Resumo
A presente pesquisa caracteriza-se por um estudo de caso que objetiva analisar os itinerários terapêuticos de saúde de moradores de um quilombo do agreste de Alagoas, identificando as formas de cuidado cotidianas presentes no território. A pesquisa tem como perspectiva a noção de saúde e direitos humanos, no entendimento da saúde enquanto um direito fundamental garantido a todo ser humano. Participaram do estudo cinco moradores da comunidade que apresentam histórico de agravo e/ou doença: uma jovem mulher, acima de 18 anos; uma adulta, dois idosos e uma idosa. A pesquisa teve como instrumentos diário de campo e entrevista semiestruturada. As entrevistas foram realizadas nas residências dos participantes, após transcritas foram submetidas a análise de conteúdo e apresentadas três trajetórias de cuidado presentes no território, definidas como: Automedicação e religiosidade como alternativas à saúde; Chás, ervas e conhecimentos populares como prática de cuidado; Entre a atenção básica, práticas privatistas e benzimentos. Os resultados da pesquisa demonstram que os primeiros recursos acionados pelos moradores são a automedicação, o uso de chá e ervas, a práticas religiosas, a conversas com vizinhos, e as rezas e benzimentos. O segundo passo à resolubilidade do agravo é a busca por medicamentos na UBS e o terceiro passo o atendimento hospitalar e serviços particulares. Apesar de haver no território abrangência do serviço de saúde o mesmo não responde as necessidades da comunidade, sendo que a mesma busca a resolubilidade de seus agravos em práticas populares, automedicação e serviços privados de saúde.
Relações Étnicas e Raciais; Quilombos; Práticas de Saúde; Psicologia social
Abstract
The research is characterized by a case study that analyzes the therapeutic health itineraries of residents of a quilombo of the agreste of Alagoas, identifying the daily forms of care present in the territory. The research has as its perspective the concept of health and human rights, in the understanding of health as a fundamental right guaranteed to every human being. Five community residents with a history of illness and/or illness participated in the study: 1 young woman, over 18 years old; 1 adult, 2 elderly and 1 elderly. The research had as instruments a field diary and a semi-structured interview. The interviews were carried out in the participants’ homes. After being transcribed, they were submitted to content analysis and presented three care trajectories present in the territory: Self-medication and religiosity as alternatives to health; Teas, herbs and popular knowledge as a practice of care; Between the basic attention, privatization practices and blessings. The results of the research demonstrate that the earliest resource mobilized by residents is self-medication, tea and herbal use, religious practices, neighborly conversations, and prayers and blessings. The second step to the resolution of the problem is the search for medicines in the UBS and the third step is hospital care and private services. Although there is access to health service, it does not respond to the needs of the community, as it seeks responses to diseases in popular practices, self-medication and private health services.
Ethnic and Racial Relations; Quilombos; Health Practices; Social Psychology
Resumen
La presente investigación se caracteriza por un estudio de caso que objetiva analizar los itinerarios terapéuticos de salud de moradores de un quilombo del agreste de Alagoas, identificando las formas de cuidado cotidianas presentes en el territorio. La investigación tiene como perspectiva la noción de salud y derechos humanos, en el entendimiento de la salud como un derecho fundamental garantizado a todo ser humano. En el estudio participaron 5 residentes de la comunidad que presentan antecedentes de agravio y/o enfermedad: 1 joven mujer, por encima de 18 años; 1 adulta, 2 ancianos e 1 anciana La investigación tuvo como instrumentos, diario de campo y entrevista semiestructurada. Las entrevistas fueron realizadas en las residencias de los participantes, después de transcritas fueron sometidas al análisis de contenido y presentadas tres trayectorias de cuidado presentes en el territorio, definidas como: Automedicación y religiosidad como alternativas a la salud; Té, hierbas y conocimientos populares como práctica de cuidado; Entre a la atención básica, las prácticas privatizadoras y las rezas. El segundo paso a la resolubilidad del agravio es la búsqueda por medicamentos en la UBS y el tercer paso la atención hospitalaria y servicios particulares. A pesar de haber en el territorio abarcamiento del servicio de salud el mismo no responde a las necesidades de la comunidad, siendo que la misma busca la resurrección de sus agravios en prácticas populares, automedicación y servicios privados de salud.
Relaciones Étnicas y Raciales; Quilombos; Prácticas de Salud; Psicología Social
Introdução
Na busca por desvelar e retirar do anonimato as condições sociais vivenciadas pelo povo negro é que a Política Nacional de Saúde Integral à População Negra (PNSIPN) afirma o “Reconhecimento do racismo, das desigualdades étnico-raciais e do racismo institucional como determinantes sociais das condições de saúde, com vistas à promoção da equidade em saúde” (Brasil, 2013Brasil. Ministério da Saúde. (2013). Política nacional de saúde integral da população negra: Uma política do SUS. Brasília, DF: o autor., p. 18). A PNSIPN além de abranger de forma ampliada a saúde da população negra, busca contemplar as especificidades presentes dentro do próprio grupo, como é o caso da saúde das populações negras quilombolas.
Anteriormente à PNSIPN, em 2004 é aprovada a Portaria no 1.434 do Ministério da Saúde (Freitas, Caballero, Marques, Hernández, & Antunes, 2011), que dispõe sobre a instalação de Unidades Básicas de Saúde (UBS) em territórios rurais, assentamentos e comunidades quilombolas, na tentativa de consolidar de forma ampliada o acesso à saúde e a produção de tecnologias de cuidado específica as populações do campo e da floresta. Tanto a PNSIPN como a Portaria no1.434 do Ministério da Saúde (Brasil, 2004) atuam como marcos regulatórios que buscam garantir o direito à saúde a grupos historicamente marginalizados.
A noção de saúde baseada em direitos humanos torna-se neste estudo um aporte teórico fundamental para o entendimento das questões levantadas, já que se apresenta, como afirmam Gruskin e Tarantola (2012)Gruskin, S., Tarantola, D. (2012). Um panorama sobre saúde e direitos humanos. In: V. Paiva, J. R. Ayres, C. M. Buchalla (Orgs.), Vulnerabilidade e direitos humanos: Prevenção e promoção de saúde, da doença à cidadania (p.23-42). Curitiba, PR: Juruá., com uma perspectiva política que concebe o usuário como cidadão e a saúde como direito que deve ser garantido aos sujeitos que estão em busca de cuidados. A igualdade de direitos almejada aos sujeitos e coletivos estão permeadas pelas suas vivências cotidianas, as quais são experienciadas de formas diversas a depender dos marcadores sociais que os constituem, como: seu local de nascimento, gênero, raça/etnia, classe, sexualidade.
Como afirma Paiva (2012)Paiva, V. (2012). Cenas da vida cotidiana: Metodologia para compreender e reduzir a vulnerabilidade na perspectiva dos direito humanos. In: V. Paiva, J. R. Ayres, C. M. Buchalla (Orgs.), Vulnerabilidade e direitos humanos: Prevenção e promoção de saúde, da doença à cidadania (pp. 165-208). Curitiba, PR: Juruá., a vida cotidiana torna-se o cenário das práticas de saúde e cuidado, como espaço que expressam as iniquidades, as desigualdades sofridas e os campos de disputa entre diversos projetos de sociedade. Nesta perspectiva, a saúde não se torna campo normativo de preceitos que devem ser seguidos de forma automatizada, mas é construída como processo de reconhecimento da alteridade e do sujeito como cidadão especializado em sua experiência de vida, ao qual deve ser garantido os seus direitos fundamentais.
Com base nestas discussões que a presente pesquisa levanta algumas questões: quais são as práticas de saúde presentes nas comunidades quilombolas? Quais são os recursos cotidianos disponíveis para a resolubilidade dos agravos e/ou adoecimentos vividos pelos moradores dos quilombos? Qual a relação entre as formas de cuidado produzidas pelos moradores dos quilombos e a política de atenção básica? Como a política pública de saúde vem sendo implantada e como ocorre sua efetivação no plano diário das comunidades quilombolas? Com estas questões que este estudo tem por objetivo analisar os itinerários terapêuticos e as práticas de saúde cotidianas presentes na vida dos moradores de uma comunidade quilombola do agreste de Alagoas.
Para compreender os processos de saúde-doença-cuidado dos moradores do quilombo a presente pesquisa amparou-se na compreensão dos itinerários terapêuticos, definido como os diversos recursos acessados e os variados caminhos a serem percorridos pelos sujeitos na busca ao cuidado em saúde. Santos e Silva (2014)Santos, R. C., Silva, M. S. (2014). Condições de vida e itinerários terapêuticos de quilombolas de Goiás. Saúde Sociedade, 23(3), 1049-1063. afirmam a importância dos estudos sobre itinerários terapêuticos em comunidades quilombolas enquanto ferramentas que buscam compreender como as práticas de saúde tomam forma nos territórios negros rurais, na dependência das determinações materiais, sociais e subjetivas presentes em cada comunidade. As escolhas realizadas pelos sujeitos no cuidado a sua saúde não são tomadas de forma aleatória e ao acaso, mas estão vinculadas diretamente aos recursos sociais disponíveis, as suas concepções de mundo e aos seus grupos de pertencimento. Portanto, o itinerário terapêutico não se circunscreve a uma escolha individual centralizada no sujeito, mas nas redes de apoio e de relações que o circundam. Além disso, o itinerário terapêutico não deve ser compreendido apenas como a descrição linear das escolhas feitas pelo sujeito sobre os equipamentos institucionalizados de saúde, mas relaciona-se com uma variedade de saberes que se encontram próxima a sua realidade sociocultural, que lhe permite constituir compreensões e valores para lidar com seu processo de saúde-doença-cuidado.
A abordagem teórica e metodológica escolhidas no presente estudo, vem ao encontro da revisão de literatura realizada por Freitas et al. (2011)Freitas, D. A., Caballero, A. D., Marques, A. S., Hernández, C. I. V., Antunes, S. L. N. O. (2011). Saúde e comunidades quilombolas: Uma revisão de literatura. Revista CEFAC, 13(5), 937-943.https://doi.org/10.1590/S1516-18462011005000033
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, que investigaram artigos de 2000 a 2010 sobre pesquisas que tinham como tema os processos de saúde/doença em comunidades quilombolas. Tal pesquisa apontou para a formação de linhas de estudos em saúde que têm como perspectiva a abordagem dos direitos humanos na investigação dos campos de vulnerabilidade vivenciados por estas comunidades. Esta noção apresenta-se como base para o entendimento das produções de iniquidades presentes nas políticas públicas de saúde implementadas nos territórios quilombolas. Iniquidades que podem se expressar nas dificuldades de acesso e aceitabilidade dos serviços de saúde nestes territórios.
Condições de saúde em comunidades quilombolas
As formas de cuidado presentes nas comunidades quilombolas e os modos como lidam com a manutenção da saúde se expressam nas contradições entre a falta de acesso aos direitos básicos e os modos possíveis lidar com os adoecimentos presentes em suas vidas cotidianas. Para isso resgatam, criam e inventam práticas de cuidado que não se apresentam apenas como um tratamento a um organismo, mas como cosmovisões que auxiliam os sujeitos a interpretarem a realidade, produzirem escolhas sobre seus caminhos terapêuticos e promoverem ações, que tragam consigo conhecimentos coletivos passados de geração à geração (Fernandes, 2016Fernandes, S. L. (2016). Itinerários terapêuticos e política pública de saúde em uma comunidade quilombola do agreste de Alagoas, Brasil (Tese doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.).
Para compreender as contradições apontadas anteriormente cabe buscar uma especificação mais detalhada das condições sanitárias das famílias quilombolas. Na Chamada Nutricional Quilombola realizada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS (2008), na qual participaram 16.200 pessoas oriundas de 60 comunidades de todo o Brasil, incluindo adultos, crianças e idosos, afirma que: 58,5% das famílias quilombolas não possuem sanitário. Quanto à água, apenas 29,6% têm acesso por meio da rede pública, 43,8% buscam água em poços e nascentes, e outras 11,7% das famílias adquirem água através de cisternas, água da chuva, açudes, represas e barragens. No que tange ao esgoto sanitário, apenas 3,2% das famílias têm acesso à rede pública, 45,9% das famílias vivem em condições inadequadas, sendo o esgoto realizado em valas e a céu aberto. As que se utilizam de fossa séptica e rudimentar somam 50,3%.
Os dados apresentados pelo MDS (2008) vêm ao encontro das pesquisas realizadas por Melo e Silva (2015)Melo, M. F. T., Silva, H. P. (2015). Doenças crônicas e os determinantes sociais da saúde em comunidades quilombolas do Pará, Amazônia, Brasil. Revista ABPN, 7(16), 168-189., Pinho, Dias, Cruz e Veloso (2015), Bezerra et al. (2014)Bezerra, V. M., Medeiros, D. S., Gomes, K. O., Souzas, S., Giatti, L., Steffens, A. P. et al. (2014). Inquérito de saúde em comunidades quilombolas de Vitória da Conquista, Bahia, Brasil (Projeto Comquista): Aspectos metodológicos e análise descritiva. Ciência e Saúde Coletiva, 19(6), 1835-1847. https://doi.org/10.1590/1413-81232014196.01992013
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, Vieira e Monteiro (2013)Vieira, A. B. D., Monteiro, P. S. (2013). Comunidade quilombola: Análise do problema persistente do acesso à saúde, sob o enfoque da bioética de intervenção. Saúde em Debate, 37(99), 610-618. https://doi.org/10.1590/S0103-11042013000400008
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e Silva (2007)Silva, J. A. N. (2007). Condições sanitárias e de saúde em Caiana dos Crioulos, uma comunidade quilombola do Estado da Paraíba. Saúde e Sociedade, 16(2), 111-124. https://doi.org/10.1590/S0104-12902007000200011
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, as quais foram realizadas em comunidades quilombolas situadas no interior dos estados: Pará, Minas Gerais, Bahia, Goiás e Paraíba, respectivamente. Os estudos apontam para a persistência das condições sanitárias precárias e a falta de infraestrutura básica para a manutenção ideal da saúde.
A negligência no acesso às condições sanitárias ideais, como afirmam Pinho et al. (2015)Pinho, L., Dias, R. L., Cruz, L. M. A., Velloso, N. A. (2015). Condições de saúde quilombola no norte de Minas Gerais. Revista de Pesquisa Cuidado é Fundamental, 7(1), 1847-1855. https://doi.org/10.9789/2175-5361.2015.v7i1.1847-1855
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e Oshai e Silva (2013)Oshai, C. M. A., Silva H. P. (2013). A PNAB e o acesso à saúde em populações quilombolas. Anais do Congresso de Medicina de Família e Comunidade, Belém, PA, 12., apresenta-se como um dos fatores no desenvolvimento de agravos nas comunidades quilombolas, já que muitas doenças parasitárias e infecciosas são desenvolvidas em condições insalubres e pelo consumo de água não tratada. Tais condições repercutem nos dados da Chamada Nutricional realizada pelo MDS (Brasil, 2008Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2008). Cadernos de estudos desenvolvimento social em debate. Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Social.) quanto à incidência de diarreia nas crianças quilombolas, que foi de 17,8% em uma amostra de 2.927 crianças, bem como os dados levantados pela pesquisa de Melo e Silva (2015)Melo, M. F. T., Silva, H. P. (2015). Doenças crônicas e os determinantes sociais da saúde em comunidades quilombolas do Pará, Amazônia, Brasil. Revista ABPN, 7(16), 168-189., que entre 59 participantes 50,9% apresentam doenças de pele, morbidade prevalente em comunidades com condições sanitárias precárias.
As pesquisas desenvolvidas por Melo e Silva (2015)Melo, M. F. T., Silva, H. P. (2015). Doenças crônicas e os determinantes sociais da saúde em comunidades quilombolas do Pará, Amazônia, Brasil. Revista ABPN, 7(16), 168-189., Pereira, Silva e Santos (2015), Bezerra et al. (2014)Bezerra, V. M., Medeiros, D. S., Gomes, K. O., Souzas, S., Giatti, L., Steffens, A. P. et al. (2014). Inquérito de saúde em comunidades quilombolas de Vitória da Conquista, Bahia, Brasil (Projeto Comquista): Aspectos metodológicos e análise descritiva. Ciência e Saúde Coletiva, 19(6), 1835-1847. https://doi.org/10.1590/1413-81232014196.01992013
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, Vieira e Monteiro (2013)Vieira, A. B. D., Monteiro, P. S. (2013). Comunidade quilombola: Análise do problema persistente do acesso à saúde, sob o enfoque da bioética de intervenção. Saúde em Debate, 37(99), 610-618. https://doi.org/10.1590/S0103-11042013000400008
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, Oshai e Silva (2013)Oshai, C. M. A., Silva H. P. (2013). A PNAB e o acesso à saúde em populações quilombolas. Anais do Congresso de Medicina de Família e Comunidade, Belém, PA, 12. e Oliveira, Silveira, Pereira, e Freitas (2012) afirmam que uma das dificuldades prevalentes das populações quilombolas no acesso aos serviços públicos de saúde é a distância das unidades básicas e hospitais das comunidades, bem como, a inexistência ou precariedade do transporte público nestes territórios. O que dificulta o acesso dos moradores destas comunidades aos equipamentos de saúde.
O estudo de Costa (2012)Costa, E. S. (2012). Racismo, política pública e modos de subjetivação em um quilombo do Vale do Ribeira (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP. confirma as dificuldades encontradas nas comunidades quilombolas no acesso à saúde, ao apontar que as maiores carências destas comunidades ainda são relativas às políticas públicas estruturais, como falta de energia, água e transporte. O que acaba comprometendo o acesso pleno delas aos serviços públicos. Ao encontro do estudo de Costa (2012)Costa, E. S. (2012). Racismo, política pública e modos de subjetivação em um quilombo do Vale do Ribeira (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP., Oliveira (2011)Oliveira, J. R. (2011). A atenção básica e a saúde da população negra. In: J. L. S. Riscado, M. A. B. Oliveira (Orgs.), Quilombolas, guerreiros alagoanos: AIDS, prevenção e vulnerabilidade (pp. 33-44). Maceió, AL: Edufal. afirma que, no estado de Alagoas, as comunidades quilombolas sofrem da mesma dificuldade, já que os equipamentos de saúde se encontram distantes das comunidades, ou quando se fazem presentes, apresentam limitações quanto à inserção, aceitabilidade e diálogo com os saberes locais e as práticas de saúde presentes nos territórios.
Além das dificuldades de infraestrutura, o acesso e contato das comunidades com a rede de atenção à saúde também é precária. A pesquisa de Oshai e Silva (2013)Oshai, C. M. A., Silva H. P. (2013). A PNAB e o acesso à saúde em populações quilombolas. Anais do Congresso de Medicina de Família e Comunidade, Belém, PA, 12. sobre as condições de saúde de comunidades quilombolas na Amazônia paraense revela que 57% das ações de saúde são desenvolvidas apenas pelos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), não havendo contato da comunidade com outros profissionais. No relato dos moradores, o momento de encontro com outros profissionais acontece apenas nas campanhas de vacinação.
Nas comunidades que apresentam em seu território UBS, estas vem funcionando de forma deficitária e com defasagem de profissionais. Como é relatado na pesquisa de Silva (2007)Silva, J. A. N. (2007). Condições sanitárias e de saúde em Caiana dos Crioulos, uma comunidade quilombola do Estado da Paraíba. Saúde e Sociedade, 16(2), 111-124. https://doi.org/10.1590/S0104-12902007000200011
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, realizada na Comunidade Caiana dos Crioulos na Paraíba, que aponta a existência de uma UBS na comunidade, porém esta vem funcionando com limites de horários e com carência de profissionais, o que impede o atendimento integral à população. Além disso, os serviços especializados, como hospitais e laboratórios, encontram-se distantes da comunidade, o que dificulta a construção de uma rede de referência e contrarreferência nos serviços.
Este cenário de precariedade nos serviços instalados nos territórios quilombolas persiste, como na pesquisa realizada por Fernandes, Brito e Ribeiro (2017) em uma UBS localizada em uma comunidade do agreste alagoano, que apesar de ter a infraestrutura ideal para seu funcionamento, apresenta escassez de profissionais para o atendimento e falta de projetos específicos para as demandas da população negra.
A negligência no acesso aos serviços, ou serviços prestados com qualidade precária à população negra, apresenta conectada ao racismo institucional, que produz no cotidiano dos serviços de saúde formas de discriminação e preconceito racial (Santos, & Silva, 2014).
Frente às dificuldades de acesso aos equipamentos de saúde, as comunidades quilombolas buscam solucionar seus agravos e/ou doenças com base em práticas populares arraigadas em seus territórios. Estas práticas incluem: remédios caseiros a base de chás e de ervas; garrafadas de raízes e plantas medicinais; acompanhamento com parteiras; práticas com rezadeiras, benzedeiras e puxadores (Santos, & Silva, 2014; Silva, 2007Silva, J. A. N. (2007). Condições sanitárias e de saúde em Caiana dos Crioulos, uma comunidade quilombola do Estado da Paraíba. Saúde e Sociedade, 16(2), 111-124. https://doi.org/10.1590/S0104-12902007000200011
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; Vieira, & Monteiro, 2013).
Para compreender o cuidado em saúde nas comunidades quilombolas, não se deve tratar os conhecimentos populares apenas enquanto efeito dos processos sistemáticos de exclusão vividos por esta população. Eles são efeitos deste processo, mas também são epistemologias que atrelam o cuidado à saúde a uma dimensão maior, vinculada aos modos de viver. Como saberes que se incorporam no cotidiano das comunidades quilombolas e as auxiliam a interpretar a realidade, na compreensão dos fenômenos, da vida, do adoecimento, do corpo e da saúde.
A relevância da política de atenção básica à saúde nas comunidades quilombolas pode ser confirmada em pesquisas que revelam que os agravos e/ou doenças prevalentes nas comunidades são: hipertensão arterial, anemia falciforme, doenças infecto parasitárias, diabetes, doenças crônicas ligadas ao aparelho digestivo, doenças de pele, alcoolismo, tabagismo e afecções oftalmológicas. Agravos que podem ter alta resolubilidade se esta política estivesse efetivada nestes territórios (Cardoso, Melo, & Cesar, 2015; Melo, & Silva, 2015; Pereira et al., 2015)Pereira, L. L., Silva, H. P., Santos, L. M. P. (2015). Projeto mais médicos para o Brasil: Estudo de caso em comunidades quilombolas. Revista da ABPN, 7(16), 38-51.. Os agravos e/ou doenças predominantes nas comunidades devem-se às situações de vulnerabilidade e as precárias condições de vida, que podem ser superadas por meio da Atenção Básica, que objetiva: ampliação da abrangência para o cuidado em saúde; acompanhamento longitudinal dos agravos recorrentes ao nível individual e coletivo; prevenção, promoção e educação em saúde; criação de estratégias de cuidado tendo como horizonte o princípio da equidade (Bezerra et al., 2014Bezerra, V. M., Medeiros, D. S., Gomes, K. O., Souzas, S., Giatti, L., Steffens, A. P. et al. (2014). Inquérito de saúde em comunidades quilombolas de Vitória da Conquista, Bahia, Brasil (Projeto Comquista): Aspectos metodológicos e análise descritiva. Ciência e Saúde Coletiva, 19(6), 1835-1847. https://doi.org/10.1590/1413-81232014196.01992013
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; Pinho et al., 2015Pinho, L., Dias, R. L., Cruz, L. M. A., Velloso, N. A. (2015). Condições de saúde quilombola no norte de Minas Gerais. Revista de Pesquisa Cuidado é Fundamental, 7(1), 1847-1855. https://doi.org/10.9789/2175-5361.2015.v7i1.1847-1855
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; Silva 2007)Silva, J. A. N. (2007). Condições sanitárias e de saúde em Caiana dos Crioulos, uma comunidade quilombola do Estado da Paraíba. Saúde e Sociedade, 16(2), 111-124. https://doi.org/10.1590/S0104-12902007000200011
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Porém, como afirmam Marques, Caldleiras, Souza, Zucchi e Cardoso (2010), a ampliação da Política de Atenção Básica nos territórios quilombolas não é a garantia que o direito à saúde desta população esteja assegurado, já que esta política, por vezes, instaura-se de forma precária: sem o quadro de profissionais necessários, com falta de infraestrutura para funcionamento e com práticas de saúde que atuam alheias a realidade local.
Arruti (2009)Arruti, J. M. (2009). Políticas públicas para quilombos: Terra, saúde e educação. In: M. Paula, R. Heringer (Orgs.), Caminhos convergentes: Estado e sociedade na superação das desigualdades raciais (pp. 75-109). Rio de Janeiro, RJ: Fundação Heinrich Boll. aponta um dos problemas a serem superados pela política pública de saúde nas comunidades quilombolas, que é a estruturação da mesma para além de uma política redistributiva. Enquanto a política de saúde se estruturar apenas sobre este princípio, ela vai tratar as comunidades quilombolas como mais um território de pobreza dentre vários outros presentes no país. A sua implantação deve ter também como norte a política de reconhecimento, que compreenda as diferenças culturais e as trajetórias históricas de cada comunidade quilombola, e sobre elas construir estratégias para superação das problemáticas sociais enfrentadas em cada território. Não levar em conta as categorias de raça-etnia, bem como, as peculiaridades dos variados modos de vida negros rurais presentes no território nacional, é negligenciar características básicas que configuram as formas de ser e existir das comunidades quilombolas. Esta negligência realiza uma redistribuição ineficaz, que amplia ainda mais o fosso entre o desejo do pleno acesso à saúde e a garantia deste direito às comunidades quilombolas.
Método
O presente estudo caracteriza-se por uma pesquisa de cunho qualitativa, com base em um estudo de caso, tendo nas narrativas dos itinerários terapêuticos dos moradores de um quilombo do agreste de Alagoas as fontes para compreensão das formas de cuidado produzidas no território. Foram três os critérios para escolha da comunidade a ser pesquisada: 1º – Ser uma das comunidades reconhecidas a mais tempo no estado (07/02/2007); 2º – Ser uma das comunidades que abrange maior número de famílias em seu território; 3º – Ter uma UBS instalada no território quilombola.
Atualmente as comunidades quilombolas em Alagoas encontram-se localizadas em sua maioria no semiárido, nas regiões do agreste e do sertão. Das 68 comunidades quilombolas reconhecidas no estado de Alagoas, 46 estão situadas no semiárido. O equivalente a 67,6% das comunidades, que estão distribuídas em três regiões: no Agreste (11 comunidades), no Médio Sertão (15 comunidades) e no Sertão (20 comunidades) (Iteral, 2010Instituto de Terras e Reforma Agrária de Alagoas – Iteral. (2010). Relação das comunidades quilombolas com certificação oficial dada pela Fundação Palmares. Maceió, AL: Instituto de Terras de Alagoas. Recuperado em 22 de maio de http://www.iteral.al.gov.br/dtpaf/comunidades-quilombolas-de-alagoas/comunidades-quilombolas-de-alagoas
http://www.iteral.al.gov.br/dtpaf/comuni...
).
A comunidade quilombola investigada foi formada pelo processo de migração de uma família oriunda de uma comunidade próxima ao município de Penedo, que ao se deslocar para região, que hoje situa-se a cidade de Arapiraca, dá origem a outras três famílias, chamadas na comunidade dos troncos de origem da comunidade. A maioria dos moradores quilombolas são descendentes destes três troncos familiares. Os sentidos desta migração são incertos, porém cabe ressaltar, como afirma Nascimento (2006)Nascimento, B. (2006). Kilombo e memória comunitária: Um estudo de caso. In: A. Ratts (Org.), Eu sou atlântica: Sobre trajetória de vida de Beatriz Nascimento (p. 111-116). São Paulo, SP: Imprensa oficial., que os processos de migração de quilombolas de uma região à outra são relatados em variados estudos no Brasil, e apontam para duas possibilidades ao menos, como: formas de resistência e reorganização das comunidades frente aos processos de repressão e opressão e formas de comunicação entre as comunidades quilombolas na busca por estabelecer um sentido de nação negra.
A comunidade quilombola pesquisada abrange cerca de 510 famílias e tem em seu território: um equipamento de saúde (UBS), uma associação comunitária quilombola ativa e uma escola de tempo integral. As atividades laborais são diversificadas, mas ainda tem como base a produção agrícola de subsistência em pequenas roças distribuídas nos entornos da comunidade, ou mesmo nos quintais das casas, como modo de garantir o alimento semanal. Há um ciclo de trabalho na terra bem marcado devido às estações do ano, sendo que no inverno, período de chuva, investe-se no plantio para colher no fim desta estação; e no verão, período de seca, destacam-se a colheita e secagem das folhas de fumo e a produção da farinha de mandioca. Muitas famílias vivem da aposentadoria e recebem benefícios do governo como modo de garantir a renda familiar.
Todos os anos é realizado na comunidade, no mês de novembro, semana de apresentações e debates em comemoração ao dia 20 de novembro, dia Nacional da Consciência Negra. Este evento é oriundo de um projeto de ações afirmativas da escola de tempo integral junto à associação quilombola.
A comunidade ainda que caracterizada como área rural, localiza-se a 12 quilômetros do centro urbano de Arapiraca e apresenta uma via central asfaltada que oferece acesso à rodovia Al-110. Tal rodovia possibilita o deslocamento à cidade de Arapiraca, bem como, aos municípios circunvizinhos. Assim, a vida comunitária se faz entre os encontros e os distanciamentos entre a vida urbana e as produções locais do quilombo. Tais relações se perfazem não apenas pelas aproximações geográficas, mas também pelos trânsitos simbólicos, políticos e culturais que se estabelecem entre ambos os territórios. Apesar destas aproximações com o a realidade urbana, o modo de vida rural, com suas formas de trabalho, a relação com a terra, a economia de subsistência, os conhecimentos populares passados por meio da oralidade, os vínculos de proximidade e o reconhecimento entre vizinhos, parentes e amigos, ainda são marcas presentes no cotidiano da comunidade.
Diante deste cenário foi utilizado como instrumentos da pesquisa a entrevista semiestruturada e o diário de campo. A entrevista seguiu um roteiro que discorreu sobre as compreensões e vivências do processo saúde-doença-cuidado diante dos agravos vividos pelos moradores, que possibilitou a emergência das narrativas de seus itinerários terapêuticos.
O contato e a inserção na comunidade foram realizados por meio da iniciativa do trabalho com o agente local. O agente local é definido como uma pessoa chave da comunidade responsável para realizar mediações entre o pesquisador e a comunidade. Mediar neste caso está para além da criação de contatos, mas é a produção de laços capazes de vincular universos distintos, mesmo com valores, objetivos, discursos e práticas diversas (Martins, Santos, & Paiva, 2009).
A escolha dos participantes da pesquisa foi mediada por conversas entre lideranças comunitárias, o agente local e os moradores que se dispunham a participar. Os participantes apresentam em comum histórico de agravo e/ou doença, sendo eles distribuídos em diversas faixas etárias, como modo de abranger as diversidades de itinerários presentes na comunidade, sendo eles: três idosos (dois idosos e uma idosa), uma adulta e uma jovem com idade acima de 18 anos. Os moradores narraram os locais, os equipamentos sociais e os conhecimentos procurados no momento em que estavam em situação de agravo e/ou doença, apresentando as relações estabelecidas, as dificuldades encontradas e os processos de cuidado produzidos em seus itinerários terapêuticos. Os cinco moradores participantes possibilitaram a saturação da informação em relação ao tema pesquisado. Todos os cinco entrevistados são moradores da comunidade, nasceram e criaram seus vínculos e sua vida neste território. Alguns com saídas esporádicas para trabalhar em outros Estados, como foi o caso de I1 (idoso da comunidade), que viveu cinco anos fora para garantir a permanência e o sustento de sua família na comunidade. Outro caso, como a de J1 (uma jovem da comunidade) e de A1 (adulta da comunidade), que têm suas vidas marcadas por um percurso sazonal entre a cidade e o campo, para realizar os estudos e a formação profissional. Já os idosos I2 (idoso da comunidade) e I3 (idosa da comunidade), fizeram a vida na lida da roça, ora trabalhando em terras alheias, e ora produzindo alimentos para o próprio sustento e venda nas feiras locais.
Os nomes dos entrevistados não serão identificados nas análises e nem serão substituídos por nomes fictícios, para que não haja problema de substituição por nomes que coincidam com algum membro da comunidade. Assim, optou-se por nomenclaturas que os identificam por meio de sua categoria etária, como segue: J (uma jovem da comunidade); A (adulta da comunidade); I (idosa(o) da comunidade).
A entrevista foi realizada após a assinatura em duas vias, do Termo Livre e Esclarecido (TCLE). Os participantes da mesma foram convidados e sua contribuição para o estudo foi voluntária. O estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de São Paulo nº 30892514.0.0000.5561.
Todas as entrevistas foram gravadas para posterior transcrição e análise. As entrevistas foram todas realizadas na casa dos participantes, tendo nos quintais o cenário do desenvolvimento das mesmas. O contato inicial era realizado na porta da casa, entre palmas e olhares, em que entrevistado e entrevistador se reconheciam. A presença do agente local era relevante, como uma referência que abria os caminhos para adentrar a morada do outro. Em uma conversa informal buscavam-se aproximações entre a realidade do participante e do pesquisador. Receios, ansiedades e desconfianças eram suscitados neste momento entre ambas as partes. Porém, por meio da conversa o participante nos convidava a entrar, passávamos pela sala, em algumas casas a sala e cozinha compartilhavam o mesmo espaço. Na maioria das vezes, neste ambiente éramos convidados a esperar, o(a) entrevistado(a), ou seu(sua) cônjuge, traziam ou café, suco, água, junto com alguma guloseima. Depois seguíamos para o quintal, onde as cadeiras eram dispostas, para três lugares, quando o agente local era requisitado para acompanhar a entrevista pelo morador, ou duas cadeiras, quando este não era solicitado.
Este processo de entrada nas casas foi vivenciado como um ritual de passagem, no qual o ambiente era vagarosamente reconhecido, bem como, nós éramos observados e também reconhecidos pelos participantes. A espera na sala e a busca pelo café era o momento em que as primeiras barreiras eram quebradas. A chegada ao quintal era um momento de aceite inicial para a conversa, afinal é naquele ambiente que a vida é compartilhada na comunidade, como se eles dissessem: agora podemos compartilhar um pouco de nossas experiências.
As cinco entrevistas foram transcritas e submetidas a análise de conteúdo (Bardin, 2011Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo. Rio de Janeiro: 70.). As narrativas dos itinerários terapêuticos dos participantes serão descritas e analisadas a seguir, sendo apresentados os percursos comuns vividos pelos moradores do quilombo e as particularidades presentes em suas trajetórias de cuidado à saúde.
Itinerários terapêuticos: caminhos para o cuidado à saúde no quilombo
Os itinerários terapêuticos foram elaborados por meio de conversas que suscitaram narrativas sobre as práticas de cuidado realizadas pelos moradores em situações de agravo e/ou doença. A técnica de investigação do itinerário terapêutico buscou compreender quais respostas foram possíveis diante dos problemas vividos pelos moradores da comunidade quilombola, quais caminhos foram traçados, quais táticas se desenvolveram, e quais conhecimentos foram acessados na busca da resolubilidade de seus agravos. Ou seja, as relações que se estabeleceram entre as necessidades de resolubilidade de seus problemas e as escolhas possíveis e disponíveis em seu território.
As concepções de escolha e decisão aqui discutidas não estão subsumidas a lógica neoliberal que centra a capacidade de escolha e decisão no próprio indivíduo, este concebido como sujeito que detém uma autonomia independente dos determinantes sociais, históricos e políticos que o subjazem. Ao contrário, apoiado na definição de autonomia proposta por Seffner, Pupo e Paiva (2012)Paiva, V. (2012). Cenas da vida cotidiana: Metodologia para compreender e reduzir a vulnerabilidade na perspectiva dos direito humanos. In: V. Paiva, J. R. Ayres, C. M. Buchalla (Orgs.), Vulnerabilidade e direitos humanos: Prevenção e promoção de saúde, da doença à cidadania (pp. 165-208). Curitiba, PR: Juruá., os processos de decisão e escolha implicam relações de negociação condicionadas por um outro: sujeito, coletivo, organização, instituição. Assim, a escolha e a decisão como ação produzida no campo da autonomia, apresenta-se como algo que não se tem propriedade, ou que se porta de forma individualizada. Tais capacidades se constituem por meio de relações de forças, na qual coletivos, sujeitos e grupos conflitam e negociam seus recursos, conhecimentos e poder.
A autonomia é um processo a ser conquistado constantemente, exercida no espaço público, na negociação de diferentes atores sociais, que vão estabelecer, frente aos seus recursos e necessidade, relações de poder que podem, ora limitar, ora intensificar a capacidade de decisão, escolha e ação de sujeitos e coletivos.
Assim, as análises que se seguem não buscam realizar entendimentos causais das escolhas dos itinerários terapêuticos dos moradores, apenas objetiva a construção de unidades compreensivas capazes de potencial analítico sobre as experiências de saúde dos moradores do quilombo.
Automedicação e religiosidade como alternativas à saúde
Na narrativa da Jovem entrevistada (J1) a automedicação apresenta-se como a primeira alternativa quando o agravo e/ou doença é leve. Concomitante a automedicação, ela realiza práticas religiosas, como orações e cânticos, vinculados ao pertencimento de sua igreja, no auxílio ao processo de cura. A relação com os vizinhos para compartilhar as experiências de automedicação e o pertencimento a um grupo religioso, para as práticas das orações fazem parte dos seus percursos terapêuticos. Porém, quando não solucionado o problema por meio a automedicação, ela busca a UBS, mas isso pouco acontece, pois o atendimento não apresenta uma efetividade de resposta para ela: “Quando fico doente eu tomo remédio que dê jeito. Se não passar procuro o posto. Mas às vezes o posto não pode atender. Se não passar, só Deus sabe. Por isso, costumo orar quando estou com algum problema de saúde” (J1, uma jovem da comunidade).
A narrativa de J1 (uma jovem da comunidade) vem ao encontro dos estudos de Rosa, Hoga, Santana e Silva (2014) e Gadelha, Pinto Junior, Bezerra, Pereira e Maracajá (2013), que afirmam que a automedicação é realizada em agravos leves, presentes em populações de baixo poder aquisitivo, sendo associada à facilidade do acesso e ao baixo custo do tratamento. A escolha pela automedicação está associada as dificuldades de acesso e a insuficiência dos serviços públicos de saúde em oferecer resolubilidade aos agravos e/ou doenças da população de baixa renda.
De acordo com Gerhardt (2006) as escolhas que delineiam os itinerários terapêuticos estão condicionados por meio dos compartilhamentos de crenças, valores e regras dos grupos de pertencimento dos sujeitos, como afirma J1 (uma jovem da comunidade): “Como não busco muito o posto, prefiro mais encontrar as pessoas da igreja, elas me ajudam a entender a doença, me apoiam quando não estou bem de saúde”. Esta relação entre a religiosidade e a as práticas de cuidado vem ao encontro do estudo de Rocha e Fleck (2011)Rocha, N. S., Fleck, P. A. (2011). Avaliação de qualidade de vida e importância dada a espiritualidade/religiosidade/crenças pessoais (SRPB) em adultos com e sem problemas crônicos de saúde. Revista de Psiquiatria Clínica, 38(1), 19-23. https://doi.org/10.1590/S0101-60832011000100005
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, que demonstra a relação existente entre as dificuldades de acesso das populações periféricas às instituições de saúde e a facilidade de inserção destes grupos em centros religiosos, que atuam no fortalecimento de modelos explicativos sobre os acontecimentos de suas vidas, bem como, dos processos de saúde-doença-cuidado.
Para J1 (uma jovem da comunidade) a UBS torna-se um equipamento acessado posteriormente, já que para ela a UBS oferta apenas o tratamento medicamentoso, ela afirma não haver outras propostas terapêuticos além desta: “[…] parece que lá no posto é só isso, só dar remédio. É medicamento, medicamento. Não pensa na nossa situação. Só passa o medicamento mesmo, porque eles não são daqui, eles não convivem né, eles são lá de fora”.
A prática da automedicação é fortalecida, de acordo com J1 (uma jovem da comunidade), pela própria UBS. Esta não foi uma narrativa que ficou restrita a esta entrevistada, entre outros participantes é recorrente a significação da UBS como o lugar do tratamento medicamentoso. Tal afirmativa vem ao encontro de alguns estudos como os de Pereira et al. (2015)Pereira, L. L., Silva, H. P., Santos, L. M. P. (2015). Projeto mais médicos para o Brasil: Estudo de caso em comunidades quilombolas. Revista da ABPN, 7(16), 38-51. e Oliveira et al. (2012)Oliveira, S. K. M., Silveira, J. C. S., Pereira, M. M., Freitas, D. A. (2012). Saúde em comunidade rural quilombola: Relato de experiência sob o prisma dos atributos da atenção primária à saúde. Motricidade, 8(Supl. 2), 83-88., os quais apontam a busca pela unidade de saúde como espaço da medicalização da vida nas comunidades quilombolas. Tal fenômeno pode ser associado ao distanciamento geográfico e epistemológico dos profissionais a realidade das comunidades, associação confirmada na fala de J1 (uma jovem da comunidade) quanto esta relata a não convivência e inserção de alguns membros da equipe de saúde com a realidade comunitária […] eles vêm de fora”. A incapacidade de resolubilidade mais ampliada do equipamento de saúde à realidade comunitária do quilombo, fortalece na jovem a busca pela automedicação com seus vizinhos e o apoio de seu grupo religioso.
Chás, ervas e conhecimentos populares como prática de cuidado
Diferente da jovem participante da pesquisa, A1 (adulta da comunidade) mostra um itinerário diverso, percorrido pelo uso de chás e ervas ao invés da automedicação. O medicamento em sua narrativa foi pouco suscitado, e se fez presente apenas em situações urgentes e graves. Como afirma A1 (adulta da comunidade): “Primeiro a gente usa o que já tem, um chá, uma erva. Os segredos que aprendemos com nossa mãe e vó. Só quando a coisa é muito grave, que busco o médico, remédio, ou exame no posto”.
A1 (adulta da comunidade) narra a importância dos conhecimentos populares, entende que os mesmos foram úteis no passado e ainda são no presente. Fala de como estes conhecimentos, “segredos”, são passados no dia a dia da comunidade de geração à geração: “Eu acredito no conhecimento popular que já era útil. Aquela velha [vizinha] é mulher sábia, conhece muito das plantas. Aprendeu com a mãe e passa o que sabe para nós. Na casa dela tem uma farmácia toda plantada” (A1, adulta da comunidade quilombola).
O modo com que a entrevistada entra em contato e apreende o uso de chás e ervas vem ao encontro dos estudos de Almeida Neto, Barros e Silva (2015) e Rosa et al. (2014)Rosa, P. L. F. S., Hoga, L. A. K., Santana, M. F., Silva, P. L. (2014). Uso de plantas medicinais por mulheres negras: Estudo etnográfico em uma comunidade de baixa renda. Revista da Escola de Enfermagem da USP, 48(Esp.), 46-53. https://doi.org/10.1590/S0080-623420140000600007
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, os quais apontam que a transmissão destas práticas de cuidado ocorrem no cotidiano, tendo como cenário a vida familiar e as relações entre vizinhos. Interessante ressaltar que os territórios e as populações pesquisadas nos estudos supracitados – Almeida Neto et al. (2015) e Rosa et al. (2014)Rosa, P. L. F. S., Hoga, L. A. K., Santana, M. F., Silva, P. L. (2014). Uso de plantas medicinais por mulheres negras: Estudo etnográfico em uma comunidade de baixa renda. Revista da Escola de Enfermagem da USP, 48(Esp.), 46-53. https://doi.org/10.1590/S0080-623420140000600007
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– apresentam elementos similares que convergem para a realidade de vida de A1 (adulta da comunidade) como mulher negra de uma comunidade quilombola do nordeste brasileiro.
De acordo com Almeida Neto et al. (2015) e Gadelha et al. (2013)Gadelha C. S., Pinto Junior, V. M., Bezerra, K. K. S., Pereira, B. B. M., Maracajá, P. B. (2013). Estudo bibliográfico sobre o uso de plantas medicinais e fitoterápicas no Brasil. Revista Verde, 8(5), 208-2112., as comunidades rurais e tradicionais são as que apresentam um vasto conhecimento nos usos de chás, ervas e práticas populares em saúde. Estes variados conhecimentos devem-se a relação destas populações com a terra, com as tradições culturais no tratamento com o uso de plantas, nas relações de proximidade com vizinhos e parentes, adensadas às dificuldades de acesso aos equipamentos especializados de saúde.
Os usos de chás, ervas e práticas populares em saúde conduzem ao encontro com outros atores comunitários, vizinhos, familiares, benzedeiras e rezadores, conhecidos da comunidade, que para transmitirem seus saberes e realizarem suas intervenções exigem disposição ao compartilhamento de experiências de quem procura seus cuidados. Tais práticas não se apresentam apenas como uma passagem de informação, mas de uma vivência que busca integrar elementos naturais, tradicionais e espirituais: “Quando a gente toma um chá, usa uma erva, não é só a planta que tá ali, é muito mais. É a mãe que nos passou, às vezes, a planta de um Santo. Isso tudo vem junto” (A1, adulta da comunidade).
Apesar das práticas com ervas e plantas estarem presentes no cotidiano da comunidade, há uma dificuldade de diálogo entre estas práticas e as ações técnico-científicas presentes nos serviços de saúde. Mesmo que ambos estejam presentes no cotidiano dos moradores, eles ocupam funções e espaços diferentes em suas vidas. O estudo realizado por Antonio, Tesser e Moretti-Pires (2014), mostrou que está havendo transformações nas comunidades quilombolas com a ampliação da atenção primária no território. As práticas populares antes da implantação dos serviços de saúde apresentavam-se como uma das únicas alternativas para lidar com os agravos, com a abrangência da atenção primária outras opções terapêuticas tornam-se acessíveis. Cabe compreender como ocorre o encontro entre os saberes técnico-científicos e populares nas comunidades quilombolas.
Arruti (2009)Arruti, J. M. (2009). Políticas públicas para quilombos: Terra, saúde e educação. In: M. Paula, R. Heringer (Orgs.), Caminhos convergentes: Estado e sociedade na superação das desigualdades raciais (pp. 75-109). Rio de Janeiro, RJ: Fundação Heinrich Boll. propõe o conceito de intermedicalidade para ações de políticas de saúde que se insiram em territórios quilombolas, definido como estratégias de ação que buscam o diálogo e a intersecção entre os conhecimentos formais de saúde e os saberes produzidos pelas práticas populares. Compreender a importância dos saberes tradicionais no cuidado à saúde é possibilitar a emergência de uma política pública, que para atuar de forma redistributiva aos quilombolas, necessita incorporar nos seus princípios o reconhecimento da diversidade de práticas de cuidado presentes em seus territórios.
Como mostra o estudo de Antonio, Tesser e Moretti-Pires (2014), o uso de plantas medicinais na atenção primária melhorou o acesso a outras formas terapêuticas de cuidado em saúde, fortaleceu a implementação das políticas públicas de saúde nos territórios e estimulou ações intersetoriais de educação em saúde e participação comunitária.
A narrativa de A1 (adulta da comunidade) problematiza como as práticas populares têm se perdido no cotidiano da comunidade, devido à dificuldade de passagem destes saberes, pouco valorizados no dia a dia. Afirma que o medicamento é que tem adquirido aderência na comunidade, até mesmo para as pessoas que antes faziam uso das ervas e plantas medicinais. Para ela o medicamento se perfaz no imaginário social da comunidade enquanto uma solução rápida e imediata: “[…] o medicamento tem essa coisa do imediato, né? Até as pessoas que gostavam dos chás, começaram a perceber isso e começaram a deixar de lado. O posto ajuda nisso também. Só as mais idosas é que mantêm as plantas”.
A1 (adulta da comunidade) apresenta um posicionamento crítico quanto à função da UBS, entendendo este equipamento para além de práticas curativas, que ele deve desenvolver ações de educação em saúde que envolva as discussões sobre raça/etnia e o modo de vida quilombola: “As pessoas devem descobrir o que é a unidade básica, mas para isso a unidade tem que falar para que veio até aqui”. Nesta narrativa ela afirma que o compromisso da política de atenção básica é promover o acesso da população ao direito à saúde no fortalecimento das relações presentes no território na qual a mesma atua. O ponto comum entre as entrevistadas A1 (adulta da comunidade) e J1 (uma jovem da comunidade) é que a UBS se encontra como parte do processo final das escolhas de seus itinerários terapêuticos e a mesma fortalece a prática da medicalização na comunidade.
Entre a atenção básica, as práticas privatistas e os benzimentos
Diferentemente da adulta e da jovem quilombola, o uso da UBS apresenta-se como uma prática frequente entre os idosos e as idosas da comunidade, principalmente os acometidos por hipertensão e diabetes. Nas narrativas deles o Agente Comunitária de Saúde aparece com frequência, enquanto uma personagem que realiza as marcações de consulta, bem como, o atendimento domiciliar. Como afirma I1 (idoso da comunidade): “Porque hoje nós já chega no posto através dessas agentes de saúde. Elas marcam tudo, faz tudo que precisa”. Apesar da disponibilidade da ACS as narrativas dos idosos mostram a incapacidade da UBS na resolução de problemas que não estejam ligados as doenças crônicas: “Eu vou no postinho pela pressão que é alterada, porque de resto é difícil conseguir outra coisa, exame nem se fala. Problema mais sério vou no médico particular” (I2, Idoso da comunidade).
A narrativa de I3 (idosa da comunidade) adentra a uma lógica similar de I1 e I2 (idosos da comunidade), a qual afirma ser a UBS o equipamento para aquisição de seus medicamentos contínuos “[...] quando a doença é de todo mês vou no posto para pegar o remédio de diabetes”. Quando o agravo e/ou doença requer cuidados especializados, I3 (idosa da comunidade) procura realizar o mesmo pelo serviço privado, com receio do atendimento e da fila de espera no serviço público: “Eu guardo o dinheiro para saúde. Fiz uma cirurgia no particular. Agora, não sei, quem vai assim pelo posto, vai fazer consulta e tudo... tem vez que não é atendido, demora muito e as vezes até morre na espera” (I3, idosa da comunidade).
Nas narrativas apresentadas pelos idosos ficam evidentes itinerários terapêuticos que levam a escolhas individualizadas e particulares. Estas alternativas privatistas evidenciam a lógica neoliberal presente no campo da saúde, na qual o cuidado a vida é submetida ao mercado e torna-se a realização do consumo de consultas clínicas e tratamentos medicamentosos, que reforçam a visão biomédica e individualizante da saúde.
Como afirma Campos (2014)Campos, G. W. S. (2014). Algumas hipóteses desesperadas e uma utopia concreta: SUS Brasil. In: F. Rizzoto, A. M. Costa (Orgs.), 25 anos do direito universal à saúde (pp. 43-58). Rio de Janeiro, RJ: Centro Brasileiro de Estudos de Saúde., a política neoliberal não se restringe aos planos político-econômicos, ela se ramifica nas práticas cotidianas das vidas dos sujeitos, que diante da precarização do acesso aos seus direitos, buscam alternativas privatistas a resolução de seus agravos, o que retroalimentam a lógica da saúde enquanto mercadoria.
Os problemas de saúde enfrentados pelos idosos estão relacionados ao modo de vida e as condições de saúde presentes na comunidade quilombola. Os três entrevistados relataram que os problemas de saúde foram frutos da vida de trabalho exaustiva na terra de outros “[…] o trabalho não era meu e nem da minha família. O tempo não era nosso, nem para plantar e colher. Quando plantava minha roça era diferente, era nosso. Eu tomava conta das coisas e do tempo” (I2, idoso da comunidade).
Uma diferença marcante entre os dois idosos e a idosa foi quanto as causas dos adoecimentos, que nos homens foi devido ao trabalho realizado fora da comunidade, em terras alheias, enquanto para I3 (idosa da comunidade) foi a tripla jornada de trabalho, entre a roça, o cuidado da casa e o trabalho fora da comunidade: “A saúde não tá muito boa não. Tenho tal do diabetes. E o meu é dos inquietos, é emocional. A vida toda trabalhando em casa, na roça e fora. Isso não ajudou. E ainda tem as preocupação, ter que dar conta de tudo. Isso adoece”. O marcador de gênero apresenta-se como definidor nos processos de saúde e doença relatados pelos idosos, vividos de forma divergente entre a idosa e os idosos entrevistados.
A busca pela rezadeira e pelo benzedor foi mencionado no discurso de I1 e de I3 (idoso(a) da comunidade), apresentando-se como um marcador de diferença geracional nos itinerários pesquisados, quando comparado com o da jovem e da adulta. A narrativa da idosa afirma buscar estes recursos quando percebe que a doença ou o problema não é só do corpo, mas do espírito. A busca pelo rezador não anula a relação com as práticas formais de saúde, já que ela procura associar em suas práticas de cuidado as duas formas de tratamento: “Assim, a pessoa tá com uma dor, no corpo, vai no médico. Mas as vezes é também da cabeça, né? Do Espírito. A benzedeira conversa, benze e fala daquilo que não dá para vê. Cuida do espírito”.
De acordo com Aguiar (2009)Aguiar, G. O. (2009). Mulheres negras da montanha: As benzedeiras de Rio de Contas, Bahia, na recuperação da saúde. Ciberteologia: Revista de Teologia & Cultura, 3(21), 48-51., o ato da benzedura é produto de um sincretismo entre elementos católicos, marcados por práticas indígenas, como a pajelança e as religiosidades de matriz africana, em uma combinação que promove experiências de integralidade no cuidado a vida. Neste campo de combinações e bricolagens, a benzedura, expressa os modos de resistência políticos e culturais vividos no cotidiano dos moradores do quilombo, nas formas com que eles interpretam os acontecimentos, os adoecimentos de suas vidas e suas práticas de cuidado.
Como afirmam Santos e Ribeiro (2015)Santos, A. O., Ribeiro, R. (2015). Saúde, doença e cura no candomblé: Ação profilática e terapêutica em espaço de religiões brasileiras de matrizes africanas. In: A. C. S. Mandarino, E. Gomberg (Orgs.), Candomblés: Encruzilhadas de ideias (Coleção e-livro, p. 23-41). Salvador, BA: Universidade da Bahia., a permanência das práticas de cuidado vinculada as religiões de matriz africana se perpetuam devido ao seu modelo de atendimento que promove: o acolhimento, o diálogo e as orientações que mobilizam recursos pessoais e o fortalecimento de vínculos comunitários. Vínculos estes que ajudam os sujeitos no enfrentamento de seus agravos e/ou doenças. Tais práticas de cuidado veiculam no seu fazer a integralização da saúde física, psíquica, comunitária e espiritual, que vai muito além de um determinado procedimento biomédico, ou tratamento medicamentoso.
Alguns passos percorridos nos itinerários terapêuticos no Quilombo
Diante da diversidade de itinerários terapêuticos procurou-se realizar uma tabela que apresente quais práticas de cuidado e formas de tratamento são utilizadas diante dos agravos e/ou doenças enfrentadas pelos moradores do quilombo pesquisado (Tabela).
Práticas de cuidado e formas de tratamento apresentadas pela comunidade frente ao tipo de agravo e/ou doença vivido.
Os primeiros passos adotados pelos moradores da comunidade quilombola são as práticas de autocuidado realizadas na conversa com vizinhos, uso de chás e ervas, amparo em crenças religiosas e no encontro com rezador e/ou benzedora. Além destas práticas, há o uso da automedicação presente de forma mais precisa na narrativa da jovem entrevistada. Estes passos são realizados quando se encontra um agravo leve como: dores de cabeça, cansaço, ansiedade, mal-estar. As escolhas terapêuticas estão permeadas por compreensões de mundo e formas de interpretação compartilhadas entre: os familiares, os amigos, os vizinhos, os membros da igreja, as rezadeiras e as benzedeiras.
A conversa com vizinhos pode ser compreendida como um momento de acolhimento, de escuta e de orientações sobre os problemas vividos. Tais orientações podem recomendar a automedicação, o uso de chás e ervas medicinais e a procura do rezador e da benzedeira. O benzimento é recomendado quando a dificuldade enfrentada é interpretada como advinda de elementos espirituais ou da “cabeça”, como afirmou a entrevistada I3 (idosa da comunidade). As práticas populares e os recursos pessoais para a prevenção ou solução dos agravos e/ou doenças vividos, não se realizam de forma estanque e linear, elas podem estar associadas e integralizados junto a outros modos de cuidado e práticas técnico-científicas.
Já a UBS apresenta-se como o segundo passo, identificada em um papel curativo e medicamentoso. Nas narrativas dos participantes as palavras remédio e medicamento estavam associados a este serviço de saúde. Poucos participantes apontaram práticas de grupo e educação em saúde, e quando estas foram suscitadas estavam associadas a busca pelo medicamento. A identificação da medicalização e das práticas curativas na UBS vem ao encontro das necessidades levantadas pelas lideranças comunitárias, que informaram a escassez de práticas educativas e específicas ao cuidado em saúde a população negra na comunidade.
O terceiro passo dos itinerários está associado aos problemas graves de alta complexidade, que necessitam dos serviços especializados e de intervenções hospitalares. Nas narrativas, este terceiro passo inicia-se no acesso à rede do SUS, porém os itinerários migram para os atendimentos particulares e procedimentos privados, devido à morosidade do atendimento, bem como, descrédito na realização destas práticas pelo sistema público de saúde.
Apesar dos avanços existentes na ampliação e abrangência do SUS, por meio da PNSIPN e da Política de Atenção Básica nos territórios quilombolas, a lógica que gerencia as práticas dos programas instalados nas comunidades, como afirmam Bezerra et al. (2014)Bezerra, V. M., Medeiros, D. S., Gomes, K. O., Souzas, S., Giatti, L., Steffens, A. P. et al. (2014). Inquérito de saúde em comunidades quilombolas de Vitória da Conquista, Bahia, Brasil (Projeto Comquista): Aspectos metodológicos e análise descritiva. Ciência e Saúde Coletiva, 19(6), 1835-1847. https://doi.org/10.1590/1413-81232014196.01992013
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, Melo e Silva (2015)Melo, M. F. T., Silva, H. P. (2015). Doenças crônicas e os determinantes sociais da saúde em comunidades quilombolas do Pará, Amazônia, Brasil. Revista ABPN, 7(16), 168-189., Pinho et al. (2015)Pinho, L., Dias, R. L., Cruz, L. M. A., Velloso, N. A. (2015). Condições de saúde quilombola no norte de Minas Gerais. Revista de Pesquisa Cuidado é Fundamental, 7(1), 1847-1855. https://doi.org/10.9789/2175-5361.2015.v7i1.1847-1855
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, Silva (2007)Silva, J. A. N. (2007). Condições sanitárias e de saúde em Caiana dos Crioulos, uma comunidade quilombola do Estado da Paraíba. Saúde e Sociedade, 16(2), 111-124. https://doi.org/10.1590/S0104-12902007000200011
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, Vieira e Monteiro (2013)Vieira, A. B. D., Monteiro, P. S. (2013). Comunidade quilombola: Análise do problema persistente do acesso à saúde, sob o enfoque da bioética de intervenção. Saúde em Debate, 37(99), 610-618. https://doi.org/10.1590/S0103-11042013000400008
https://doi.org/10.1590/S0103-1104201300...
e ainda estão atreladas a uma compreensão técnico instrumental e biomédica de saúde.
Como questiona Fleury (2009)Fleury, S. (2009). Revisitando “a questão democrática em saúde”: Quase 30 anos depois. Saúde em Debate, 33(81), 156-164., qual a questão democrática em saúde hoje? Ou contextualizando a pergunta para a realidade das comunidades quilombolas: qual é a questão democrática em saúde nos territórios quilombolas? Amplia-se à abrangência da rede de atenção básica aos territórios rurais e quilombolas como primeiro passo à garantia do direito a saúde a estas populações. Porém, realizar uma ampliação que não busca ler a realidade a que se vai atuar, sem produzir uma crise nos conhecimentos técnico-científicos, pode cumprir uma tarefa oposta a proposta pelas diretrizes do SUS, dificultando o acesso, não garantindo a integralidade do serviço e a equidade necessária no cuidado as desigualdades presentes nestes territórios.
Considerações finais
O estudo sobre os itinerários terapêuticos possibilitou compreender os variados modos de cuidado presentes na vida dos moradores do quilombo, apresentando as diferenças e as similaridades nas formas de manutenção da saúde e resolução dos agravos e/ou doenças vividas no território.
A presença dos programas de atenção básica nas comunidades quilombolas apresenta-se como possibilidade de transformação da realidade dos quilombos, como forma de garantia da PNSIPN e do reconhecimento das desigualdades vividas pela população negra no acesso saúde. Porém, a atuação da PNSIPN deve ser dirigida em consonância as necessidades das comunidades quilombolas, que apresentam, em seus processos de cuidado e adoecimento, marcadores sociais como raça-etnia, gênero, ruralidade, idade que direcionam seus modos de cuidar da saúde e de lidar com os seus agravos e/ou doenças. As vidas que devem ser cuidadas nas comunidades são concretas e cotidianas, e não cabem em pressupostos abstratos e universais.
A entrada de um modelo de saúde alheio a realidade das comunidades quilombolas, atua enquanto um processo de colonialidade dos saberes, que por meio da legitimidade do saber científico, opera campos de verdade sobre os modos de viver de seus moradores, ora produzindo e ora controlando os corpos e o cotidiano das populações negras rurais. Este distanciamento dos conhecimentos formais de saúde sobre as demandas e necessidades da realidade local, vulnerabiliza o acesso das comunidades quilombolas a saúde e podem reproduzir o racismo estrutural presente na sociedade brasileira.
As histórias de resistência na luta por direitos, o reconhecimento do modo de vida e os conhecimentos produzidos nas comunidades quilombolas, devem ser compreendidos como elementos guias para a construção das práticas de saúde nestes territórios. Elementos estes que permitem a produção de crises nos conhecimentos técnicos científicos. Estas crises possibilitam o repensar e a transformação dos saberes técnicos, que no encontro aos conhecimentos populares, podem fazer das fronteiras epistemológicas espaços comuns de troca e construção de modos emergentes de cuidado a saúde nos quilombos.
São nestas fronteiras epistemológicas que a Psicologia pode inserir seus saberes nos territórios quilombolas. Como uma ciência que se pretende aliada aos conhecimentos comunitários e promotora de mediações entre os saberes técnico-científicos e populares. Para promover estas mediações e aliar-se aos saberes dos quilombos, a Psicologia deve produzir uma crise epistêmica, que descentre suas concepções tradicionalmente marcadas a realidade urbana e territorialize seu olhar ao mundo rural. Este deslocamento permite o reconhecimento dos diferentes modos de vida presentes nas comunidades quilombolas.
Reconhecer os diferentes modos de vida presentes nos quilombos permite a Psicologia intensificar o princípio da equidade no trabalho em saúde e efetivar em sua prática a luta pela garantia de direitos. A equidade é um princípio necessário aos serviços públicos que almejam a igualdade e a universalidade do acesso da população negra a saúde. Em um país estruturalmente excludente, as diferenças expressam-se no cotidiano como experiências de desigualdade, as quais devem ser visibilizadas para promoção de ações conjuntas, com diversos atores sociais, a transformação da realidade destas comunidades.
O discurso da igualdade torna-se projeto necessário a Psicologia para a busca de direitos e recursos ainda negados as comunidades quilombolas, mas que deve ser mediado pelas evidências de injustiças sociais sofridas nestes territórios. Visibilizar estas experiências de desigualdade, que reverberam na diversidade de práticas de saúde presentes nas comunidades, apresenta-se como um dos papéis da Psicologia. Papel este que busca evidenciar as demandas e as necessidades de saúde localizadas no cotidiano dos quilombos, as quais devem ser dialogadas as práticas dos profissionais de saúde, na produção de ações singulares para a efetivação da PNSIPN.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Ago 2019 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
-
Recebido
11 Abr 2019 -
Aceito
06 Maio 2019