida às alternativas dadas pelo pesquisador. Ainda segundo o autor, a entrevista apresenta-se como um instrumento privilegiado de conhecimento interpessoal, proporcionando a apreensão de fenômenos diferenciados, elementos de identificação, construção do todo e criação do sujeito entrevistado.

As entrevistas contaram com eixos norteadores constituídos por questões abertas, o que permitiu a flexibilidade nas conversas e absorção de novas temáticas trazidas pelo entrevistado, bem como abertura de espaço para a pessoa colocar livremente o conteúdo da sua resposta. Assim, foi possível interpretar os significados e sentidos que os sujeitos trouxeram, por meio do assunto proposto, a partir de uma construção própria da sua visão e vivência acerca do tema (Turato, 2013Turato, E. R (2013). Tratado da metodologia da pesquisa clínico-qualitativa: Construção teórico-epistemológica discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas (6a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.). Em média, as entrevistas duraram cerca de uma hora. As entrevistas foram realizadas nas instalações da Associação, bem como, do Núcleo de Esportes, em salas que permitiram o conforto e a preservação da identidade dos entrevistados. Além destes locais, ainda foram realizadas entrevistas nas residências de duas participantes e outra dentro do carro, a pedido de um dos participantes.

Análise dos dados

Na presente pesquisa, a análise dos dados foi realizada por meio da análise de conteúdo, formando categorias. Estas foram construídas segundo critério de repetição e relevância. As entrevistas foram transcritas na íntegra e, sucessivamente, foram lidas e relidas a fim de encontrar conteúdos recorrentes e importantes. A análise de conteúdo, segundo Bardin (2010)Bardin, L. (2010). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70., condiz com a transformação das falas relevantes dos sujeitos entrevistados em unidades de análise, objetivando a descoberta de conteúdos que se encontram implícitos nos conteúdos manifestos. Leva-se em consideração palavras pré-escolhidas pelo locutor, frequência de recorrência de certos termos, aparato e andamento do discurso. A intenção é que se possa ir para além do estágio descritivo, podendo fazer inferências e discussões a partir dos dados trabalhados (Turato, 2013Turato, E. R (2013). Tratado da metodologia da pesquisa clínico-qualitativa: Construção teórico-epistemológica discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas (6a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.).

Assim, uma vez codificado o material, produz-se o sistema de categorias, procedimentos que consistem em colocar assuntos em relevo, que merecem discussão em grandes tópicos. No processo de categorização foi levado em conta o critério de repetição que preconiza que se coloque em destaque as colocações reincidentes, fazendo a investigação do que cada um deles tem em comum. Além disso, formaram-se as categorias, por meio do critério de relevância, em que não necessariamente um ponto era repetido, mas foram consideradas também, as falas ricas em conteúdo capazes de confirmar ou refutar as hipóteses iniciais e que se constituíram em pontos centrais na construção dos significados dos entrevistados (Turato, 2013Turato, E. R (2013). Tratado da metodologia da pesquisa clínico-qualitativa: Construção teórico-epistemológica discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas (6a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.).

Aspectos éticos

Na presente pesquisa, foram preservados os princípios éticos da pesquisa com seres humanos presentes na Resolução n° 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, bem como foram respeitados os princípios éticos da Resolução 510/2016, legislação vigente de pesquisa com seres humanos nas áreas de Ciências Sociais e Humanas. Dessa maneira, foram mantidos os princípios da autonomia, beneficência, não maleficência, justiça e equidade, assegurando os direitos e deveres dos sujeitos da pesquisa à comunidade científica e ao Estado. O estudo somente foi colocado em prática após a aprovação do Comitê de Ética da UFSM, sob o número CAAE: 56243816.5.0000.5346.

Foi trabalhado, junto com os participantes, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e, após a sua assinatura e entrega de uma das vias para o participante, foram realizadas as entrevistas. No decorrer da pesquisa, todas as medidas em relação ao sigilo e confidencialidade dos participantes, assim como sua autonomia, foram asseguradas, conforme os princípios éticos da Resolução já citados.

Resultados e discussões

A vivência da paraplegia provoca ruptura na vida do sujeito, que passa a conviver com uma realidade nunca antes pensada. Além disso, o confronta com sua finitude e a ameaça ao seu corpo e psiquismo, o que faz presente as angústias, fragilidades e a falta de representações que a condição coloca.

Com o diagnóstico da paraplegia, um grande impacto assola as vidas dos sujeitos, posicionando-os frente a uma mudança brusca e, frequentemente, ressaltando a sua fragmentação corporal, bem como o encontro com o desamparo. Então, coloca-se a perda do corpo anterior e, consequentemente, da identidade, frente a qual passa a se deparar um novo corpo. Isso tudo gera sofrimento ao sujeito e torna o processo de luto complexo e longo, permeado desde sentimentos de choque, revolta, negação à adaptação à nova condição (Fechio, Pacheco, Kaihami, & Alves, 2009Fechio, M. B., Pacheco, K. M. D. B., Kaihami, H. N., & Alves, V. L. R. (2009). A repercussão da lesão medular na identidade do sujeito. Acta Fisiátrica, 16(1), 38-42. https://doi.org/10.5935/0104-7795.20090005
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). Dessa forma, o corpo na paraplegia e seu processo de luto são perpassados por diversos desafios.

Nesse contexto, buscou-se compreender como ocorre o processo de reconstrução do sujeito frente a paraplegia adquirida, bem como, quais conflitivas e mudanças se reproduzem na imagem corporal. Dentre os resultados alcançados e a análise dos dados, seguindo o critério de relevância e repetição das informações retratadas pelos participantes, as categorias se consolidaram por abordarem questões relativas a necessidade de defrontar-se com a perda de um corpo anterior, mediante o luto e as possibilidades de reconstrução de si. Assim, na sequência, serão apresentas as categorias que regem esses aspectos.

Luto frente à imagem corporal: sombras do que se foi

O evento que ocasiona a lesão medular, como a paraplegia, destaca-se pelo caráter súbito, imprevisível, que envolve consequências radicais e inesperadas ao corpo, as quais podem ser permanentes na vida do sujeito. Frente a isso, descortina-se um universo completamente desconhecido, por meio da magnitude da condição que se coloca na perda dos movimentos, evidenciando, de modo pleno, uma ruptura no ciclo da vida (Schoeller, Bitencourt, Leopardi, Pires, & Zanini, 2012Schoeller, S. D., Bitencourt, R. N., Leopardi, M. T., Pires, D. P., & Zanini, M. T. B. (2012). Mudanças na vida de pessoas com lesão medular adquirida. Revista Eletrônica de Enfermagem, 14(1), 95-103.).

Dessa forma, de certo modo, o que foi preconcebido e construído pelo sujeito anteriormente decai, perdendo a configuração com a realidade vivenciada até então. Mediante um corpo que, de algum modo padece de representações sobre a sua nova condição, surge o desconhecido frente ao que irrompe (Amaral, & Marques, 2011Amaral, J. R., & Marques, C. S. (2011). Luto e melancolia: o que se perde ao adoecer?. Revista Mineira de Ciências da Saúde, (3), 70-87.). Nessa perspectiva, um sujeito que, no decorrer do seu desenvolvimento, aprendeu a se relacionar através do andar, estar de pé, ao adquirir a paraplegia, precisa subitamente se relacionar com o mundo e consigo mesmo de modo diferente. Sendo assim, coloca-se, inicialmente, uma experiência de certo modo assustadora e completamente nova ao sujeito, estando o corpo diante do estranho, da presença imposta do diferente.

Este estranho se evidencia como algo que não possui significação diante da anunciação da perda. Assim, esse cenário exige do sujeito uma reconstrução da percepção sobre o seu corpo e a sua história através do luto. Conforme Freud (1917/1996)Freud, S. (1996). Luto e melancolia. In: Edição Standard das Obras completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 16). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1917-1915)., o luto evidencia-se na reação do sujeito à perda de um ente querido, ao ideal de alguém ou à liberdade. Nesse sentido, a perda pode ser real, quando ocorre a morte de fato e a ruptura da relação com o outro, bem como simbólica, na quebra de algo vivenciado e concebido, como através da perda de funções do corpo.

Neste contexto, o luto reverbera em diferentes fases, que perpassam a negação à percepção da situação, em função do sujeito não possuir recursos psíquicos e tramas representacionais para lidar com tal condição, buscando assim manter a imagem anterior. Neste momento, pode se apresentar o isolamento na busca de elaborar o próprio sofrimento, voltando investimentos e energias para si, para um posterior retorno dos investimentos para os objetos externos e para sua nova realidade. Inicialmente, sentimentos de raiva e revolta são direcionados ao próprio corpo. Ainda, fazem-se presentes momentos de depressão, quando o sujeito percebe que não há mais como deixar de lidar com sua condição e suas perdas. Por fim, pode-se evidenciar a adaptação, em que o sujeito internaliza sua condição corporal, elaborando a perda de modo a conviver com a nova situação, passando assim a reconstruir seus limites corporais e psíquicos (Lianza, & Sposito, 1994Lianza, S., & Sposito, M. M. M. (1994). Reabilitação: A locomoção em pacientes com lesão medular. São Paulo, SP: Sarvier.; Mattos, 2015Mattos, C.D.O. (2015). Processo de luto diante da deficiência física adquirida: Análise de um relato de caso. Psicologado. Recuperado de: https://psicologado.com/atuacao/psicologia-clinica/o-processo-de-luto-diante-da-deficiencia-fisica-adquirida-analise-de-um-relato-de-caso
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).

O trabalho psíquico apresentado nas diferentes fases e vivências do luto na paraplegia repercute diretamente na imagem corporal do sujeito. Esta imagem é estruturada a partir das vivências emocionais e relacionais com o corpo, sendo reorganizada continuamente pelas sensações e impressões antigas e atuais, bem como pelo conflito que pode ser evidenciado entre elas (Ferreira, 2008Ferreira, F. R. (2008). A produção de sentidos sobre a imagem do corpo. Interface (Botucatu), 12(26), 471-483. https://doi.org/10.1590/S1414-32832008000300002
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; Schilder, 1999Schilder, P. (1999). A imagem do corpo: As energias construtivas da psique. São Paulo, SP: Martins Fontes.).

Nesse âmbito, a condição da paraplegia coloca limitações e restrições de um corpo modificado em suas percepções. Isso põe o sujeito em constante contato com a ausência de uma completude imaginária sustentada, de forma ilusória, até o ponto em que o corpo sofre um abalo e decai a ilusão de sentir-se completo (Friggi, 2015Friggi, P. F. (2015). Narcisismo e imagem corporal: Considerações sobre a vivência da amputação (dissertação). Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil.).

A percepção inicial sobre o próprio corpo na lesão medular é desafiada como uma vivência de ordem sensorial paradoxal, pois há um corpo que se visualiza presente, porém não se percebe e se sente mais presente (Kim, 2013Kim, J. H. (2013). O estigma da deficiência física e o paradigma da reconstrução biocibernética do corpo (tese). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.). Nesse meio, coloca-se o difícil e singular enfrentamento da paraplegia, uma vez que o corpo se encontra com suas partes, porém essas não são mais sentidas e presenciadas do mesmo modo, estando, de certo modo, pela metade, como se apresenta na fala:

Mas tu te olha no espelho ali, tu vê que uma parte do teu corpo não mexe, tu não consegue reagir, é como se tivesse realmente, apagou aquela parte né, então a única coisa que interessa é o rosto ali, e o braço, o resto pra mim, vamos dizer assim… não é dizer que não presta, mas é uma coisa que eu não sei te explicar (E5, M, 29).

Ter compreensão de que o próprio corpo está em sua metade paralisado é algo que traz angústia ao sujeito e, por isso, exige um processo difícil para integração desta vivência ao aparelho psíquico. Isso ocorre, visto que, durante a vida do sujeito, sua constituição subjetiva do corpo baseou-se na concepção de um corpo em sua totalidade, íntegro em suas funções, e não de um corpo imobilizado em algumas partes. Ademais, apresenta-se na fala a dificuldade de nomear e explicar algo que coloca o entrevistado em um contato direto com a fragilidade e o caráter de incompletude, a qual antes era menos evidente e, com a paraplegia, toma destaque. Ainda, conforme a fala retratada, há o sentimento de ser o que restou da condição e sujeito anteriores, como algo que sobrou frente ao que se era antes, o que também se confirma no seguinte relato: “Ao olhar pro espelho e aceita, pô já que sobrou isso, vamo embora, vamo toca a vida” (E4, M, 24).

Frente a esse conflito, o investimento neste corpo atual fica dificultado com a necessidade de, primeiramente, deparar-se com as lembranças que se referem ao corpo anterior e tudo que construíram e almejaram diante dessas vivências, o que, de algum modo, morre simbolicamente junto à vida e condição passadas, como inferem as seguintes falas: “Sempre caminhava, tinha planos né, e de repente os planos ir água abaixo e tu tá numa cadeira sem poder fazer nada, né” (E1, M, 36); “A principal palavra é o recomeço, porque entre aspas, tu morreu, você morreu ali e nasceu outro completamente diferente, não anormal, não anômalo” (E4, M, 24).

Nesse âmbito, o conhecimento sobre si, seu corpo e formas de se relacionar com o mundo externo, ou seja, o que era familiar ao sujeito, perde-se frente a nova e diferente realidade presente. Instaura-se assim, a ruptura entre antes e depois (conhecido versus desconhecido), mediante a impossibilidade de reestruturar a vida anterior, precisando construir uma nova vida.

Seguindo essa lógica, exige-se um trabalho psíquico do sujeito para passar a viver a nova realidade como sua, tendo que, enfrentar os “fantasmas interiores”, que decorrem das representações e significados atribuídos a si e sua anterior condição (Amaral, 1995Amaral, L. A. (1995). Conhecendo a deficiência: Em companhia de Hércules. São Paulo, SP: Robe.). Desse modo, coloca-se o árduo processo de luto diante da necessidade de desinvestir a imagem anterior a sua nova condição e à difícil tarefa de investir no corpo atual e suas vivências, com restrições (Gascón, Santos, Capitão, Fantine-Nogueira, & Oliveira, 2013Gascón, M. R. P., Santos, R. F., Capitão, C. G., Fantine-Nogueira, M. C., & Oliveira, A. C. P. (2013). Um corpo que perde o sentido: uma leitura psicanalítica dos pacientes com paraparesia espástica tropical. Revista da SBPH, 16(1), 33-48.), fazendo com que o sujeito encare constantemente à perda:

Pra uma pessoa que não caminha o dia que amanhece, o dia que eu me acordo, que eu olho no espelho e eu me dou conta que eu não caminho é um dia complicado, que daí vem todos aqueles fantasmas da incapacidade, fantasmas da mulher que caminha… (E6, F, 45).

Através da fala de E6, pode-se inferir que o natural, na vida anterior à paraplegia, era acordar, levantar e caminhar. Após a paraplegia, o natural passa a ser acordar e não ter mais a reação das pernas e esse movimento, contudo isso é difícil de ser apropriado pelo psiquismo, trazendo, muitas vezes, a percepção do sujeito anterior. Dessa forma, evidencia-se a dificuldade de apropriação desse corpo, o qual precisa ser constantemente defrontado com os fantasmas de um corpo antigo, que emana, assim, as (in)capacidades exaltadas pela nova condição.

Nessa linha de raciocínio, durante a vivência da paraplegia, de certo modo, o sujeito fica aprisionado ao passado. No entanto, isso se apresenta como um momento importante no processo de luto, que condiz à negação desta perda:

O luto vinha na parte física, pô eu quero andar, eu quero jogar bola, eu quero a minha bicicleta, não quero a cadeira, então foi isso que, o meu luto se baseia na parte física, corporal, do enfrentamento com o espelho […] Eu tava muito ancorado na minha vida anterior, quando eu me livrei, ah! Tirou essa prisão (E4, M, 24).

Frente a isso, essa âncora na vida anterior, remete ao peso que é o sujeito conseguir se desapropriar dela e enfrentar a nova condição. Neste embate, podem emergir diversos sentimentos, desde revolta com o próprio corpo, até conflito ao se deparar com sua imagem no espelho: “As pernas, às vezes elas me atrapalham em vez de me ajudar, né. Ah, às vezes, dá vontade de… tu te revolta, a não serve pra nada e ainda fica me atrapalhando” (E8, F, 38); “No começo eu pensava ‘preferia tá amputado do que assim', falava ‘não, porque não corto minhas duas pernas pelo menos’ eu revoltei, muito forte, não queria de jeito algum, olhava pro espelho e tudo mais e falava ba…” (E4, M, 24).

Como se evidencia nas falas, aos sujeitos retratarem suas lembranças de como vivenciaram a paraplegia, no início, aparece a ideia de evitar olhar sua parte inferior do corpo, ao se deparar com tamanha angústia que essa imagem gera. As pernas, região afetada pela lesão, podem se apresentar como algo que não é bom de ser visto, que poderia não estar presente, buscando até mesmo, como inferem outros participantes, tapá-las com roupas, evitando assim, se deparar com a imagem refletida e a perda marcada em seu corpo.

Entende-se, dessa forma, que, uma vez que a nova condição de paraplegia não foi representada pelo sujeito, há a dificuldade de compreensão e adequação desse novo corpo à percepção de si. Em vista da complexidade do processo de luto, percebe-se que alguns sujeitos não conseguem reconstruir a imagem corporal, preponderando as sombras do antigo corpo sobre o novo.

Isso remete à complexidade e à singularidade do processo de luto e das vivências de suas fases, uma vez que produz intensas demandas ao sujeito. Nesse sentido, será retratado o complexo processo de reconstrução de si e reapropriação do corpo novo, presentes em muitos casos, em que esse passa a ser investido, tornando possível a reestruturação da imagem de si e a adaptação a nova condição.

Reconstrução do Eu: outro sujeito na paraplegia

Conforme Bury (1982)Bury, M. (1982). Chronic illness as biographical disruption. Sociology of Health and Illness, 4(2), 167-182. algo que acometa o corpo de forma duradoura exige uma importante reformulação da biografia. Emerge assim a necessidade de reconstrução do sujeito, diferente do anterior. O decorrer do processo de luto anteriormente retratado permite recriar a identidade e investir em si como alguém com fragilidades e potencialidades vivenciadas de forma diferente e adaptadas.

A (re)construção do conhecimento do sujeito sobre si perpassa o corpo, de modo essencial, visto que a existência do ser humano é corporal. O processo de construção inicia-se desde o nascimento, por meio da relação do bebê com a figura materna, em que a criança começa a compreender e criar, através das vivências corporais, a imagem corporal e a identidade (Násio, 2009Násio, J. D. (2009). Arquipélago do corpo e suas imagens. In Nasio, J. D., Meu corpo e suas imagens (A. Telles, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar.). Contudo, essas criações podem sofrer um abalo frente ao diagnóstico da paraplegia, que exige do sujeito recriar os limites do seu corpo e, consequentemente da sua identidade.

De forma repentina, o sujeito que possuía independência e controle sobre o corpo, percebe que está imobilizado, sem mais o controle sobre algumas funções físicas, passando, de modo inicial, a depender do cuidado do outro, no que diz respeito, inclusive, às necessidades básicas (Conceição, Auad, Vasconcelos, Macêdo, & Bressanelli, 2010Conceição, M. I. G., Auad, J. C., Vasconcelos, L., Macêdo, A., & Bressanelli, R. (2010). Avaliação da depressão em pacientes com lesão medular. Revista Brasileira de Terapia Comportamental Cognitiva, 7(1/2), 43-59. https://doi.org/10.31505/rbtcc.v12i1/2.415
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). Dessa forma, os impactos oriundos de esferas fundamentais da vida, como do funcionamento corporal e das relações interpessoais, pressupõem uma descontinuidade da identidade até então estruturada.

Nesse viés, o sujeito se defronta com um desconhecimento do seu corpo, da sua atividade, remetendo à posição inicial do bebê, com um corpo sobre o qual nada se sabe e que deve ser descoberto. Com isso, precisa-se reaprender a viver com o corpo, aprender os controles sobre o mesmo, a sua forma de funcionamento, conhecê-lo novamente: “E meu, tu é um bebê, um recém-nascido, tu começou tua vida agora, segue o jogo.” (E4, M, 24).

É marcou porque na verdade a gente tem que começar tudo de novo, de volta, não conhece nada. Aí eu tive problema de escara, conhecer o corpo, eu tive que usar fralda também né, uns cinco meses depois da lesão. Aí depois foram me passando uns exercícios de como controlar […] aí fui me conhecendo melhor dai (E2, M, 30).

Nessa concepção, o corpo do sujeito adulto com paraplegia perpassa um processo semelhante às fases iniciais, da infância, de nomear e criar sentidos a esse corpo estranho. Assim, esse construto corporal adulto precisa realocar os investimentos já obtidos e dar sentido e significado a si e suas relações com o corpo: “[…] Às vezes, eu ficava feliz porque tinha tomado banho sozinho, comecei a me enxaguar sozinho, a me secar, me trocar, vestia meu tênis e roupa e tudo, porque é uma outra realidade, é exatamente isso” (E4, M, 24).

Como eu disse, não basta só ficar sentado. A questão do empinar a cadeira, do banho, do vestir uma roupa, parece tão simples pra aquelas pessoas que andam, né! E aí, quando vê, tu tá brigando em cima de uma cama, ou de uma cadeira pra vestir uma calça, entendeu? (E3, M, 39).

Nesse contexto, há a reformulação da imagem corporal, a qual até então estava ligada às atuações e possíveis movimentos conhecidos e realizados pelo corpo anterior. Em suma, como apresentado, será necessário voltar a conhecer o corpo e reorganizar a imagem corporal, o que vai permitir novas possibilidades de ação e relação com o mundo externo (Silva, 2013Silva, E. N. C. (2013). (M)eu corpo: A subjetivação na corporeidade deficiente (monografia). Centro Universitário de Brasília, Brasília, DF, Brasil.).

Conforme essa disposição a investir no corpo, percebendo-o como novo, começa-se a representá-lo, atribuindo qualidades, inserindo-o numa história, o que torna possível voltar a olhá-lo, senti-lo enquanto seu e construir novos planos e atividades. Desse modo, o corpo e sua aparência voltam a ser ligados à possibilidade de viver: “Era uma alegria, misturada com tristeza e dúvida. Eu me encontrei, depois que a pessoa se encontra num novo corpo, na nova vida no geral, é muito mais fácil você sair daquela prisão antiga” (E4, M, 24).

Legal, eu vi que o espelho começou a ficar melhor, no sentido que eu comecei a me enxergar, caramba tô gostando do que eu tô vendo… eu comecei a gosta, comecei a me sentir tão bem, por ta vendo aquele outro [diz seu nome] (E3, M, 39).

Considerando as falas, percebe-se que o sujeito perpassa uma gama de sentimentos que apresentam as dúvidas frente ao corpo, a tristeza em relação ao que se perde com ele, ao adaptar-se a sua condição, ou seja, os sonhos e percepções vinculados a condição anterior, bem como a alegria de poder encará-la. Nessa ideia, passa-se a investir no corpo presente, criando e elaborando as novas representações na sua dinâmica. Por meio disso, surgem possibilidades de o sujeito se identificar e nomear seu novo Eu.

Segundo Jerusalinsky (2010)Jerusalinsky, A. (2010). A formação da imagem corporal (psicanálise e psicomotricidade). In A. Jerusalinsky (Org.), Psicanálise e desenvolvimento infantil: um enfoque transdisciplinar (5a ed., D. M. Lichtenstein et al., trad., pp. 63-73). Porto Alegre, RS: Artes e Ofícios., a subjetivação do corpo abre suas vias quando se nomeia e atribui significado às ações e produções do mesmo. Nesse sentido, é permitido ao sujeito se apropriar desse corpo na paraplegia por meio da busca em fornecer nome a si, as ações e conflitivas do seu corpo e suas vivências, conforme se apresenta nos seguintes relatos: “A gente, cadeirante, tá no meio de pessoa andante, é uma história né.” (E1, M, 36).

Aí eu comecei a andar, rodar, a gente não anda a gente roda, comecei a rodar, comecei a olhar no olho, tudo e voltou. Sendo pessoa que anda, sendo pessoa que roda, e segue a vida, sigo eu tocando e a pessoa andando (E4, M, 24).

A partir dessa consideração, evidencia-se, na grande maioria dos entrevistados, a identificação enquanto pessoas que rodam, colocando como oposto a si os sujeitos que andam. Com isso, nomeia-se esse corpo e o seu diferente, possibilitando a apropriação do mesmo e realocação dos investimentos tidos no corpo anterior (andante), bem como a criação de um novo sentido ao Eu. Observa-se, dessa forma, que o fato de andar e rodar assume um destaque na identidade desses sujeitos, uma vez que passam a ver a si e aos outros por meio, principalmente, dessa condição, estando ela em maior evidência com relação às demais ações do corpo. Frente a isso, a identidade passa a construir uma nova unidade diante do “ser um sujeito que roda”.

Além do mais, conforme a ideia retratada por Jerusalinsky (2010)Jerusalinsky, A. (2010). A formação da imagem corporal (psicanálise e psicomotricidade). In A. Jerusalinsky (Org.), Psicanálise e desenvolvimento infantil: um enfoque transdisciplinar (5a ed., D. M. Lichtenstein et al., trad., pp. 63-73). Porto Alegre, RS: Artes e Ofícios., é para o outro que se endereça a imagem do sujeito e é a partir do olhar deste outro que ele se imagina e se percebe enquanto corpo e identidade. Através da nomeação de muitos entrevistados como alguém que “roda”, pode-se perceber e deduzir a forma como o outro intitula e corresponde o sujeito enquanto um ser “cadeirante”, com uma condição que, de algum modo, o definiria enquanto identidade, ou seja, a cadeira e o rodar permitido por ela enquanto identidade.

Por conseguinte, este processo de construção de novas representações ligadas ao sujeito com paraplegia, apresenta-se também por meio da difícil tarefa de integrar a cadeira de rodas a seu dia a dia e percepção. No que se refere a cadeira, na maioria dos casos relatados pelos entrevistados, esta funciona como um símbolo duplo, ou seja, como algo que permite a locomoção do sujeito, bem como mostra a ele que não pode mais se locomover sozinho.

A cadeira vem a sustentar as modificações do corpo com relação à imobilização das pernas e traz, muitas vezes, o reforço das características que estigmatizam o sujeito, como a própria ideia e representação da “deficiência”, frente a qual se coloca em destaque as diferenças do sujeito que faz uso dela (Costa, Melo, Garanhani, & Fujisawa, 2010Costa, V. S., Melo, M. R. A. C., Garanhani, M. L., & Fujisawa, D. S. (2010). Representações sociais da cadeira de rodas para a pessoa com lesão da medula espinhal. Revista Latino- Americana de Enfermagem, 18(4), 755-762. https://doi.org/10.1590/S0104-11692010000400014
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). Desse modo, a cadeira apresenta-se como um estigma que relaciona a dependência e preconceitos: “Durante um bom tempo, o aceitar a cadeira era o assumir com todas as minhas imperfeições” (E6, F, 45).

Nesse sentido, como apresentado por E6, defrontar-se com a cadeira é deparar-se com fragilidades e imperfeições que a nova condição colocou em destaque, visível aos olhos do outro e de si. Ademais, como evidenciado por outro participante, o qual solicitou que a entrevista fosse realizada dentro do carro, em vista de não se sentir bem para sair com a cadeira de rodas e ser visto pelos outros e por si, é confirmada a dificuldade de lidar com a imagem, a qual ainda é vista com muita revolta e, consequentemente, não permite a apropriação dela e do que vem juntamente a ela, ou seja, a cadeira. Diante desses aspectos, a tentativa de negar o seu novo corpo, que se encontra atrelado diretamente à cadeira de rodas, demonstra o difícil e sofrido processo de deparar-se com um sujeito novo, o qual carece de representações.

A presença dessa cadeira, de alguma forma, faz parte de seu corpo e se coloca como algo com que o sujeito precisa se defrontar. Percebe-se que, ao elaborar a negação frente a esse corpo que reverbera recusas ao instrumento-cadeira junto a ele, adentra-se a adaptação à cadeira de rodas e os significados que começam a ser atribuídos a ela. Conforme, Costa et al. (2010)Costa, V. S., Melo, M. R. A. C., Garanhani, M. L., & Fujisawa, D. S. (2010). Representações sociais da cadeira de rodas para a pessoa com lesão da medula espinhal. Revista Latino- Americana de Enfermagem, 18(4), 755-762. https://doi.org/10.1590/S0104-11692010000400014
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, a cadeira passa a ser uma extensão desse corpo e desses sujeitos, como uma nova vida e realidade: “A cadeira sim, a nossa condição física. A nossa imagem, e ela ta toda atrelada né eu não consigo separar mais o corpo da cadeira” (E6, F, 45); ou ainda: “E agora eu aceito meu corpo assim, eu monto e desmonto minha cadeira, não me imagino sem a cadeira, não é porque, claro você não anda, mas é uma relação de sentimento, não to falando da parte física” (E4, M, 24).

Evidencia-se a apropriação que o sujeito faz da cadeira de rodas como parte de seu corpo e identidade. Com isso, é evidenciado, também em demais falas e relações observadas de muitos sujeitos com suas cadeiras, a naturalidade do lidar com a mesma, permitindo novas construções e realizações a partir da cadeira. Assume, assim, em alguns casos, um caráter de importância vital, como as outras partes do corpo e como um acessório que ajuda a realçar a imagem corporal.

De modo semelhante, as atividades, antes evitadas em vista do isolamento do sujeito, começam a produzir outro sentido na vida e ganham um significado diferente do anterior, gerando prazer. Dessa forma, apresentam-se ações que vieram acontecer na vida dos entrevistados em decorrência da condição da paraplegia, reconstruções de significados sobre esse viver e sobre sua inserção no mundo: “Futebol me faz muito bem, justo e olha só né, eu paraplégico e na cadeira, falando algo de que eu fazia antes e que veio com uma nova abordagem e me faz bem até mais do que antes” (E4, M, 24); “Agora to tranquilo, porque eu fiz mais amizade, o pessoal aqui do esporte mesmo, pessoas que nunca imaginei que conheceria né, talvez se não tivesse na cadeira certamente não ia conhecer” (E2, M, 30).

Diante da paraplegia e a imagem de si reestruturada, o sujeito passa a conviver com suas limitações e vivenciar tanto suas dificuldades como potenciais que se encontram presentes. Nesse sentido, por meio da nova condição corporal, é possível que, até mesmo atividades antes realizadas pelo sujeito, venham, a partir de outra perspectiva, gerar prazer. Ainda, evidenciam-se atividades novas que a paraplegia pode proporcionar, como a entrada em grupos de esportes que permitam um encontro com outros sujeitos e novos vínculos estabelecidos no mundo externo.

Dessa maneira, percebe-se que a paraplegia e a gama de significados aqui apresentados nas vivências subjetivas desses sujeitos permitem a construção de um novo sentido à existência e ao novo conhecimento sobre si. Tudo isso possibilita a volta do prazer em relação ao corpo, que diante das limitações e potenciais, desenvolve-se e cria novas formas de ação e relação com o mundo. Entretanto, percebe-se que a reapropriação do corpo e dos seus prazeres produz uma demanda intensa e complexa aos sujeitos, sendo mais difícil de ocorrer com alguns participantes, os quais não conseguiram consolidar este processo e a reconstrução de si, uma vez que, esses sujeitos, não possuíram um amparo de profissionais que abordassem além dos aspectos biológicos, os aspectos emocionais e conflitivas presentes na vivência da paraplegia. Isso denota a importância da promoção de espaços de elaboração que auxiliem na reconstrução da imagem e da identidade do sujeito.

Considerações finais

A paraplegia, em um sentido especial, coloca o contato com o desconhecido, no surgimento de uma nova condição, nunca antes representada. Sendo a paraplegia uma condição corporal que acomete o corpo em suas funções e sensações, de modo a modificar completamente a estruturação e dinâmica deste corpo, produz-se uma morte simbólica do mesmo, que antes era conhecido. Dessa forma, evidencia-se o árduo processo de reconstrução de um sentido para esse corpo e as relações que o assolam.

Levando em consideração que a imagem corporal diz de uma construção de representações do sujeito acerca de seu corpo e da vivência relacional e emocional com ele, uma vivência da ordem da paraplegia impõe conflitivas frente à percepção de si anterior e à percepção atual, do corpo modificado e presenciado a partir de outro estatuto. Frente a isso, o sujeito se depara com perdas que colocam uma ruptura em sua vida antes e depois da lesão, surgindo assim outro sujeito que não comporta mais as identificações anteriores. Nessa linha, exigem-se a construção de novos sentidos para o viver, novas nomeações para esse corpo, permitindo-o assim sair do estatuto de estranho e ser novamente apropriado ao sujeito e a sua subjetividade.

Com isso, notaram-se dinâmicas presentes nas vivências dos participantes que assinalam o conflito de um corpo novo, que gera repulsa e, em muitos casos, posteriormente, a apropriação do mesmo, que vem gerar prazer. Em vista disso, o sujeito passa a nomear sua essência e ações, passando a ser alguém que roda e que se identifica com outra identidade, outro sujeito. De modo semelhante ao que ocorre com a visão do corpo, a cadeira de rodas perpassa um conflito, sendo algo que, de modo inicial, gera desprazer e, após, passa a ser assimilado como parte de si e de seu corpo, integrando-se à imagem corporal.

Isso tudo, evidenciou-se através do processo de luto que perpassou diferentes fases, desde a negação à condição, voltando-se à permanência da imagem anterior por meio das revivências e lembranças da vida anterior, até a necessidade posterior de deparar-se com suas perdas e os sentimentos de revolta e angústia frente a isso. Além do mais, foi possível perceber a reestruturação deste corpo e adaptação à nova condição como algo que passa a ser integrado à identidade e que gera novas possibilidades de atuação e relação consigo e com o mundo. Contudo, assinala-se a importância de atentar à singularidade de cada processo de luto, uma vez que cada sujeito pode perpassar esses momentos de forma diferenciada e sem necessariamente passar todos os momentos retratados, bem como seguir a sua ordem, podendo ainda permanecer por um tempo diferenciado na vivência das mesmas. Isso pode ser evidenciado em alguns casos em que os sujeitos não conseguem realocar seus investimentos no novo corpo, deixando sobressair as sombras do corpo anterior em referência ao seu corpo e vida atual.

Diante dessas considerações, ressalta-se a importância da promoção, por profissionais da saúde e do esporte, de espaços de elaboração das vivências na paraplegia adquirida, que permita um maior conhecimento e reapropriação dos limites e significados ao corpo. Nesse contexto, o sujeito pode obter trocas de experiências e passagens de conhecimentos de outros que vivem a mesma condição e perpassam angústias e conflitivas semelhantes em referência a si, sendo um importante auxílio na reconstrução da imagem corporal. Destaca-se, assim, a magnitude da pesquisa para promover subsídios aos profissionais e a comunidade científica, para melhor compreender as conflitivas e vivências do sujeito com paraplegia adquirida, de modo a auxiliar o enfrentamento e elaboração da nova condição e a facilitar a construção de sentidos e significados a sua vivência e identidade.

Apesar do número limitado de participantes, bem como, dos mesmos terem possuído vivências diferentes na reabilitação, como a inserção no esporte e presença de uma equipe que abarcou os aspectos físicos e psíquicos, os discursos de todos permitiram um aprofundamento na compreensão do processo de reconstrução da imagem corporal e, consequentemente, da identidade. Sendo assim, a pesquisa propicia dados para a escassa produção e concepção acerca dos aspectos subjetivos dos sujeitos com paraplegia adquirida.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    05 Jun 2017
  • Revisado
    26 Jan 2018
  • Aceito
    21 Fev 2018
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